Pensar, projetar, medir e marcar

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6. Pensar, projetar, medir e marcar Mesmo quem nunca viu um martelo ou uma serra, logo deduz seu uso. Imaginemos um ianomâmi ou um xavante pescado de uma aldeia remota e apresentado a tais ferramentas. Talvez leve um tempinho, mas ambos acabam por entender para que servem, apesar de seu funcionamento ser regido por algumas teorias e conceitos da física nem tão simples assim. Em contraste, ao olhar um compasso, um esquadro ou uma régua, o xavante estaria diante de ferramentas cuja concepção sua existência desconhece. Provavelmente não entenderiam para que servem, mesmo diante de explicações detalhadas. Tais instrumentos só fazem sentido se tivermos ideia do que significa medir, ou seja, comparar alguma dimensão física de um objeto com a de um outro objeto ausente, o que só pode acontecer se o conceito de medida já existir em nossa mente antes de se materializar, por exemplo, nos tracinhos gravados numa régua. Medir tem como precondição o domínio do conceito de números. Tribos primitivas, como as ainda existentes no Brasil, têm um sistema muito rudimentar de numeração. Algumas só conhecem os números 1 e 2. Um estudo antropológico recente com os índios Munduruku mostra que só conseguem contar até quatro. A partir do 5, classificam os números como “muitos”.10 10 Citado por Alex Bellos, Here’s Looking at Euclid (New York: Free Press, 2011) Chapter Zero

Esses índios teriam muita dificuldade de entender nossos instrumentos de medida, mesmo que explicados detalhadamente. Falta-lhes uma arquitetura mental que não existia ou não existe na sua cultura. Contar é uma “teoria” que, lentamente, evolui na história do homem. Inicialmente, contam-se com conchas, sementes ou outros objetos que possam ser claramente dispostos. Um grande salto de abstração consiste em associar o número de conchinhas com alguma quantidade equivalente no mundo real. Por exemplo, o mesmo número conchinhas e de ovelhas no rebanho. Os maias já haviam transposto essa fase inicial e tinham conceitos muito mais sofisticados de números. De fato, tinham um sistema próprio de matemática que não era decimal, mas de base 20. Portanto, a ideia de medida estaria muito próxima do seu mundo. Confrontados com nossa régua e esquadro, não teriam grandes dificuldades de entender nossas explicações. Juntamente com o conceito de números, medir deve ter sido um dos primeiros saltos da abstração humana. Envolve comparar uma coisa presente com outra ausente, mas que existe na nossa cabeça. Medir, todavia, introduz uma complicação adicional. As conchinhas são números discretos: ou são duas ou são três. O mesmo acontece ao contar seus machados de pedra: ou são dois ou são três, não há a noção de meio machado. Contudo, o ato de medir é de natureza diferente. Em certas situações, o

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Estojo clássico com instrumentos de

desenho técnico, usado por engenheiros e arquitetos.

mundo real é mais complicado. Medir é um conceito muito mais difícil e abstrato. Trata-se de comparar o tamanho de um objeto com um outro que foi definido como unidade de medida. Ao fazer isso, quebramos a fronteira rígida entre um número e o seguinte. Ao comparar nosso objeto real com alguma unidade de medida, podemos encontrar que mede um palmo e mais meio dedo. O pedaço de tecido que queremos trocar por um machado de pedra tem um tamanho que varia de forma contínua; não há fronteiras ou descontinuidades. Ao contar ovelhas, não há o caso de três ovelhas e meia. Mas ao medir o pedaço de tecido, qualquer tamanho é possível: cinco palmos e mais uma unha. Não foram poucos os séculos até os saltos de abstração exigidos pelo desenvolvimento de sistemas de medidas. Quando dizemos que o tampo desta mesa tem dois metros de comprimento, significa que tem duas vezes o tamanho de um metro, definido como o intervalo entre duas marquinhas em uma barra de platina iridiada, cuidadosamente guardada em um subúrbio de Paris. Aqui damos outro salto: comparamos a medida observada com outra que foi definida remotamente. O carpinteiro pode não saber da tal barra de platina, mas sabe que alguém definiu essa distância fixa que está marcada na sua fita métrica. Com ela, pode comparar tamanhos e saber que o metro da serraria onde compra madeira é o mesmo da sua trena. Ou seja, ele venceu a barreira intelectual das unidades de medida.

