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valorização e divulgação

dia internacional dos monumentos e sítios 2009

De forma a assinalar o Dia Internacional dos Monumentos e Sítios 2009, dedicado ao Património e Ciência, foi efectuada uma visita ao sítio da Ladeira, em Ervedal. Através desta iniciativa, integrada no âmbito do projecto de investigação em curso, procurou-se mostrar alguns dos resultados obtidos através dos trabalhos de campo e do estudo continuado deste sítio arqueológico, abordando-se alguns conceitos associados às técnicas e metodologias aplicadas numa intervenção arqueológica, nomeadamente

ao nível das diferentes fases de escavação, da documentação realizada e do papel que desempenha no processo de recolha e registo das diferentes realidades arqueológicas. Para além do contacto com o sítio arqueológico e a envolvente, o grupo, constituído por 9 visitantes, teve ainda oportunidade de conhecer alguns dos materiais recolhidos no decurso do projecto e compreender a importância do seu contexto para o estudo e interpretação dos diferentes momentos de ocupação identificados na Ladeira.

revista vialibus

De forma a assinalar o aniversário do Nascimento de Mário Saa, a Fundação Arquivo Paes Teles realizou o lançamento do segundo número da revista Vialibus. Nesta segunda edição salienta-se o interesse de Mário Saa pela Arqueologia. O primeiro artigo constitui uma reflexão sobre os Lares Viales na Lusitânia, onde se inclui o monumento descoberto por Mário Saa, o qual integra o

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acervo arqueológico da Fundação Arquivo Paes Teles. Este gosto pela Arqueologia e realização de actividades nesta área é reforçado no segundo artigo, onde se estabelece a relação de Mário Saa e seu tio, António Paes da Silva Marques, com o sítio arqueológico da Ladeira onde decorre, desde 2006, o projecto de investigação arqueológica promovido pelo Município de Avis e cujos resultados preliminares são agora apresentados. O último artigo apresenta um importante conjunto de dedicatórias, existentes em mais de três centenas de publicações que integram a biblioteca da Fundação, e que reflectem os contactos intelectuais, científicos e filosóficos de Mário Saa. A apresentação da Revista decorreu no dia 19 de Junho de 2010 e contou com o apoio da Junta de Freguesia de Ervedal, do Município de Avis e do Centro de Estudos de História e Filosofia da Ciência da Universidade de Évora. O lançamento do segundo número foi complementado por um ciclo de palestras dirigidas pelo Professor Doutor Vasco Mantas, da Universidade de Coimbra, Dr.ª Ana Ribeiro, do Município de Avis, Dr.ª Elisabete Pereira, da Fundação Arquivo Paes Teles, e Professora Doutora Maria de Fátima Nunes, da Universidade de Évora.


a carta geológica de avis No dia 18 de Setembro foi apresentada, na edição de 2010 da Feira Franca de Avis, a Folha 32C-Avis, da Carta Geológica de Portugal, escala 1:50000 e respectiva Notícia Explicativa, elaborada pelo Laboratório Nacional de Energia e Geologia (LNEG), com a colaboração de um conjunto de investigadores convidados, no qual se incluiu o Município de Avis, responsável pelo levantamento arqueológico integrado neste documento. Nesta sessão estiveram presentes a Dr.ª Luísa Duarte, Coordenadora da Unidade de Geologia e Cartografia Geológica, e três dos autores do documento, Dr. José Piçarra, Dr.ª Rita Silva e Dr. Ruben Dias, perante uma assistência de cerca de 40 pessoas. Para além da sessão de apresentação, o LNEG participou na Feira Franca com a exposição A Geologia de Avis para um Desenvolvimento Sustentado, através da qual foram dadas a conhecer ao público os domínios e competências do LNEG,

Sessão de apresentação da Carta Geológica de Avis

Exposição A Geologia de Avis para um desenvolvimento sutentado

nomeadamente da sua Unidade de Geologia e Cartografia Geológica, responsável pela elaboração de cartas geológicas a nível nacional, desde os trabalhos de campo à sua produção por métodos analógicos e digitais. De forma mais específica, a exposição integrou ainda diversas amostras das rochas mais representativas da área correspondente à Carta de Avis, assim como utensílios de campo e gabinete utilizados pelos geólogos nas diversas vertentes do seu trabalho. Esta iniciativa teve como objectivo demonstrar a relevância da Carta Geológica, não só como um importante contributo para o conhecimento científico, mas enquanto instrumento de aproximação ao território, indispensável para o ordenamento do território e para a correcta gestão e valorização dos recursos naturais. O espaço atraiu, durante os três dias, inúmeros visitantes, interessados ou simples curiosos, que puderam conhecer mais uma faceta da história do concelho.

