Sim 83 Febres da terra (IV) Os Cantos

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BELÉM, DOMINGO, 11 DE JANEIRO DE 2015

OLIBERAL

MAGAZINE  11

sim

VICENTE CECIM

vicentefranzcecim@gmail.com

Febres da terra (IV): Os Cantos

Para que serve então a vida-escrita? - É um instrumento, para ver, tentar abrir, dobra a dobra, insistindo, a vida real Ó SERDESPANTO

A

s partes anteriores de Breve é a febre da terra mostradas aqui na página Sim foram: I, Os Sinais, II, As Ilusões, III, Os Conflitos. Com a IV de hoje todo livro – editado pelo Iap por ter recebido o Prêmio Haroldo Maranhão de Romance, ficará disponível na imprensa e na internet para quem quiser ler sem comprar, ou não possa comprar. Como esse Gesto reafirmo as minhas convicções de que, primeiro, Arte não é comércio - é o Belo, o Mistério e via de Libertação para os homens. Segundo, a convicção de que - sendo a Literatura tão essencial para nos nutrir como o pão para a saúde do copo & e o vinho para as alegrias da mente/alma - deve ser doada – sem fins lucrativos - e que os escritores realmente solidários com o Humano ao seu redor devem aproveitar a multiplicação das artes que a internet agora nos permite para se tornarem populares não por venderem milhões de livro pré-fabricados, e sim como partes desta irreversível Comunidade global, que permite converter a venda de livros impressos em fazer doações de seus livros pelo menos em versões virtuais. Não fiz aqui nada de novo: a publicação dos livros em Folhetins antes de irem para as livrarias foi uma prática nos antigos jornais, como já disse aqui. A única diferença é que, agora, esse gesto deve ser entendido como um ato simbólico de reafirmação de que ler é nutrição ou não será nada – o que se aplica, claro, aos livros não fabricados em massa para serem consumidos como produtos pelo critério mercantil de mais vendidos, os best sellers - uma das versões mais alienantes da avidez do Capital, só comparável ao cinema mercantil. Vamos a quarta e final parte do livro, relembrando, antes, o final do fragmento anterior:

E ali no chão uma última sombrazinha humana via eles passarem, se dando à luz, o que sobrava dela, só uns olhos Via eles chegarem, entrando por aquela rua onde homens dividiam a vida, só por serem homens

Breve é a febre da terra (final) Aquele dia foi todo de janelas fechadas. Nem portas havia. Ninguém saía das casas. As aves. Uma delas às vezes passava no céu: um olho olhando a ruazinha vazia, do alto. E só o náufrago ali, sua ave negra, a madeira na sua perna, a Sombra. A ave, em seu ombro, ciscava entre uns pensamentos e umas astúcias vivas que ele tinha em sua cabeça. Bem velhos aqueles cabelos, e águas antigas, estagnadas. Ideias faziam redemoinhos neles, mas com limos Como fazer aquelas sombras de homens saírem das casas para a luz do dia? Tendo passado aquele dia Se deu uma outra noite de punhais e sombras E mais pequenas sombras, pela manhã, num outro dia, se deram à luz no chão da ruazinha. Se desfazendo Querendo tudo isso ir assim para um tempo mais longo, através de outros dias, então o náufrago iniciava uns cantos de promessas, de coisas belas, para atrair aquelas sombras para fora de suas casas. E baixinho ele cantava junto às janelas fechadas O canto. Este: Nenhuma cidade é feita para se viver Se dissessem isso os homens e fossem embora para serem árvores flores galhos enlaçados uns nos outros De árvores, homens dariam frutos frutas De flores, esses perfumes que se passaria a aspirar principalmente em noites ocas sem sonhos

