BELÉM, DOMINGO, 28 DE DEZEMBRO DE 2014
OLIBERAL
MAGAZINE 11
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VICENTE CECIM
vicentefranzcecim@gmail.com
Febres da terra (II): As Ilusões
Andara quer a origem, o Antes do ponto em que tudo começou a se perder do Todo, o ponto oculto de nós, que só se consente a nós em Relances, Vislumbres.
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leitura de um livro é sempre uma coisa solitária. A menos que haja alguém por trás de você espiando por cima do seu ombro e lendo o livro ao mesmo tempo – mas isso tem o inconveniente de não se saber quem vai virar a página primeiro, quando um terminar a leitura antes do outro. Uma alternativa é alguém ler em voz alta o livro para várias pessoas. O que nos faz lembrar os antigos tempos em que os livros eram primeiro lançados em folhetins, nos jornais – se gotejados pouco a pouco ao longo de meses, antes de virarem livros impressos e irem para as livrarias. Por que falamos disso? Porque, hoje, a página Sim continua evocando os tempos dos folhetins, publicando um segundo fragmento do meu recém-lançado livro Breve é a febre da terra - Prêmio Haroldo Maranhão de Romance, do Iap. Naqueles tempos, sem rádio, cinema, televisão, internet - e antes do núcleo familiar ter sido implodido pelos tempos modernos – o que fazer das noites em família? Para isso, então, foram criados os folhetins. Clássica é a gravura, que aparece em um dos romances do próprio Dickens, de uma família inglesa completa, com pais, filhos e avós, sentada ao redor da lareira em um inverno europeu e alguém lendo para todos o mais recente folhetim de As Grandes Esperanças, de Charles Dickens. Ou Vinte mil léguas submarinas, de Jules Verne. Ou Crime e Castigo, de Feodor Dostoievski. Cada folhetim era interrompido exatamente em um trecho que deixasse o leitor ansioso para ler o que iria acontecer no próximo folhetim – no qual o final do folhetim anterior era repetido – para quem não o tivesse lido entender o que estava acontecendo. Então, para o leitor que não leu a página do domingo passado, eis o finalzinho dela:
Vocês entenderiam? Se se dissesse como, também: A abolição do tempo se dando em Andara jamais abolirá A peDra dos sonhos. Ficções
A última coisa que se viu, antes da nau branca afundar para sempre, no sangue, no Atlântico, entre uns pedaços de carne que ainda flutuavam mas já se dando ao esquecimento de um mar outra vez calmo depois que a nau negra tinha ido embora. Negra Serenas outras vez aquelas águas
Onde o incendiado pelas febres numa praia
Comparando o texto desta prosaica abertura com o texto da ficção a seguir, você, ao mesmo tempo que lê, estará assistindo ao espetáculo da devoração da fala prosaica do primeiro pela Fala Poética do segundo - que é a Outra linguagem que falam os livros visíveis de Andara Assistamos a esse espetáculo:
Breve é a febre da terra (II) Saibam em Andara um dia será achado este livro. Soterrado sob toda essa realidade exposta, de Beléns e floresta amazônica É por baixo, onde uns ossos esquecidos ainda fertilizam a terra, e não por cima, onde uns fantasmas de carne quiseram ser a relva real da História
Entenderão?
