OLIBERAL
BELÉM, DOMINGO, 16 DE NOVEMBRO DE 2014
MAGAZINE 11
sim
VICENTE CECIM
vicentefranzcecim@gmail.com
Manoel de Barros: O gosto de brincar
Andarilho é um ser errático – igual à poesia
É o impossível verossímil. Pois não tem disso a poesia?
Sobre Viver & Escrever - O poema passou a ser um objeto verbal. Antes ele andava romântico. Recebia inspirações celestes. E até se falava em mensagens poéticas. Depois de Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, poesia passou a ser feito de palavras e não de sentimentos. Poesia é fenômeno de linguagem e não de ideias.
MANOEL DE BARROS
O
s jornais anunciam que Manoel de Barros, o poeta cintilante do Pantanal, morreu. Não acredito nisso. Apesar dos detalhes com que as notícias tentam transformar o impossível em verdade: O poeta Manoel de Barros morreu nesta quinta-feira (13), aos 97 anos, no Proncor de Campo Grande. Ele estava internado havia duas semanas e, durante esse período, passou por uma cirurgia no intestino. Conforme boletim médico assinado pela médica Carmelita Vilela, o falecimento ocorreu às 8h05 (de MS). – diz o jornal O Globo. Não adianta: não acredito e não acredito. E, uma coisa que aprendi com o Manoel: Ainda que acreditasse, não acreditaria. Por isso, continuarei conversando com Manoel de Barros – como fiz por telefone, lendo os seus livros e ao vivo, dialogando com ele na sua casa, em Campo Grande. Se precisasse me justificar, ou explicar, diria simplesmente que um poeta como Manoel de Barros jamais é duas coisas: dividido como um homem que vive seu cotidiano & um homem que, em transe, escreve seus fulgurantes e lúdicos poemas. Da mesma maneira, não há um Manoel vivo e outro morto. Não, não. Uno, Manoel é daqueles, poucos, que se entregam todos à grande Dança entre criatura & criador que vai do Visível ao Invisível e tudo preenche. Segundo a família, o velório do poeta está previsto para começar às 14h, na capela do cemitério Parque das Primaveras, localizado na avenida Senador Filinto Müller, 2211, no bairro Parati, em Campo Grande. O funeral será aberto ao público, de acordo com a família. O sepultamento está marcado para as 17h. – diz o jornal O Globo. Ah, não insistam. É inútil, já disse. Se vocês continuam vendo dois homens, só pode ser porque você tem dois olhos discordantes - porque com os meus dois olhos continuo vendo um só Manoel de Barros, integralmente. Esse Manoel das notícias, pois, deve ser outro, não aquele que vi e com quem convivi, em circunstâncias que já contei, antes, aqui em outras páginas Sim. O meu Manoel de Barros continua vivendo sob o signo da Dança Cósmica que Angelus Silesius resume em uma única frase: A divindade agrada o jogo de criar, a criatura é o seu gosto de brincar. Manoel é um andarilho do ser – no Ser – entendam. Rumorejante & remoto. Ele foi só até ali e já volta. Para continuar saltitando entre a infância e a idade avançada que as falsas notícias atribuíram a ele agora. Não a credite em nada disso. E vamos, aqui, continuar con-vivendo com o nosso Manoel de Barros e ouvindo o que ele continuará nos falando, sobre os mais variados assuntos.
Sobre a Morte - Até proponho uma solução científica. Seja esta: O Tempo só anda de ida. A gente nasce, cresce, envelhece e morre. Pra não morrer É só amarrar o Tempo no Poste. Eis a ciência da poesia: Amarrar o Tempo no Poste! E respondendo mais: dia que a gente estiver com tédio de viver é só desamarrar o Tempo do Poste.
