10. Da pedra lascada aos smartphones: conclusões A tecnologia é uma criação do homem. E foi ela quem permitiu as grandes mudanças evolutivas no próprio homem. A partir de certo momento, garantem a ele sua existência física, sem os custos, sustos e tropeços fatais que ocorriam na pré-história. No cerne do que estamos discutindo, cumpre enfatizar uma consequência fundamental da tecnologia: libera tempo antes dedicado à sobrevivência. A agricultura e a domesticação de animais dão a partida nesse processo. Cada um ganha um tempo livre que pode usar como lhe aprouver. E o excedente agrícola permite a muitos se dedicarem totalmente a outros misteres. Ter tempo livre abre as portas para artes, cultura e todas as ruminações intelectuais da humanidade. Para quem sabe usar esse ócio, é uma bênção, um presente. Mas e quem não sabe e atola em um pântano existencial? Tudo aquilo que chamamos de civilização está imbricado nos avanços da tecnologia. O próprio conjunto de pensamentos e valores que dão corpo ao Humanismo, de uma forma ou de outra, são um produto do estilo de vida permitido pela tecnologia – afinal, se todo o tempo e energia se canalizam para a sobrevivência, não há como criar a arte, a cultura e as regras do bem viver. A qualidade material da vida, o conforto e a eliminação dos trabalhos mais árduos não pararam de evoluir. E nos últimos séculos o ritmo aumentou de forma dramática. A esperança de vida triplica e a existência ganha qualidade e desfrute. Mais ainda, o
tempo disponível para o lazer continua aumentando, bem como as opções de uma vida interessante e criativa. A dor passa a ser episódica, e não crônica. Muitas enfermidades são evitadas, curadas ou atenuadas. A coleção de mudanças com sinal positivo é muito grande. Mas nem tudo são flores. A mesma tecnologia que salva vidas também aumenta a eficácia com que são tiradas, em guerras e conflitos. Mas mesmo nesse campo o balanço não é tão negativo. Por anti-intuitivo que possa parecer, as estatísticas de mortes violentas no mundo mostram quedas ao longo dos anos. Nunca a humanidade viveu em um mundo tão seguro. Não há como negar o impacto da tecnologia no aumento da capacidade do homem de destruir o meio ambiente. A motosserra é o grande ícone da devastação. Mas é também a tecnologia que permite prodígios no processo de reverter danos causados à natureza. No fundo, os impactos da tecnologia no cotidiano do homem são poderosos e fáceis de entender, sejam positivos ou negativos. Temos até boas medidas dos avanços e recuos. As grandes perplexidades estão no que a tecnologia faz com a nossa alma. Seremos mais felizes com ela? Estudando tribos primitivas na Amazônia, antropólogos mostraram que seu desenvolvimento tecnológico dista de 10 mil anos da nossa civilização de smartphones. Viram também que seus membros parecem ser muito felizes, sempre rindo e brincando, o que não acontece na nossa sociedade. Para eles,
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o suicídio é um ato incompreensível. Mas como contrapartida, três quartos das suas crianças não sobrevivem aos primeiros anos de vida. Aparentemente, bastaria um pouquinho de medicina moderna para reduzir a mortalidade, aperfeiçoando uma sociedade feliz. Infelizmente, não é assim. Essa brutal mortalidade é essencial para manter a baixa densidade demográfica, pois a caça, complementada por uma agricultura tosca, limita severamente o sustento oferecido pelo espaço físico. É o equilíbrio malthusiano, na sua versão mais brutal. Para medir felicidade, pouco avança a pesquisa. Mas discutindo questões de sobrevivência, a ciência nos ajuda, permitindo rigor em um aspecto fundamental dos prós e dos contras da nossa civilização tecnológica. Como sabemos, apenas é possível alimentar e manter um padrão de vida minimamente aceitável para 7 bilhões de habitantes porque a tecnologia permite níveis de produtividade imprensáveis no passado. Sem a Revolução Verde, continuaríamos dependendo da fome, das guerras e das catástrofes naturais para manter a demografia em linha com a produtividade de outrora. Para ilustrar, se voltássemos duzentos anos na produtividade agrícola, alguns bilhões de pessoas iriam morrer de fome. Dessa forma brutal foi controlada a demografia durante um bom tempo da história recente do homem. Contudo, decidir se essa fórmula era melhor ou pior depende de juízos de valor, não de argumentos lógicos e científicos.
