Celuzlose 02

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celuzlo se Revista

Literรกria

02 ~ Setembro 2009


Índice 04

Entre ? ! vista

Márcio-André BR.XXI

Literatura Brasileira Contemporânea

Rodrigo de Souza Leão (in memoriam) Danilo Bueno Donny Correia Flávia Rocha

34

Greta Benitez Ivan Hegenberg Luiz Roberto Guedes Marcelo Ariel

GEO

Literatura sem Fronteiras

Alan Mills (Guatemala) Javier Díaz Gil (Espanha)

Peter Finch (País de Gales) Valeria Meiller (Argentina)

Caderno

16

42

Crítico

Ausência + radicalidade textual em Las palabras y los días - por Alan Mills

48

LÚCIDA RETINA

Poesia Visual

Alejandro Mendez (Argentina)

Colaboraram com esta edição:

celuzlose # 02 ~ Setembro 2009

Expediente Editor: Victor Del Franco Projeto Gráfico, Diagramação e Revisão: Victor Del Franco

02 Celuzlose 02 - Setembro 2009

Alan Mills Alejandro Mendez Danilo Bueno Donny Correia Fábio Aristimunho Vargas Flávia Rocha Greta Benitez Ivan Hegenberg Javier Díaz Gil Leonardo Gandolfi Luiz Roberto Guedes Marcelo Ariel Márcio-André Peter Finch Rafael Rocha Daud Rodrigo de Souza Leão Valeria Meiller

Contato: celuzlose@gmail.com

Os textos desta revista poderão ser usados para fins não comerciais, desde que sejam citados os nomes dos autores, o nome da revista e o link correspondente.


Editorial Eterna contaminação Um dos temas abordados nesta edição faz referência à natureza da contaminação em suas diversas formas e sentidos possíveis, nesse contexto, relaciono abaixo algumas definições que foram encontradas em diferentes dicionários: 1. Ato ou efeito de contaminar (-se); 2. Transmissão de germes nocivos ou de doença infecciosa; 3. Infecção por contato; 4. Liberação de elementos, radiações, ruídos, substâncias ou agentes nocivos em um ambiente ou ecossistema; 5. Presença de elementos patogênicos que provocam várias doenças, ou substâncias em concentrações nocivas ao ser humano. Entretanto, além dessas definições em “estado de dicionário”, gostaria de deixar aqui um trecho do texto Contaminações que está no livro Ensaios Radioativos (Confraria do Vento, 2008) de Márcio-André: “É impossível negar: somos seres em eterna contaminação, mutantes por natureza. Temos, todos e tudo, a mesma base material e elétrica e não sabemos precisamente onde começamos e terminamos”. Essas poucas linhas apenas para dizer: CONTAMINE-SE. Boa leitura.

Victor Del Franco Editor

Celuzlose 01 Clique aqui a para ler a 1 edição http://issuu.com/celuzlose/docs/celuzlose_01

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Márcio-André

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Poeta, tradutor, ensaísta, performer e editor-chefe da Revista Confraria. Com seu espetáculo de poesia sonora, Indivisible, fez apresentações em São Paulo, Ouro Preto, Belo Horizonte, Porto Alegre, Coimbra, Lisboa, Porto, Paris, Buenos Aires e Londres. No início de 2009, Márcio-André morou em uma residência para artistas em Monsanto, Portugal, onde deu aulas de escrita criativa e poesia sonora na Universidade de Coimbra. Livros publicados: Movimento Perpétuo (2002), Intradoxos (2007) e Ensaios Radioativos (2008). Nesta entrevista, ele fala de seu processo criativo, sua experiência radioativa nas proximidades da usina de Chernobyl e da nova versão da Revista Confraria que tem previsão de lançamento para setembro de 2009.

A contaminação da

a l avra p Celuzlose 02 - Setembro 2009 05


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A Confraria começou como uma revista digital e depois houve uma edição impressa para comemorar os dois primeiros anos de existência. Agora, vocês estão pensando em lançar edições impressas para vender nas bancas. Você pode falar um pouco sobre o desenvolvimento desse projeto? A Confraria funcionou nesses quatro anos como revista eletrônica e isso nos satisfez até então. Adquirimos respeito, seriedade e confiabilidade frente a uma quantidade de leitores que não esperávamos. Mas chegamos à conclusão que, sendo nosso objetivo a democratização da literatura e do pensamento, deveríamos investir numa publicação física e de tiragem comercial. O papel é ainda um forte apelo à leitura e, para nós, enquanto uma publicação didática, importa mais onde chegar do que como chegar. A primeira edição já está pronta e pretendemos que chegue às bancas de Brasil e Portugal no início de setembro. O objetivo é criar a primeira revista de grande circulação voltada exclusivamente para a veiculação de autores filosóficos e escritores, ao contrário das outras revistas similares, restritas ao jornalismo cultural. Queremos chegar ao “seu” Zé do Mercadinho, pois ele também tem direito de ler textos de Giorgio Agamben e Jean Baudrillard, o último poema do Arnaldo Antunes ou a estréia de um jovem escritor - ou então usar para embrulhar peixe, o que também é uma forma válida de crítica. Ou seja, é um projeto que tem tudo para dar errado. Não temos ainda certeza de nada, só a de que a revista vai sair. Mas, tirando isso, ainda não sabemos como e por quanto tempo. As empresas estão muito relutantes em anunciar num projeto assim, as distribuidoras têm medo. Enfim, tudo o que já esperávamos: cultura direta e real mete medo, enquanto o jornalismo, que é venda de produtos culturais - não cultura -, alivia as dores na ilusão de que inteligência é consumo. Mas, como sempre foi nosso objetivo, fiamo-nos na utopia da congregação de forças aparentemente opostas. Pois, como na edição eletrônica, queremos fazer uma revista que não seja vinculada a um grupo ou um projeto estético específico, o Brasil precisa disso, de propostas um tanto liberais de cultura mais profunda, menos aristocrática, menos reservada aos encastelados de academia ou aos ensebados de classe média. Queremos uma revista de e para todo tipo de peixe - da sardinha ao baiacu. 06 Celuzlose 02 - Setembro 2009

Como você vê a questão do livro impresso e do livro digital, os dois vão conviver em harmonia ou haverá algum conflito? Acho difícil haver conflito. Essas nossas mudanças de mídia são feitas de maneira bem natural. Não acho que o livro impresso vai acabar só porque chegou o livro digital, mas certamente vai diminuir. Pode ser que em alguns anos o livro acabe de fato, ou quase acabe, o que é sempre bom, até mesmo para o livro. Acho que o interessante nessa revolução digital, na qual o livro e o chope (ainda não inventaram chope digital) serão as últimas fronteiras a serem atravessadas, é o fim da ideia de posse material, em prol do bem abstrato. A pirataria vai virar uma prática e o anarquismo cultural será finalmente instalado, tendo como base os fundamentos mais radicais do capitalismo - o que é bom e ruim ao mesmo tempo (pois, como dizia o grande “filósofo tremendão”: tudo sempre tem os dois lados). Com isso, temos o risco de perdermos os parâmetros qualitativos, seja lá quais forem eles. Os problemas que enfrentamos hoje, os mais essenciais, também não irão diminuir só por conta disso. Falta de leitura, educação de baixa qualidade, a leitura como suporte de lixo editorial - tudo isso tende a se radicalizar. Mas, enfim, a questão é que se o livro impresso acabar, é porque já não ligaremos mais para ele, a exceção dos bibliófilos, que se reunirão em catacumbas e adorarão livros sagrados como “O código Da Vinci” ou “A maravilhosa cozinha de Ofélia”. No fim, será tudo uma desculpa para as orgias.

Capa da Revista Confraria - Nas bancas


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Em seu livro “Ensaios Radioativos” existe uma parte denominada Diálogos Quânticos, além disso, você também propõe uma educação pelos quanta. Fale um pouco sobre esses conceitos. O que eles representam no seu trabalho? A educação pelos quanta se concentra na ideia em torno da indeterminação entre ficção e realidade. Partindo de conceitos próprios da física das partículas, propomos algumas abordagens diante do real e da arte que podem transformar profundamente a maneira de encararmos essas questões. É uma proposta que tende a acabar com as classificações históricas, uma vez que não havendo um paradigma que permeie as bases de uma verdade, - nos termos dessa nossa filosofia infinitesimal, assim como não existe um paradigma que fundamente o real estável -, o próprio conceito de história torna-se discutível. No comportamento interno das partículas, percebemos não haver diferença efetiva entre passado e futuro (o tempo circula simultaneamente nos dois sentidos) - e, portanto, se

um corpúsculo só pode determinar-se ente enquanto possibilidade constante de não-ente, podemos nos perguntar muito seriamente sobre o princípio das coisas. Elas teriam uma criação num dado momento de uma linha cronológica de mão única, ligando o passado original e o futuro profético, ou estariam a todo o momento criando-se e recriando-se a si mesmas, a partir de suas permutações com outras coisas - “contaminações” -, numa constante tensão com as diferenças? Nessa didática, se conseguirmos vislumbrar o fim de separações entre as coisas, entre os espaços, entre a relação sujeito/objeto sem jamais eliminarmos o vigor de diferença entre eles, isto é, aquilo que o torna o que ele é -, podemos supor um leitor inteiro com a obra, mutando e sendo mutado a todo instante, na grande articulação de um uno fundamental que o plenifique em sua constância de possibilidades enquanto ente em constante trasformaçãocontaminação. E essa ideia está presente em todo o meu trabalho, fazendo-me correr atrás de alguma coisa que não saberia dizer se é poesia, música, pensamento ou vida.