comemorações 100 anos de classificação de património A 16 de Junho de 1910 foi determinada, por Decreto, a classificação de Monumento Nacional aplicada a um conjunto de imóveis localizados um pouco por todo o país, publicada em Diário do Governo a 23 de Junho de 1910. A classificação destes monumentos, integrada no período que antecede a implantação da República, foi efectuada com base nas disposições que então vigoravam e que possibilitaram a selecção de vários exemplares de património considerados como valores culturais de significado para a nação, cabendo ao Governo garantir a sua preservação e valorização. De forma a assinalar o centenário da classificação de património no concelho de Avis, o Município elaborou um

conjunto de acções e iniciativas, a implementar em 2010 e 2011, e que têm como objectivo a valorização e a divulgação dos monumentos então classificados: Anta Grande da Ordem, Lápide de Entre-Águas e Castelo e Muralhas de Avis. As comemorações dos 100 anos de classificação de património no concelho de Avis terão início a 4 de Outubro de 2010, com a apresentação do plano das Comemorações, uma palestra sobre património e classificação de monumentos, uma visita guiada às Muralhas de Avis e, a encerrar, um espectáculo a realizar na Igreja do Mosteiro.

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acção pedagógica

oficinas de arqueologia

Sessão de apresentação

No ano lectivo de 2009/2010 foi apresentada, pelo Município de Avis, a Agenda Pedagógica constituída por um conjunto de actividades que visavam complementar e potenciar a acção educativa no concelho. De forma a dar continuidade ao trabalho pedagógico desenvolvido ao nível da Arqueologia, foi elaborada a Oficina de Pré-História, constituída por duas actividades dirigidas aos alunos do 5.º ano de escolaridade. Esta iniciativa havia sido experimentada no início de 2009, tendo tido uma boa aceitação pelos alunos e professores. A Oficina de Pré-História foi concebida de forma a enquadrar-se nos currículos escolares definidos para o ano lectivo de 2009/2010, sendo constituída por duas actividades complementares que integravam uma componente prática, devidamente contextualizadas pela respectiva abordagem teórica, e através das quais se pretendia: Complementar e reforçar os conhecimentos adquiridos durante as aulas, através de formas diferentes de abordagem dos conteúdos referentes à Pré-História; Proporcionar o contacto com materiais arqueológicos diversos e, deste modo, estimular a espontaneidade e a participação dos alunos; Promover a aproximação à Arqueologia e ao Património Arqueológico, motivando e consolidando o gosto pela Arqueologia e consequentemente pelo estudo da História;

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Sensibilizar para a importância do Património Arqueológico enquanto fonte de informação histórica; Criar novas formas de sentir o Património Arqueológico. Nos dias 26 e 27 de Janeiro de 2010 foi realizada a primeira actividade. Os alunos do 5.º ano da Escola Mestre de Avis, à semelhança do que foi realizado no ano lectivo anterior, puderam Descobrir a Pré-História, os diferentes momentos e principais características, assim como alguns materiais arqueológicos e respectivas tecnologias de fabrico. Posteriormente, foi realizada uma visita ao Núcleo Megalítico da Ordem, situado na freguesia de Maranhão,

Observação de materiais arqueológicos


onde se falou de megalitismo, de território e de paisagem. O interesse demonstrado por alunos e professores no decurso das actividades realizadas constituiu um forte motivo para a continuação das Oficinas de Arqueologia no âmbito da Agenda Pedagógica 2010/2011, que, neste ano lectivo, irão estender-se até ao período romano. Deste modo, será possível desenvolver novas formas de abordagem, baseadas em estruturas, contextos e materiais totalmente diferentes dos observados para a Pré-História. As Oficinas de Arqueologia foram concebidas com base nos vestígios identificados no concelho de Avis, facto que possibilita a aplicação dos conhecimentos adquiridos pelos alunos a um contexto que lhes é mais próximo. O resultado das Oficinas da Pré-História traduz-se nos comentários de alguns alunos relativamente às actividades realizadas:

Observação de materiais arqueológicos

Aprendi coisas novas. Gostei de ver e mexer nos utensílios dos antepassados. Adorei a aula de arqueologia. Ana

Foi fascinante. Tiago

Gostei muito da maneira como a arqueóloga falou para nós e do elogio que nos fez. Espero que nós possamos ir visitar as antas com ela! Carla

Aprendi muito nesta aula. Adriana

Adorei ter aquelas peças na mão. Daniela Vimos pedras que tinham muitos séculos e que já estiveram presentes na vida de muita gente. Carolina Gostei porque a arqueóloga explica muito bem e é muito simpática. Mónica Gostei do pedaço do vaso que a arqueóloga Ana nos mostrou. David Gostei quando nos mostrou os utensílios antigos. Filipa