Onde se dá indicações sobre o tratamento do espaço Arquitetura: Construção em ruínas, pois se livro de areia O que se ilustra aqui com uma descida ao fundo do mar abandonando o ponto de vista humano para vermos, vejam, o naufrágio da nau por baixo: com olhos de peixes, os olhos frios dos peixes: eles vendo sem espanto o afundamento da nau branca branca e dos homens que nela vinham, esses que perdendo o ar, e sem guelras, descem em direção a um outro reino onde o humano não é bem-vindo. Imaginem: todos aqueles corpos descendo, e já em sonhos, todas aquelas carnes para os peixes, por alimento, descendo, todo aquele sangue indo, descendo para os abismos do fundo do mar, e fora do seu lugar natural, é fora do corpo. Imaginem, é por baixo da superfície das águas, imaginem: essa visão para peixes de um desastre humano Imaginem: As carnes afundando, e homens, sem guelras, afundando. Imaginem a cena. E sem ar e tudo descendo lentamente, muito lentamente E silenciosamente acontecendo
Fosse o século XIX em que isto se dando só mais uma tentativa do tempo existir, como disse o inseto atemporal, em Andara, isso mais tarde estava acontecendo àquele homem, o náufrago, agora jogado numa praia. Um polvo dos pequenos e uma estrela do mar porosamente agarrados à madeira de sua perna observando com terror aquele rosto humano, o nunca visto antes, e Ah, o Oh sendo talvez esse rosto para eles, polvo e estrela, um o menor que refletiria quem sabe o O maior que fez todos os rostos que fez polvos e estrelas no mar e também nos céus, quem sabe, os homens nunca saberão As águas outra vez serenas, tendo a nau negra ido embora e o homem ali incendiado pela febre, foi quando veio Aquilo, aquele outro.
Sentou ao lado do incendiando-se na areia, para esperar talvez as cinzas talvez daquele fogo. Esperou. Mas as impaciências vindo depois, e tendo fome, já aquela Sombra que chegara aproximava a boca daquela carne. E dentes vinham, ávidos. Mas o fogo na carne do homem incendiando-se, as febres, defendiam aquela carne, e a Sombra afastava novamente a boca daquela carne ardente. Também mais forte era a febre, o fogo, na madeira da perna do incendiando-se E crescendo aí esse fogo, pois mais amizade ele tinha pela madeira do que pela carne, fez fugirem o polvo e a estrela de volta para o mar, temendo, à medida que crescia aquele fogo, ainda mais o O enorme oculto que fez polvos e homens e estrelas no céu e nas águas e que tudo incendeia nesta vida com essas coisas não se brinca se dizendo aqueles dois enquanto sumiam nas águas indo agora em busca das carnes frias, geladas, as esbranquiçadas, daqueles outros que haviam sumido com a nau branca O incendiando-se, na febre, às vezes abria os olhos, fechava. Não visse nada. Só a areia e as vagas silhuetas das árvores, longe, às vezes porém também vendo através das chamas um vulto, que se inclinando para ele, ora se afastando, aquela Sombra que chegara, naquela praia. Ora esse outro se afastando, depois se reaproximava, e com ele aquela fome que tinha da carne humana é que a carne sempre atrairá as sombras?
Um dia Andara um deserto. E um vento virá não se saberá de onde afastar a areia e abrir as suas páginas. Não se perguntem quem o escreveu E uma vez aberta a primeira página, ele teria começado assim como agora se leu
E então aquele outro agora levava de uma vez sua boca de sombra àquela carne. Carne de fogo, porém. E lábios queimados, e um grito
Onde se dá a indicação de um tempo para estes acontecimentos A ilusão do tempo. - O século XIX foi mais uma tentativa do tempo existir disse o inseto atemporal, sua voz É nesse tempo, no entanto, que isto Aqui se dando, estes acontecimentos: a ficção
Vinha aquele outro. Sob o sol E vindo, ficou olhando aquele incêndio humano. E como polvo e estrela do mar, também para ele um Oh, pois homem assim em chamas a coisa nunca vista antes.