Mas é preciso reconhecer: sobrevida e conforto material não são tudo que queremos. Para ilustrar as dificuldades de fazer conjecturas sobre felicidade, nada melhor do que citar Freud: “Parece certo que não nos sentimos confortáveis na civilização atual, mas é muito difícil formar uma opinião sobre se, e em que grau, os homens de épocas anteriores se sentiram mais felizes, e sobre o papel que suas condições culturais desempenharam nessa questão… Os homens se orgulham de suas realizações e têm todo o direito de se orgulharem. Contudo, parecem ter observado que o poder recentemente adquirido sobre o espaço e o tempo, a subjugação das forças da natureza, a consecução de um anseio que remonta a milhares de anos, não aumentou a quantidade de satisfação prazerosa que poderiam esperar da vida e não os tornou mais felizes. Reconhecendo esse fato, devemos contentar-nos em concluir que o poder sobre a natureza não constitui a única precondição da felicidade humana, assim como não é o único objetivo do esforço cultural.” 16 Já que recrutamos um grande titã intelectual da virada dos século XX, por que não trazer um segundo, do mesmo naipe e falando também das consequências da invasão do processo produtivo pelas novas tecnologias? Segundo Marx, “ao nascimento da mecanização e da indústria moderna (...) seguiu-se um 16 Sigmund Freud, O mal da civilização (Texto copiado integralmente da edição eletrônica das obras de Freud, versão 2.0 por TupyKurumin) p. 17.
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violento abalo, como uma avalanche, em intensidade e extensão. Todos os limites da moral e da natureza, de idade e sexo, de dia e noite, foram rompidos. O capital celebrou suas orgias”.17 Há uma conclusão inevitável para nossos propósitos – que não incluem aprofundar o que dizem os dois autores. São sólidos os ganhos materiais trazidos pelo uso de tecnologias que se tornam cada vez mais eficazes e produtivas. Não obstante, suas consequências sobre os valores e sobre a felicidade humana são bem mais opacas. Não se trata de criar uma dicotomia do tipo: tecnologia gera bens materiais, mas gera também alienação e infelicidade. O mundo é bem mais complicado do que isso. Escudamo-nos nesses dois nomes apenas para sugerir que não há respostas claras nem únicas. A revolução do consumo libera o homem do desconforto e dos sacrifícios físicos com os quais sempre conviveu a humanidade. Mais ainda, para alguns, a abundância permite mais desprendimento diante das tentações do consumo. Não obstante, os paroxismos do consumo são aspectos feios e alienantes. É preciso reconhecer que cada vez mais nossa identidade está imbricada na tecnologia que nos rodeia. Percebemo-nos como seres vivendo e interagindo com elas. O problema é que muitas almas estão se escravizando à tecnologia que nós mesmos
produzimos. Uma distorção preocupante é o excesso de devoção aos bens materiais por parte de segmentos muito pobres da sociedade. É o lado lúgubre. Entrevistas em profundidade com grupos de jovens extremamente pobres no Sul do Brasil mostram que sua identidade se constrói na posse daqueles bens de consumo que estão na moda. Não fazem planos de futuro que não a posse dos objetos de desejo. Ironicamente, são mais siderados pelo consumo os que menos têm condições de sê-lo. Hoje é tênis, celular e boné. Não sabemos o que será no futuro. Para eles, apequenaram-se os valores que alguns consideram a grande herança da nossa Civilização Ocidental. Ameaça esses avanços a mesma tecnologia que nos permitiu desenvolver os valores e tradições do Humanismo, com as suas artes e filosofias. Como nos ensina Ortega y Gassett, não podemos condenar o uso pela existência do abuso. Os ganhos têm sido muito grandes e não podemos desconsiderálos por causa de alguns exageros e desvios de rota. Mas nem por isso devemos nos conformar com eles. Administrar esses conflitos faz parte das missões que herdamos de nossos antepassados.
17 Karl Marx, em O Capital, volume I
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