Gostei de mexer nas pedras. Rui Foi muito giro! Joana Gostei porque aprendi coisas que não sabíamos. Rafael Os arqueólogos são pessoas que se deslocam a vários sítios para fazerem escavações, umas bem sucedidas outras não! Rui Adorei estar pertinho de uma arqueóloga. Maria Tivemos a honra de mexer em materiais dos nossos antepassados! Ana Gostei tanto de mexer nos objectos de pedra que nem quero lavar as mãos! Henrique

Visita ao Núcleo Megalítico da Ordem

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sítios arqueológicos

património classificado monumento epigráfico de entre-águas 2

Monumento epigráfico de Entre-Águas 2 Freguesia de Benavila Acesso Saída de Benavila em direcção a Alter do Chão. Após a ponte, encontra, à esquerda, a Capela de Nossa Senhora de Entre Águas.

Na freguesia de Benavila situa-se o monumento epigráfico de Entre-Águas 2, correspondente a uma placa funerária de período romano. Classificada como Monumento Nacional, a placa encontra-se embutida no alçado tardoz da Capela de Nossa Senhora de Entre-Águas. O edifício, datado do século XV, evidencia na sua construção o reaproveitamento da placa e de silhares de granito romanos, integrados nas paredes e pavimentos, os quais contrastam claramente com a construção modesta deste tipo de capela. A reutilização destes materiais documenta a pré-existência de um sítio romano no local, confirmado pelos vestígios identificados nas imediações, associados ao sítio de Entre-Águas 1. ENQUADRAMENTO ARQUEOLÓGICO O povoamento romano em Avis, datado dos séculos I e IV d.C., encontra-se associado às villae, grandes propriedades rurais, e outros sítios, de dimensão mais reduzida, correspondentes a casais e pequenos locais de tipologia indeterminada. A exploração e aproveitamento dos recursos naturais,

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nomeadamente dos solos com aptidão agrícola, assumem um papel determinante na rede de povoamento rural durante o período romano. A sua implantação relaciona-se também com a proximidade à rede viária, factor importante na ligação entre as villae e os aglomerados urbanos da região, possibilitando a circulação produtos e pessoas. Uma das ligações entre Olisipo (Lisboa) a Emerita (Mérida)era feita pela estrada que passava por Abelterium (Alter do Chão) e à qual estariam associadas vias secundárias, onde se integravam as que passavam por Benavila e Ervedal. O MONUMENTO O monumento de Entre-Águas 2 fornece um conjunto de informações relevantes para o estudo e caracterização da população durante o período romano na área correspondente ao concelho de Avis. A placa, de cariz funerário, foi elaborada sobre um suporte de granito de grão fino e apresenta uma forma rectangular. Evidencia uma face trabalhada, sobre a qual assenta o campo epigráfico, e destinava-se, pela sua tipológica, a ser incluída numa estrutura ou edifício religioso/funerário.


O campo epigráfico encontra-se delimitado por uma moldura e ostenta a superfície rebaixada. O texto apresenta uma paginação em caixa, ocupando a metade inferior do campo, sugerindo que este momento se destinava a ser colocado no alto. O monumento apresenta a seguinte inscrição: LOBESA . LOVESI F AN . L . H . S . EST . S . T . T . L A leitura corresponde a: LOBESA . LOVESI(i) F(ilia) / AN(norum) . L (quinquaginta) . H(ic) . S(ita) . EST . S(it) . T(ibi) . T(erra) . L(evis) // “Lobesa, filha de Lovesius, de cinquenta anos, está aqui sepultada. Que a terra te seja leve.” A placa é dedicada a Lobesa, a qual surge identificada por um único nome e pela filiação. A onomástica insere-se na tradição paleo-hispânica. Lobesa foi identificada em alguns locais da Península Ibérica, mas registada apenas através deste exemplar no Conventus Pacensis. Lovesius encontrase documentado em Marvão e Redondo. A antroponímia identificada nesta inscrição evidencia a origem indígena dos indivíduos referenciados. A análise paleográfica e a comparação com outros monumentos idênticos possibilitaram a datação da inscrição, a qual integra-se no século I d.C.. Este facto é ainda confirmado pela ausência da consagração aos Deuses Manes, fórmula que se torna comum, pelo menos no que diz respeito ao Conventus Pacensis, a partir do final do século I. d.C..

