Gestão do Desenvolvimento Territorial
José Antonio Gomes de Pinho
Política, Governo e Sociedade
PolĂtica, Governo e Sociedade
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO GESTÃO DO DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL
José Antonio Gomes de Pinho
Política, Governo e Sociedade
Salvador, 2018
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA Reitor: João Carlos Salles Pires da Silva Vice-Reitor: Paulo César Miguez de Oliveira Pró-Reitoria de Extensão Universitária Pró-Reitora: Fabiana Dultra Britto Escola de Administração Diretor: Horacio Nelson Hastenreiter Filho. Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social Tânia Maria Diederichs Fischer Superintendência de Educação a Distância -SEAD Superintendente Márcia Tereza Rebouças Rangel Coordenação de Tecnologias Educacionais Haenz Gutierrez Quintana Coordenação de Design Educacional Lanara Souza CAIXA ECONÔMICA FEDERAL Presidente da Caixa Nelson Antônio de Souza Vice-Presidente Interino/ Diretor de Habitação: Paulo Antunes de Siqueira Superintendente Nacional SUHEN Henrique Marra de Souza Gerente Nacional GEHPA André de Souza Fonseca
Gerente Executiva Maria Emília Batista Cordeiro Gerente Executiva Escola de Habitação Ana Carolina Rabelo de Castro Matos Gestão do Desenvolvimento Territorial Coordenadora: Profa. Tânia Maria Diederichs Fischer Design Educacional: Agnes Bezerra Freire de Carvalho; Coordenação Executiva: Rodrigo Maurício Freire Soares; Supervisão Acadêmica: Renata Lara Fonseca ; Supervisão de Tutoria: Gizele Amorim Conceição Produção de Material Didático Coordenação de Tecnologias Educacionais CTE-SEAD Núcleo de Estudos de Linguagens & Tecnologias - NELT/UFBA Coordenação Prof. Haenz Gutierrez Quintana Projeto gráfico e diagramação Prof. Haenz Gutierrez Quintana Foto de capa: Rawpixel Equipe de Revisão: Edivalda Araujo; Julio Neves Pereira Márcio Matos; Simone Bueno Borges
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Sistema de Bibliotecas da UFBA P654 PINHO, José Antonio Gomes de. Política, governo e sociedade / José Antonio Gomes de Pinho. - Salvador: UFBA; Escola de Administração; Superintendência de Educação a Distância, 2018. 61 p. : il. ISBN: 978-85-8292-192-0 1. Estado - Origem. 2. Estado - Brasil. I. Universidade Federal da Bahia. Escola de Administração. II. Universidade Federal da Bahia. Superintendência de Educação a Distância. III. Título. CDU 321
Sumário Apresentação ....................................................................................07 Unidade 1 - ........................................................................................09 Introdução .............................................................................................................09 Primórdios do Estado Moderno .......................................................................09 Estado Absolutista...............................................................................................11 Estado Liberal ......................................................................................................12 O Estado na visão marxista ...............................................................................18 O Estado de Bem-Estar social ..........................................................................24 O Estado neoliberal ............................................................................................28 Um Estado à espera de um nome ...................................................................31
Unidade 2 - ........................................................................................35 O Estado no Brasil ...............................................................................................35 O patrimonialismo ...............................................................................................37 O Estado pós Independência ............................................................................39 O Estado na República....................................................................................... 40 O Estado a partir da Revolução de 1930 .........................................................43 O Estado Democrático no Brasil .......................................................................47 O Estado Burocrático-Autoritário .....................................................................50 O Estado na transição e na democracia..........................................................53 Tentando uma síntese ........................................................................................55
Referências ........................................................................................60