“Essas nossas mudanças de mídia são feitas de maneira bem natural. Não acho que o livro impresso vai acabar só porque chegou o livro digital, mas certamente vai diminuir.”

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Certa vez, você declarou: “O sentido de sagrado da obra de arte sempre esteve em mim, intuitivamente”. Esse sentido permanece? E como ele se manifesta?

Existe alguma diferença no seu processo criativo quando você pensa num poema ou em uma performance musical? Ou são apenas dois lados da mesma folha de papel?

Goethe nos lembra que quem tem poesia já tem religião, e que quem não tem poesia, que se socorra da religião. É quase o meu caso, um tanto invertido: como eu sou um incompetente para religiões, sobra-me somente a poesia. Ela foi o meu primeiro objeto de culto (depois vieram as mulheres e o álcool), minha religião - aquilo que me religava à realidade e à terra de forma mais radical e me deixava mais perto de deus. E não somente a poesia. Quando moleque, eu tinha um verdadeiro fascínio por cinema, música, dança e literatura como um todo e eu não conseguia conceber minha vida longe disso tudo. Hoje, claro, isso ainda permanece, talvez de forma menos intensa, em certo sentido, mas certamente mais íntegra e madura, mais consciente. Se antes eu buscava tais coisas para a minha vida, hoje acho que estou totalmente inserido nelas, o que, aparentemente, me tira algum encanto. Se suponho estar um tanto entediado com tudo, não posso tão pouco me afastar - é como se já fizesse parte de meu organismo, como um sacerdote, uma vítima de sacrifício ou algo assim. É, portanto, o que me mantém pleno. Hoje percebo que este sentido do sagrado é, de fato, o que permanece de mais verdadeiro com a obra de arte. Não porque a arte dependa de qualquer relação de culto, mas porque ela é o sagrado em sua essência, aquilo que, posteriormente, será usado pelas religiões de maneira muitas vezes tendenciosas. Esse sentido maior permanece e se manifesta em seu aspecto totalizador - não no objeto artístico, mas no instante em que dialogamos com ele. Esse sentido, muito claro para mim hoje, é o que nos faz totalmente indiferenciados de tudo, tornando-nos parte de e inteiro com todas as coisas. Isso sim é o dito sagrado, aquilo que nos dá algum sentido a mais que os da normatividade do sistema moderno de relações. Da mesma forma que num culto religioso passamos a nos religar mais profundamente com o deus, na arte, nos religamos mais profundamente com o mundo, e isso faz parte do seu sistema de crenças.

Tenho pensado nas palavras como se fossem uma peça musical, assimilando a escritura a uma partitura. Esse conceito me acompanha desde o meu primeiro livro. Eu sempre tentei criar uma escrita “sinfônica” de dinâmicas complexas e harmonia dissonante. Meu maior desafio, entretanto, tem sido executar essas peças. Acho que o problema é criar um suporte que as sustente e, ao mesmo tempo, uma escrita que possa ser encenada. O discurso linear tem me seduzido ultimamente e o ensaio se tornou bem eficaz. O problema é que ando querendo levar isso também para a poesia e quando se quer fazer do poema uma música, você precisa pensar mais em termos de materialidade das palavras do que propriamente em seu encadeamento de sentido linear. Isso é bem difícil. Tenho andado aberto a possibilidades diversas de se escrever e isso, para um poeta, às vezes é ruim. No final das contas (e eu jamais imaginei que diria isso), é preciso um pouco de idiossincrasia para conseguir produzir algo coerente. Mas para resumir a questão em termos de processo criativo: eu tenho tentado, cada vez mais, unir as duas coisas, para que tudo que eu venha a tocar seja um poema e tudo o que eu venha a escrever seja executável enquanto música.

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Seguindo a linha da questão anterior, podemos dizer então que na sua poética o som é o sentido? Sim, é muito próximo disso. Talvez um pouco além, porque falar em “som” e “sentido” já não faria sentido. Não estamos equiparando uma coisa à outra, mas simplesmente não intervindo em prol de uma separação forçada. Se eu digo “tangerina” eu já sonhei essa coisa enquanto palavra e isso é muito mais do que representá-la em forma de som. Estamos dando à coisa a sua plenitude, da mesma forma que alguém só vem à luz se, imediatamente, esse alguém recebe um nome. Não há o humano fora da possibilidade do chamamento - somos sempre topônimos de nós mesmos. Quando dizemos “tangerina”, estamos, de alguma maneira, recolocando o “objeto” tangerina dentro da “coisa” tangerina (que seria a conjuntura de tudo o que torna a tangerina, tangerina), para nela adquirir cheiro, sabor, textura, peso. Conhecer o nome da tange-

rina é comê-la, pois se tudo está em tudo pelo seu poder de contaminação, tudo já se revela em tudo: a palavra é uma manifestação da tangerina no mundo, como o próprio objeto - tangerina - é uma outra possibilidade de sua manifestação (cheiro, cor, forma, textura, sabor, são ainda outras possibilidades dentro de possibilidades). E não estamos falando de sentidos excludentes de manifestação, mas sempre complementares - para usar um termo da física - tudo completa e completa-se naquilo que resumimos com essa simples palavra: “tangerina”. Portanto, se a tangerina tem um sabor completamente diverso da bergamota, é besteira, para mim, ignorar e não explorar ao extremo essa faceta das palavras/coisas-no-mundo, onde elas se tornam no mundo tangerina ou bergamota a partir das possibilidades de uma coisa manifestar-se. Quando escrevo-as em meus poemas, eu mesmo me contamino por essa força, fazendo-as manifestarem-se mundanamente enquanto poesia.

Assista 3 performances de Márcio-André clicando nos links abaixo:

Lisboa

Idanha-a-Velha

Londres

http://www.youtube.com/watch?v=vgly0T7RTJ0

http://www.youtube.com/watch?v=YdSZJD0YRm8

http://www.youtube.com/watch?v=R41nmFm6d9w

“Tenho tentado,cada vez mais,unir as duas coisas, para que tudo que eu venha a tocar seja um poema e tudo o que eu venha a escrever seja executável enquanto música.” Celuzlose 02 - Setembro 2009 09


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Em 2007, você esteve em Pripyat e fez uma leitura de poemas nas proximidades da usina de Chernobyl. Como você viaja muito para fazer suas apresentações, existe a possibilidade de repetir a experiência radioativa com uma perspectiva diferenciada? Ou, como se diz na música, fazer uma variação sobre o mesmo tema? Gostaria muito. Chernobyl foi uma experiência extraordinária. Acho que foi o único lugar no mundo onde fiquei verdadeiramente em paz e entendi afinal que porra eu estava fazendo nesse planetinha: vivendo, radiovivendo, plenificando radicalmente minha existência com todo aquele césio purificador. Se eu pudesse, me naturalizava ucraniano e ficava lá por uns anos, banhando-me de radiação para curar minhas zigziras. Mas como é realmente bem nocivo permanecer ali muito tempo, eu me contentava com algumas horas para repensar mais a reação da força de contaminação, explorar mais a possibilidade de totalizar-me nas pedras, enquanto minério humano.

Recentemente, você recebeu um prêmio da Biblioteca Nacional para o desenvolvimento do livro “Poética das casas”. Como estão os preparativos do livro, já existe alguma previsão para o lançamento? O livro “Poética das casas”, que é um livro de ensaios sobre a relação das cidades com o céu, está na reta final. Pretendo lançar ainda esse ano, mas não é certo. Depende de vários fatores e da editora que o assumiu. Falta ainda um último capítulo, onde investigo a origem das cidades nos sonhos e isso está me tirando o sono. Tenho começado a desenvolver uma relação um tanto perturbadora com o Rio de Janeiro. Acho que estou vendo a cidade como ela jamais foi vista antes: como o resultado de um longo épico de nossos desejos de humanidade e de uma similar simetria com nossa parcela celeste. Não somos nós que a construímos, mas a cidade que se constrói em nós. E o Rio tem virado nosso mais profundo pesadelo. 10 Celuzlose 02 - Setembro 2009

“É preciso estar por inteiro na reescrita como se é por inteiro na escrita.”


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Além de suas atividades como editor, poeta e ensaísta, você também é tradutor. Você tem influências dos autores traduzidos? A tradução é uma forma de reinventar-me, sempre. É o ápice do desapego de um escritor, porque foge do que ele é em direção ao que ele jamais imaginou que pudesse ser. Gosto de traduzir autores que tem pouco a ver com o que escrevo para estar sempre a mudar minha escrita através da escrita deles, ainda que, aparentemente, seja eu a reinventar seus textos. Sempre defendi que o tradutor devesse enlouquecer na medida do poema a ser traduzido, nem mais, nem menos. A loucura da recriação deve vir na potência de enlouquecimento do original e isso é um exercício e tanto de enlouquecimento alheio. O tradutor tem nas mãos um poder extremamente bélico. Você sabe que Hermes, o intermediador de homens e deuses podia mudar qualquer situação, caso quisesse. O tradutor, nesse sentido, pode dar ao leitor qualquer obra, boa ou ruim, mas nunca a original. Ele sempre coloca ali a sua parcela própria de divindade e humanidade. É muita responsabilidade: é preciso estar por inteiro na reescrita, como se é por inteiro na escrita. E eis porque, para traduzir poesia, o tradutor precisa também amar a poesia. Nesse momento, estou traduzindo Serge Pey, Ghérasim Luca e Roberto Juarroz, três poetas que mexem muito comigo, apesar de escreverem o extremo oposto do que gosto de escrever.