A utilização de fórmulas finais mais elaboradas sugere que este monumento foi gravado na segunda metade do século I. d. C.. Apesar da população do Conventus Pacensis ser a mais romanizada da Lusitânia, conservou-se, sobretudo ao nível da epigrafia, um conjunto de elementos que revelam a sua origem autóctone e a manutenção da tradição local. Este facto intensifica-se na zona do Norte Alentejano, onde se integra o concelho de Avis. Embora não exista um vasto conjunto epigráfico para a área em estudo, os elementos conhecidos até ao momento, reflectem precisamente a manutenção, pelo menos até ao final do século I d. C., dessa tradição local, visível não só a partir da onomástica, mas também ao nível do suporte dos monumentos epigráficos, paleografia, divindades cultuadas e fórmulas utilizadas. A realidade altera-se a partir do século II d. C., onde parece existir, à luz dos conhecimentos actuais, um contexto de romanização mais profundo.

BIBLIOGRAFIA ENCARNAÇÃO, José de, 1984, Inscrições romanas do Conventus Pacensis. Subsídios para o estudo da romanização, Instituto de Arqueologia da Faculdade de Letras, Coimbra. LÓPEZ BARJA, Pedro, 1993, Epigrafia Latina. Las inscripciones romanas desde los orígenes al siglo III a.C., Tórculo, Santiago de Compostela. RIBEIRO, Ana, 2008, “Uma primeira leitura da Carta Arqueológica de Avis”, in Revista Al-madan, Centro de Arqueologia de Almada, n.º 16, edição on-line. VASCONCELOS, José Leite, 1895, “Notícias várias”, in O Archeologo Português, Museu Ethnographico Português, vol. 1, n.º 8, p. 222-224.

Localização do monumento no alçado tardoz da Capela de Nossa Senhora de Entre-Águas

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caderno de campo

necrópole do largo dr. sérgio de castro O Largo Dr. Sérgio de Castro localiza-se no Centro Histórico de Avis e integra-se na malha urbana que compõe o espaço intra-muros, definido por um extenso pano de muralha, numa área arqueológica sensível, abrangida pelas zonas de protecção do Mosteiro de São Bento de Avis e das Muralhas de Avis. Este espaço resultou de uma reformulação urbanística, datada do início do século XX, e encontra-se delimitado por pré-existências que, ainda hoje, definem e estruturam a imagem urbana desta zona do Centro Histórico, correspondendo, a Oeste, à Igreja Matriz e aos Paços do Conselho Medievais, e a Este, a parte da estrutura primitiva do Mosteiro de São Bento de Avis, onde se localiza a entrada da Rua das Lajes, antigo dormitório do Mosteiro. Nesta zona situava-se, entre a Torre de Menagem e os paramentos do Castelo, o Adro de Santo Ildefonso, relacionado com uma capela que aí terá existido, e cuja toponímia se manteve até ao início do século XX, tendo depois sido alterada para Largo Dr. Sérgio de Castro, topónimo associado a António Sérgio da Silva Castro. A intervenção arqueológica realizada no Largo foi desencadeada na sequência do aparecimento de alguns fragmentos de ossos humanos no decurso dos trabalhos de requalificação deste espaço. A remoção de árvores e o alargamento das respectivas caldeiras colocaram a descoberto vestígios arqueológicos numa zona específica do Largo, levando à suspensão parcial da obra de reformulação deste espaço, de modo a viabilizar a realização dos trabalhos arqueológicos necessários.

Aspecto geral do enterramento 10

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A INTERVENÇÃO ARQUEOLÓGICA A intervenção, promovida pelo Município de Avis, decorreu na zona Oeste do parque de estacionamento existente no Largo Dr. Sérgio de Castro, no local onde foram identificados os vestígios. Esta zona foi definida como a área prioritária de intervenção, pelo que foram implantadas três sondagens arqueológicas, num total de 42m2, com o objectivo de salvaguardar os achados que se encontravam em vias de destruição parcial ou total, reunindo um conjunto de informação susceptível de análise arqueológica e antropológica e contribuindo para o estudo do Centro Histórico de Avis. O espólio osteológico encontrava-se danificado pela utilização continuada da necrópole, assim como pelas diversas obras que ocorreram neste espaço e que destruíram ou afectaram alguns enterramentos. O trabalhos realizados possibilitaram a identificação de 24 enterramentos e 5 ossários, dos quais 16 enterramentos e


3 ossários foram escavados. As opções de escavação relativamente aos restos humanos foram tomadas em função dos critérios definidos, do estado de conservação do espólio e das orientações fornecidas pela Antropóloga que integrou a equipa. Após a definição e registo dos vestígios em articulação ou em associação, foi efectuada a análise e o levantamento das realidades postas a descoberto, tendo sido realizadas algumas acções de consolidação do material exumado. Posteriormente, em laboratório, o espólio osteológico, assim como o conjunto artefactual recolhido, foi tratado e inventariado, tendo sido objecto de selecção para estudo, cujos resultados são agora apresentados de forma breve. ARQUITECTURA FUNERÁRIA E RITUAL A necrópole caracteriza-se pela utilização intensiva do espaço funerário e pelo número significativo de enterramentos numa área periférica em relação à Igreja Matriz. Os enterramentos identificados revelam uma grande simplicidade e homogeneidade no que diz respeito ao ritual, marcado pela ausência de elementos de identificação de sepultura e de objectos. A orientação dos enterramentos, tal como as sepulturas, foi marcada pela fachada tardoz da Igreja Matriz e definida de acordo com a tradição cristã. Deste modo, encontram-se orientados Este/Oeste, com a cabeceira a Oeste, tendo-se verificado a existência de uma cabeceira de sepultura,

