OLIBERAL
BELÉM, DOMINGO, 22 DE FEVEREIRO DE 2015
MAGAZINE 11
sim Toda linguagem é um alfabeto de símbolos. Como transmitir aos outros o infinito Aleph? BORGES/O Aleph
á imaginou um dia ficar cego? Nem pensar? Eu já. Foi quando no meu terceiro livro visível, Os jardins e a noite, voou pela primeira vez em Andara o pássaro Curau - que depois deu seu nome ao Manifesto Curau, que lancei em defesa poética & política da Amazônia. O que o Curau tem a ver com o escritor argentino Jorge Luis Borges? Nada, e tudo: me lembra o cego Jacinto, personagem do livro. O que o Curau fez a ele? Furou seus olhos, logo após Jacinto o recolher, doente, na porta da sua casa e tratar dele. E por que a ave fez isso? Para libertar Jacinto do ver já sem ver a repetida vida de todos os dias, e passar, em sua escuridão, a ver a Vida trazida e revelada pelas vozes do vento. Sobrevoando esses Jardins, o Curau veio para libertar todos os homens, não só Jacinto, que então passa a recomendar a todos que orem pela volta da ave, assim: - Vem, Curau, vem levar os homens para os teus jardins. Borges não precisou esperar o Curau. Quando a cegueira veio a ele, foi para imergi-lo em Luz, estranha luminosidade que se fundiu a outra luz: a da sua Lucidez. E foi através dessa luz trêmula que
VICENTE CECIM
vicentefranzcecim@gmail.com
Além do Visível
Borges buscou, no livro com esse título, além do Visível – o invisível Aleph. Este primeiro Diálogo com Borges nos fala do seu amor pelos livros e de sua cegueira.
Borges: Cego na Luz Borges tinha fama de ler muito, mas negava isso. Dos Cem Anos de Solidão, de Garcia Marquês, por exemplo, embora gostando, disse: - Não passei dos cinquenta anos. Quando perdeu a visão, relia na Memória os livros que lera. Lembra suas primeiras leituras? - Minhas primeiras memórias são da biblioteca de meu pai. Não me recordo de uma época em que não soubesse ler e escrever. Aprendi entre os três e quatro anos. A biblioteca de meu pai era essencialmente de livros ingleses. De modo que quase tudo que li na vida foi em inglês e depois em outros idiomas: francês, latim. Depois eu me ensinei alemão para ler Schopenhauer. Quando perdi a vista como leitor em 1955, para não “abound in loud self pity”, para não abundar em sonora autocomiseração, como diz Kipling, empreendi o estudo do inglês arcaico. Depois estudei um pouco do escandinavo antigo. Agora pensei em estudar japonês ou chinês. Que livros mais o impressionaram? “As Mil e Uma Noites”. Sempre gostei muito dos atlas e das enciclopédias. Curiosamente, continuo a comprar livros. Não posso lê-los. Aqui tenho, por exemplo, uma excelente enciclopédia italiana. Gosto muito. Acho que é a melhor leitura
para um homem ocioso e curioso como eu. Infelizmente perdi a vista. Se eu a recuperasse, não sairia desta casa. Ficaria lendo os muito livros que estão aqui, tão perto e tão longe de mim. Mas perdi a vista. Continuo a escrever. Que mais posso fazer? Continuo a adquirir livros porque
gosto de estar rodeado por eles. Como quando era menino, já que minhas primeiras lembranças são de livros e acho que minhas últimas o serão também. Como você convive com a cegueira? - Uma das primeiras cores que
se perde é o negro. Perde-se a escuridão e o vermelho também. Vivo no centro de uma indefinida neblina luminosa. Mas não estou nunca na escuridão. Neste momento esta neblina não sei se é azulada, acinzentada ou rosada, mas luminosa. Tive que me acostumar com isto. Fecho os olhos e estou rodeado de luz, mas sem formas. Vejo luzes. Por exemplo, naquela direção, onde está a janela, há uma luz, vejo minha mão. Vejo movimento mas não coisas. Não vejo rostos e letras. É incômodo mas, sendo gradual, não é trágico. A cegueira brusca deve ser terrível. Mas se pouco a pouco as coisas se distanciam, esmaecem… No meu caso, comecei a perder a vista desde o momento em que comecei a enxergar. Tem sido um processo de toda minha vida. Mas a partir de 55 anos, não pude mais ler. Passei a ditar. Se tivesse dinheiro, teria uma secretária, mas é muito caro. Não posso pagar. Por ser gradual, sua cegueira não o levou ao desespero. - Não. Mas se uma pessoa perde a vista de repente, pode, inclusive, pensar em suicídio. Alguma vez pensou em suicídio? - Quando era jovem, sim. Mas quando a pessoa é jovem, quer ser o príncipe Hamlet, Byron, Edgar Alan Poe, ou Baudelaire. Mas agora procuro a serenidade. As pessoas são muito boas para mim. Claro. Sou um velhinho inofensivo. Quem vai me molestar?