Aquele homem jogado na areia, se incendiando como uma cidade, já foi dito antes, antecipando, e no fundo do Atlântico embranquecessem mais e mais a nau branca, as carnes esquecidas, e então, eis:
Tudo isso talvez apenas sonhado por essa sombrazinha faminta de existir também humana, o certo é que o seu grito ia espantar algumas aves que na areia se banhavam de luz de sol, ali naquela praia. E o céu, antes vazio, se enchia do voos daquelas aves. Depois, a Sombra que viera se afastava. Apanhava a água do mar nas mãos, voltava. Para jogar essa água naquele incêndio
e o incendiado abria os olhos, só um pouco: via aquela boa ação, via isso assim, e aquele vulto, e agradecia, e agradecido fechava outra vez os olhos, exausto. Mal sabia que sombras só fazem isso para esfriar a carne, apagar seu fogo. Quebrar a taça Beber o vinho rubro O lamentável sangue humano. Já antes derramado no Atlântico, todo aquele sangue O que dizia aquele náufrago nessa praia, em febres, um homem numa praia se incendiando como uma cidade, chamas para se ver longe sob aquelas aves que agora esvoaçavam por céus negros, assustadas, sob o sol? Aquele náufrago dizia: - Terra, terra, ainda se pensando nas águas do Atlântico Ele dizia: - Terra, ah terra. Ah distante Dizia: - Esses olhos, se não veem, como achar terra com eles Através das febres, o homem querendo avançar para uma terra desconhecida, ou quisesse voltar para a terra em que nasceu. Às vezes o querendo essas duas terras juntas, ao mesmo tempo Aquele náufrago, então, pedia à madeira da sua perna: - As fibras de estar vivo, ó madeira, novamente me revela. - Os sóis negros que se escondem de mim, te incendeia ó madeira e queima, para que eles se iluminem e me mostrem um caminho Aquele náufrago às vezes se perguntando na areia: - Os portos no escuro Escuro estão em toda parte? É em frente, em mim ou atrás de mim? - Mãe, aranha, teia de abandono. Gritasse ele então - Mãe, talvez ele murmurasse agora uma gratidão ao vulto que entrevia através da água que a Sombra lhe jogava para esfriar sua carne em chamas ao outro, ao que viera, à Sombra, à comedora de homens O Outro, terrível, o obscuro, enquanto isso, deitado ao seu lado, ouvia, esperando que aquela carne esfriasse e pudesse ser tocada. E de esperar sente sono Um homem se incendeia como uma
cidade, se diz, arde em febre, se diz enquanto a sua sombra, um outro, ou anjo com mãos de água Escuro, aquilo, ao lado do homem na praia adormecia Quando acordou, já era o náufrago lhe trazendo uns frutos. Dava a ela, à Sombra. Por gratidão. Os frutos. Tirados das árvores ao redor da praia. Sua gratidão, por aquela aguazinha fria que lhe havia jogado. Frutos que ele estende, e o outro, a Sombra, recusa. Pois não quer uns frutos assim vazios de sangue aquelas mãos para ela estão vazias. Sorrisse o náufrago enquanto fazia isso. E nem notasse que do alto o sol já não lançava a sua sombra na areia. Eis esse homem agora aí. Vejam, agradecendo pelo bem que lhe fizera aquela Sombra Mal sabia E então se deu entre aqueles dois o seguinte diálogo. Ei-lo: Diálogo do senhor e do servo. Fragmentos, tendo o tempo aqui mais corrompido as palavras do Livro Achado na Areia, e da Sombra do náufrago nada restando do que disse, se disse então alguma coisa - Pois sendo tu o que apagou a minha febre, dizendo o homem - E isso quando até mesmo a madeira da minha perna me abandonou, ela se dando por mais amizade ao fogo, se negando por menos amizade a minha carne que a recebeu e depois de todos esses anos juntas: a minha carne e essa madeira, sendo irmãs antigas Dizendo o homem: e tendo te visto através da febre e das águas amargas dos meus olhos, o anjo de mãos de água derramada sobre mim Dizendo: pois tendo pedido aos sóis negros que me iluminassem, mas tendo eles mais se escondido de mim, enquanto tu, com mãos de água apagando o fogo que me queimava e trazendo de volta a luz mais branda deste sol que agora sobre nós nesta praia Dizendo E assim ali foram ditas muitas coisas entre eles, ou só um falasse língua humana. Não saberemos De Breve é a febre da terra/Viagem a Andara oO livro invisível