Sobre o autor José Antonio Gomes de Pinho Possui graduação em Engenharia pela UNESP (1973), Mestrado em Planejamento Urbano e Regional pela COPPE-UFRJ (1978) e Doutorado em Regional Planning pela LSE - University of London (1986). Professor Titular da Universidade Federal da Bahia. Editor da revista Organizações &Sociedade (O&S) de 1997 a 2013. Leciona na área de Ciência Política, com ênfase em Estado e Sociedade. Tem realizado pesquisa nas áreas de governo eletrônico, democracia digital, sociedade da informação/internet, corrupção, governo local, futebol. Coordenador do grupo de pesquisa Núcleo de Internet, Democracia, Estado e Sociedade – NIDES –, registrado no CNPq. http://lattes.cnpq.br/0666910852432471
Apresentação Caros alunos, Sejam todos bem-vindos à disciplina de Política, Governo e Sociedade. Esta disciplina tem por ementa as teorias sobre Estado e Sociedade e situa, ainda, os fenômenos da globalização e da emergência das tecnologias de informação e comunicação (TIC) que configuram um novo mundo. Dessa forma, vocês terão, ao longo desta disciplina, contato com os mais diversos gêneros de textos escritos e mídias que envolvem a temática. Será uma oportunidade única de aprofundamento nos estudos e produção de conhecimento. No espaço virtual, a disciplina está disponível em dois Módulos: I e II. No primeiro módulo, abordaremos a transição histórica e teorias que dão suporte à concepção socialista e do estado Neoliberal. No módulo II, avançamos para a realidade brasileira. Nesse processo, iremos construir uma avaliação diagnóstica com a participação de todos. Leiam o material com cuidado e atenção e, logo após, façam as atividades propostas. Assim que terminarem de fazê-las, postem o arquivo, participem ativamente das discussões e façam contribuições. Estamos à disposição para responder as dúvidas e apro- fundar a discussão sobre os temas abordados. Buscamos um caminho de construção do conhecimento e sua experiência é muito importante para este processo de estudo. Caminharemos juntos! Um forte abraço, Prof. José Antonio Gomes de Pinho.
Figura 1: Niccolò Machiavelli por Santi di Tito. Imagem: Wikimedia Commons
9 Unidade I O Estado Moderno
A primeira unidade trata do Estado de uma maneira mais geral, recorrendo ao processo histórico para explicar como o Estado moderno surge na perspectiva ocidental na Europa. Aqui se desenvolvem não só a discussão dos processos históricos como também a produção de conhecimento teórico sobre a compreensão do Estado. Na segunda unidade, será tratado o processo histórico e teórico da formação do Estado no Brasil.
Primórdios do Estado Moderno A ideia de Estado e Estado-Nação surge há cerca de quinhentos anos, na lenta passagem do feudalismo para o capitalismo. Com o novo modo de produção que implica uma nova organização da economia, é demandada uma nova organização do poder político. O que existia até então, no longo mergulho da Idade Média, pensando em termos de Europa, era um sem número de pequenos reinos e repúblicas, no caso do que viria a ser a Itália. Maquiavel, em sua obra O Príncipe, é um dos primeiros intérpretes de uma situação que se desenhava e se configurava em termos de espaços, territórios econômicos e políticos, o que requeria outro tipo de Estado. A emergência da burguesia comercial, as grandes descobertas da navegação, não só da América, mas também do caminho marítimo para as Índias (além da pólvora e imprensa), incorporava porções desconhecidas do território da terra ao sistema econômico. A economia que se desenhava se assentava agora em relações muito mais dinâmicas, envolvendo os grandes continentes. A nova ordem econômica reclama um novo arranjo do poder político, lição que devemos ter em mente para períodos futuros. Este fato histórico gera um ensinamento útil e imprescindível, qual seja, a estreita associação entre a economia e a política, entre sistema econômico e sistema político.
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À medida que a economia se transforma, ela reclama, pede um novo estatuto de poder político para reger as atividades econômicas. Isto se repetirá em vários momentos posteriores. Maquiavel vai ser o primeiro a perceber essa nova composição de forças ao notar que a França e a Espanha já eram nações estruturadas, ocupando grandes e definidos territórios, resultado da desagregação do poder do feudalismo, tendo incorporado pequenos e até médios reinos. Os senhores feudais, dominantes na ordem que vai se exaurindo, vão perdendo espaço e poder, o que resulta numa estrutura com um único centro de poder em um território amplo para os padrões europeus. O absolutismo se expande a partir de então. Maquiavel aponta esta característica, da centralização do poder, como fato favorável ao poder das nações. Esse novo poder que desponta também se contrapõe ao poder que até então a Igreja (Católica) concentrava.
