Sim 82 Febres da terra (III) Os Conflitos

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OLIBERAL

BELÉM, DOMINGO, 4 DE JANEIRO DE 2015

MAGAZINE  11

sim

VICENTE CECIM

vicentefranzcecim@gmail.com

Febres da terra (III): Os Conflitos

Andara busca o homem além de si, fora de si: no Umanoh. O homem precisa se deixar cair do ponto insustentável onde se instalou para ter o direito de adquirir asas. Será durante a sua queda que irá descobrir sua leveza possível.

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ocê seria capaz de distinguir um Bach de um Haendel se ouvisse uma música a distância - sem saber quem era o autor? Pode ser apenas uma questão de amor: eu, por exemplo, porque amo muito Johann Sebastian Bach e apenas admiro Georg Friedrich Haendel, consigo distinguir um do outro por alguns acordes apenas – os de Haendel soam nos meus ouvidos, os de Bach nos ouvidos da minha alma. Assim, também jamais confundiria uma página de Franz Kafka com a de outro escritor, mesmo semelhante a ele, como, por exemplo: Dino Buzzati – ainda que ache a página jogada na rua, arrancada do livro, e sem qualquer indicação do título do livro nem do autor. Questão de amor: Buzzati eu leio com olhos físicos, Kafka com olhos metafísicos. Por que isso acontece? Além das intuições afetivas que tornam inconfundível um autor original e Único, como Bach ou Kafka, há outro elemento que os distingue dos outros: eles são como hologramas: em cada palavra suas ecoam todas as suas palavras – como cada parte do corpo da pessoa amada evoca sua totalidade, mesmo que seja só um pedacinho cortado de unha, e do pé, e do seu dedo mindinho. Hoje, avançando na jornada do meu livro Breve é a febre da terra mostrado na página Sim por partes, na forma de um folhetim - como os jornais antigos publicavam os livro, antes que eles fossem para as livrarias - eu gostariam que essas páginas houvessem levado a você, holograficamente, todos os dezesseis já editados livros visíveis de Viagem a Andara oO livro invisível. Mas como isso, como foi dito – também, e sobretudo, é uma questão de amor pelo autor, talvez esteja querendo demais. Vamos ao terceiro fragmento do livro, relembrando, antes, o final do fragmento anterior:

Dizendo o homem: e tendo te visto através da febre e das águas amargas dos meus olhos, o anjo de mãos de água derramada sobre mim Dizendo: pois tendo pedido aos sóis negros que me iluminassem, mas tendo eles mais se escondido de mim, enquanto tu, com mãos de água apagando o fogo que me queimava e trazendo de volta a luz mais branda deste sol que agora sobre nós nesta praia Dizendo E assim ali foram ditas muitas coisas entre eles, ou só um falasse língua humana. Não saberemos

Breve é a febre da terra (III) no que já os encontramos, mais adiante, a caminho, deixando aquela praia E o homem, o náufrago, ainda dizia à sua sombra: - Pois foste escolhido para me servir, por confiança, nesta nova terra E assim agora seguem eles no livro que um dia Andara um deserto, será achado na areia.

Onde por serem homens ali a vida infernalmente vivida Quanto às coisas por que passaram, os lugares irritados e uns bichos que choravam e a melancolia das estrelas e uns fantasmas que viram pelo caminho, ah, isso foi completamente apagado pela areia não fará falta, não fará já se viu em outras páginas que a areia ainda não apagou dos livros de Andara, páginas que ela ainda irá apagar Literatura, se diz. A Areia, se diz.

Velozmente, então e diretamente ao ponto em que seus pés teriam chegado após os círculos que fizeram pela vida, ei-los aqui: De tanto andarem, um dia teriam achado uma rua. Só ela. Aquela rua. Na floresta Andara. A ruazinha solitária. Com umas casinhas de terra de um lado e do outro, e mais nada, bem no meio da floresta. Só aquela rua, aquelas casas E as suas janelas, fechadamente isso, uma Visão, de febres seria? Dos dois lados daquela rua onde tinham ido parar, certamente viviam uns homens - Esquerdos e Direitos, como o náufrago logo passou a chamar, tendo eles chegado nesse lugar onde só uma ruazinha em plena floresta, e aí a Vida, infernalmente A vida um espinho sem ternuras Sentimentos mais negros eram fantasmas no ar. Se via ali, naquela rua Mágoas cavavam o chão para comer terra com raiva naquela rua Aquela rua era um antro por sapos com rancores. Tendo a achando na floresta, eles entrariam nela ou não entrariam? É que já vindo a noite, o náufrago decidiu pela observação oculta. Subiram numa árvore. O que obscuramente é narrado no livro achado na areia os dois, uma só sombra, e iriam ver uns acontecimentos bem estranhos ali se dando. Se ouvia, do alto da árvore em eles haviam se instalado, a voz do náufrago, dizendo à Sombra: - Se ainda és homem, teme esta vida se para os homens ela tem dois lados tendo eles se escondido para ver sem serem vistos. - Que o teu lado direito tema o teu lado esquerdo, sussurrava o náufrago à Sombra, e eles escondidamente olhando aquela rua Esperavam a manhã. - Há casos, os enlouquecidamente, em que a própria mão direita corta a esquerda sussurrava o náufrago à Sombra, e eles, ali, os escondidos. Ele falando de uns ódios que o corpo pode ter contra si mesmo. Dizia o náufrago: - É só por sermos Foi então que uns gritos, os horríveis, começavam a vir daquela ruazinha entre árvores. E umas vozes há de desespero, horríveis E uns lamentos tão os sem esperança, horrivelmente E uma só sombra olhando, foram outras sombras o que eles viram. Sombras grandes, e outras, pequenas. Saindo das casas, dos lados esquerdo e direito da rua, e à traição caíam as maiores sobre as sombrazinhas, e essas, ah, elas, essazinhas, ficavam ainda menores, se dando a feridas e indo para a morte. Pois cediam uns suspiros, murchando na noite essas flores, feneciam. Punhais agiram durante toda aquela noite, cintilando as estrelas. Até que finalmente a manhã veio. E a luz da manhã vinha desfazer, aqui e ali,