Nas 4 páginas seguintes, poemas de Márcio-André.

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MONSANTO toda cidade é esboço dela mesma ou labirinto móvel para cães e de tanto haver coisas sempre nos adequamos a ser outro: a cidade contém dentro três outras cidades que nunca se tocam e somatizam nos habitantes: até deformá-los mas o pôr-do-sol é sempre esse desde o princípio do sol e do estado das coisas o pôr-do-sol que se ama como latão velho e tudo o mais é variação de pedra nesta cidade onde até o deus é de granito e tem sonhos de pedra com fêmeas mortais num jardim de areia e pedra convém fugir da cidade antes que a velhice chegue pois também as coisas perecem mais rápido do que podemos perceber aqui cada dia é um dia é preciso partir antes que chegue outro [um pé de tangerinas à esquerda na estrada] e é triste notar que nada permanece de nosso antes mesmo que não estejamos mais aqui

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TRÊS a casa nos respira com seu tórax de alvenaria [

] nós

um tumor nas entressalas a carambola-flor frutificando no pomar de alguma rua antiga

POEMAS

as ruas enrugadasnos desníveis das calçadas uma anticasa habita as casas e uma outra casa habita em nós janelas com casas dentro à tarde as cozinhas conspiram o mesmo cheiro um fumo de café e manteiga fubá e prosdócimo

SOBRE

e a dama azul vestida de terra também casa seu nome e carne ao avesso a melopéia das plantas morder a casca do mundo à noite os pensamentos são mais escuros os quintais se recolhem e as lâmpadas dão seus pêssegos de luz

o cítrico vitríolo das folhas numa calha as frutas dentadas sobre a grama este húmus temperado esperando na chuva pelo cisto sebáceo de uma viga [fundação] casa-silêncio casa-mitocôndria revestida de águas

CASAS

no meio do terreno uma árvore curva sobre si guardando o lugar de uma casa que não voltou todo terreno baldio sobrevive da ausência a infusão de folhas no chá das tardes Celuzlose 02 - Setembro 2009 13


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POEMA SEM NOME 1.

a mulher com o cão nas entranhas e argamassa de nuvens concebe mais pele que aquela nas dobras da ruga ou talvez um rinoceronte rasgado ao meio -

2.

[

3.

por um instante] os objetos cabem em si: leves coágulos de luz

mas 4.

senhora investindo para dentro de sua carne-ostra: verça de prata caiada no látex: uma penca de frutas maturada nos seios: todo esquecimento [fiel ao esquecido corresponde à ausência absoluta

5.

os objetos alinhados com o nome :ali onde a chama coincide com o chamado

6.

ela sabe - você sabe [só] cabemos: no nome: de forma: incerta: como a sombra emparedada na coisa - esta dobra chamada fêmea :

7.

ela poderia ter sido outra em suas duas pedras marinhas: olhos: que: ilham -

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CIDADE-GOLEM eis um golem de merda ou de arame

úîà no anticorpo da pedra o dúctil da pedra todo caos é provisório polpa p´ra formar cabeças umbigo-plexo no eixo do sol autômato peixe-falhante-d-estrelas a cidade assentada na base da montanha como um brinquedo de deus de arame ou de merda - cidade-golem escrita ao contrário as sete mil patas de rua no coração do câncer e o cão sonhando a canidade ou os homens a nomear quantidades cada vez maiores os dentes da barata são macios e acariciam a pele dormir como quem acorda parcialmente morto ou morto

úî

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BR.XXI

Literatura Brasileira Contemporânea

Rodrigo de Souza Leão

(1965 - 2009)

Poeta e escritor que faleceu no último dia 2 de julho. Apesar da vida breve, apenas 43 anos, ele deixou uma obra consistente que inclui os seguintes livros: Há flores na pele (Poesia, 2001), Todos os cachorros são azuis (Novela, 2008), Caga regras (Poesia, 2009), além de vários e-books e textos na internet. Alguns dos poemas podem ser lidos em seu blog Lowcura (http://lowcura.blogspot.com). Na Internet, ele colaborou com muitas revistas como Agulha, Germina e também era coeditor da Zunái.

No dia 9 de julho, foi realizada uma homenagem a Rodrigo de Souza Leão na Casa das Rosas com a participação de diversos poetas que, de uma forma ou de outra, tiveram algum contato com Rodrigo.

Homenagem a Rodrigo de Souza Leão Casa das Rosas, SP - 09 de julho de 2009 (link abaixo)

Transmissão ao vivo TV Cronópios http://www.cronopios.com.br/site/poesia.asp?id=4083

Um dos poetas participantes foi Leonardo Gandolfi que leu o texto publicado nesta edição da Celuzlose e que, na realidade, se trata do trecho inicial de um romance inédito com mais de 300 páginas que se chamaria Tripolar e depois foi alterado para Me roubaram uns dias contados.

in memoriam

Agradeço a Leonardo Gandolfi por ter enviado o texto para publicação.

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BR.XXI

Literatura Brasileira Contemporânea

Me roubaram

Hoje, não li jornal. Não fui ao banheiro. Por que tem sempre alguém disposto a fazer o serviço sujo? A secretária disposta a digitar para o seu chefe. O gari, como seria o mundo sem eles? Por que jogador de futebol cospe tanto no gramado? Viver faz mal à saúde. Morre-se disso. De viver. Em tudo que faço uso sangue. Meu bom sangue vermelho para pintar o chão. Maçã. Boceta. Chapeuzinho. Boca. Batom. Uniforme do Internacional. O ser humano é um verme gigante. Há doenças que existem e ninguém descobriu ainda o nome delas. Mas a pior delas é a verminose. Alguma coisa acontece quando cruzo a esquina e vejo primeiro Gregor e depois Joseph. São dois personagens vivos da minha cabeça. Estou próximo dos oitenta anos e prometi a mim mesmo que ia começar um livro quando completasse meu octogésimo aniversário. Penso que só depois de ter vivido muito posso ter o que contar. Até agora coleciono histórias e vou lendo. Schopenhauer me disse que um homem deve ler menos para ser criativo. Por isso quando eu começar a fazer meu grande livro vou parar um pouco de ler para me tornar mais criativo.

uns dias contados

Poten Kailoski era um peixe que tinha esse nome estranho, mas era brasileiro. Um baiacu que um amigo chutou. Para que serve um baiacu? Sou um baiacu. Ninguém pode me comer porque sou venenoso. Será que um tubarão pode comer um baiacu? Por que meu amigo matou o baiacu? A maldade está também nas pequenas coisas. Imunidade X. Coisas que faço porque alguém tem que fazer. Lista.

in memoriam

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BR.XXI

Literatura Brasileira Contemporânea

Estou sentado vendo tevê e tomando meu uísque e ouvindo meu cigarro se espatifar no chão e espalhar cinzas por todo lado. Sempre escrevo mais sobre o nada e o ócio de não ter nada o que fazer a não ser isso: escrever. Escrever é uma merda. É uma maldição e uma angústia para um homem como eu, pois não gosto do que escrevo, mas escrevo porque não tenho nada o que fazer. O Nada verdadeiro é isso. É falar disso: do bloqueio intelectual de não brotar nada no papel. Melhor seria dizer que escrevo no computador. Com uma dor suspensa por uma gota de Anatensol. Como uma laranja. A laranja não é laranja. Só a camisa da seleção da Holanda é laranja. Queria escrever uma história sobre um sósia. Um sósia que se torna a pessoa principal e é mais magnífico do que o não-sósia. Por isso haveria o sósia e o não-sósia. Um vivo e o outro morto. O sósia mataria o outro, mas essa história é tão banal quanto mandar flores para essa mulher que não quer nada comigo. Eu me apaixonei por uma foto e penso nela o tempo todo. Algo como “Nunca te vi, sempre te amei”, o filme. Gregor está perto de mim e Joseph foi dormir um pouco. Quero tudo, não metade, não um pouco. Quero tudo, a alma dela inclusive. Coração. Sorriso. Felicidade e sexo e mais um montão de coisas que poderia enumerar aqui uma a uma e encher a página, mas já fiz isso no outro livro. Talvez seja o meu estilo. Talvez não. Tudo é talvez. Esse é o problema ao escrever uma história. Simplesmente não consigo. Uma história comum que seja. Pelo menos uma. Alguma coisa acontece no meu coração. Será que é um infarto do miocárdio? As pedras de gelo e sangue caem sobre os carros. São do tamanho de bolas de tênis. Do tamanho de laranjas. Não ouvi “eu te amo” de ninguém, por isso sou tão só. Sou só, só. Não sou triste. Às vezes evito me apaixonar para não criar um problema na minha cachola. Essa que agora tenho. Essa tristeza e melancolia que agora tenho. Às vezes penso que é bom se apaixonar e viver um grande amor. Mas tudo dura tão pouco. Acredito que tem alguém comandando isso tudo. Alguém que gosta de me ver desiluminado. Com alguma ilusão. Só se desilude quem se ilude. Talvez ela tenha feito um bem para mim se afastando, deixando um vazio que deverá ser preenchido por outro amor. Por que um homem de oitenta anos não pode mais se apaixonar?