Sobre a Angústia - Para mim, viver nunca foi angustiante. Tirando o nunca até que venho bem até aqui. Sou como o vaqueiro Santiago. Santiago, no galpão desafiou que não cairia de um cavalo famanaz de brabo que havia na fazenda. Todo mundo zombou do Santiago que estaria a contar vantagem. Então arriaram o cavalo Famanaz e Santiago amontou de espora e chicote. O cavalo saiu disparado e a corcovear de lado e pra frente. Ao passar pelo galpão os peões viram escrito à espora na paleta do animal esta frase: Até aqui Santiago veio bem. Pois é: até aqui...
Sobre as Visões - Aprendi que o artista não vê apenas. Ele tem visões. A visão vem acompanhada de loucuras, de coisinhas à toa, de fantasias, de peraltagens. Eu vejo pouco. Uso mais ter visões. Nas visões vêm as imagens, todas as transfigurações. O poeta humaniza as coisas, o tempo, o vento. As coisas, como estão no mundo, de tanto vê-las nos dão tédio. Temos que arrumar novos comportamentos para as coisas. E a visão nos socorre desse mesmal.
Sobre a Memória O que eu queria era fazer brinquedos com as palavras.
A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos
Sobre a Fé - Sou um homem de fé. Me acho incompleto e por isso preciso do mistério. Pra mim a razão é acessório. Preciso acreditar que estou nas mãos de Deus. Sem fé eu me sinto um símio.
Sobre Cristo - Algum tempo sonhei meu socialismo. Seria baseado nas palavras de Cristo - Amar o próximo como a nós mesmos. Logo enxerguei que o sonho era utópico. Porque o ser humano nasce com ambi-
ções diferentes. Ambição de poder. Ambição de dinheiro. Como então amar ao próximo como a ele mesmo? A palavra de Cristo é genial e por isso utópica. A ambição destrói qualquer amor ao próximo. A inveja e o ódio também.
mais. Quem não conhece a inocência da natureza não se conhece. Não há filosofia nem metafísica nisso. O que sei, na verdade, vem das percepções infantis. Que não deixa de ser o ensino pela ignorância.
Sobre Deus
Sobre quem acha graça da sua Poesia
- Eu não sou agnóstico. Eu creio em Deus mesmo. E não precisei ler muito para descrer; eu aprendi alguma coisa lendo. Mas onde eu aprendi mais foi na ignorância. A inocência da natureza humana ou vegetal ou mineral me ensinou
– Aprendi com meu filho de cinco anos que a linguagem das crianças funciona melhor para a poesia. Meu filho falou um dia: - Eu conheço o sabiá pela cor do canto dele. Mas o canto não tem cor! Aí veio Aristóteles e lembrou:
Poema quase uma prece Manoel de Barros Senhor, ajudai-nos a construir a nossa casa com janelas de aurora e árvores no quintal – árvores que na primavera fiquem cobertas de flores e ao crepúsculo fiquem cinzentas como a roupa dos pescadores. O que desejo é apenas uma casa. Em verdade, não é necessário que seja azul, nem que tenha cortinas de rendas Em verdade, nem é necessário que tenha cortinas. Quero apenas uma casa em uma rua sem nome. Sem nome, porém honrada, Senhor. Só não dispenso a árvore, Porque é a mais bela coisa que nos destes e a menos amarga. Quero de minha janela sentir os ventos pelos caminhos, e ver o sol dourando os cabelos negros e os olhos de minha amada. Também a minha amada não dispenso, meu Senhor. Em verdade ela é a parte mais importante deste poema. Em verdade vos digo, e bastante constrangido, Que sem ela a casa também eu não queria, e voltava pra pensão. Ao menos, na pensão, eu tenho meus amigos E a dona é sempre uma senhora do interior que tem uma filha alegre. Eu adoro menina alegre, e daí podeis muito bem deduzir Que para elas eu corro nas minhas horas de aflição. Nas minhas solidões de amor e nas minhas solidões do pecado Sempre fujo para elas, quando não fujo delas, de noite, E vou procurar prostitutas. Oh, Senhor vós bem sabeis Como amarga a vida de um homem o carinho das prostitutas! Vós sabeis como tudo amarga naquelas vestes amassadas Por tantas mãos truculentas ou tímidas ou cabeludas Vós bem sabeis tudo isso, e portanto permiti que eu continue sonhando com a minha casinha azul. Permiti que eu sonhe com a minha amada também, porque:
