TransAndara Walser e Andara Dois contos sobre crianças abandonadas na Floresta Escura: a Vida

Page 1

TransAndara

Robert Walser & Vicente Franz Cecim

DOIS CONTOS SOBRE CRIANÇAS ABANDONADAS NA FLORESTA ESCURA: A VIDA


I

Robert Walser (Suiรงa)

A Floresta de Diaz


Em uma floresta pintada por Diaz, a mãe e o filho pararam. Estavam agora uma boa hora a partir da aldeia. Troncos retorcidos falava uma língua primitiva. A mãe disse ao filho: "Na minha opinião, você não deve se apegar às minhas saias assim. Como se eu estivesse aqui apenas para si. Criatura ignorante, o que você poderia estar pensando? Você é apenas uma criança pequena, ainda quer fazer adultos dependentes de você. Como irrefletida. Uma certa quantidade de pensamento deve entrar com sua cabeça adormecida, e para que isso aconteça, agora vou deixar você aqui, sozinho. Pare de se agarrar a mim com essas mãozinhas, inculto, coisa importuna! Tenho todas as razões para estar zangado com você, e eu acredito que eu estou. É hora de lhe dizer a verdade sem adornos, caso contrário você vai ficar uma criança indefesa toda a sua vida, para sempre dependente de sua mãe. Para lhe ensinar o que significa me amar, você deve ser deixado a seus próprios recursos, você vai ter que procurar estranhos e servi-los, nada além de palavras duras a partir deles ouvir por um ano, dois anos, talvez mais. Então você vai saber o que eu era para você. Mas sempre ao seu lado, eu sou desconhecida para você. Isso mesmo, filho, você não faz nenhum esforço em tudo, você não sabe mesmo o que é esforço, muito menos ternura, você criatura sem compaixão. Sempre me ter ao seu lado faz com que você seja mentalmente indolente. Nem por um minuto você para pensar, isso é o que é indolência. Você deve ir para o trabalho, meu filho, você vai geri-lo se você quiser, e você não terá nenhuma escolha a não ser querer. Eu juro para você, como verdade, como eu estou aqui com você nesta floresta pintada por Diaz, você deve ganhar o seu sustento com amarga labuta, de modo que você não vai se arruinar interiormente. Muitas crianças crescem grosseiras quando são mimadas, porque elas nunca aprendem a ser pensativas, gratas. Mais tarde, todos eles se transformam em Senhoras e Senhores Deputados, que são bonito e elegante do lado de fora, mas autoabsorvidos. Para te salvar de se tornar cruel e sucumbir à tolice, estou te tratando com distanciamento, porque o tratamento excessivamente solícito produz desligar as pessoas de consciência e cuidado.” Quando a criança ouviu estas palavras, arregalou os olhos em terror, tremendo, e um tremor passou pelas próprias folhas da floresta de Diaz, mas os poderosos troncos ficaram firmes. As folhas caídas no chão da floresta murmuraram: “O que foi escrito neste breve ensaio parece ser bastante simples, mas há momentos em que tudo que é simples e recua facilmente compreensível a partir da compreensão humana só pode ser apreendido com grande esforço”. Isso é o que as folhas murmuraram. A mãe tinha ido embora. A criança ficou lá sozinha. Com essa criança ficou a tarefa de encontrar o seu caminho no mundo, que também é uma floresta, de aprender a se manter em baixa estima e expulsar toda complacência presunçosa de sua própria pessoa, para que ela possa ser agradável aos outros.

Narcisse Diaz de la Peña: A clareira na floresta, 1875.