Diante dessas ponderações, entender instrumentos de medida é uma dupla excursão: um passeio pela sua história e concepção, um exame de como o homem construiu ferramentas para aplicar as medidas. A primeira é um passeio pelas ideias. A segunda é um capítulo sobre as artes mecânicas e como foram aplicadas para pôr em prática a ideia de mensuração.

As ferramentas para comparar, marcar, medir e projetar As operações de desbastar, serrar e plainar podem oferecer desafios enormes na sua execução. Por exemplo, transformar uma árvore num tampo de mesa perfeitamente plano ou esculpir uma cabeça humana. No entanto, as ideias envolvidas nessas operações são muito simples e requerem pouca abstração. Comecemos, pois, por etapas abstratas. A primeira é conceber na imaginação o projeto. Em seguida, fazer migrar para o papel tal ideia. Após isso é que vêm medir e marcar. Nesta seção, examinamos as ferramentas usadas para comparar, medir, marcar e projetar. Na próxima, voltaremos à história das medidas e do salto conceitual que representa sua invenção. Aproximando uma tábua de outra, temos a possibilidade de marcar nelas o mesmo comprimento, para que ambas sejam cortadas iguais. Mas pelo seu tamanho ou peso, isso pode ser penoso e, às vezes,

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Réguas de jacarandá, tradicionais na marcenaria brasileira.

Ferramenta japonesa tradicional

para marcar uma linha reta numa tábua.

Trena tradicional em material têxtil.

na página ao lado:

Painel de instrumentos de medida, montado na exposição A arte do ofício.

impossível. A solução mais imediata é usar um sarrafo, marcando a medida numa tábua e levando-o até a outra. É o nascimento da régua. As mais antigas eram sempre feitas de madeira, material ainda adotado em alguns casos. Essa ferramenta tanto serve para comparar distâncias lineares quanto para traçar linhas retas, essencial para serrar uma peça sem meandros. Mas há outro recurso muito antigo para marcar linhas retas, por exemplo, para serrar à mão uma tábua longa. Podemos fixar temporariamente um prego no início da reta desejada e outro ao seu fim. Se atarmos entre os dois pregos um barbante empapado em pó de carvão ou giz, temos aí um instrumento muito preciso. Basta levantar o barbante e soltá-lo em seguida. Com o impacto na sua volta, deixa uma trilha branca (ou preta), seguindo uma linha reta impecável, pois está

retesado. Essa solução milenar é usada até hoje, tanto no Ocidente quanto no Oriente. No início, a régua não passava de um sarrafo de madeira com as medidas marcadas com tracinhos. Com os avanços da metalurgia, aparecem réguas de aço. Para medir vários metros, constroem-se réguas em ziguezague, de dobrar. Já os romanos tinham réguas feitas com duas barras de ferro articuladas. Quando dobradas, seu comprimento se reduzia à metade. Se as distâncias são de muitos metros, tradicionalmente se usam fitas de tecido chamadas de trenas. Como qualquer instrumento desse tipo, são marcadas com as distâncias. E, após o uso, são enroladas num carretel fechado. Avanços na tecnologia do aço, já no século XX, permitem a construção de trenas flexíveis. São pequenas, cabem no bolso, são práticas e baratas. Mas os velhos marceneiros não abrem mão abrem de suas réguas dobráveis.

