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Ensino da Medicina no Algarve - uma história de sucesso
Luís Filipe R. A. Gomes1,2
1Chefe de Serviço de MGF (ap.) 2Prof. Conv. FMCB-UAlg (ap.)
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“- Dr., está aí um senhor que quer falar consigo” - anunciou a minha chefe administrativa.
Eram cinco da tarde, estava no meu (magnífico) gabinete de Director do Centro de Saúde de Monchique. Corria o ano de 2008. A “Grande Reforma dos Cuidados Primários” ainda não tinha reduzido o Centro de Saúde à mínima expressão que apresenta hoje...
Ergui-me para cumprimentar o meu interlocutor, que sem delongas me disse:
“- O meu nome é José Ponte”. E sem mais, acrescentou: “- Vim aqui convidá-lo a participar na criação de um Curso de Medicina no Algarve”.
E assim começou a aventura.
Nesse mesmo dia, ao fim de horas de conversa que terminou na Marina de Portimão, focámos muitos dos problemas que iríamos resolver nos próximos anos. E eu estava completamente conquistado para o projecto!
O Professor Ponte (professor no King’s College de Londres há muitos anos, com imenso trabalho científico reconhecido mundialmente, Chefe de Anestesiologia no King’s Hospital) é alguém entusiasmado e entusiasmante. Tinha ouvido falar de mim, sabia que eu estava ligado à formação de formadores (através do EURACT), e conhecia o núcleo de educação médica contínua (EMC) baseada na dinâmica de pequenos grupos – EMCAL - que eu, respondendo ao repto do Dr. Rui Lourenço, então Presidente da ARS, tinha criado e dirigido durante dois anos, com grande sucesso. Infelizmente, no fim desses dois anos, e quando discutíamos (eu e o Dr. Rui Lourenço) os prémios a atribuir aos mais assíduos participantes no projecto… mudou o governo. E, com a inépcia da nova ARS… não foi possível continuar o trabalho, útil e necessário, que vínhamos desenvolvendo.
Sendo o projecto do Professor Ponte para o Curso de Medicina em grande parte assente na MGF, precisava de profissionais dessa área como colaboradores; felizmente, eu estava em condições de poder proporcioná-los!
De facto, tínhamos constituído um grupo de Tutores de EMC de alta qualidade; todos Especialistas de MGF (EMGF), com muita experiência como Orientadores de Formação e devidamente habilitados pela frequência de cursos EURACT e de um curso para “Group Leaders”, especificamente desenhado para estes profissionais; foram eles que constituíram o núcleo dos EMGF que, até ao presente, exercem funções docentes (e outras) no Mestrado Integrado de Medicina da Universidade do Algarve (MIM-UAlg). Actualmente, Faculdade de Medicina e Ciências Biomédicas (FMCB).
O MIM apresenta três aspectos que, conquanto desenvolvidos separadamente em outros cursos de outros países, o tornam único pela sua sobreposição. São eles:
- Entrada exclusiva de graduados (“Graduate Entry”, tal como, por exemplo, em Warwick, no Reino Unido);
- Aquisição de conhecimentos pelo método de “Aprendizagem Baseada em Problemas”, ABP (Problem Based Learning, PBL, tal como em Maastricht, Países Baixos ou na St. George’s Medical School, Universidade de Londres. No nosso caso, no formato “Pure PBL”);
- Prática fortemente baseada nos Cuidados Primários (como por exemplo na Escola Médica de James Cook, na Austrália), com imersão em ambiente MGF e exposição precoce e continuada à MGF (durante os primeiros dois anos do Curso, os alunos têm acesso à prática da Medicina exclusivamente em Unidades de Cuidados Primários, orientados por Tutores que são EMGF).
O Curso desenvolve-se através de vários Módulos, que visam abarcar os três domínios essenciais do ensino/aprendizagem.
Assim, o Módulo “Aprendizagem Baseada em Problemas” (ABP) constitui a modalidade de aquisição de Conhecimentos; o Módulo “Laboratório de Aptidões” visa o treino de Aptidões; e o Módulo “Clínicas”, dedicado à prática, é desenvolvido em ambiente de MGF durante os dois primeiros anos e visa, para além dos outros domínios, a modelação das Atitudes.
Para além destes módulos, há ainda outros:
- Módulo “Seminários” – apresentando aos estudantes os mais recentes desenvolvimentos ou temas inspiradores;
- Módulo de Escolha dos Estudantes (MEE) – permitindo aos estudantes aprofun-dar temas de sua escolha;
- Seguimento Continuado do Paciente (SCP) – acompanhando durante semanas pacientes (a grávida e o seu filho, o doente crónico, o doente dependente);
- Unidade Curricular Opção (UCO) – no quarto e último ano os estudantes efectuam um estágio de 10 semanas, autorizado pela Direcção do Curso, num centro de referência nacional ou internacional, numa região geográfica com diversidade patológica, numa região carenciada ou num centro de investigação clínica ou básica.
