BELÉM, DOMINGO, 14 DE DEZEMBRO DE 2014
OLIBERAL
MAGAZINE 11
sim
VICENTE CECIM
vicentefranzcecim@gmail.com
Condor dos Andes
Sobre o Fenômeno das Migrações Literárias (II) Sabemos, como sabia Blake, que as Influências Poéticas são um ganho e uma perda irreparavelmente entretecidos nos labirintos da História. HAROLD BLOOM A Angústia da Influência
V
ocê conhece o meu amigo andino Jesus Sombra? Ele já esteve conosco aqui na página Sim, e, com a ousadia que é sua marca pessoal, fez uma de suas intervenções contundentes, falando da política brasileira, que acompanha de perto e, segundo diz, náusea, junto com toda a política latino-americana e mundial. Jesus Sombra, ou simplesmente O Sombra, como prefere ser chamado, é assim mesmo: montado no alto dos Andes peruanos, como um abutre andino, observa o mundo dos homens aqui embaixo - com especial interesse pelo que eu faço - e leva absolutamente a sério as palavras de Kafka em seu texto À Noite sobre a Humanidade que jaz adormecida enquanto só ele, K, não dorme e ante a pergunta: - Por que vigias?, responde: - Porque alguém precisa vigiar. E foi assim, me vigiando - porque exige que lhe envie esta página toda semana - que ele leu a Sim do domingo passado sobre o Fenômeno das Migrações Literárias e decidiu me escrever para dizer o que pensa sobre o assunto. Que posso fazer perante um amigo tão incisivo senão publicar aqui seu texto - na verdade uma longa carta - outra exigência que me impõe - me empenhando ao máximo para não cometer erros na tradução do seu bem pessoal espanhol-castelhano, porque se isso acontecer - ai de mim - os Andes vêm abaixo – e sobre a minha cabeça. Eis, então, com vocês, novamente o meu amigo Sombra, desta vez se pronunciando, eu diria que feroz e apaixonadamente, sobre as Migrações Literárias. Ah, e com os direitos que também exige para si de insólito escritor que se dispõe a ser.
preserva a liberdade de ser diferente sem nos afastarmos da igualdade entre os homens. Só entre nós, te confesso que nunca havia pensado isso e, sem dúvida, apreciaria muitíssimo que tal pensamento houvesse ocorrido a mim - e não a ti. Mas não vou perder tempo disputando mesquinhas glórias pioneiras contigo – a quem apenas desejo boa sorte com teu recém-lançado novo livro de Andara: Breve é a febre da terra, e ingresso, imediatamente, nas elevadas implicações a que nos remete o questionamento do Fenômeno das Migrações Literárias. Adiante. Comecemos pela vertiginosa, e apavorante, busca descrita na Carta de Lord Chandos, do poeta Hugo von Hofmannsthal, em que ele diz: A linguagem em que me seria dado não apenas escrever mas também pensar, não é nem o latim nem o inglês nem o italiano nem o espanhol, e sim a linguagem de que não conheço uma só palavra, a linguagem na qual as coisas brutas falam para mim. Essa recusa, total, de uma linguagem comum, sem dúvida vai muito além daquela outra que mencionaste em tua página, quando disseste: No caso específico da Literatura, nem pensar em escrever igual a outros – se dizem os grandes escritores que criaram, cada um deles, um mundo novo através da imaginação verbal. E vai além, assi m abissa lmente , porque quer supe ra r os limites da l i n guagem humana – o que nem mesmo a originalidade única
O regresso do Sombra Hermano Vicente, te mando mis saludos desde las altas cumbres andinas a las profundidades de la Amazonía. Leí lo que escribiste sobre las Migraciones Literarias e não posso calar diante de tão grave e provocante assunto. Primeiro devo logo afirmar que concordo contigo quando enumeras os seguintes estágios - Liberdade, Igualdade, Originalidade - não só na criação literária, também em todas as condutas humanas, mudando a repetitiva inscrição na bandeira ainda desfraldada da Revolução Francesa – pois igualdade me parece que já subentende fraternidade – e substituis a palavra fraternidade por originalidade. Com isso, se
de um homem entre os outros homens pode realizar, isto é: como queria Hofmannsthal - falar a linguagem na qual as coisas brutas falam a mim. Se entenda isso como a possibilidade de falar a própria linguagem das pedras. - Oh. O que talvez exorcizaria todas as vaidades literárias humanas, soprando para longe o vento da nossa voz, escrita e oral, pois - Vento de Vento, tudo é Vento, nos adverte Coélet no seu Eclesiastes. Mas voltemos à superfície das coisas, hermanito, nos limitemos a falar sobre tua divisão dos escritores em originais, originantes, originados. Da minha parte, gostaria que todos os escritores seduzíveis – os tais originados dos escritores originais - instalassem nos Portais, ou portinhas, das suas Obras maiores ou menores, um mecanismo de defesa contra as contaminações, todas as contaminações dos seus livros pelos livros que não fossem seus, adotando, rigorosamente, a advertência Dada de Tristan Tzara: - Os elefantes são contagiosos. Só assim, quem sabe, cada um preservando sua essência única, deixaremos um dia de ver através de um cristal escuro e veremos como somos vistos - segundo profetizou para si mesmo São Paulo, em seu Hino à Caridade. Vicente, hermano humano, tu mencionaste o caso de Poe & Baudelaire e a generosa devoção pública do segundo pelo primeiro. Bem, eu gostaria de fazer aqui uma outra comparação – mas de uma perspectiva hipotética, digamos: escandalosa.