FIQUE ATENTO! O novo Estado que surgia, ainda que timidamente, se contrapunha à dispersão do feudalismo, com o perfil de um Estado concentrador, detendo praticamente todos os poderes na figura do monarca e, portanto, assumindo caráter absolutista.
Figura 2: Feudalismo na Idade Média. Imagem: Wikimedia Commons
Unidade I
Qualquer governo é melhor que a ausência de governo. O despotismo, por pior que seja, é preferível ao mal maior da Anarquia, da violência civil generelizada, e do medo permanente da morte violenta. Thomas Hobbes
Figura 3: Thomas Hobbes. Imagem: John Michael Wright [Public domain]
Estado Absolutista Do ponto de vista histórico, o que aconteceu ao longo dos séculos XVI e XVII foi o avanço e consolidação do absolutismo em diversas nações européias. Toda a história desses séculos é marcada por guerras entre os reinos existentes, o que faz com que em 1648 seja celebrado o Tratado de Paz de Westfália, tendo por sede esta cidade alemã, que reuniu os principais líderes das nações européias. O nome diz tudo, paz, indicando a saturação que as guerras, longas, traziam ao continente e suas nações e povos. O Tratado é tido como o reconhecimento do Estado em sua concepção moderna, do Direito Internacional e da soberania dos povos e nações, um ensaio para o que viria a ser a Organização das Nações Unidas (ONU) no então distante ano de 1945. Do ponto de vista teórico, esse fenômeno vai ganhar um estatuto acadêmico cerca de um século e meio após Maquiavel, com Thomas Hobbes, filósofo inglês, o teórico por excelência do Absolutismo, que prega a necessidade do Estado Leviatã (1651), baseando-se na mitologia da Bíblia do monstro marinho tentacular. A ideia defendida por Hobbes de um Estado que deve controlar tudo, o Estado Absolutista, é desenvolvida a partir do artifício teórico do Estado de Natureza, caracterizado por ele através de duas passagens célebres: o Estado de Natureza é a guerra de todos contra todos e o homem é o lobo do próprio homem. Em sua construção, Hobbes entende o Estado de Natureza como não social, marcado por uma
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beligerância constante e ameaçadora. Os homens, sentindo necessidade de ordem e proteção, firmam um contrato e criam o Estado, que deve ser regido por um monarca que controla tudo de modo a evitar o retorno ao Estado não social. O Estado de Natureza é aquela situação onde, em tempos primitivos, os homens não dispõem de instrumentos legais e jurídicos para regular a vida social. Isto posto, é um estado de risco, de insegurança, ainda que de imensa liberdade. Frente aos riscos existentes, para, principalmente, a própria existência (a vida), os homens resolvem celebrar um contrato, um pacto entre si, de modo a criar o Estado. Mesmo que haja uma perda de liberdade dos seres humanos, o ganho de segurança compensaria essa perda. O Estado Absolutista, que se espalha pela Europa ao longo do século XVII, sobrevive enquanto recebe apoio político para isso, enquanto as forças que estavam se beneficiam de sua existência, principalmente as econômicas, tinham suas demandas e interesses atendidos, enquanto as decisões do Estado atendiam aos grupos econômicos e aos grupos sociais em geral. À medida que forças econômicas emergentes fora das estruturas do poder se sentem marginalizadas, não atendidas em seus reclamos, começam a se organizar no sentido de buscar um novo arranjo político. Toda essa movimentação de âmbito econômico e político leva à criação do Estado Liberal, um processo lento como sói acontecer nos processos históricos, mormente aqueles de ruptura, resultado de lutas ferrenhas, no limite, chegando a guerras.
Estado Liberal Os movimentos que ocorreram ao longo do século XVII levam à Revolução Inglesa, também chamada de Gloriosa, em 1689. A partir de um determinado tempo, o Estado Absolutista começa a causar mais problemas e insatisfações do que a dar um retorno positivo à sociedade. Agentes econômicos não contemplados pela direção absolutista começam a manifestar sua insatisfação em relação ao poder. A economia havia se expandido de forma expressiva, não sendo mais aquele conjunto de atividades bem paroquiais, locais, domésticas. O comércio internacional se expande, gerando empresas já de algum vulto. Assim, a pressão política sobre as estruturas do Estado aumenta, tornando-o um ente fragilizado, o que leva à ruptura do Estado absolutista.