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Com a régua, traçamos retas nas peças que serão cortadas. Se queremos marcar uma paralela a uma das arestas da peça, basta fazer duas marcações iguais, uma em cada extremidade da peça, e marcar o corte com uma régua. Mas são mais duas operações de medir e marcar, que sempre introduzem erros, além do tempo gasto. Entra em cena, então, o graminho. É também uma ferramenta muito antiga, já visível em pinturas e alto-relevos das épocas romanas. De fato, é uma ferramenta com desenho tão perfeito que continua hoje igual às de outrora. O graminho nada mais é do que uma peça de madeira através da qual passa uma haste corrediça, em cuja extremidade há uma ponta ou estilete curto. Sua operação é deveras simples. Ajusta-se à corrediça de tal forma que a distância entre o bloco de madeira e a ponta fixada na haste móvel corresponda à distância que se quer marcar. Feito isso, desliza-se a ferramenta de modo que a ponta arranhe a madeira, ao longo do trajeto. Como permanece constante a distância entre o bloco e a ponta cortante, a linha traçada é paralela à aresta da peça. Esse é o princípio; o resto são variações. Muitos graminhos têm duas barras, em vez de uma. Dessa forma, pode guardar duas medidas diferentes. Em muitos, a barra é construída bem justa no rasgo correspondente, para que não se perca acidentalmente a medida ajustada. Em outros, há uma cunha de madeira para fixar a haste.

As réguas e similares têm a precisão determinada pela qualidade da manufatura, incluindo a nitidez dos tracinhos gravados. Mas não é só isso: há as limitações da visão humana. Com o avanço das construções mecânicas, já no século XVIII, a precisão das réguas ultrapassa o que o olho humano pode captar. Portanto, os limites deixam de estar no instrumento e passam para a visão de quem os utiliza. Essa constatação gera uma série de soluções para compensar as fragilidades da visão humana. Um ganho substancial de precisão vem da invenção dos paquímetros, chamados de calibres pelos mecânicos. A ideia é simples e nasce em meados do século XIX. Uma régua metálica termina num encosto a 90º. Na régua, desliza uma corrediça que também tem um encosto, simétrico ao primeiro. Uma janela na corrediça tem tracinhos adjacentes às marcações da

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Micrômetro, usado por torneiros e fresadores, para obter um alto grau de precisão nas medidas.

na página ao lado: Graminho metálico

contemporâneo, repetindo desenho tradicional. Graminho duplo em jacarandá, construído por marceneiro.

Graminho em jacarandá com guarnições em latão, ainda fabricado hoje.

Paquímetros, incluindo um digital. Ferramenta de mecânicos, ocasionalmente usada na marcenaria.

régua. Ao tocar nos dois lados da peça a ser medida, os encostos trazem o erro de medida a praticamente zero. Sobra apenas o erro na leitura das medidas obtidas, ao ler os tracinhos na janela. Cedo, os paquímetros ganham um dispositivo chamado de “vernier” – em homenagem ao matemático francês de mesmo nome. Consiste num conjunto de marcas na janela que desliza, com espaçamento menor do que os tracinhos na régua (para ser exato, nove décimos de milímetro). Dependendo de qual tracinho se alinhe aos da régua, temos a contagem de décimos de milímetro. Eis uma ideia simples e genial. Passamos a uma precisão além do que a visão nos permitia. Em virtude do seu custo razoável, o paquímetro estava ao alcance mesmo das pequenas oficinas da época. Tornou-se uma ferramenta universal. Hoje há modelos de plástico vendidos a preço de banana. Para usos simples, até funcionam. Mas os avanços na precisão das medidas não podiam parar aí. Como o instrumento é muito mais preciso do que o olho do operador, é na interface que se pode reduzir o erro. Durante alguns anos, em vez de vernier, passou-se a usar um mostrador circular, muito mais sensível a pequenas variações. Curiosamente, essa aplicação da relojoaria está condenado ao lixo da história, enquanto o paquímetro