– De que me vale ter casa sem ter mulher amada dentro? Permiti que eu sonhe com uma que ame andar sobre os montes descalça E quando me vier beijar faça-o como se vê nos cinemas… O ideal seria uma que amasse fazer comparações de nuvens com vestidos, e peixes com avião; Que gostasse de passarinho pequeno, gostasse de escorregar no corrimão da escada E na sombra das tardes viesse pousar como a brisa nas varandas abertas… O ideal seria uma menina boba: que gostasse de ver folha cair de tarde… Que só pensasse coisas leves que nem existem na terra, e ficasse assustada quando ao cair da noite um homem lhe dissesse palavras misteriosas… O ideal seria uma criança sem dono, que aparecesse como nuvem, Que não tivesse destino nem nome – senão que um sorriso triste E que nesse sorriso estivessem encerrados toda a timidez e todo o espanto das crianças que não têm rumo… Senhor, ajudai-nos a construir a nossa casa com janelas de aurora e árvores no quintal – árvores que na primavera fiquem cobertas de flores e ao crepúsculo fiquem cinzentas como a roupa dos pescadores…
– Sabe, é aquilo que conversamos. O meu conhecimento vem da infância. É a percepção do ser quando nasce. O primeiro olhar, o primeiro gesto, o primeiro tocar, o cheiro, enfim. Todo esse primeiro conhecimento é o mais importante do ser humano. Pois é o que vem pelos sentidos. Então, esse conhecimento que vem da infância é exatamente aquele que ainda não perdi. Porque os outros sentidos fomos adquirindo porque era quase uma obrigação. Era como um calço. Porque tem os repentistas que são analfabetos e sabem fazer uma obra de arte, mesmo que não estudaram? Não é verdade? Fazem a poesia deles sem nenhuma preocupação estética. Todos têm que ler Homero? Poesias têm que ter palavras, uma feira de ideias.
Sobre a Infância - Tudo o que eu aprendera até meus noventa anos era nada: meus conhecimentos eram sensoriais. O que aprendi em livros depois não acrescentou sabedoria, acrescentou informações. O que sei e o que uso para a poesia vem de minhas percepções infantis. A um editor que me sugeriu que escrevesse um livro de memórias eu respondi que só tinha memória infantil. O editor me sugeriu que fizesse memória infantil, da juventude e outra de velhice. Estou escrevendo agora minhas memórias infantis da velhice. Sabe-se que Manoel de Barros estava escrevendo suas Memórias Inventadas, e disso ele nos diz:
Sobre suas Memórias Inventadas – Ah, releio minhas velhas preferências literárias. E de tarde, bem na hora do crepúsculo do dia que emenda com o meu crepúsculo, ouço música. A música erudita, principalmente, desabrocha minha imaginação. Acrescento um pouco de álcool que me ajuda a ter visões. Mais tarde elaboro as visões.
Sobre o Menino Manoel - Tenho em mim um sentimento de aldeia e dos primórdios. Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens. Não sei se isso é um gosto literário ou uma coisa genética. Procurei sempre chegar ao criançamento das palavras. O conceito de Vanguarda Primitiva há de ser virtude da minha fascinação pelo primitivo. Essa fascinação me levou a conhecer melhor os índios. Gosto muito também de ler as narrativas dos antropólogos. Em seu Livro sobre nada, Manoel de Barros nos fez uma revelação de adulto: - A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos. E no mesmo livro, esta confissão de criança: - O que eu queria era fazer brinquedos com as palavras.