Unidade I
Onde não há lei, não há liberdade. John Locke
Figura 4: John Locke. Imagem: Sir Gotfrey Kneller [Public domain]
Um participante ativo desse movimento foi John Locke, filósofo inglês, que publica o livro Dois Tratados do Governo, em 1690, resultado de estudos que vinha desenvolvendo há alguns anos. Seu ponto de partida é uma visão diferenciada do Estado de Natureza, em contraponto àquela esposada por Hobbes. Na visão de Locke, o Estado de Natureza não tem aquela estrutura de destruição, de conflagração, como defendida por Hobbes, mas já existem elementos de uma sociedade civil. Disto resulta que não há necessidade de um Estado Absolutista, mas sim de um Estado que garanta não só os elementos essenciais da segurança da vida e da liberdade, como em Hobbes, mas também da propriedade, instituição que, no entendimento de Locke, já está presente no Estado de Natureza como elemento constitutivo. A argumentação de Locke convergia com os movimentos da sociedade que levaram ao Estado Liberal na Inglaterra em primeiro lugar. Em outras palavras, o que Locke está clamando é mais liberdade para que a sociedade civil, fundamentalmente o setor econômico, possa realizar seus interesses. Locke defende que, com sua configuração de estado de natureza, onde o instituto de propriedade já está instalado na sociedade, precisa haver liberdade para a ação dos agentes econômicos. E isto não representa, prossegue Locke, nenhuma ameaça à sociedade e nem ao Estado, não se realizando as visões que Hobbes imputava no caso do questionamento do Estado. Com Locke, não ocorre a guerra de todos contra todos, conforme apregoado por Hobbes. A Revolução ocorre com uma guerra, mas não há retorno ao estado de natureza.
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No fundo deste processo de expansão do capitalismo, também tem que ser registrada a ocorrência da Reforma Protestante, tanto de base luterana como calvinista. Weber vai ser um dos grandes teóricos da explicação do desenvolvimento do capitalismo a partir da instalação do protestantismo, tema bastante polêmico, não pacífico. De qualquer forma, os países de religião protestante construíram as bases para o desenvolvimento do capitalismo e experimentaram processos de expansão e construção de riqueza acentuada comparados com aqueles que ficaram debaixo dos parâmetros da religião católica. Em linhas gerais, o protestantismo olhava o trabalho e a inserção na vida econômica e social de uma maneira bastante diferente do católico. Na concepção protestante, a usura é combatida, mas o ganho, o lucro, derivado do trabalho era não só permitido como incentivado. Enquanto o católico esperava a salvação no reino dos céus, o protestante entendia que o ganho e o lucro derivados do trabalho bem como um comportamento asceta eram sinais de Deus da recompensa. Com isto, o trabalho passa a assumir uma configuração bastante diversa da até então praticada. O protestantismo passa a se constituir em uma religião que converge com os ideais de um capitalismo nascente que necessita de uma chancela religiosa para se realizar. Vamos refletir sobre os pensadores abaixo: HOBBES
ROUSSEAU
LOCKE
ESTADO DE NATUREZA
Guerra constante
Inocência
Liberdade e conflitos de interesses
PODER
Poder Soberano e direito divino
Vontade geral
Três Poderes: executivo, legislativo e judiciário
Da mesma forma que o Estado Absolutista se expandiu ao longo dos séculos XVI e XVII, agora o Estado Liberal começa seu processo de espalhamento ao longo do século XVIII, novamente de forma bastante lenta. Do ponto de vista do pensamento teórico, este ainda viria a sofrer um agito com as ideias de Rousseau, filósofo genebrino (Suíça), mas que desenvolveu sua carreira em França em meados do século XVIII. Sua arquitetura teórica
Unidade I