barato sobrevive, pelo seu baixo preço e grande praticidade. O mostrador circular foi superado pela leitura digital das medidas, eliminando totalmente a imprecisão do olho humano. Como tudo que é eletrônico, o preço do paquímetro digital está caindo vertiginosamente. Para lidar com usinagens que requerem um altíssimo grau de precisão, desde meados do século XIX há um instrumento chamado micrômetro. Tratase de uma ferramenta cujo princípio de ajuste é um pouco diferente do paquímetro. Mal comparando, o micrômetro se parece a um grampo, desses usados para colar peças de madeira. A peça a ser medida é colocada entre dois apoios, e um deles se fecha até encostar nela. Uma diferença com relação ao paquímetro é que, em vez de uma corrediça que desliza, há um parafuso que vai sendo apertado até que as duas esperas toquem na peça. Em volta desse parafuso há uma luva com marcações, como numa régua. Qual a vantagem? É grande. Digamos que os tracinhos na luva distem um milímetro um do outro, distância totalmente perceptível. Para avançar ou recuar a posição do encosto de um milímetro, a luva terá que avançar 30 tracinhos. Em outras palavras, pequeníssimas diferenças dimensionais na peça medida correspondem a um giro substancial da luva, facilmente visível. Dito de outra forma, se vemos na luva um intervalo de um milímetro, isso corresponde a uma variação de um trigésimo de milímetro na medida da peça.

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Diferentes modelos de compassos metálicos.

Esquadros de madeira e de aço. na página ao lado:

Sutas de marceneiros e caldeireiros para medir ou copiar ângulos.

Os ganhos recentes da eletrônica e da computação permitiram proezas ainda mais impressionantes. Pensemos nas mandriladoras controladas por computador que permitem furar ou fresar uma peça de qualquer direção. Se em vez de navalhas tivermos uma ponta, chamada de apalpador, o braço da máquina pode tocar em qualquer lugar da peça. Naturalmente, a máquina está programada para interromper o movimento ao mais leve toque. As coordenadas dos pontos em que o apalpador toca a peça são então registradas na memória. Isso é tudo de que ela precisa para gerar um desenho da peça em três dimensões. Voltando a instrumentos mais simples, se é preciso traçar círculos, o compasso é a ferramenta óbvia, conhecida desde a Grécia clássica. Sua

construção pode ser simples ou muito refinada. No primeiro caso, podem ser dois sarrafos, unidos nas extremidades por um prego. No outro lado, os sarrafos têm pontas. Essa construção rústica não deixa de ser um compasso. Como qualquer outro, é capaz de traçar círculos ou comparar distâncias. Pode ter duas pontas (ditas secas) ou um lápis preso numa delas. A partir de certo momento na história, passa-se a construir essa mesma ferramenta em metal. Até um século e tanto atrás, seria de latão, sendo uma obra de fundição. Mais adiante, o ferro passou a predominar. Construir um compasso de ferro ainda é uma bela tarefa para um ferreiro. No uso, um marceneiro ou mecânico dá pequenas batidas com a perna do compasso na bancada para conseguir um ajuste fino, chegando à abertura que deseja. Para facilitar, um parafuso pode ser instalado entre as duas pernas. Com isso, fica facilitado o ajuste. Girando a borboleta, abrem-se ou fecham-se as pontas alguns décimos de milímetro. Sejam móveis, máquinas ou casas, em quase todas as construções as peças se encontram em ângulo reto. Para lidar com isso nasce o esquadro, que não passa de dois sarrafos conectados solidamente nas extremidades e formando um ângulo de 90º. Os materiais construtivos variam ao longo do tempo e da prosperidade do proprietário. Historicamente, os primeiros são feitos de madeira, que ainda são usados. Mais adiante, passam a ser feitos de metal,

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seja ferro, seja latão. Até hoje, na marcenaria, os mais aristocráticos têm uma das pernas em jacarandá com guarnições em latão. Os mecânicos adotam soluções mais sóbrias, construindo suas ferramentas totalmente em metal e raramente com decorações. Às vezes, necessitamos marcar um grande ângulo reto, como para as fundações de uma casa. Nesses casos, uma velha técnica entra em cena: divide-se uma corda em pedaços iguais e marcase no chão o equivalente a nove pedaços (três ao quadrado). Em seguida, com o mesmo tamanho dos pedaços já usados, tomamos agora dezesseis pedaços (quatro ao quadrado), formando um ângulo aproximadamente reto. Medimos agora 25 pedaços (cinco vezes cinco) e reajustamos o ângulo, para coincidirem as pontas das duas linhas já marcadas. Como demonstrou Pitágoras no teorema que leva seu nome, temos aqui um triângulo retângulo. Ou seja, traçamos um ângulo reto apenas com um barbante. Por que o homem tem essa mania do ângulo reto? É uma pergunta interessante, considerando que a natureza não tem qualquer predileção por ele. Suas construções o ignoram por completo.