in memoriam

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BR.XXI

Literatura Brasileira Contemporânea

O Sósia chega perto de mim e me diz que eu sou ele e ele é ele. Apenas um sósia. Ele bem que poderia saber escrever para escrever no meu lugar. O Sósia é branco. Tem olhos castanhos. Cabelo meio ruivo. O Sósia é melhor que eu. Namora uma garota e é casado com outra e come as duas. Masco chiclete. Masco fumo e de vez em quando um palito. Tudo isso é coisa de gente que não tem nada o que fazer. Vou pedir ao Sósia que chame Gregor e Joseph para jantar. Isto se não estiverem lendo Schopenhauer. O vento bate forte nas janelas do meu apartamento. Faz frio e é o frio quem convida o fogo. O fósforo é um palito com o sol na ponta. Aqui só chove e o Cristo está encoberto. Há um crucifixo em minha cama. Seguro nele toda vez que a coisa aperta e a coisa aperta várias vezes durante o dia. Relaxo vendo filmes pornográficos. Sempre a mesma coisa. Tudo igual. Sou rotineiro, igual, comedido. Faço sempre os mesmos gestos. Uso sempre as mesmas palavras. Nada muda quando ela se aproxima. Ela nunca chega tão perto, de modo que possa tocá-la e só toca os lábios do Sósia. Ele é mais inteligente e mais bonito do que eu. Eu não me entendo. Eu estou com quase oitenta anos e o meu Sósia está com 41. Ele usa uma maquiagem mágica que o faz parecer comigo. Meu pau já não fica duro. A pipa do vovô não sobe mais. Mas tenho uma língua poderosa. Sou o melhor chupador de bocetas do mundo. Adoro bocetas. Gregor e Joseph já me disseram que chupo bem. Já me repassaram mulheres que eles não aguentavam mais. Elas vidraram em mim, quase um octogenário. Tenho um livro a escrever, mas não tenho histórias a contar. Minha vida é um livro aberto sem história, como diz o rei. Todo mundo sabe o que acontece comigo e o que aconteceu. Gregor saía sempre às cinco horas da tarde. Ia procurar um buraco para meter seu pau. Por que as pessoas não conseguem viver sozinhas e precisam tanto de uma muleta emocional. Todo mundo tem uma boceta eleita. Quer uma boceta ou um cu ou uma pica. Às vezes as pessoas se ferem com isso. Sou eu, mas não sou eu. É o Sósia de 41 anos. Que Sósia filha-da-puta. Ainda tem um pau que funciona. [AQUI QUEM ESTÁ ESCREVENDO É O SÓSIA. NÃO ACREDITEM NO QUE ESSE VELHO FALA. NÃO SOU SÓSIA DELE. SOU BONITO, BELO. JÁ ELE É FEIO, BEM FEIO. SOU INTELIGENTE E ELE É BURRO. QUE SÓSIA QUE NADA.]

in memoriam

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BR.XXI

Literatura Brasileira Contemporânea

Danilo Bueno Nasceu em Mauá, São Paulo, 1979. Reside na cidade de São Paulo desde 2006. Publicou a plaquete Fotografias (Alpharrabio Edições, 2001) e os livros: crivo (Alpharrabio Edições e Fundo de Cultura do Município de Mauá, 2004) e Corpo sucessivo (Oficina Raquel, 2008).

domingo pulso: fluidos trabalham espaços em seus exílios

semana 43

todos os livros de cabeceira assistindo

ritmo deslocado de paredes

isso de manter-se rente ao círculo

contornos, quantidades, o mesmo

(Fotografias, 2001)

lado, está vago viver (silêncios não estancam superfícies, outras distâncias (crivo, 2004)

deste horizonte de cisma e sigilo detido em seu ímpeto à espera de recessos mútuos que se anulem (como abraços que acolhem) suspenso em si no extremo cerco ao tórax desabrido, perspectiva ou hipótese - não o ato ou efeito de matar-se recifrar uma única batida de coração reclusa no gesto mais simples de afeto e voltar sem sobressalto ao esforço ininterrupto de devolver os ossos ao mundo (Corpo sucessivo, 2008)

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BR.XXI

Literatura Brasileira Contemporânea

às cinco horas da tarde alinhado ao vértice um esboço um quase contorno em que a luz natural esvazia a sombra ordenado numa espécie de coerência escapada à supressão o princípio desse fio em cheio descontínuo uma obra agora como objetivo - dá trabalho viver ao pó que refina e rasura o traço em pânico desmonta quando o vento trinca (estremece) o eixo e o sentido para o voo do estame ou pouso o estalo da raiz (junto à pedra) ainda mais vivo sobre cor uma flor, próxima ao ônibus que passava vazio (Corpo sucessivo, 2008)

conclusões - definições em desmesura Zurab Azmaiparashvili é um grande mestre [da Geórgia não existe uma escala absoluta para as tonalidades [das cores alguns chavões persistem, indefinidamente, em certos textos rever cartões escritos garante nenhuma superioridade [por se estar vivo júbilo e tormento alternam-se sob o catre o corpo ainda é a grande e arcaica aporia a respiração flui, a espaços irregulares, até o fim turbilhão também pode não ser percebido um alaúde provavelmente nunca tocará [todas combinações ... (olhe o pássaro agora, esqueça, vá, corra, olhe o pássaro som e escuro, fechado. outro sol desacordado e janelas) (Corpo sucessivo, 2008)

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Donny Correia Poeta, tradutor e videomaker. Atualmente é coordenador cultural da Casa Guilherme de Almeida. Tem publicado textos críticos, poemas e traduções em vários sites literários. Publicou o livro de poemas O eco do espelho em 2005 e prepara-se para lançar Corpocárcere em 2009. No campo audiovisual realizou os vídeos experimentais Anatomy of decay, Brain eraser e Under construction. No momento finaliza o curta-metragem Totem.

Isto merece um poema: dançar nas cinzas do seu obelisco de razão merece um poema Assistir às minhas orgias-bombas incinerarem seu orgulho merece um poema

REFLUXO esta garganta em chamas o suco do incômodo do estômago à boca pelos anéis decompostos

E merece, também, esta gratidão gritante invadindo meu vácuo Afinal, te amar dói

da laringe E o que há de novo nisso? Eu sou um lugar comum, com pernas braços e demência Mas tudo isso, sem dúvida, merece um poema

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a mortalha vista-se com a seda e veja você que até os vermes , os ínfimos vermes, tecem fio a fio as peles brancas e lisas que recobrirão/ o que de antemão/ será o banquete e a ceia visto-me ao cabo ao largo e ao garbo com gosto e prestígio qual nem no litígio vesti-me a você vejo-te a pele outrora rosada agora apagada com olhos cerrados de adeus e adeus e cerro também meus olhos furados meus pulsos rasgados os dentes perdidos o sangue oprimido o luxo, o sexo o batom que marcou e morreu com nós dois as valsas e as fotos os fatos, as velas o “NÃO” recorrente o “NÃO” recorrente bonecas de cera e bonecas de plástico... as ruas... as ruas os resto das roupas rompi com mim mesmo ao tino: ADEUS

um louco profano a modelo/ volúpia/ a modelo/ a cera/ a mortalha a cera, a rua, o tino ADEUS, a mortalha o verme, a face, o batom o flerte, o NÃO, a recusa a verdade (é mentira?) o silêncio a risada e o escárnio O TIRO! um “bang” e as quadras, as campas a lápide e o sonho a mortalha / era ela - em silêncio/ - e sou eu/ junto dela/ os caixões, alças dadas passarela a mortalha... era ela.

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Flávia Rocha Nasceu em São Paulo, 1974. Jornalista, trabalhou nas redações das revistas Bravo!, República e Carta Capital; atualmente colabora com Casa Vogue, entre outras publicações. É autora do livro de poemas A Casa Azul ao Meio-dia (Travessa dos Editores, 2005). Tem mestrado em Criação Literária pela Columbia University e é uma das editoras da revista literária americana Rattapallax. Editou antologias de poesia brasileira para as revistas Rattapallax (EUA), Poetry Wales (País de Gales) e Papertiger (Austrália). Fundou, com Steven Richter, a Academia Internacional de Cinema, onde desenvolveu e coordena o curso de Criação Literária.

CHINATOWN Trilogia

CHAN QIN JIE Em casa cortando legumes em cubos, na garupa da bicicleta de um homem mais velho do que ela, na frente do espelho embaçado prendendo o cabelo liso com grampos, na penumbra vermelha de um quarto de hotel, sob o lençol, na rua, de salto-alto, no mercado comprando peixe, em casa cortando legumes em cubos.

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CHAN QIN NIU Uniforme azul marinho de pregas, sapato de verniz e meias soquete brancas, uma borboleta tatuada no tornozelo, as pernas esticadas à frente da cadeira enquanto espera o trem na estação, folheando uma revista, as unhas roídas, a mochila no chão, no trem, em cima do sofá, tênis desamarrado e televisão hoje a irmã não vem dormir em casa.

CHAN ZHOU WEI Nos fundos da loja um cheiro de peixe, enguia, água para lavar o piso, e o cansaço sem idade no rosto de patrão, de viúvo, de pai ausente, fecha a gaveta à chave, e não vai para casa não dormir, a filha indiferente no sofá, a outra de volta pela manhã, sem explicação, na cozinha, cortando legumes, distante abaixa a porta da loja, o ar é quente.

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Greta Benitez Curitibana que atualmente reside em São Paulo. É publicitária, pós-graduada em marketing. Ganhou vários prêmios em diversos Estados do Brasil, além de ter textos publicados em várias revistas, como ET CETERA, Oroboro e Discutindo Literatura. Em 1999, lançou o livro Rosas Embutidas, que recebeu o Prêmio Jorge de Lima - Brasil 500 Anos, concedido pela Academia Carioca de Letras e União Brasileira de Escritores. Em 2006, teve o livro Café Expresso Blackbird publicado pela Coleção Alguidar da Landy Editora.