também parte do Estado de Natureza, mas, ao contrário dos antecessores (Maquiavel, Hobbes e Locke), que tinham uma visão negativa do homem, Rousseau parte de uma visão positiva do homem, eternizada na figura do “bom selvagem”. O homem, em sua natureza, seria bom. O que o levava a ser o que era residia na civilização, nas instituições. Assim, o estado de natureza sofre uma reviravolta bem como a percepção da “origem” do homem. Então, na visão de Rousseau, o objetivo político seria resgatar este estado idílico, o que demandava um Estado que representasse o interesse coletivo, estando o povo todo presente, ainda que delegando o poder a um soberano. A Assembleia passa a ser uma instituição estratégia, ao invés do Parlamento, e onde o povo tem assento. Além desse salto civilizatório, Rousseau ainda propõe a igualdade entre os homens: todos são iguais perante a lei – máxima ainda de difícil realização em muitos países e mesmo em muitas democracias, dois séculos depois de sua proposição. Ao sacar a referência do “bom selvagem”, Rousseau se posiciona contra o instrumento da razão, da racionalidade, àquela altura já imperante no mundo ocidental. Sua proposta se insere no bojo de um romantismo de difícil, para não dizer impossível, realização em um mundo que se tornava cada vez mais racional, dependente do cálculo, da visão de investimento e retorno do capital investido, ou seja, uma sociedade que se tornava cada vez mais capitalista. Vale dizer que, contemporâneo a Rousseau, ocorre a primeira revolução industrial, baseada na máquina a vapor, que vai dar uma escala à produção de mercadorias nunca antes vista e que vai demandar mercados para ser realizada. Navegando contra a corrente, Rousseau faz uma crítica contundente ao instituto da propriedade, localizando-a como sede das injustiças que permeiam a sociedade capitalista, que cada vez mais se irradia pelos países europeus bem como nos EUA. Apesar do forte conteúdo crítico, Rousseau não é capaz de propor a construção de uma sociedade alternativa à capitalista.
Saiba mais O contrato social de Jean-Jacques Rousseau: uma análise para além dos conceitos. Disponível em: https://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronicas/FILOGENESE/heliovilalba.pdf
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A riqueza de uma nação se mede pela riqueza do povo e não pela riqueza dos príncipes.1 Adam Smith A riqueza das Nações Disponível em: www.ie.ufrj.br/intranet/ie/userintranet/hpp/arquivos/ 051120150019_SMITH1996ariquezadasnacoesvol.02.pdf
Figura 4: Adam Smith. Imagem: Wikimedia Commons
Novamente a sociedade se move, e agora no rastro da influência rousseauniana, no sentido da construção de uma sociedade democrática. O exemplo clássico é a Revolução Francesa, que leva ao fim o Absolutismo bem como o feudalismo na nação francesa, que resulta de atos promovidos por uma nova classe, a burguesia, que vinha ganhando poder econômico, mas precisava chegar ao centro do poder político, o Estado. A Revolução Francesa (1789) representa a tomada do Estado fundamentalmente pela burguesia comercial, que vai derrubar a estrutura do velho regime dos privilégios e dos interesses particulares, colocando no seio da sociedade os interesses da burguesia, o que faz despontar, pela primeira vez no mundo moderno, os valores da democracia. Apesar das mudanças radicais implantadas, extinguindo os valores do poder pessoal e dos privilégios do antigo regime, a nova ordem que se implanta acaba se alinhando mais à lógica do mercado. A nova configuração de poder que a burguesia francesa estava defendendo era a de um Estado não absolutista, um Estado que deixasse as forças de mercado se manifestar mais livremente, convergente com ideais da democracia baseada em Rousseau. Na verdade, porém, acabou prevalecendo um arranjo mais a favor das forças de mercado alinhado às ideias liberais do filósofo escocês Adam Smith, que propugnava a figura da mão invisível do mercado e defendia que o livre jogo das forças de mercado conduziria a economia, ao invés do Estado, na expectativa de produzir um resultado melhor para todos.