Aspecto parcial da sondagem 2

Enterramento 24

destinada a manter a cabeça levantada e a olhar para a frente. As sepulturas teriam, a avaliar pelos vestígios conservados, uma forma oval, cujas dimensões originais não foram recuperadas devido à sua destruição parcial decorrente da contínua utilização deste espaço. Os enterramentos encontram-se em decúbito dorsal, com o ventre virado para cima e a cabeça voltada para o céu, com excepção de um que apresenta a cabeça voltada para Sul, e outro que estaria, tal como já foi referido, levantada e a olhar para a frente. Os membros superiores surgem flectidos sobre a bacia ou cruzados sobre o peito. No que diz respeito aos membros inferiores, verificou-se que existem algumas situações em que estes surgem paralelos e outras em que se encontram sobrepostos. As estruturas funerárias correspondem a sepulturas, escavadas na rocha ou abertas na terra. As sepulturas escavadas na rocha, para deposição directa do morto, estão associadas à primeira fase de utilização da necrópole e surgem, na sua totalidade, incompletas. Da mesma fase são as estruturas resultantes do desbaste parcial da rocha, também para deposição directa, menos regulares e evidentes que as anteriores. É possível que, originalmente, estas estruturas negativas fossem regulares, tendo sido descaracterizadas pelas deposições posteriores. Para os restantes enterramentos não foi possível identificar a fossa de inumação, uma vez que estas foram

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Trabalhos de consilodação

Moeda identificada junto a espólio osteológico

Alfinete de toucado identificado junto ao enterramento 12

Trabalhos de escavação e definição do enterramento 2

preenchidas pelas terras removidas, apagando os vestígios do seu traçado. Para este facto contribuiu, ainda, a compactação desta área, e a utilização intensa da necrópole. Durante a escavação foram identificados 5 ossários e manchas de ossos de grande dimensão, as quais terão albergado, sem organização, várias ossadas de diversos enterramentos para libertação de espaço. Os ossários identificados pertenciam a vários indivíduos, depositados na mesma zona, sobrepondo-se, em alguns dos casos, a uma sepultura mais antiga. A colmatação lenta dos enterramentos, assim como o arrastamento de alguns, constituem indícios da utilização de sudário, evidente, sobretudo, nos casos de sobreposição quase imediata de enterramentos. Depois de envolvido no sudário, o corpo seria depositado, com as costas assentes na base da cavidade pétrea, no caso dos enterramentos mais antigos, ou na fossa de inumação, nos casos mais recentes. Não foram identificados vestígios de coberturas, mas é possível que os pregos recolhidos, sobretudo no momento intermédio de utilização deste espaço, possam corresponder a vestígios de tampas de madeira utilizadas para tapar as fossas de inumação. Os trabalhos antropológicos desenvolvidos no decurso da escavação da necrópole permitiram recolher alguns elementos caracterizadores da população enterrada.

Os enterramentos encontram-se maioritariamente associados a adultos, tendo sido identificadas duas crianças sobrepostas na mesma sepultura, as quais apresentam uma idade à morte de 10 e 14 anos. Foi confirmada a presença, nos indivíduos adultos, de 2 de sexo masculino e dois de sexo feminino, sendo difícil determinar a distribuição sexual dos restantes, devido ao estado de conservação dos ossos ou à destruição parcial dos enterramentos. Ao nível de doenças e patologias, foram detectadas, em alguns enterramentos, vestígios de lesões do tipo degenerativo e afecções ao nível da cavidade bucal. A utilização continuada e intensiva da necrópole é observada através da reutilização de estruturas funerárias, da sobreposição de inumações, da colocação de ossários nas sepulturas e da dispersão de ossos fragmentados e descontextualizados, integrados nos sedimentos que cobrem os enterramentos. As deposições sucessivas podem derivar da simples necessidade de aproveitar o espaço disponível, em momentos de alta mortandade e perante a falta de terreno para a realização de novos enterramentos. Nas zonas intervencionadas foram identificadas duas estruturas, uma em argamassa de cal e areia e outra em elementos pétreos de médio calibre, que poderão estar associadas a estruturas de sustentação ou de delimitação de enterramentos.