as sombrazinhas menores que haviam caído na rua por toda a noite atravessadas pelos punhais das sombras grandes Quanto a estas, tendo vindo a manhã, evitavam a luz. Se fechavam novamente nas casas De direita/esquerda se diz: Tendo o náufrago repetido para a Sombra essas coisas, ali na árvore em que estavam, ainda ocultos, enquanto a manhã nascia Se diz: - A direita é a direção do Paraíso, a esquerda é a direção do Inferno. Quando o último dia vier, os justos ficarão à direita, os injustos à esquerda, se diz. Se diz: O primeiro homem era homem do lado direito, mulher do lado esquerdo. Homem e mulher tendo nascido assim do que cortou ao meio direita/ esquerda. E se diz: - Marca com um sinal no olho esquerdo as crianças ao nascerem, para que se consagrem ao mal. - Essas coisas se dizem, contava o

náufrago à Sombra, havendo uns que ainda dizem que teu lado esquerdo é noturno e o teu lado direito diurno, ele dizia. - E outros dizem deita o homem morto do seu lado direito e a mulher morta do lado esquerdo dela. - Mas há também quem diga que é com a mão esquerda que se deve dar, e com a direta receber, numa inversão do que foi dito antes, para que se instale um novo bem - Com que mão tu apagaste o fogo em mim com as águas do Atlântico? Perguntava Dizendo: - Mas a verdade é que, de tudo isso, como pudeste ver com poucos olhos e muitos ouvidos, nesta noite que agora se acabou e nesta rua que achamos em nosso caminho, tudo se torna um mal sem preferência de lados se se trata de homens, estando todo o mal em dividir a vida à direita e à esquerda, como aqui se faz. E muitas coisas mais ele disse. Antes de desceram da árvore, tendo agora então já nascido inteiramente a manhã, e eles entrando na ruazinha onde um inferno, nas noites, vinha revelar os homens aos homens O outro, o Outro, a Sombra. Aquele outro e seus silêncios. Só ouvia Sombras e aves. Sombras e aves. As sombrazinhas humanas ali se dando à luz, se desfazendo na manhã no chão da rua, aves também vieram voar por ali. E eram espertas aves, vinham se fazendo de invisivelmente Umas asas leves, uns voos silenciosos Para não espalhar uns fios de pó em que aquelas sombrazinhas iam se tornando, antes de se desfazerem na luz. Queriam esses fiapos de sombras para levar nos bicos para seus ninhos, onde filhos A fome vindo ferozmente para todos na manhã que nascia. E pousando, ficavam por ali ciscando uns restos das sombrazinhas humanas. Pegavam nos bicos uns fiapos do que havia sido um sorriso, no que havia sido gente, e voavam, depressa depressa, para os ninhos. Tinham que ser mais rápidas do que a luz. Uns fios de carnes de sombra flutuavam assim nos bicos daquelas aves naquela manhã. Elas, enfim, leves naqueles voos, essas carnes Mas por mais rápido que voassem

as aves, depressa depressa, a luz era mais veloz, e quando atingiam os ninhos: só uns bicos vazios para dar aos filhos nada, nada E grasnavam umas decepções. Nos olhos das aves então umas surpresas, e uma pena de repente envelhecendo nas suas asas. Delicados como as aves, o náufrago e a Sombra agora entrando pela rua, onde direitos e esquerdos. Evitando pisar naqueles restinhos de sombras humanas pelo chão Algumas delas ainda vivessem o tempo de um sorriso de passagem para eles, o tempo de quase dizer bom-dia para eles na manhã que nascia, uns restos de lábios ainda ali pelo chão. Foi quando uma das aves, deixando a companhia das outras, e era negra, veio de repente e pousou no ombro do náufrago. Sentindo os seus ossos, pois bem magro. Se firmou neles, ossos O homem ainda tentou arrancar a ave de si, temendo um ataque. Mas então a reconheceu. Com emoção. E foi também o reconhecido pela ave. Pois se era a ave antes de pano bordada na bandeira da sua nau branca branca, aquela nau que agora se dando ao esquecimento no fundo do Atlântico Ela, depois de ter fugido do mastro durante o ataque da nau negra, devia ter vivido ali entre aquelas aves. A solitária ave antes de pano agora se tornado ave real, como as outras Menos por um remendo na bandeira feito de um outro tecido, que aparecia agora em seu peito, aquela parte permanecendo de pano sem ter ganhado vida. Mas no mais, ave. Agora seguirá assim o homem, o náufrago. Tendo ele, por companhia, além da sua perna de madeira, aquela Sombra, e essa ave negra pousada no seu ombro E ali no chão uma última sombrazinha humana via eles passarem, se dando à luz, o que sobrava dela, só uns olhos Via eles chegarem, entrando por aquela rua onde homens dividiam a vida, só por serem homens De Breve é a febre da terra/Viagem a Andara oO livro invisível


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