II Vicente Franz Cecim (Brasil) Na Vida


A história. Em Andara iam uma vez um homem e um menino. Não falavam. Iam para onde não saberemos. Nele, no homem, havia uma dor, dura, com clamores. Clarões. O menino aparentemente apenas o seguia. Aparentemente nada tinha a ver com aquela dor, não a percebia e nem a tinha nele. Isso era só aparência. Porque com ele se passava outra e a mesma coisa: visto por fora, como o homem, nem chorava de dor nem ria, e no entanto diferente dele que olhava em volta o caminho, ansioso, selvagem, o menino ia lento e olhava para dentro de si como se buscasse alguma coisa achada na distração de um sono e sumida corpo adentro, e perdida outra vez. Isso que perdera se mantinha em sua penumbra. Com o que se quer dizer que aquele menino estava descobrindo a vida Enquanto o homem, marcado, ansioso Bem. De todos os modos, iam juntos. O homem na frente e o menino atrás. Mas juntos. E por isso avançavam sob a mesma luz e o menino ia envolvido nos clarões da dor do homem, visíveis mesmo de uma grande distância a olho nu. Se por ali passasse alguém. Por ali porém não passava mais ninguém. E foi então que aquilo aconteceu. O homem parou. Abaixou-se. Pegou uma pedra no caminho. Olhou bem no fundo dos olhos distraídos do menino que andava sem atenção para as coisas em volta. Cai sem um gemido. Empalidece. Rapidamente aquilo ia acontecendo. E o menino tomba. E a pedra após a fronte volta para o seu lugar no chão, e de novo é uma pedra igual as outras. Fica lá, onde estava. Espesso naquele instante o céu ia para a noite. Era o fim de uma tarde e anoitecia então sobre eles, um caído junto à pedra, e o outro olhando o que fizera. Nuvens vermelhas, fortes, apareciam no horizonte. Depois, ainda ali, o homem espantava uma ave negra que quis provar a carne do menino. Ele, o homem, olhou então para o céu e fez uma ameaça. Ameaça que também não saberemos qual foi, enquanto continuamos sem saber para onde estavam indo o homem e o menino. O homem fez a ameaça. E seguiu em frente pelo caminho, ansioso, selvagem. Agora, só. Sob o monte de terra, ficou o corpo pequeno pois ele o enterrara. Ficava ali. Também só aquele corpo. Ficava para trás. E o homem desparecia lá longe na distância.


Mais tarde, a terra se movia. Era um escândalo com sua própria beleza aquilo. Mas ainda ninguém estava passando por ali para ver. A terra se movia depois que o homem havia desaparecido misturando os clamores da sua dor aos clamores vermelhos do horizonte. Engolido homem lá, no horizonte, e o menino nunca mais o viu? Que diriam vocês de uma amizade que terminasse assim? E então se deu: o menino deixou a terra e se elevou na noite. Recém-nascido de novo, órfão e cantava, agora, uma música que também não ouviremos. Na noite em que ele se elevava por cima da terra as aves foram ficando brancas, inteiramente, sob a luz da lua refletida na cicatriz na sua fronte. Essa cicatriz que também embranqueceria se o homem fosse perdoado. A noite durava. E pela manhã o pai voltou. Abriu com as mãos a terra. Não achou o menino ali. Foi a sua vez de se afundar, de se cobrir de terra até seus olhos se fecharem sob ela. Anoitecia já então uma segunda vez? Não. Era uma ilusão. É que no céu havia ficado a lua da noite anterior, agora branca e diante dela passavam outras aves. De uma pedra na margem do caminho onde estivera oculto e sentado talvez rindo e olhando tudo, o menino vira o homem abrindo a terra e se enterrando. O filho salta dessa pedra. E vem. Não. Melhor seria: ele também havia ido embora. Teria deixado a terra e ido embora. Agora voltava. Procurava o homem ali. Não. Melhor seria: Nesse instante, o filho abria a terra onde estivera, bem ao lado do lugar onde o homem se enterrava, e ainda viu os últimos movimentos da terra o cobrindo. Cavou também com mãos. Tirou o pai do buraco no chão, escuro e úmido. O ajudou a se levantar, o limpou minuciosamente. E seguiram em frente. O homem e o menino. E iam para onde nunca saberemos. Iam naquela vertigem, sob a lua branca e um sol no alto outra vez e não falavam. Andavam. E aquilo estava acontecendo novamente. O homem se abaixava pegava outra pedra. Agora está olhando de novo no fundo dos olhos do menino. E na fronte dele, a cicatriz, como da outras vezes, vai desaparecendo, embranquece, desaparecia, vai sumindo até