Assim, em 2009, 21 especialistas de MGF integravam o corpo docente do MIM, sob contrato, actuando nas suas diversas áreas:
- Na gestão (participando nas reuniões do “núcleo duro” do Curso).
- Na selecção dos candidatos (colaborando, nomeadamente, nas “Mini Entrevistas Múltiplas”).
- Em todos os módulos:
- Como Tutores de ABP, apresentando temas no Laboratório de Aptidões;
- Recebendo alunos nas suas unidades, para as “Clínicas”
- Apresentando Seminários – debruçando-se alguns sobre temas abrangentes e inspiradores, como sejam “A Consulta”, “Medicina Centrada na Pessoa”, “Disease Mongering”, “Prevenção Quaternária”, sendo outros mais específicos, como “Alcoolismo”, “Cuidados Paliativos”, e muitos mais);
- Apoiando o trabalho dos estudantes no “Módulo de Escolha dos Estudantes”;
- Fornecendo o quadro adequado para o “Seguimento Continuado do Paciente”.
Mais tarde, virão a elaborar e dirigir o “Estágio de Medicina Geral e Familiar” do 4º ano, acompanhando os estudantes como seus Tutores, e também a colaborar na “Unidade Curricular Opção”. Os EMGF contratados como docentes do MIM-UAlg participam também em todas as actividades avaliativas: nos “testes” (Personal Progress Index, PPI) para a ABP, nas “OSCE” (“Objective Structured Clinical Examination”) para o “Laboratório de Aptidões”, na Avaliação Contínua das “Clínicas”, na avaliação de “Posters” no módulo “Seminários”, na avaliação dos ensaios no “MEE”, na avaliação dos Relatórios e nas Apresentações do “SCP”.
O caminho iniciado em 2008 foi sendo percorrido com dedicação e muito trabalho; sofremos ataques pessoais e institucionais, pelo receio da novidade que representávamos. Não nos deixamos, no entanto, influenciar negativamente, e continuámos a persistir nos nossos objectivos.
Constituíamos um grupo de Docentes de várias áreas e Especialidades e funcionários, cola-borando intimamente para respondermos às necessidades dos estudantes e do Curso. Os nossos Estudantes, nomeadamente no primeiro curso, eram dinâmicos e corajosos – muitos abdicaram de boas posições profissionais para se dedicarem a um Curso novo e – digamo-lo! – revolucionário!
E, no início, era questionável o futuro do curso, sempre ameaçado por nuvens negras pro-venientes dos eternos objectores da mudança… Os nossos alunos, no entanto, arrostavam alegremente com todos os perigos – seguros como estavam da qualidade do ensino a que acediam.
Num ambiente informal, de grande camaradagem e respeito mútuo, onde a elevada capaci-dade científica e académica andava a par com a amizade e o bom humor – as nossas reuniões do “núcleo duro” – recordo com prazer – eram momentos de riso e boa disposição, de discussão acalorada – e de rápido e inteligente estabelecimento dos consensos necessários para o progresso.
O nome da sala onde nos reuníamos na altura era, no entanto, bem significativo da disposição que assumíamos ao tempo: “War Room”!
O sucesso que alcançamos é a nossa recompensa; as amizades que estabelecemos com colegas e alunos traduzem-no, e persistirão para a vida.
E o prazer de ajudar a construir um projecto de tal dimensão “from scratch” é para todos nós um motivo de merecido orgulho..
Claro que o projecto tinha merecimento próprio; sabíamos que estávamos a criar algo de muito importante, inovador e de alta qualidade.
Um dos momentos fulcrais da nossa actividade inicial foi a preparação do conjunto de “Problemas” que iriam constituir a base do módulo “Aprendizagem Baseada em Problemas”. Primeiro foi necessário obter a lista de base; para tal, o Prof. José Ponte e o Prof. Pedro Marvão deslocaram-se a várias Universidades internacionais, optando finalmente pela “colecção” de casos da St. Georges University.
Depois, foi preciso verificar, corrigir, actualizar, adaptar à nossa realidade e traduzir setenta casos clínicos muito elaborados, cada um deles constituindo um dossier que cobre desde as ciências básicas aos processos sociais e pelo conjunto dos quais perpassava toda a Medicina; lembro-me bem de, durante esse trabalho, vindo-me à memória o penoso percurso académico que percorrera em Coimbra nos idos de 1969, pensar para mim próprio: “- Ah, como eu gostaria de ter aprendido assim medicina! A sorte que têm os nossos alunos!”.