Unidade I
Contemporâneo de Rousseau, mas pensando em uma linha bem oposta, Adam Smith desenvolve seu discurso, exposto no clássico “A Riqueza das Nações” (1776), no sentido de derrubar a velha ordem dos privilégios, aquela que acreditava que o Estado deveria comandar a vida em praticamente todos seus aspectos. O discurso de Adam Smith vai dizer o contrário: que a sociedade, aqui entendida como os agentes econômicos, pode buscar seus interesses, ainda que com egoísmo, e que o resultado será positivo, contrariando a velha máxima hobbesiana de que essa busca individual seria a guerra de todos contra todos. Adam Smith se torna o pai da sociedade liberal do ponto de vista econômico, mas também filosófico. É bom situar que essa obra de Smith, lançada em paralelo à Revolução Industrial, está relacionada a um capitalismo competitivo de baixa escala de produção. É clássica sua citação que não decorre da benevolência do padeiro, do cervejeiro e do açougueiro para termos o pão, a cerveja e a carne em nossas mesas. Em outras palavras, não há benevolência ou romantismo ou vontade de atender o próximo, mas sim o interesse econômico. E Smith não vê nisso qualquer problema, pois está sendo cumprido um papel social. Além desse aspecto, vale destacar que, quando o filósofo escocês aponta esses três agentes econômicos, eles ainda são produtores de pequena escala, conformando um capitalismo de base competitiva, que não tem nada a ver com a escala que assumiram na contemporaneidade ou que iriam assumir mesmo cerca de um século depois. Essa visão do Estado Liberal ocorre a par e passo ao momento em que a burguesia toma o poder, clamando por uma maior liberdade de mercado e que este fosse mais protagonista que o Estado. Da Revolução Inglesa, passando pela independência dos Estados Unidos e pela Revolução Francesa e adentrando o século XIX, a ideologia do mercado se impõe fundamentalmente na Europa ocidental mais desenvolvida e nos EUA, impulsionada pela Revolução Industrial. Saiba mais Segundo Eric Hobsbawn (1966, p. 28), “nunca houve uma [revolução] que se tivesse espalhado tão rápida e amplamente, alastrando-se como fogo na palha por sobre fronteiras, países e mesmo oceanos como a de 1948. Foi neste contexto que o Manifesto foi publicado, na iminência da realização de uma revolução sem precedentes. Resultado do estreitamento das relações dos dois autores com a Liga dos Justos , uma união de trabalhador fundada em 1836 por artesãos alemães emigrados na Inglaterr to tinha como objetivo conscientizar os trabalhadores de sua condição e da força de sua união.
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Figura 5: Marx e Engels. Imagem: Wikimedia Commons
O Estado na visão marxista Falamos acima de um agito com as ideias de Rousseau e o processo histórico vai sofrer um novo agito, e de proporções maiores, com as ideias de Marx e Engels, em meados do século XIX. Tais autores mostraram que o sistema capitalista era fundamentalmente explorador da força de trabalho e clamavam os operários a se unirem no sentido de combater o capitalismo e construir uma nova ordem, o socialismo. Se Rousseau faz uma crítica até certo ponto vaga do capitalismo nascente, Marx e Engels já são mais assertivos, fazendo não só uma crítica ao capitalismo, mas produzindo um estatuto teórico do funcionamento do capitalismo, que seria eticamente ou ideologicamente condenável, ao sugerirem que esse sistema econômico fosse substituído por uma ordem socialista, onde imperaria a igualdade entre os homens. No estatuto teórico do marxismo, não há uma teoria suficientemente elaborada sobre o papel do Estado, mas, para os dois pensadores alemães, o Estado desempenha um papel central na construção e manutenção da ordem capitalista. No famoso “Manifesto do Partido Comunista” (1848), os autores apontam que o Estado é um comitê a serviço da burguesia. Mais adiante, ao analisarem os movimentos de 1848 na França, identificam que o Estado sempre atende aos interesses da classe dominante, a essa altura, a burguesia, que já dominava o campo industrial. Em outras palavras, ocorre uma convergência de interesses entre Estado e a classe capitalista para viabilizar a ordem capitalista e manter o proletariado em condição
Unidade I