Kafka & Max Broad Imaginemos, por um segundo infernal, esta horrenda hipótese: E se Max Broad não apenas não cumprisse o último pedido do Amigo, feito, como se diz, em seu leito de morte, para que queimasse tudo o que Kafka havia escrito. E se Max Broad, estando Kafka já imerso no simulado silêncio dos mortos, e quase nada havendo publicado na eloquência dos vivos, em vez de escrever a Biografia de Kafka e se lançar à dura lida de editar toda a sua obra, que protegeu com a vida da persegui-
ção mortal nazista aos judeus, através de toda a Segunda Guerra Mundial, fugindo de país em país com os originais – e se Max Broad apresentasse aos homens a Obra de Kafka como obra sua? - Horror Horror Mas agora, Vicente, o que eu quero falar não é dessa história comovente, de como Max Broad não apenas lutou para que o mundo conhecesse a obra de Kafka mas, também, como ele resistiu à sedução originante da obra de Kafka. Minha outra história é também comovente – mas por outros motivos.
Kafka & Dino Buzzati Deves conhecer O Deserto dos Tártaros de Dino Buzzati, não? Não é mesmo um romance - uma parábola fábula alegoria - extraordinário? O que se chama uma obra prima? Mas - que pena - por mais deslumbrante que seja temo que venha a ser corroído pelo Tempo, progressivamente. E sabes por quê? Porque se fez à sombra de Franz Kafka - porque é, ah, um reflexo genial de Kafka - e corre o risco de não permanecer por isso. Buzzati não é um daqueles casos que tu chamas: escritores originais originados? Talvez exatamente não, mas não creio que Buzzati e outros - e entre eles até Jorge Luis Borges - houvessem escrito suas obras como escreveram sem a existência da sedutora & fascinante obra de Kafka - esse mistério humano sobre o qual Alexandre Vialate um dia escreveu: - De Kafka, nada a dizer, a não ser agradecermos por ele ter existido. Devemos buscar o muro das lamentações dos leitores, e sofrer, em nós mesmos, sinceramente, quando coisas assim se dão. Porque: quanto ganharíamos com uma nova Originalidade Originária se nosso Dino nos tivesse dado, em vez de um mágico & belo reflexo de Kafka, uma fulgurante, única e incontaminada cintilação de Si mesmo.
Bem, apesar disso, também celebremos Dino Buzzati - porque em sua dimensão original, de escritor originado que é, Buzzati não se deixa reduzir a um simples reflexo agonizante num Espelho irreversivelmente evanescente. O Deserto dos Tártaros é um livro inesquecível e um dos melhores já escritos - e seus contos, obliquamente kafkianos, são intrigantes espreitas que desvendam no banal-cotidiano as nossas miragens complacentes.
Tão perto - tão longe Mais do que uma pergunta ética, uma questão ontológica - que diz respeito à essencialidade da Vida - nós, escritores, devemos nos perguntar: - Como nos aproximar daqueles escritores que amamos? Eu, daqui destes elevados Andes, responderia ao mundo: - Sem pronunciar uma única vez seus nomes como se fossem ou parecem ser os Nossos Nomes, sem transcrever uma única de suas palavras como se fossem, ou parecessem ser Nossas Palavras Como em tudo nesta vida, também na Literatura - afirmo com a máxima convicção: Amar é preservar imaculado o obcuro objeto do nosso amor.
Kafka & Eliot: Diante da Lei Diante da Lei havia um guarda - conheces a parábola de Kafka, não preciso citar na íntegra. E a Lei Severa se revela quando, no limiar da morte, após passar toda a sua vida diante da Porta da Lei, sem entrar, o homem pergunta ao guarda: - Por que ninguém mais veio tentar como eu entrar por essa porta? E o guarda lhe responde: - Porque esta Porta estava destinada unicamente a ti - e agora eu vou fechá-la. Oh, que Estrondo se faz ouvir em todo o Universo & no nosso Universo Interior quando a Porta se fecha. Nos lembremos dos Homens ocos de Eliot: é assim que acaba o mundo é assim que acaba o mundo é assim que acaba o mundo não com um estrondo, mas com um gemido É esse gemido cósmico que ecoa pela vida inteira, da Vida Visível à Invisível, quando um homem abre mão da Sua Originalidade e se perde de si.
Machu Pichu Diciembre, 2014
Píndaro & a Sombra Para que não digam que deixei meu amigo falando só nesta página Sim, sinto que devo lembrar a ele, Sombra, a fugacidade das coisas, de todas as coisas – sem esquecer a minha e a dele. O que me leva diretamente à Antiga Grécia e a ainda ecoante voz de Píndaro nos dizendo: O homem é o sonho de uma sombra.
Cordilheira dos Andes