Delineador Um olhar borrado de pura indignação Bênção de maquiagem Batom marrom Paisagem perfeita De tragédia sem som

Adornos A realidade eu retenho eu desenho em mim eu ataco em pedaços de espelho bordados no meu casaco. O que é belo grita calado em pedras preciosas terríveis que enfeitam meu cabelo pintado.

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Ameaça Venha a mim Aproveite que a chuva ficou mais forte E confie mais na sua sorte Perceba que a luz ficou mais fraca Aqui entre nós Espera sem fim Venha a mim Antes que eu queira usar a faca

Amigas Estamos perdidas No meio do desfile de fantasias Eu de chapéu - mafiosa Você de baiana furiosa Brincos grandes de argola Trincos herméticos de mulher confusa As duas desfilando por uma grande avenida de prédios muito muito muito muito muito muito muito muito altos Amigas íntimas dos santos e dos asfaltos. Dizem “caindo, do chão não se passa” O asfalto ri: “Ahah, a melhor piada que eu já ouvi. Meninas: o inferno é logo aqui.”

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Ivan Hegenberg Nasceu em São Paulo, 1980. Formou-se em Artes Plásticas pela ECA-USP e atualmente trabalha no mercado editorial. Publicou A Grande Incógnita (Contos, 2005), Será (Romance, 2007) e Puro Enquanto, (Romance, 2009 - Premiado pelo PAC). Blog do autor: www.ivanhegenberg.blogspost.com

SERÁ (Trecho) Atrás da janela, a noite silenciosa. Dentro da sala, a luz cegava os olhos de tão branca. Um zunido constante como que amassava os pensamentos, e a agulha se aproximava na ponta de um braço robótico. Uma picada aguda na veia e os ruídos se embaralharam em uma massa densa e monótona, o gosto azedo de bile tomou conta da boca, as máquinas escuras se tornaram translúcidas e nebulosas, o contato frio com a poltrona migrou dos seus dedos para o peito, e um sutil cheiro de sangue foi sua lembrança antes de se afastar para o sono. São centenas de experiências pouco convencionais. Em uma delas, dois clones crescem separados, em ambientes idênticos, sujeitos a acontecimentos sincronizados, também idênticos. Por vinte anos tudo o que acontece em uma cela se dá exatamente como na outra. Depois de vinte anos isolados, os clones se encontram, assustam-se um com o outro, percebem-se como semelhantes, e então se tocam, espontaneamente se beijam, se acariciam, fazem amor. Masturbam-se juntos, fazem sexo oral juntos, horas a fio (nenhum dos dois se deixa penetrar). Hoje estão com quarenta anos cada, e parece que ainda se amam. Os cientistas os observam sem serem vistos, e sorriem satisfeitos.

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PURO ENQUANTO (Trecho) O bípede-homem passou o dia inteiro andando, agora precisa dormir. Desde que o sol se levantou até depois do início da noite, nada mais fez do que trabalhar e caminhar - por todas as ruas, pelos shoppings, comprando coisas, pagando contas, resolvendo problemas. Essa inepta matéria viva em forma de gente abusou das pernas, precisa do repouso, e por isso se aninha, encolhe os membros, para que a realidade externa se desacelere e permita um pouco da dulcíssima magia do sono. Sabedoria atávica do sono. A energia recomposta se aconchega como um segundo cobertor, e ele suspira, feliz como um gato ronronando. E para nunca e começando. Evocado está, das margens da grandeza, mergulho autônomo, sem trégua e aos roncos. Dorme. Sonha. Submerso. Deixa para trás a superfície, as medidas e o peso das coisas, entregue ao que se mastiga com o fundo da mente. Como se tudo fosse o que real/mente é. Espírito velho quase-morto em um funeral e outros milhares de parentes jamais catalogados. Dão os pêsames a você com todo o pesar, apesar de você estar confuso quanto a quem é o morto. A irmã que nunca teve recebe os prantos e os lamentos. Na hora de sua morte é que saberemos se ela vai ou não chamar para perto, para os ouvidos, junto. Está enferma, empesteada, enfronhada, enfurnada. Tudo nela, na irmã de histórias remotas jamais vividas ou dantes sonhadas, essa pessoa marcante-fugaz, comenta o quanto nós pensávamos em linha reta. E estica o dedo no ar. Vai chover hoje. Vou ter dinheiro hoje. Vou ser extremamente cordial até o fim da tarde. Aceitávamos, e ela se regozija de nosso acato. Sempre teve que ser assim, você sempre obedeceu. Não há por que mudar.

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Luiz Roberto Guedes Poeta, escritor, tradutor e letrista, sob o nome de Paulo Flexa. Publicou, entre outros, Calendário Lunático (2000), a novela histórica O mamaluco voador (2006), e o thriller juvenil Meu Mestre de História Sobrenatural (2008).

[Li Tai Po para os caiapós] para Ricardo Aleixo a chinesice é o ópio do poeta zen estilo de marfim entalha lua ming céu de pergaminho jardim de nanquim grafa garça em pé de sakura em vez de paca e saracura planta monte fuji onde anta trota e onça ruge tanto faz que nenpuku sato |poeta-lavrador no burajiru| já tenha enfiado tatu no haikku e o shamisen no saco

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[news of the world] NONSENSE NONSTOP

[beatificação beat]

anos & anos emborcando bourbon com cerveja metralhando na velha royal a crônica da sarjeta contos de fodas & fodidos mundanas & vadios rapsodo compassivo da casta dos perdedores germinando verrugas & hemorroidas & porejando poemas prosaicos sobre dias opacos maresia de garrafas vazias barco bêbado desde o princípio destinado a todos os desastres | sol fixo sobre o último ato | fim da linha fim da estrada beco cego & ainda uma última linha antes do fim da história acumulando um pé-de-meia para um futuro tão curto que logo chegou & pingou o ponto final

[daily market] todos em leilão todos felizes faça seu lance saldos da crise último aviso para quem voa em queda livre pense rápido economize seu velho sonho vida boa Celuzlose 02 - Setembro 2009 31


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Marcelo Ariel Nasceu em Santos, 1968. Escritor & dramaturgo autodidata, mantém desde 1988 um sebo itinerante chamado O Invisível. Publicou pelo Coletivo Dulcinéia Catadora os livros: ME ENTERREM COM A MINHA AR 15 e O CÉU NO FUNDO DO MAR; publicou pelo Selo LetraSelvagem o livro: TRATADO DOS ANJOS AFOGADOS. E-mail: marceloariel521@hotmail.com Blog: www.teatrofantasma.blogspot.com

LIVROS & OSSOS para Rodrigo de Souza Leão A situação é essa: A vitória do tempo que dentro do corpo repete o horror dos espaços infinitos; A solidão dos ossos e a dos planetas mortos A constatação de que ninguém virá apertar a minha mão e me dar parabéns enquanto eu morro mas a própria escuridão lírica se transforma em uma cor desconhecida e consola uma vez mais como moedas nos bolsos que serão encontradas intactas no meio de uma pilha de ossos tão frágeis que o contato com o ar os diviniza e eles sonham que são dentes de leão flutuando no ar sem ênfase como todos os outros anjos A situação é essa, agora só o vento evoca a transfiguração das vozes. (Poema do livro inédito TEATROFANTASMA)

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SEM TÍTULO Porque a autenticidade mais pura que prescinde até da nossa presença convoca a destruição da vida controlada, essa que cantava como uma máquina a árvore do paradoxo apenas para completar em nós a paralisia do simbólico nome das coisas, por exemplo: HOMEM E MULHER, PRESOS A ESSA FALSA NUDEZ, REFÉNS DO ABRAÇO QUE SANGRA AS PALAVRAS Estava pensando no primeiro homem morto a pontapés, o primeiro homem morto a pontapés não cancelou a metafísica, ele deu cinco tiros no Sol ouvindo Chopin de trás para frente nas cápsulas do sono, enquanto a ética do retorno canta na casca das árvores, o rosto dos mortos canta nas copas, o olhar dos vivos canta na folha que cai na água parada, tudo canta incessantemente para o fracasso que viaja Estive pensando no entusiasmo sutil como uma brisa que parecia ser o centro da amizade entre Miles & Coltrane e em como esta amizade é para mim o símbolo da catedral invisível que o afeto pode erguer dentro do campo de vaidades devastadas por um incêndio interior (Miles) ou por uma geleira pegando fogo no Alaska (ou Deus em Coltrane). O que faz um vírus em um computador programado para roubar? Pasolini entrou no Partido Comunista (segundo ele em suas memórias e isso é citado em um poema por Roberto Piva) apenas para criticar e esculhambar… Concordo 100% com Pasolini. Por que outro motivo um poeta entraria em um partido e acrescento ainda, desmistificar e sabotar falsos paradigmas como metas e no fim (por que não) ser gloriosamente expulso ou fundar dentro da lama misturada ao ouro, a corrente surrealista natural. Ah, os nazistas tambem exigiram carteirinha de filiação de Heidegger. Mas voltemos a falar de Cubatão… (Poema do livro inédito TEATROFANTASMA)

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Alan Mills Guatemala, 1979. Poeta, ensaísta e tradutor. Participou em Les Belles Étrangères, del Centre National du Livre (França, 2008) e do Salon du Livre d’Amérique Latine (França, 2009). Traduz do inglês, francês e português. Publicou os livros: Los nombres ocultos (2002), Marca de agua (2005), Poemas sensibles (Praxis, México, 2005), Testamentofuturo (www.librosminimos.org, 2007) e Síncopes (Literal, México, 2007 / Zignos, Peru, 2007). Mantém o blog Revólver (www.alanmills.blogspot.com).