subalterna de explorado. Os autores apontam a pobreza existente, e isso tendo em mente os países mais desenvolvidos, Inglaterra à frente, como resultado das forças de exploração do trabalhador que definem o capitalismo. A construção da nova ordem socialista demandava como pré-requisito a união dos trabalhadores que seria feita em torno dos sindicatos, até então não permitidos pelas classes dirigentes e pelo Estado, o que requeria uma forte luta por parte da classe trabalhadora. As ideias dos dois pensadores e militantes alemães se propagam pelos países industrializados da Europa, provocando questionamentos da ordem capitalista existente e consequentes conflitos entre capital e trabalho. No entanto, em nenhum desses países, a saber, a própria Inglaterra, França, Alemanha e até os EUA, a esperada revolução socialista logrou êxito, o que veio a acontecer exatamente na Rússia, país que não atendia, digamos, aos pré-requisitos para sua ocorrência, quais sejam, uma burguesia desenvolvida, o que pressupunha a industrialização e a consequente existência de um proletariado organizado. A revolução socialista lograva êxito exatamente em uma nação atrasada para os padrões europeus, ainda de base rural e de sistema econômico fundamentalmente feudal. Faltavam os ingredientes básicos acima apontados, mas logrou acontecer. O entendimento deste sucesso e a busca de explicações para isto são muito complexos para serem desenvolvidos aqui. Em síntese, pode ser dito que faltava à Rússia uma sociedade civil organizada bem como interesses capitalistas explicitamente colocados. Ao tomar o Estado, as forças revolucionárias tomaram o poder, não havendo resistência em outras esferas da vida pública ou civil. O entendimento da não ocorrência da revolução socialista em países europeus mais adiantados (e ainda nos EUA) também não é tarefa fácil, mas demasiado complexa. Ao virarmos o olhar sobre o processo histórico desses países mais adiantados, fica mais fácil perceber o que aconteceu e que impediu a ocorrência da revolução socialista tão desejada e esperada por Marx e Engels. Vai ser o próprio Engels que, em 1895, nos estertores de sua vida, aponta uma explicação. A organização e a pressão do operariado, consubstanciadas na formação de sindicatos e partidos de base operária, proibidos na fase dos escritos iniciais dos pensadores alemães, se tornaram realidade mais próxima do final do século. Face a essa nova situação, Engels elabora uma nova visão de Estado. Em sua percepção, os novos movimentos da classe operária, agora organizada em sindicatos e partidos políticos, vão exercer pressão sobre o Estado, que assume uma nova configuração. A ampliação do voto, perdendo seu foco
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aristocrático e abarcando também as classes populares, contribui para a construção de outro patamar, mais social, mais rousseauniano poderíamos dizer, mas sem atingir a revolução que o pensador genebrino intencionava. Por outro lado, Engels também não compreendia os parâmetros do referencial marxista, assumindo um caráter mais reformista do que revolucionário. Dado esse lote de mudanças apreciáveis, o Estado deixa de ser unicamente um agente repressor das forças trabalhadoras para assumir um papel também de mediador no sentido de atender a determinados reclamos da classe trabalhadora, contanto que estes não comprometam a lógica do capitalismo. Assim, são atendidas demandas tais como redução da jornada de trabalho e melhores condições de trabalho, o que, em si, já estava previsto pelo próprio Marx quando, ao analisar a trajetória do capitalismo, visualizava um aumento da extração de mais valia relativa ao invés da absoluta. Esse redirecionamento era possibilitado pelo aumento da composição orgânica do capital, ou seja, a introdução crescente de maquinaria substituindo o operário. Máquinas não reclamam, não exigem, apenas funcionam. Por outro lado, a própria evolução da maquinaria demandava trabalhadores mais qualificados, de modo a estarem preparados para operar essas máquinas, agora já dentro do âmbito da segunda revolução industrial, movida à eletricidade. Assim, à medida que a educação inseria o trabalhador na vida fabril de modo mais apropriado, também o qualificava para uma ação mais substanciada na vida política. Desta forma, Engels aponta um novo papel do Estado que deve dar respostas a algumas demandas da classe trabalhadora, visão esta que se distanciava da inicialmente traçada pela dupla em 1848, mas que não representava nenhuma mudança de posição ideológica, apenas a constatação da mudança das condições históricas. Ainda que não haja objetivo nem condições de fazer aqui uma análise do desenvolvimento da experiência socialista, na sua versão soviética ou qualquer outra, vale a pena desdobrar o desenrolar dos fatos históricos tanto do desenvolvimento do capitalismo como do pensamento marxista no sentido de avaliar as possibilidades da construção de um Estado socialista. Neste propósito, as idéias de Gramsci são fundamentais. O pensador italiano desenvolve o arsenal teórico de Marx, adequando-o às primeiras décadas do século, XX levando em conta as mudanças encetadas pelo capitalismo e pelo posicionamento das classes trabalhadoras.