Para responder, voltemos a outra indagação semelhante e mais básica. Por que o homem constrói usando elementos retos? Tampouco a natureza é pródiga em construções lineares. No entanto, há muitas razões para isso. Além de outras vantagens, uma peça reta é muito mais resistente à tração e à compressão. Se tracionarmos um arame de aço sem ferramentas especiais, ele não espichará. Mas se for enrolado em forma de mola, cede facilmente. Uma pessoa pode se apoiar num bastão reto e nada vai acontecer. Mas, for curvo, corre o risco de vergar e quebrar. Seja metal, seja madeira, nossas ferramentas têm muito mais facilidade de cortar retas do que curvas. Para transportar, vigas retas são mais fáceis do que curvas. E nas montagens, é mais fácil fazer um móvel, uma máquina ou uma casa com peças retas. Se fossem curvas, teriam diferentes ângulos a serem definidos e igualados. Mas a reta é simples e única. Ou seja, ganhase em padronização. Quando uma peça se encontra com outra, se estão em ângulo reto, os quatro ângulos formados têm os mesmos 90 graus. Assim, tudo fica simétrico, facilitando a construção. E pensando bem, se os planos não são paralelos, não dá para fazer gavetas.

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Nas poucas ocasiões em que os ângulos não são retos, usamos transferidores e sutas. Os primeiros transferem para a peça em construção as medidas definidas em graus de ângulos. No caso, uma fração dos 360 graus em que, historicamente, se divide o círculo. As sutas prescindem de medidas de ângulo. Medem um ângulo numa peça e o reproduzem em outra. Nesse sentido, requerem um grau menor de abstração, pois se trata apenas de duplicar o mesmo ângulo, qualquer que seja a sua medida.

Da ideia de medir ao sistema métrico Se tenho que comprar uma porta para ser ajustada a um portal, pode não ser conveniente levar para a loja uma régua marcada com suas dimensões e, menos ainda, o portal. Mas se o vendedor tem uma régua com marcações semelhantes às da minha, basta fazer chegar a ele a medida do portal. Esta ideia hoje nos parece óbvia, mas as primeiras unidades de medida aparecem muito recentemente, há apenas alguns poucos milhares de anos. Minhas próprias medidas podem me servir a contento. Porém, se meu “metro” é o meu palmo, isso não me permite trocar informações, comprar ou vender, já que poucos conhecem o tamanho da minha mão. Portanto, faz todo o sentido definir algumas unidades de medidas que possam ser usadas por

todos. Historicamente, as dimensões do corpo humano se revelaram como as mais óbvias. O braço, o pé e o tamanho da passada, por exemplo. Ou a distância entre a ponta dos dedos e o ombro. Para distâncias mais longas, o alcance de uma flecha poderia ser a unidade de medida. A distância que um homem pode percorrer em um dia era uma medida frequente. A polegada é um caso curioso, pois foi definida como onze avos do palmo. A palavra “inch” (para polegada em inglês) é uma variante do onze em latim (unciae). Escolhia-se qualquer parte da anatomia, por que não o palmo? Ou o pé? Esse não é o problema. Mas se for o pé, é o de quem, já que as diferenças individuais são grandes? Naturalmente, escolhe-se o pé do mais poderoso, o rei. O problema é que, na Europa, cada lugar tinha seu rei. Em meados do século XIX, ainda havia um pé e uma polegada diferentes em cada uma das cidades grandes europeias. Se os comerciantes de seda em Lion quisessem vender 100 pés da sua mercadoria, seus potenciais clientes alhures não saberiam quanta seda viria, pois não conheciam o tamanho do pé do monarca local. Diante da desordem das medidas, por volta de 1800 convocou-se uma comissão de sábios franceses para escolher unidades universais. Para as medidas de comprimento, escolheram uma fração da distância entre dois meridianos terrestres – que foi marcada numa barra de platina. A distância entre as marcas foi chamada de “metro”. A subdivisão decimal