TOTAIS / ARS POETICA Contê-lo todo (o copo do universo) e polir pedras com olhares. A poesia não cabe na palavra: estica / tensiona / quebra. Há quem sabe e chora. Entrega silêncios para assemelhar-se a Deus. Onde nasce um ser belo? Se o verbo se fizesse carne a poesia daria tanta verdade como um punhado de terra / seria tão certa como o suspiro do ancião que sonha o futuro na longa fila de aposentados. O belo persegue o belo mesmo que nele se perca a vida. E a mentira? Caminhar com ela / apaixonar-se / morrer. A dor é sinal de divindade. A poesia faz o sinal da cruz diante das coisas.

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TOTALES / ARS POETICA Conternelo todo (el vaso del universo) y pulir piedras con miradas. No cabe la poesía en la palabra: la estira / la tensa / la quiebra. Hay quien lo sabe y llora. Entrega silencios para parecerse a Dios. ¿De dónde nace un ser bello? Si el verbo se hiciese carne la poesía daría tanta verdad como un puño de tierra / sería tan cierta como el alinto del anciano que sueña futuro en larga fila de jubilados. Lo bello persigue lo bello aunque en ello se vaya la vida. ¿Y la mentira? Caminar con ella / enamorarse / morir. El dolor es anuncio de divinidad. La poesía se persigna ante las cosas.


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FOTOGRAFIA COM AUTORRETRATO De engano a engano vai a luz e não cala. A luz dá um salto e é o vazio entre dois corpos. Esse espaço iluminado recorda a permanência ou a teimosia de querer ver e ser na luz. De engano a engano vai a luz e não para. Nada termina se não há um limite escuro. Esse limite escuro somos nós. Flash.

FOTOGRAFÍA CON AUTORRETRATO De engaño a engaño va la luz y no calla. Da un salto la luz y es el vacío entre dos cuepos. Ese espacio iluminado recuerda a la permanencia o a la necedad de querer ver y ser en la luz. De engaño a engaño va la luz y no cesa. Nada termina si no hay un límite oscuro. Ese límite oscuro somos nosotros. Flash.

VERMES sentia-me excelso e escasso como uma monumental estela extasiada na enseada da Páscoa pensei: matéria disse: Deus sangrei

GUSANOS

a terra como elemento possui sabor profano maravilhoso se quiser

me sentía excelso y escaso como una monumental estela extasiada en la isla de Pascua

meus olhos chegarão a qualquer galáxia antes de saber com qual substância somos feitos dizer Deus é ter medo da morte é evidente

pensé: materia dije: Dios sangré la tierra como elemento dispone de sabor profano maravilloso si se quiere mis ojos llegarán a cualquier galaxia antes de saber con qué sustancia estamos hechos decir Dios es tenerle miedo a la muerte es evidente

(Tradução: Victor Del Franco) Celuzlose 02 - Setembro 2009 35


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Javier Díaz Gil Poeta espanhol, residente em Madri. Nascido em 1964, é licenciado em Geografia e História. Recebeu, em 2000, o 1º Prêmio “NICOLÁS DEL HIERRO” pelo livro Hallazgo de la visión; em junho de 2000, o 1º Prêmio I Certamen “Humberto Tenedor”, pelo livro Humo; em 2000, 2001 e 2002, o Prêmio “Ciudad de Getafe” de poesia; entre outras premiações. Tomou parte como jurado de diversos prêmios de poesia e de contos. Participou dos encontros de poesia Poquita Fe, em Santiago do Chile (2006), e Festival Tordesilhas, em São Paulo (2007). Entre 1995 e 2006 organizou oficinas de criação literária em centros culturais de Madri. Desde 2006, coordena uma tertúlia literária no café Galdós, em Madri.

IV. O FANTASMA O fantasma que deixei em casa Está a descuidar as tarefas. Sei que deixa De regar as plantas, Levanta-se tarde E esquece-se de ir trabalhar. Vagueia pela casa, Deixa a cama por fazer, Come mais que o que deve, Não responde ao telefone Nem aos meus amigos. Mas nada disso importa, Nem sequer Que tenha deixado evaporar a água De toda a chuva que eu guardei. Tenho medo - que, por esquecimento Não tenha sabido Guardar-me a memória.

IV. EL FANTASMA El fantasma que he dejado en casa Está descuidando las tareas. Sé que está dejando De regar las plantas, Levantándose tarde Y olvidándose de ir a trabajar. Deambula por la casa Dejando la cama sin hacer Comiendo más de la cuenta, Desatendiendo el teléfono Y a mis amigos. Pero nada de eso importa, Ni siquiera Que haya dejado evaporarse el agua De toda la lluvia que guardé. Tengo miedo - que por olvido No haya sabido Guardarme la memoria.

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V. PRAÇA DA SÉ Que melhor teria sido Chamar-te Praça da Sede, Praça do desejo, Da necessidade da água, Da sobrevivência. Praça da Sede E que tivesses ao centro Uma grande fonte monumental Que nos contemplasse. Mas a sede que eu evoco Só é ruína de sé, O palácio dum Arcebispo A quem jamais faltou a água. Deixa que eu te imagine assim, - a sede A chegada prometida, O final em que acabassem Todos os desertos.

V. PRAÇA DA SÉ Cuánto mejor hubiera sido Llamarte Plaza de la Sed, Plaza del deseo, De la necesidad del agua, De la supervivencia. Plaza de la Sed Y que tuvieras en tu centro Una gran fuente monumental Que nos contemplara. Pero la sed que evoco Sólo es ruina de sede, El palacio de un arzobispo Al que nunca le faltó el agua. Déjame que te imagine así, - la sed La llegada prometida, El final donde acabaran Todos los desiertos.

XIX. Seria belo Morrer em Iguaçu. Abandonar-se suavemente Ao rio Ao rumor hipnótico Da água, Ao seu abraço. Flutuar, precipitado, Ingrávido, Na nuvem de espuma Que espera O contato da rocha. Arrastado pela corrente, Corpo de água, Luz de ramagens assombradas Ante o delírio De ser já peixe e silêncio, Água de Iguaçu, Confundida para sempre No sangue acolhedor Do Paraná.

XIX. Sería hermoso Morir en Iguazú. Abandonarse blandamente Al río Al rumor hipnótico Del agua, A su abrazo. Flotar, precipitado, Ingrávido, En la nube de espuma Que espera El contacto de la roca. Arrastrado por la corriente, Cuerpo de agua, Luz de ramas asombradas Ante el delirio De ser ya pez y silencio, Agua de Iguazú Confundido para siempre En la sangre acogedora Del Paraná.

(Poemas do livro inédito: Morir en Iguazu. Tradução de Orlanda Díaz e Fábio Aristimunho Vargas)

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Peter Finch Nasceu em Cardiff, País de Gales, 1947. No final dos anos 1960, surgiu como um dos mais ativos poetas da vanguarda galesa, principalmente com sua revista Second Aeon. Encontrou influências no concretismo, em especial no trabalho dos irmão Augusto e Haroldo de Campos. Junto com o poeta visual Bob Cobbing fez experiências com música e poesia durante alguns anos na década de 1970. Suas principais obras são: Poems for Ghosts, Useful, Antibodies, Blats e Food. Hoje em dia, é diretor do Academi, órgão promotor da literatura galesa na Grã-Bretanha e no mundo. Seu site: www.peterfinch.co.uk

DOENTE Há muitas coisas erradas comigo, algumas descobertas recentemente, outras estão em volta há tempos e só agora me preocupam o bastante para reclamar. Elas morrem de rir de mim e eu tenho que agir. Vou ao médico e ele me diz para experimentar ser negro como ele e ver como me saio. Me prescreve uma receita para pílulas brancas. Eu a jogo fora. Estes são dias nebulosos. Acho que tudo bem em dizer isso. Tenho cefaleia do cachorro-quente, disfunção sexual, melancolia, impetigo, reumatismo sonâmbulo, bruxismo e mordida cruzada, draconiose, síndrome de jack sprat e esposa, moluscose turca, blá-blá-blá crônico, insolação quelônica e ossos corroídos. É uma lista e tanto. Você questiona como eu ainda ando se é tão mal assim. Alguns de nós não temos escolha. Ouça, sua grande imbecil, me dê amor, paz e felicidade e, é claro, tudo isso terá fim.

SICK There are lots of things wrong with me, some of them recently discovered, others been around for an age and only now worry me enough to complain. They are rolling about and I must take action. I have seen the doctor he says try being black like him and see how I get on. Writes me a script for white pills. I throw it in the hedge. These are dark days. I guess it's okay to say that. I have hot-dog headaches, sexual dysfunction, melancholia, impetigo, somnambulant shin splints, bruxism and improper bite, draconionisis, jack sprat and wife syndrome, Turkish molluscs, constitutional blahs, turtle sunstroke and rodent bones. It's a powerful list. You wonder how I walk if it's that bad. Some of us have no option. Listen to me, you rich bastard, Give me love, peace and happiness and it will certainly stop.

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A ESCURIDÃO E OS SONS DA ÁGUA seis luas de sódio sobre o rio, seis satélites silentes feitos a vidro e gás a lua real repousa piscante e eu assisto o estalar onde águas retorcemse e a espuma espessa é amarela por um instante ao escurecer. ouço-me respirar só escuto a água, e os sons da penumbra retornando.

DARKNESS AND THE SOUNDS OF WATER six sodium moons in the river, six silent satellites of glass and gas the real moon lies flickering and I watch it crack where waters twist and heavy froth is yellow for a moment before black. I listen for my breath, hear only water, and the sounds of the dawn coming back.