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Enterramento 16

No decurso dos trabalhos não foi registado qualquer vestígio que pudesse estar associado com a antiga Capela de Santo Ildefonso. As alterações urbanísticas verificadas ao longo dos séculos nesta zona do Centro Histórico terão conduzido à destruição de grande parte dos enterramentos deste espaço funerário, sobretudo no nível mais recente da necrópole. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONJUNTO ARTEFACTUAL O conjunto artefactual recolhido corresponde, para além dos fragmentos não classificáveis, a 112 registos individuais. O grupo mais representativo está associado à cerâmica utilitária, documentada através de fragmentos de cerâmica comum e faianças. A cerâmica encontra-se distribuída por bordos, fundos, asas, paredes com decoração e outros elementos susceptíveis de classificação, como é o caso das tampas e dos arranques de bordo, fundo ou asa. A maioria dos fragmentos de cerâmica comum evidencia superfícies lisas, sem qualquer tipo de decoração, com excepção dos exemplares vidrados de cor mel e verde e de um fragmento que apresenta a aplicação de engobe de cor vermelha. Ao nível das faianças predominam as paredes, das quais, a maioria, apresenta decoração, sendo frequentes as gramáticas decorativas de cor azul. Estes materiais encontram-se, na sua maioria, associados

aos estratos mais recentes da necrópole, não sendo muito expressivos no que diz respeito à caracterização da cultura material ou enquanto indicador cronológico. Para além da cerâmica foram registados vários exemplares de material de construção, nomeadamente cerâmica de construção e nódulos de argamassa. Os artefactos recolhidos incluem ainda fragmentos de vidro, instrumentos e utensílios, exemplares de mineração e metalurgia, adereços e ecofactos. Os vidros estão representados através de escassos fragmentos de dimensão muito reduzida. No grupo dos instrumentos e utensílios integram-se os pregos em ferro, os quais sugerem a existência de tampas de fecho das fossas de deposição. O conjunto artefactual integra alguns exemplares de adereços, correspondentes a um pequeno anel e sete alfinetes de toucado em bronze, um dos quais in situ, e quatro moedas, destacando-se o exemplar em prata, que auxiliam a atribuição de uma cronologia relativa a um dos momentos, possivelmente o intermédio, de utilização da necrópole. Foram ainda recolhidos um objecto indeterminado em xisto e escassos fragmentos de escória metálica e restos faunísticos, os quais não estariam directamente relacionados com o ritual de enterramento, à semelhança do que se verificou para o material de construção identificado nos mesmos estratos. De assinalar a existência de alguns ossos com uma tonalidade verde que evidenciam o contacto com objectos metálicos ou tecidos de cor preta, elementos que, no

Ossário 2

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Enterramento 21 após o seu tratamento em laboratório

entanto, não perduraram no registo arqueológico. A situação periférica da área escavada em relação à igreja, a tipologia dos enterramentos e as sucessivas reutilizações do espaço, sem preocupação com a organização do espaço, sugerem que esta zona da necrópole poder estar associada a elementos mais modestos da comunidade, hipótese reforçada pela quase total ausência de objectos pessoais, de adorno e de vestuário. PROPOSTA DE INTEGRAÇÃO CRONOLÓGICA Não foi reunida informação suficiente para uma atribuição cronológica definitiva para a utilização da necrópole. Desconhece-se qual terá sido a primeira fase de utilização da necrópole, sendo que os únicos elementos cronológicos recolhidos dizem respeito a um conjunto de 4 moedas, das quais 2 possibilitaram a leitura. Uma corresponde a um ceitil (1/6 de real) e integra-se no final do reinado de D. Afonso V, mais precisamente entre 1475 e 1481. A outra moeda, um real de prata espanhol, foi cunhada em Sevilha no reinado dos reis católicos (14751514), Apesar de ser tentador colocar a necrópole no período