desaparecer completamente Assim é que em Andara uma vez iam um homem e um menino. Juntos. Para onde, não saberemos. Em sonhos? Na vida

Do livro visível Diante de ti só verás o Atlântico de Viagem a Andara oO livro invisível


Robert Walser nasceu na Suíça em 1878,. É um dos mais originais autores do século XX, ignorado pela ignorância de seus contemporâneos – mas lido com admiração e fervor por contemporâneos seus como Franz Kafka, Hermann Hesse, Robert Musil e Walter Benjamin. Trabalhou como funcionário de banco, mordomo em um castelo, e assistente de um inventor, enquanto começava a escrever seus livros. Entre 1899 foi internado a força com um diagnóstico agora muito contestada de esquizofrenia. Loucura dos sensatos ignorantes, que não estavam à altura do seu gênio raro. Walser escreveu sete romances e mais de mil contos e peças em prosa. Morreu na neve, em um dos passeios noturnos que gostava de fazer. Foi achado de manhã por criança brincando na neve. Os adultos vieram, fizeras fotografias de páginas de polícia para a imprensa sobre o velho mendigo desconhecido achado morto e sem família. Bem mais tarde se passou a reverenciar os restos físicos mortais de Robert Walser enterrado em um túmulo para indigentes no cemitério local.

Vicente Franz Cecim nasceu e vive na Amazônia brasileira. Autor do ciclo literário Viagem a Andara oO livro invisível, no qual há quase quarenta anos transfigura a sua região natal, a Amazônia, em Andara, região verbal metáfora da vida, onde ambienta todos os seus livros. Dos livros visíveis de Andara - os que escreve, emerge o livro invisível - que não escreve, literatura fantasma, segundo o autor, o não-livro, que não é escrito: corpo de um corpo que se sonha. Pela Viagem a Andara recebeu o Grande Prêmio da Crítica da Apca – Associação Paulista de Críticos de Arte, em 1988. Já foram publicados também em Portugal os livros de Andara: Ó Serdespanto (Íman, 2000) e K O escuro da semente (Ver o Verso, 2005). Sobre o primeiro, o filósofo e ensaísta português Eduardo Prado Coelho escreveu no jornal Público: Uma revelação extraordinária! (...) O pensamento liberta-se dos seus lastros terrestres e ganha um estatuto de ave, uma leveza de princípio do mundo, uma sageza do fim dos séculos, uma inocência dos extremos. O que faz de Ó Serdespanto um livro inclassificável é que ele é feito do círculo crepitante das histórias que se contam e recontam, do uso visionário das palavras refeitas letra a letra ou a da lenta respiração da terra. E sobretudo de uma demorada aprendizagem do espanto de ser e de não-ser. Como sua Mil e uma Noites da Amazônia, os livros de Andara publicados são A asa e a serpente, Os animais da terra, Os jardins e a noite, Diante de ti só verás o Atlântico, O sereno, Música de areia, Contando estas histórias para nada, Silencioso como Paraíso após o Rumor das sombras humanas, Contando estas histórias para ninguém, Festa dos cabelo trançados, Ó Serdespanto, Música do sangue das estrelas, K O escuro da semente, oÓ: Desnutrir a pedra, Breve é a febre da terra, Fonte dos que dormem. Atualmente escreve Oniá um Lugar cintilante. Sobre seus livros disse: - Andara me desvelou que o Natural é Sobrenatural, o Sobrenatural é Natural.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.