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foi escolhida – de resto, uma solução amplamente superior às frações de polegada do sistema imperial inglês. Escolher uma medida real da terra para definir o metro parecia uma boa ideia. Contudo, medidas estão sujeitas a erros e dependem da qualidade dos instrumentos usados. Com novas medidas, feitas com aparelhos mais precisos, descobriu-se que o metro real era um pouquinho diferente do que havia sido usado como referência. O que fazer? Redefinir o metro? Percebeu-se que, dentro de pouco tempo, haveria uma estimativa ainda mais precisa para a distância entre meridianos. Mudar de novo? Era um caminho errado. A melhor solução foi abandonar a referência ao meridiano e, simplesmente, dizer que “metro” é o intervalo entre os tracinhos da tal barra de platina. Um segundo problema é que, mesmo na França, seu país de origem, transcorreu mais de um século antes que a população abandonasse a cornucópia de medidas tradicionais. Fora em outros países. Nos países periféricos, a balbúrdia podia ser até maior. Na América Central, a gasolina se vendia em galões, a velocidade máxima era em quilômetros e as pessoas estimavam distância por “varas” (medida espanhola arcaica). Felizmente, para a conveniência de todos, aos poucos, mesmo os países mais longínquos da Ásia, aceitaram o sistema decimal. Por muito que se acuse o imperialismo europeu, pelo menos nesse aspecto foi benéfico, ao impor sistemas comuns de

medidas. O Brasil participa das comissões de cientistas encarregados de implantar tais medidas desde meados do século XIX. A Inglaterra foi a grande retardatária e só nas últimas décadas começou a conversão para o Sistema Decimal. Os Estados Unidos optaram pelo que parece ser a pior solução: usam metro na ciência e o Sistema Imperial no todo dia (ou seja, pés e polegadas). Uma ilustração dramática da confusão reinante foi a destruição de uma nave espacial, resultado da confusão entre centímetros e polegadas, na fabricação de uma junta de vedação. Uma das diferenças entre homem e primata é construir na cabeça o que vai ser construído no mundo real. Como comentou Marx, um passarinho não faz um projeto mental de como vai ser seu ninho. Somente o homem concebe uma imagem de sua casa antes de assentar o primeiro tijolo. De fato, a abstração é uma das grandes diferenças entre homens e outros animais. Em algum momento, a imagem na cabeça adquire uma etapa intermediária, antes de ser executada. Ou seja, migra para sua representação em papel. As primeiras pinturas rupestres eram religiosas. Mas, havendo dominado a arte de representar objetos e animais, o homem percebe que poderia usar essa técnica para explicitar o que gostaria de construir: casas, móveis ou ferramentas. Leonardo da Vinci nos deixa uma enorme quantidade de croquis e desenhos técnicos dos aparelhos que havia concebido, consolidando

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os avanços do desenho técnico. É no próprio Renascimento que as regras de projeção e perspectiva passam a disciplinar tais representações, inicialmente, para a pintura. Mas o desenho técnico pega carona, adquirindo regras bem-definidas de como apresentar uma planta ou um desenho. Daí para frente, nada de complicado se constrói sem ser precedido por um desenho ou uma planta. No processo, inventam-se as ferramentas próprias para realizar os desenhos: prancheta, compassos, réguas, esquadros e tira-linhas. Alguns seriam espartanos na sua construção. Outros poderiam ter guarnições de ébano e marfim. Com o advento do CAD (Computer-Aided Design), tudo fica mais fácil. Mais espetacular é a mudança instantânea da perspectiva em que o desenho pode ser observado. É como se andássemos em volta de uma casa, observando-a de todos os seus lados. Todavia,

para aqueles com pouco nível de escolaridade, cria-se uma horrenda barreira. Isso não acontece apenas com o CAD, mas com todas as novas novas tecnologias no mundo do trabalho.