MUDANDO Em minha nova escola descobri que Jesus era gigante. O tempo consumido era interminável. Um misto de ladainhas lentas com hinos indigestos até a cebeça zunir sermões que faziam as travessuras de praxe soarem como algo saído direto do Velho Testamento. Você tinha de sorrir e crer quando estava aqui. Os veteranos fiscalizavam sua fé. Eu só tinha uma saída, afinal, não é? Disse a eles que eu era judeu.

MOVING In my new school I discovered Jesus was huge. The amount of time he consumed was endless. Assemblies of torpid prayer and heavy hymn then the head's droned sermons which made the misdemeanours of standard four sound like something from the Old Testament. You had to smile and believe when you were here. The prefects checked you for fervour. I had only one option open, didn't I? I told them I was Jewish.

(Tradução: Donny Correia) Celuzlose 02 - Setembro 2009 39


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Valeria Meiller Nasceu em Azul, Argentina, 1985. Estuda Letras na Universidade de Buenos Aires e trabalha como tradutora. Também colabora na seção de literatura do suplemento cultural Ñ do jornal Clarín. Blog: www.blondonblog.blogspot.com. Poemas seus foram publicados em diferentes revistas de poesia argentinas e latino-americanas. Parte de seu primeiro livro inédito, El Recreo, foi incluída na antologia de poesia argentina contemporânea Lo humanamente posible. Atualmente trabalha na preparação de seu segundo livro, Tilos.

Novo plano de fronteiras / Nagalí Mãe escuta um barulho, deixa crescer um bosque um filho no bosque um nome no filho um arquipélago no centro da luz. Lava-se em uma bacia, na graça de Deus. Outra mulher que engatinha lhe enxágua a cabeça com um balde: este é seu batismo. Os rapazes por outro lado se batizam a si mesmos escolhem seus próprios nomes, presidem suas próprias cerimônias. Por um livro souberam faz um tempo que nos idiomas escandinavos A é água e todos quiseram o nome de um rio. Quando a geada derrete forma um afluente exíguo. Para os homens da canoa A é o mundo. *

Nuevo plan de fronteras / Nagalí Madre escucha un ruido, deja crecer un bosque un hijo en el bosque un nombre en el hijo un archipiélago en el centro de la luz. Se baña en una palangana, en la gracia de Dios. Otra mujer en patas le enjuaga la cabeza con un balde: este es su bautismo. Los varones en cambio se llaman a sí mismos eligen sus propios nombres, ofician sus propias ceremonias. Por un libro supieron hace un tiempo que en los idiomas escandinavos A es agua y todos quisieron el nombre de un río. Cuando la escarcha se derrite forma un afluente exiguo. Para los hombres de la canoa A es el mundo. *

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Mãe amassa seu nome na cozinha. Com um osso no punho, com um coto de prata nas costas. Nomes de mulheres que comecem com A... O fio de água reaparece em um sonho se torna uma corrente, inunda toda a superfície da terra. Um raio perpendicular cai sobre a cerca como um trópico. Pensa: Onde acaba o alambrado acaba o mundo. Vou perfurar uma planície. Esta rocha é o mar. O campo líquido contém o universo. * Dobra as ilhas que cresceram nas letras. A árvore da família é a invenção de um alfabeto. Um pontapé no centro da luz. Ali no umbigo, as avós tecem os laços Os pais atam um nó. Os filhos abrem um corte no centro da luz e se arremessam dentro. O nascimento é um mantel de sacrifícios de uma leveza puríssima... Mergulhar em uma ladainha contra o medo. A fronteira enfia um nome e uma data em cada criança. Assim se habita o nascimento. Ao final de um ano, Era de Água. Inundação atrás de inundação. * 1833-2003. Quase duzentos anos moendo cristal na cristaleira do living: as iniciais de cada irmão em uma taça de prata (1969, 1973, 1974, 1975). Os pais caminham na chapada sete quilômetros para tê-los. As crianças quando nascem lambem a palma da mão, apagam as impressões digitais. Deixam um polegar vazio impresso no barro e se preparam para nascer de novo.

Madre amasa su nombre en la cocina. Con un hueso en el puño, con un muñón de plata en la espalda. Nombres de mujer que empiecen con A… El hilo de agua reaparece en un sueño se vuelve una corriente, inunda toda la superficie de la tierra. Un rayo perpendicular cae sobre la púa como un trópico. Piensa: Donde termina el alambrado termina el mundo. Voy a barrenar una llanura. Esta roca es el mar. El campo líquido contiene al universo. * Pliega las islas que crecieron en las letras. El árbol de la familia es la invención de un alfabeto. Una patada en el centro de la luz. En el ombligo, las abuelas tejen los lazos los padres atan un nudo. Los hijos abren un tajo en el centro de la luz y se arrojan dentro. El nacimiento es un mantel de sacrificios de una levedad purísima… Zambullirse en una plegaria contra el miedo. La frontera enhebra un nombre y una fecha en cada niño. Así se habita lo natal. En el término de un año, Era de Agua. Inundación tras inundación. * 1833-2003. Casi doscientos años moliendo cristal en la vitrina del living: las iniciales de cada hermano en una copa de plata (1969, 1973, 1974,1975). Los padres caminan en la campaña siete kilómetros para tenerlos. Los niños cuando nacen se lamen la palma de la mano, se borran las huellas digitales. Dejan un pulgar vacío impreso en el barro y se preparan para nacer de nuevo.

(Tradução: Rafael Rocha Daud) Celuzlose 02 - Setembro 2009 41


Caderno

Crítico

Ausência + radicalidade textual em Las palabras y los días, de Julio Serrano por Alan Mills

1. Uma contracapa espectral nos diz que o título deste livro nos remete a Hesíodo (Os trabalhos e os dias), mas também, cito, a certa “promiscuidade pós-moderna”1. Entenderíamos, deduzo, como promiscuidade o esbanjamento referencial e a proliferação de uma prosódia que se quer congregante e descontínua ao mesmo tempo, o que dinamizaria o entendimento deste texto poético. Mas também, continuo pensando, há algo promíscuo nesta estratégia cínica de colocar a poesia num âmbito que inclui sua própria crítica e, de alguma maneira, a intenção de se ocultar. Chama a atenção que quem escreveu a contracapa tenha optado pelo anonimato, não há assinatura no comentário de quem faz a apresentação deste livro, e tampouco se trata da típica resenha do editor. Da mesma maneira, o autor optou por um sujeito poético em estado de contínua dissolução e ausência. Não existe aqui uma “voz poética”2 plenamente diferenciável ou capaz de assumir um protagonismo por cima das “palavras”. Tampouco é perceptível uma fala, um dialeto que emane de seu entorno emocional ou social, de um “fora”; toda sua picnolepsia parece provir da intimidade do indivíduo mudo, duvidoso de sua própria presença e alheio a si (talvez por isso, chegou-se a duvidar, até o século XIX, da verdadeira existência de Hesíodo: parecia que ninguém, além de seu texto, podia dar fé de seus trabalhos e seus dias).

1. É recorrente vincular a pós-modernidade com a tal promiscuidade que se quer própria dos que moram nas margens ou nas fronteiras, falando assim de um termo sujo, desordenado, pobre, impuro e, por isso, indesejável. Eu gosto da metáfora da “cabotagem”, do Boaventura dos Santos, que devolve dignidade pra essas sujeiras, se referindo a isso tudo como navegação: “navegar fora dos limites, mas em contato físico com eles, e ir realizando outras atividades ao longo do trajeto, como a pesca ou o comércio”. 2. Existe realmente uma voz poética? Não é que realmente todos os poetas estamos mudos?

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Falar, então, de uma estética do vazio (convocando assim as pérolas imperfeitas de Virilio)3 soaria, nada mais como uma clara impostura intelectual, se não houvesse explicação do feito de que neste conjunto de textos o que vai prevalecer é uma profunda sensação de vazio (existencial, moral, vital) conduzida pela mesma cadência, ritmo e disposição das palavras. Vazio, ausência, invisibilidade, invadidas pelo verbo e sua execução total no texto, seu posicionamento, sua maneira de se estabelecer na página. É dizer, a palavra como garantia de um vazio prévio e de outro vazio posterior, palavra como intermitência e registro, como verbalização de uma ausência: demasiadas palabras para tan sordos oídos todas las cosas pasan a través las palabras y los trenes siempre llenos son un intento de abrazarnos que se ahoga los ancianos acostumbran a guardar algo para el final tienen las manos arrugadas y vacías recordar poseer es vivir

2. Outro elemento que distingue Las palabras y los días de boa parte das experiências poéticas publicadas recentemente na Guatemala4 é, por óbvio que pareça, o estabelecimento do discurso da poesia como a postulação de um projeto e já não como a simples acumulação de poemas. Aqui se rompe com a lógica das oficinas criativas locais, na qual se tenta perpetuar determinadas retóricas de viés nacional e cujo método é simples: acumule 25 poemas, faça limpeza e polimento, ponha um título na papelada, pague um editor e publique seu livro. No livro Las palabras y los días, o artista atua criando um texto que expressa suas pulsões mais puras, o desejo desregulando qualquer ansiedade por um espaço textual não conflitivo: desarticula esse medo do poder da escrita e vai além da escritura.

3. É só um jeito barroco de me referir ao barroco. 4. Este artigo foi publicado originalmente no ano de 2006, na revista Este País, da Guatemala.