Homens não gostam de ser bicho Mas bicho gosta menos ainda de ser homem, porque homem pensa: pensamento de bicho é rabo abanando quando bicho gosta do alimento Por isso ao menos deixando as cidades se fossem para árvores flores, vegetais Vegetais são bichos do verde, mas homem não sabe, por isso aceitando ao menos talvez dar frutos frutas Cidades desertas serão memórias paredes de esquecimento Cidades abandonadas por homens inversamente serão floresta para bichos virem viver nelas, vegetais nascerem das gretas das paredes Nessa inversão se dando um encantamento de fazer a terra passar a girar ao contrário Depois, séculos e mais séculos se passando, o tempo Até: vegetais se dizendo cidades não são feitas para se ser flor, árvore, fruto fruta E querendo voltar para florestas Passariam então pelos homens eles, que também estariam voltando às cidades? Que pena Já foi assim muitas vezes: esses refluxos Por isso umas árvores que falam com a gente, quando se passa debaixo delas Falam folhas usando a língua do vento, que se esquecemos Por isso uns homens que falam com troncos de árvores escrevendo coisas desenhando corações nos troncos delas contando as suas alegrias e tristezas e sonhos, confidentes Esses se lembrando vagarosamente dos Tempos em que foram o que não eram árvores, homens homens, árvores e que destornariam a ser Pode-se pressentir, justamente hoje abrindo as janelas, uns sinais ardentes no céu de que amanhã, exatamente à mesma hora deste instante um novo cio de reversões vai começar: Só que desta vez homens se indo para estrelas, e árvores indo para peixes, no fundo do mar Exatamente como quer a vida em toda a Via Láctea dos nossos sonhos Tente-se tente-se não acordar

Nas páginas dos livros com palavras de florestas não cai raio real: é mais seguro Ninguém pode queimar pela palavra raio A palavra árvore não será atingida A palavra lagarto é maravilha para ser homem quando chove: Lagarto não olha para o céu um medo nem teme as pedras que o céu joga nos homens quando chove Nas palavras palavra lagarto-homem então se meter, bem metidinho: E só se interessar pelas pedras doentes dos deuses quando elas já estiverem no chão, como os lagartos para se esconder da água vesga do céu e debaixo da pedra esperar que o limo se forme. O limo bom E só levantar uns olhinhos melancolicamente para o céu para ver se já vem sol E avisar o limo que é hora de se deslimar Que essa vida boa vai acabar Até a próxima chuva Quando vai ser preciso novamente humanizar o limo Lagartizar o homem para as pedras doentes dos deuses

Isso cantou o náufrago naquele dia, junto às janelas fechadas. Mas uma outra noite de sombras e punhais veio e passou. E no instante indicado, no dia seguinte as janelas não se abriram Nova noite de punhais E novas sombrazinhas fenecendo como flores. E, no dia seguinte, o náufrago cantou tendo visto nuvens de chuva e tempestade, por inspiração para que não temessem, saindo das casas, a punição do céu pelos seus crimes

Isso o náufrago cantou outra vez. Mas elas não saíam, não saíam. Nem abriam as janelas para a luz dos dias, aquelas sombras Mas uma noite de punhais veio. Passou. E mais pequenas sombras humanas se deram ao seu destino pequeno, e à luz E eis agora aí num outro dia o náufrago, já começando a nascer nele também um rancor. E cantando umas ameaças, pois um homem é impaciências, junto às janelas das sombras

O canto: Quando chove é preciso humanizar o limo Preferência pelo lodo até a raiz dos cabelos deixando de ser homem Mas onde E onde o limo bom, o limo com um se arborizando em ostra? E sem palavras? Se chover, é indo para silenciar que é melhor

O canto. Ele cantava agora: Tirassem as asas da mosca para fazer uma voz suave E depois seria o fim das florestas E à noite a palavra luar já não desceria do céu sobre nos Bocas insones viriam na língua dizendo pregos agulhas enferrujadas cravos e ferros, cravos de silêncios e uma mancha de ferrugem crescendo