Padronização e precisão Entre a primeira régua com suas toscas marquinhas e os sistemas atuais de medir e desenhar, a mudança foi muito grande. Mas foram necessários enormes ganhos em precisão da manufatura para ampliar a gama do que conseguiríamos fabricar. Uma roda de carro de boi lavrada no enxó e não muito concêntrica vai funcionar perfeitamente. Mas uma roda de locomotiva ou uma turbina têm outras exigências. Seu encaixe no eixo tem que ser perfeito. A precisão é de centésimos de milímetro.

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página ao lado, de cima para baixo: Perspectiva explodida de uma

máquina do Codex Antalicius, de Leonardo da Vinci.

Estojo clássico com instrumentos de desenho técnico, usado por engenheiros e arquitetos.

Sem avanços na precisão dos componentes, não se realizam os sonhos dos inventores. Ao pensarmos os avanços da indústria, raramente nos detemos nos assuntos de padronização. No entanto, são aspectos fundamentais para viabilizar o desenvolvimento industrial. Foram séculos para conseguir que todos se entendessem e padronizassem seus produtos.

O parafuso de um fabricante entra na porca de outro? Como fazer com que os parafusos fabricados por um mecânico possam caber nas porcas feitas por outro? Entra aí um dos processos mais essenciais na difusão tecnológica: a padronização. É preciso que todos se ponham de acordo com relação a medidas, bitolas e passes das roscas. O espaçamento entre os dois trilhos ferroviários foi um problema durante muito tempo. Os vagões usados em um país não andavam nos trilhos dos outros. Conseguir padronizar trilhos e tudo o mais foi um marco da Revolução Industrial, em momentos em que não havia qualquer mecanismo voluntário ou governamental para fixar normas. A padronização dos parafusos veio da iniciativa de Joseph Withworth, modesto mecânico que se torna um fabricante bem-sucedido em Manchester. Consegue se pôr de acordo com outros produtores

para definir o que lhe parecia ser o melhor perfil e ângulo para os filetes de rosca. Naquele momento, criou um padrão praticamente mundial. Numa loja de ferragens no interior do Brasil, é possível pedir um parafuso de um quarto de polegada com rosca Withworth e receber exatamente o que aquele mecânico inglês havia desenhado. O desenvolvimento do Sistema Métrico Decimal não deixa de ser o resultado de um grande esforço de padronizar unidades de medida. Mas numa indústria com um tecido industrial complexo, grande parte dos componentes também precisa ser padronizado. Não é possível saber a espessura da chapa de ferro a ser usada num automóvel, a rosca das lâmpadas, a viscosidade do óleo, os tamanhos dos rolamentos, as especificações mínimas de isoladores elétricos sem que todos se ponham de acordo com relação à bitola das peças e componentes, bem como em muitos outros elementos. Os países anglo-saxões sempre caminharam pela via das normas voluntárias e discutidas pelos interessados. Já outros países, como França e Alemanha, confiaram mais em ações do Estado para estabelecer padrões. O caminho foi longo e cheio de acidentes de percurso. E em muitas áreas, como a informática, dado o voluntarismo dos fabricantes americanos, estamos longe de haver chegado a padrões suficientes, embora os mecanismos estejam muito mais azeitados do que antes. Talvez seja correto dizer que caminhamos para soluções intermediárias, combinando o público e o

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privado. A ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas), o órgão normativo do Brasil, é uma instituição privada, sem fins lucrativos e que funciona com comitês de interessados no desenvolvimento dessa ou daquela norma. É importante notar que as normas não têm força de lei. Para que sejam obrigatórias, o Estado tem que criar e aprovar legislação sobre o assunto – o que pode fazer ou não. Quando há questões de segurança envolvidos, as normas costumam se transformar em imposições legais. Vale registrar que a ISO (International Standards Office) é a correspondente internacional da ABNT. Por meio dessa associação, as normas de um país podem ser compatibilizadas com as de outro, o que é um grande avanço. Qualquer que seja a boa vontade dos parceiros, o processo de criar e aprovar normas é lento e enfadonho. As discussões podem ser infindáveis. A utilidade disso pode não ser aparente, mas é impossível subestimar a importância de ter normas corretas para quase tudo que diz respeito à indústria. Afinal, sem normas, como fazer com que as brocas de um fabricante sejam do tamanho do parafuso do outro? Há, todavia, outro aspecto das normas que é menos conhecido. Na discussão e aprovação de um conjunto de normas, os membros dos comitês buscam soluções que lhes tragam benefícios próprios. Na Itália, o espaguete é seco em varas de madeira, desde Marco Polo, sem que se registrem