Alfinete de toucado, real em prata espanhol e ceitil do reinado de Afonso V

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compreendido entre 1475 e 1481, altura em que os dois reinos coabitaram, o facto é que as moedas circulavam por muito mais tempo do que o reinado em que foram cunhadas. Os ceitis de D. Afonso V circularam até 1578, juntamente com os de D. João II, D. Manuel, D. João III e D. Sebastião. O mesmo se verifica para o real espanhol, o qual circulou durante o século XVI. Estes materiais foram recolhidos no mesmo estrato, pelo que os níveis inferiores são mais antigos e poderão recuar até ao início do século XV, altura em que se presume ter sido construída a Igreja Matriz. No que diz respeito ao terminus de utilização da necrópole, a destruição dos níveis mais recentes dificulta a atribuição de uma cronologia. No entanto, é possível que, atendendo aos dados conhecidos para o Centro Histórico, tenha sido utilizada até ao século XVII. Sujeita a interferências de ordem diversa, contemporâneas da sua utilização ou posteriores, sobretudo nos níveis mais recentes, a necrópole apresenta, face à informação conservada, três momentos de utilização. Os vestígios identificados ao longo dos trabalhos apresentavam profundos danos provocados pelas movimentações de terras, remoção de entulhos, terraplanagem, infra-estruturas modernas, pavimentação e pressão provocada pela circulação automóvel. O estudo da necrópole do Largo Dr. Sérgio de Castro possibilitou, apesar das limitações, reunir um conjunto relevante de elementos auxiliares na caracterização da população de Avis no início do Período Moderno e elaborar um quadro interpretativo fundamentado nas realidades conservadas, o qual poderá vir a ser confirmado ou refutado em futuros trabalhos que venham a ser desenvolvidos no Centro Histórico de Avis. Para além dos factores de ordem histórico-arqueológica e antropológica, esta intervenção demonstrou o quanto é fundamental o planeamento de obras e a gestão urbana para o Centro Histórico em conjugação com a actividade arqueológica como forma de minimizar, não só os impactos negativos ao nível do património arqueológico, mas também diminuir o transtorno causado à população que, neste caso concreto, foi compensado pela relevância das descobertas.


outras ciências

geologicamente falando... avis Geologia, ciência vulgarmente designada como a ciência que estuda as pedras é uma disciplina relativamente recente que ganhou especial conotação no século XVIII. As pedras, mais precisamente, as rochas que formam a Crosta Terrestre são, na verdade, objecto desta ciência que se expande ao estudo da Terra, sua história, composição, propriedades físicas, textura e estrutura. Do arquivo desta disciplina fazem parte os testemunhos inscritos nas rochas e as formações que constituem o nosso planeta. É, desta forma, possível compreender o que nos rodeia, projectar, rentabilizar e antecipar o que o futuro geológico nos reserva. Indubitavelmente, dois grandes desafios caracterizam esta ciência da Terra: a escala temporal com que se depara, em que os registos geológicos ocorrem à escala de milhares e milhões de anos, e o facto de apenas uma percentagem do seu objecto ser substancial, isto é, grande parte dos estudos geológicos baseiam-se em métodos indirectos, acontecimentos em grande escala espacial e zonas muitas vezes inacessíveis ao próprio Homem. Com a especialização da Geologia foram desenvolvidas diversas disciplinas, designadas por Geociências, como a Geofísica, Geoquímica, Vulcanologia, Hidrogeologia, entre outras. A Geologia avançou marcadamente nos séculos XIX e XX com especial destaque para a determinação da idade da Terra, cerca de 4.6 mil milhões de anos, e para a definição e aceitação da Teoria da Tectónica de Placas. Apresentações feitas, ocorre falar desta no que se refere ao concelho de Avis. Assim sendo, as rochas mais antigas que estiveram na origem da região datam de 500 a 400 milhões de

Vila de Avis rodeada de afloramentos de xistos e liditos onde se enquadrou a Barragem do Maranhão

anos, período geológico correspondente ao Pré-Câmbrico e Paleozóico, quando os oceanos ainda estavam unidos num só e os continentes, agora separados, estavam bastante longe das suas posições actuais. A região onde se inclui Avis é decomposta numa considerável variedade geológica que conduz à sedimentação de diversos materiais. A litologia de base é formada por xistos, xistos pelíticos, grauvaques, quartzitos, conglomerados e rochas carbonatadas com frequentes intercalações de metavulcanitos ácidos e básicos. Em linhas gerais, pode distinguir-se o Maciço Eruptivo do Ervedal, onde a rocha predominante é granito bíotitico que se define com

Saibreira de Ervedal - Exploração municipal de granito biotítico

boas características geomecânicas; o Maciço Eruptivo de Benavila, formado por granodioritos e microgranitos associados; e as rochas carbonatadas da zona de Alcórrego e Ervedal, resultado da carcificação do Anticlinal de Estremoz e de Depósitos do Quaternário. Contemplam-se ainda, em algumas zonas do concelho, magníficos afloramentos de xisto resultantes de processos de metamorfismo de rochas ígneas inicialmente existentes e extensos depósitos de cobertura de idade Cenozóica. Como destaques petrográficos a região possui: xistos verdes de elevado potencial ornamental, liditos e bentonites. Estas últimas correspondem a um tipo de argila montemorilonítica de elevado poder aglomerante, plasticidade, viscosidade, tixótropia e poder de permuta iónica. Estas ocorrências poderão constituir projectos de interesse económico, futuramente. O mapeamento das ocorrências geológicas do concelho foi recentemente publicado na Folha 32C-Avis, da Carta Geológica de Portugal, escala 1:50 000, realizada pelo Laboratório Nacional de Energia e Geologia, e com a colaboração de técnicos especializados em diversas áreas,