em cruz devorando lábios, arrependidamente Se a palavra luar fosse refletida num lago noturna criaria um homem Ponha a palavra luar na frente de um espelho para ser apresentado a ele E depois devolva as asas da mosca E nunca mais tome banho até o fim dos seus dias Os clamores do mundo não se acalmam com asas de mosca Fique sabendo disso Com lábios silenciosos de voz de espelho mudo Se olhando com olhos de inseto a quem tiraram o zumbido o zumbido, oh Isso cantou o náufrago. Mas aquelas janelas ainda, fechadamente E após mais uma noite - Os punhais, os punhais as noites passadas escondidamente no alto das árvores, o náufrago estava cantando sob a lua branca das vertigens em um novo dia No que querendo ele dizer àquelas sombras lá, que noites poderiam servir para outras coisas ao menos para existirmos homensmusgos os Brevementes nesta terra O canto: Humanidade nunca dançou com a lua Dança de sombra tem memórias de ave Homem que dança com a sua própria sombra tem sentimentos de lua Na dança de três: um homem, sua sombra e a lua, há sentimentos de água Dançar dentro da água é bom porque se lava a espécie humana de toda espécie de crimes do presente e ainda sobra água para lavar as vergonhas do passado, lua para iluminar os futuros, se há, sombra para se esconder o rosto Humanidade nunca dançou com a lua Só dançou com sua própria sombra Por isso uns sentimentos de ruína e ossos Não funciona Li Pó dançou com a lua e sua sombra uma vez e a Humanidade ficou ligeiramente mais apresentável: para anjos, insetos e pedras de esperança plantadas como pés de alface Alfaces são mais frescas que a água orvalho destes meus olhos Que choram toda vez que estou dançando com sombras de crianças e bois e silêncios de abismos de estrelas de cavalos longos de viagens, e então faz sol de repente Li Pó só dançava à noite para não correr esse risco A manhã vem com ruídos de trevase acaba a festa E não mais não cantou aquele homem, o naufrago, junto às janelas fechadas. Pois as sombras não abriam, não abriam E à noite, voltavam, finos, os punhaizinhos

Eis: agora uma nova manhã. E mais algumas sombrazinhas ali se desfazendo naquela rua. E depois nem fiapos de carnes de sombra para os bicos das aves. Aqueles voos inúteis. E uns ninhos, onde desesperos, e gritos Aqueles cantos do náufrago também se revelando inúteis, agora ele ia embora, desistia. Ia dali, onde a vida infernalmente só por serem homens, e aquelas sombras, seus punhais antro por sapos, mágoas cavavam o chão para comer com raiva a terra naquela ruazinha na floresta. Talvez um dia volte a ela. O nau frago Se isso conta o livro achado na areia, mas essas são páginas apagadas Não se sabe. O que se sabe é que ele agora vai embora. E leva, por companhia, a madeira da sua perna, no ombro a sua ave negra, e atrás dele aquele Outro escuro, a sua Sombra. O triste E no entanto não deixemos esse homem ir embora assim. Tristemente. O tristemente Olhemos uma outra vez o mar Olhemos? onde tudo isso começou, vocês lembram? As luzes e sombras do Atlântico, e suas altas ondas E imaginemos Contra a Areia das palavras fechemos os olhos essas Fendas na carne e imaginemos, imaginemos se nos jorrasse a Úmida: a Fonte ah imaginemos O olho Único em nossa Fronte imaginemos, imaginem os que vindo do mar, enquanto esse homem vai embora, desistindo, esse nau frago, uma outra nau branca branquíssima está chegando. Ela. Também vindo através das mais altas ondas dos nossos sonhos. E nessa nau, vejam, é o náufrago quem está voltando, é ele quem está novamente chegando, pela primeira vez, para tentar novamente pela primeira vez unir o Sim e o não humanos A fábula recomece. Agora, então, da direita para a esquerda, toda a areia desta fábula outra vez voltando pela seiva das águas voltando, também para vocês, que pelo tempo de uma espreita foram esse homem, lendo isso Se essa segunda primeira nau branca a branquíssima um dia tocasse a nossa Areia Escura, ah Então, Caim e Abel, essas Sombras em nossas memórias, esses nomes que chamamos com Náuseas longas convertidos em estátuas de Gritos talvez enfim possudessem, soluçando em nós, sorrir Fim de Breve e a febre da terra A viagem a Andara não tem fim

Viagem a Andara oO livro invisível


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