problemas fitossanitários. No Brasil, os fabricantes do equipamento conseguiram aprovar uma norma que exige secadores de aço inox. Atuaram na discussão das normas e defenderam seus interesses comerciais. Os pequenos produtores, provavelmente, não estavam nas reuniões para defender que não havia problemas com o uso da madeira. E as novas tomadas elétricas, que tantas reclamações recebem? A norma recém-aprovada cria uma demanda adicional por tomadas e adaptadores muito bem-vinda pelos fabricantes. O que terá acontecido nas reuniões? Não adianta culpar a ABNT, que simplesmente administra um fórum dos produtores e consumidores. Em suma, normalização é uma necessidade impreterível. Mas a fabricação de normas é um processo em que se confrontam interesses que podem ser conflitantes. Dependendo do ativismo de uns e da passividade de outros, os resultados não serão os mesmos.

Mais precisão, menos lima Ao longo do tempo, aumenta a precisão na fabricação de componentes. De fato, há inventos que requerem certas tolerâncias e se inviabilizam sem elas. No início do século XIX, Savery, Newcomen e James Watt já pensavam em construir bombas e motores a vapor. Porém, não davam certo porque faltava precisão

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na usinagem de cilindros e pistões. O resultado era uma pífia compressão, impossibilitando sua eficácia. Foram precisos consideráveis avanços na precisão da usinagem para que houvesse suficiente compressão nos cilindros. Mesmo no desenvolvimento científico, em que se pensa automaticamente que primeiro vem a ciência e depois sua aplicação na tecnologia, nem sempre é assim. Muitas vezes são precisos avanços na tecnologia para que a ciência adquira os instrumentos requeridos para seu avanço. A qualidade de microscópios e telescópios dependia da precisão no polimento das lentes. Enquanto essas técnicas não avançavam, os cientistas não podiam fazer as observações que fizeram depois e revolucionaram a física. Até a segunda metade do século XIX, a figura mais importante numa fábrica de relógios suíços era quem fazia a montagem final dos componentes dentro do chassis. Isso porque as pequenas diferenças dimensionais tinham que ser corrigidas na lima, quando uma peça era confrontada com a outra. O mesmo ocorria com as armas. Na montagem do fecho de um rifle usado na Guerra Civil americana, cada componente tinha que receber uma limadinha final. Porém, as fábricas da Nova Inglaterra conseguem um avanço extraordinário. Desenvolvem técnicas para aumentar a precisão na manufatura dos componentes das suas armas. Com isso, deixam de ser necessários os ajustes individuais na montagem, promovendo um grande salto de produtividade. Historiadores

mencionam que tal avanço teria sido um fator importante para a vitória do Norte. As mesmas técnicas migraram para as fábricas de relógios americanas. A grande exposição internacional inglesa no Cristal Palace, exibe suas máquinas de usinar peças de relógio. Assustados, os visitantes suíços se dão conta de que não poderiam competir com os americanos. Isto é, salvo se fizessem o mesmo. E foi isso que aconteceu, mudando o panorama mundial da manufatura nesse e em outros produtos. Um engenheiro da Tchecoslováquia que imigrou para o Brasil contava de sua experiência naquele país, ocupado pela Alemanha durante a Segunda Guerra. Construía componentes mecânicos para motores de avião enviados para as fábricas alemãs. Naturalmente, os engenheiros da fábrica não estavam nada felizes em abastecer a indústria nazista. Mas tinham que produzir e seguiam estritamente os calibres fixos estipulados para as peças. Não se sabe como, porém, os calibres originais foram substituídos por outros praticamente iguais. Só que praticamente não é igual! Ao se montarem os motores na Alemanha, as peças não se encaixavam por estarem centésimos de milímetro fora da dimensionalidade exigida.

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