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Julio Serrano começa a pavimentar a estrada de sua poética através da imbricação orquestral de uma linguagem e um ritmo que, para melhor contundência de seus fins, chega a ser aforístico, frio e dono de uma sutil crueldade: recordar palabras entre la oscuridad y el ruido El sentido justo, metro palpitante

Por qué los espacios en blanco, dejen a las palabras extender su aliento, burlarse de nuestros ojos, acelerar la pérdida del punto

É a linguagem com a qual fala uma solidão sem nome, um choro seco que não tem piedade de si, posto que não se reconhece. Diríamos que é a voz da sombra, um documento no qual vibrará a poesia mesmo que não houvesse poemas: a comoção se manifesta por meio de um estalo pan-óptico, mais geral e complexo que pode falar da ausência mesma do texto ou do espaço deixado pelo poema que já não está, ou que nunca esteve5. O poema como unidade mínima e autônoma fica sujeito, então, a uma ordem maior e muito mais ramificada que, além disso, se questiona a si mesmo. Falo do projeto, claro, do traçado de um ethos. A escritura como elevação ética e como o diagrama do que será um indivíduo diante de si e sua circunstância. Quero mencionar também a visualização de um projeto em função não só dos limites notórios do livro, mas de algo que ultrapassa as aspirações mesmas do objeto, para fixar-se em algo menos diletante, algo que vai se 6 parecer (oh!) a uma “missão” : quem sabe me refira a um discurso e sua transformação no tempo, impossibilitado para admitir concessões que atentem contra sua natureza e necessidade.

5. Falando do Ramón López Velarde, o poeta e ensaísta mexicano Luis Felipe Fabre anuncia: “... en los huecos de las palabras que faltan se resuelve el sueño de las palabras que están”... Leyendo agujeros. Ensayos sobre (des) escritura, antiescritura y no escritura, Fondo Editorial Tierra Adentro, 2005, p. 15. 6. “Nuestra misión es generar problemáticas y seducir a otros para que las prolonguen”... Carlos Fajardo Fajardo, em “Poesía y posmodernidad. Algunas tendencias y contextos (A propósito del XI Festival Internacional de Poesía de Medellín, Colombia, 2001)”, http://www.ucm.es/info/especulo/numero20/posmoder.html.

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Porém, não vamos provocar aqui a confusão: se existe em Las palabras y los días algum chamamento, será somente o da liberdade (“il ne s'agit pas de liberté par opposition à soumission, mais seulement d'une ligne de fuite”)7. Uma liberação apoiada na própria e insuperável distância entre o falante mudo e seu objeto de desejo. Para isso, o verso - e sua articulação neste livro - acaba perseguindo um falso sossego (a satisfação de um desejo, a supressão de uma carência não está sempre previamente cancelada?) que atuaria através do descobrimento controlado dos elementos de sua própria cadeia lógica. Não existe a angústia pelo poema redondo e contundente, fechado. Vejamos: Dos personas caminan bajo la lluvia tomadas de la mano Sobre el agua se escuchaban los pasos La cámara filmaba desde un poste de luz Largos abrigos caminando, la orilla de la tela y los zapatos, Oscuridad diluida en el asfalto (Un hombre recostado en una almohada tiembla en la habitación La luz de la pantalla brilla en sus ojos) ahora filma desde el suelo, pasos de soledad inmensa.

Essa distensão, no entanto, tenta criar “estados”, “momentos” que estão além do efeito, às vezes, perecível, que pode incorporar um poema em sua solidão mais completa. A fragmentação, o simulacro narrativo, a separação dos textos de toda subordinação despótica ao referente, vagando livres em um presente atemporal (F. Jameson), são os fatores determinantes. Uma fragmentação não de todo esquizoide, e melhor simulatória de uma prosódia congregante, uma narração sem sujeito, ou com um falante que se esconde muito bem atrás das palavras. Pode se intuir um contexto, mas resulta, desde já, vaporoso e obscuro, não brinda a possibilidade de mencioná-lo com toda claridade e situá-lo como epicentro diáfano da situação existencial e linguística que se apresenta. Às vezes, tal devir textual lembra passagens de Marguerite Duras, se percebe uma acentuação falsamente dramática que traz à memória aquele romance - Los ojos azules, pelo negro - no qual tudo sucede sem que nada aconteça, onde os personagens figuram como espectros incapacitados para vislumbrar as resplandecentes profundidades de sua dor. Com isto, o artefato poético se desprende de sua urdidura convencional para se desfiar até outros lugares genéricos, nos convidando a pensar que o feito poético tem potência para transformar-se em novela, filme, conto ou simples maravilha.

7. Gilles Deleuze e Félix Guattari, Kafka - Pour une littérature mineure, Paris, Editions de Minuit, 1975, p. 13.

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Temos diante de nós uma pequena novela em chave lírica, na qual não há personagens, nem tema, somente a ausência de tudo mobilizando sua dolorosa constatação: Es la mañana y el edificio de enfrente se planta como la sombra de un ser más fuerte y desconocido Es el día y los movimientos son la luz Palabras y humo que al anochecer caen sobre nuestros cuerpos como un frío extraño y húmedo que preferimos evitar Atraviesan pájaros sin calma, las palomas son ratas que temen a la oscuridad,

3. A última página de Las palabras y los días nos indica que o livro “se terminó de imprimir (en) el mes de mayo de 2006, en los talleres de Ediciones Superiores, S.A”. Se bem que o nome do impressor carece, à primeira vista, de qualquer interesse crítico, não é igualmente desdenhável a informação de que “foi impresso” na referida data e local. Por várias razões: Uma delas estaria cifrada no feito de que a impressão vai representar, neste caso, somente uma etapa (e nem sequer a final) do processo de criação textual. Vivemos um momento em que o papel deixou de ser o suporte mais dinâmico para a circulação dos trabalhos poéticos, sobretudo no que diz respeito ao intercâmbio entre criadores. É importante notar que os correios eletrônicos com arquivos anexados têm possibilitado o acesso em tempo real de textos inéditos (ou já publicados mas de circulação restrita) ou, inclusive, em processo de criação de diversos poetas, até de países distintos. Pensemos assim em uma escritura, quem sabe, não coletiva, mas sim consciente de suas bordas e vizinhanças atuando em simultaneidade8. E é deste modo que um livro como Las palabras y los días ultrapassa sua possibilidade meramente individual, pois se pode dizer que desde antes de sua edição oficial o livro se encontrava plenamente instalado no interior de um imaginário de criação poética compartilhado e em construção, mediante diversos intercâmbios e permutações eletrônicas.

8. Talvez era disso que falava Lautréamont, talvez não...

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Como quem diz que o poema havia começado a ser escrito muito antes de sua própria escritura e que, através dele, se pensam outras escrituras. Recordo isto, pois alguns de nós tivemos o privilégio de assistir a distintas etapas da elaboração deste corpus textual (iniciado formalmente há mais de 5 anos) e de conhecer os versos, momentos e variações que o poeta decidiu extirpar do todo em sua apresentação final, deixando esses vazios representados para nós através do desenho de espaços em branco e palavras riscadas. Creio que Las palabras y los días representa um livro que sabe testemunhar muito bem seu próprio processo, sua qualidade de ser um work in progress que chega a impressão como uma simples fase a mais. Do mesmo modo, Julio Serrano teve acesso a uma série de exercícios paralelos e simultâneos que conformaram o ambiente de criação estética desde onde se nutriam várias das apostas manifestadas em Las palabras y los días. Com isto, quero afirmar que o livro aqui analisado faz parte de um conglomerado mais amplo de estratégias discursivas que se contaminaram mutuamente por via eletrônica, deixando diversos registros do referido percurso. Falo aqui de um livro que exerceu múltiplas pressões e alterações sobre seu próprio entorno lírico, ao qual também fui inteiramente permeável em tempo 9 real . Uma espécie de oficina criativa virtual da qual dá conta sua própria textualidade por intermédio de variados recursos concretistas e múltiplas piscadelas intertextuais. Las palabras y los días evidencia em seu corpo a tatuagem elétrica deixada por alguns livros produzidos na mesma época e em absoluta sintonia, todos participantes de um território imaginário que se conquistava coletivamente, através de algo parecido com uma guerra de guerrilhas simbólica contra um cânone local que pretendia nos anular.

Alan Mills, Guatemala, 1979. É poeta, ensaísta e tradutor. Mantém o blog Revólver (www.alanmills.blogspot.com). Tradução: Victor Del Franco

9. Isso aqui é só um jeito de abordar a experimentação do tempo, onde a própria virtualidade é achar que a gente tem controle sobre o que entendemos como presente.

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LÚCIDA RETINA

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Alejandro Mendez Nasceu em Buenos Aires, 1965. Publicou os seguintes livros de poesia: Variaciones Goldberg (Ediciones del dock, Bs. As., 2003), Medley (Suscripción/larga distancia, Barcelona, 2003), Tsunami (Crunch editores, México, 2005), Chicos índigo (Bajo la luna, Bs. As., 2007). Coordena o blog de poesia contemporânea argentina: www.laseleccionesafectivas.blogspot.com.

CEMENTERIO DE DISIDENTES 1

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LÚCIDA RETINA

Poesia Visual

CEMENTERIO DE DISIDENTES 2

CEMENTERIO DE DISIDENTES 3

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LÚCIDA RETINA

Poesia Visual

CEMENTERIO DE DISIDENTES 4

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LÚCIDA RETINA

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ROJAS (Vídeo Poema - link abaixo)

Baseado em El moro fugado http://www.youtube.com/watch?v=XZyXDp61Ssc

de Antonio García Luque

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