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Pêgo do Inferno Freguesia de Aldeia Velha Grandiosos afloramentos de xisto contrastam com extensões de depósitos de cobertura do Quaternário

onde se incluiu o Município de Avis, o qual contribuiu ao nível do estudo arqueológico da área geográfica abrangida pelo documento. A Geologia não é uma ciência independente, relacionando-se directamente com a Geografia e Astronomia, servindo-se de ferramentas fornecidas pela Matemática, Física e Química e contribuindo, de forma significativa, para o desenvolvimento de estudos Biológicos, Antropológicos e Arqueológicos. Foi a partir desta relação entre ciências que recentemente surgiu a Geoarqueologia, disciplina multidisciplinar que recorre a conceitos, metodologias e técnicas provenientes da Geologia e Arqueologia, com o

objectivo de compreender a relação entre as comunidades humanas do passado e o meio onde se integram. A Geoarqueologia tem como objecto de estudo as modificações do território, a utilização dos recursos naturais, o impacto do homem sobre o território ao longo do tempo e os processos de formação e conservação de contextos arqueológicos. Ao nível do concelho de Avis foram dados os primeiros passos para o desenvolvimento da Geoarqueologia. Neste contexto, foi elaborado o Catálogo de Identificação Petrográfica, baseado na análise e estudo de um conjunto de instrumentos de pedra polida e utensílios líticos que integram a Reserva de Arqueologia, estabelecendo-se as primeiras propostas para a proveniência de matérias-primas utilizadas no fabrico destes artefactos. Para além disso, iniciou-se a análise territorial com vista à identificação de eventuais zonas de captação de recursos naturais, assim como a definição de locais propícios à ocupação humana, de forma a ser possível definir padrões de ocupação do território, posteriormente confirmados em prospecção. Estas acções foram desenvolvidas no âmbito da primeira fase do projecto de investigação Carta Arqueológica de Avis. A aplicação da Geoarqueologia na análise continuada e especializada dos vestígios identificados no concelho de Avis constitui, sem dúvida, uma mais-valia para o estudo da ocupação humana do território, sobretudo para os períodos mais recuados, correspondentes à Pré-História. Maria de Jesus Prates de Castro-Lopes

Machados em pedra polida

da terra 14 | 15

Engenheira Geóloga, colaboradora nos projectos de investigação arqueológica


perspectivas Acordas cedo, e num pequeno almoço a dormir não sabes se já te levantaste. Preparas a pele para o sol antes sequer de o teres avistado. Preparas a marmita e partes. Partes, para o ponto de encontro, para a escavação. Depois do silêncio sonolento da viagem, a escavação: o balde, o colherim, a vassoura, a pá, o pico. E picas, sentado, raspas, limpas. E o silêncio sonolento desaparece. pica música raspa limpa música lava carrega riso piada história história cantada. “viram ontem a notícia” “aquela receita muito boa” “empresta-me o CD dela” “sobre a história do século XX” “podias vir aqui acho que encontrei” “sim, esse sketch deles” Uma história sobre tudo sobre o tudo sobre a história sobre as nossas histórias Ao ritmo dos picos, colherins, vassouras, baldes, pás. A hora passa a segundos. E regressas com as mãos cheias de achados, pó, ideias, novidades, histórias preparadas para um novo dia de arqueologia. Para a escavação.

Filipa Portela e Rita Portela Estudantes Colaboradoras nos projectos de investigação arqueológica

boletim de arqueologia n.º 5


valorarização e divulgação dia internacional dos monumentos e sítios 2009 revista vialibus a carta geológica de avis comemorações | 100 anos de classificação de património

acção pedagógica oficinas de arqueologia

sítios arqueológicos património classificado | monumento epigráfico de entre-águas 2

caderno de campo necrópole do largo dr. sérgio de castro

outras ciências geologicamente falando... avis

perspectivas

edição Município de Avis director Manuel Coelho - Presidente da Câmara recolha e organização da informação Centro de Arqueologia de Avis textos Ana Ribeiro, M.ª de Jesus de Castro-Lopes, Filipa Portela e Rita Portela fotografia Arquivo Fotográfico Municipal | Centro de Arqueologia de Avis capa Necrópole do Largo Dr. Sérgio de Castro, Avis composição gráfica Centro de Arqueologia de Avis impressão Município de Avis | 750 exemplares distribuição gratuita e-mail arqueologia@cm-avis.pt

boletim de arqueologia, número 5, 26 de Setembro de 2010 ISSN 1646-5660

da terra

sumário


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