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A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem. Antônio Gramsci Figura 6: Antonio Gramsci. Imagem: Eugenio Hansen. Wikimedia Commons
Antes disso, no processo histórico, é oportuno situar a ocorrência da Primeira Guerra Mundial (1914/18), que envolve fundamentalmente as nações européias. De uma forma bem sintética, a Alemanha, que havia se unificado tardiamente (assim como a Itália) nas primeiras décadas da segunda metade do século XIX, se torna, no início do século XX, uma potência mundial com base industrial, fazendo frente às tradicionais nações européias industrializadas. Entre outros, este é um fator de peso na explicação da primeira grande guerra, a Alemanha estava em busca de protagonismo no cenário internacional. Do ponto de vista do pensamento que entronizava as classes trabalhadoras, a guerra permitiu ver que forças mais poderosas se colocavam como o nacionalismo, afastando-se o dístico “trabalhadores do mundo, uni-vos”!, de base marxista, indicando que a explicação para o mundo não poderia ser resumida às relações de produção, mais especificamente àquelas que se desenrolavam no chão de fábrica. Ficando ainda no campo marxista, chegamos ao referencial gramsciano, como dito acima. É interessante notar que passada a fase dos pensadores ingleses, franceses (tomando Rousseau como tal) e alemães, o foco teórico agora tinha endereço na Itália, o que merece uma breve digressão. A Revolução Russa de 1917, ocorrida apesar do não atendimento a requisitos básicos para sua viabilização, abria um leque de esperança nos movimentos socialistas em vários países que até então não tinha logrado realizar sua revolução. Assim, era oportuno e necessário aprender com a revolução russa.
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Nesse sentido, Antonio Gramsci deixa o Partido Socialista da Itália e funda o Partido Comunista e se dirige nos primeiros anos da década de 1920 com outros partidários à Rússia. De lá, ouve de Lenin que a revolução nos países de capitalismo mais avançado seria agora de mais difícil realização. Novamente estamos frente a um tema de difícil elaboração em poucas linhas. As condições que faltavam na Rússia para o desabrochar da revolução acabaram sendo um ponto positivo para sua efetivação. A Rússia, de base feudal e ainda um estado absolutista (czarismo) em pleno século XX, acabou sendo presa “fácil” das forças revolucionárias. Em poucas palavras, havia Estado, mas não havia sociedade civil, instituições da sociedade que detivessem o movimento revolucionário. E essa situação não era encontrada nos países de capitalismo mais avançado, onde despontavam instituições da sociedade civil em convergência com os interesses do Estado. Assim, não bastava tomar o Estado, como no modelo russo, mas também as instituições da sociedade civil, já de corte democrático. Frente a esse diagnóstico teórico absorvido por Gramsci, havia consciência de que a revolução seria de mais difícil execução nos países de capitalismo avançado, a começar exatamente pela classe operária. O desenvolvimento do capitalismo havia produzido uma divisão de trabalho dentro da própria classe operária, o que podia também ser visto como cisão em seu interior: de um lado, já perfilava uma aristocracia operária, composta de supervisores, com tendências muito mais reformistas; e, de outro lado, estava a grande massa operária propriamente dita, de tendência supostamente revolucionária. Assim, a suposta e desejada união da classe operária se mostrava bastante abalada, dificultando sobremaneira os ímpetos revolucionários. Outro aspecto da experiência russa também atraía o grupo de ativistas e pensadores italianos. Se a revolução russa havia acontecido em um país que não cumpria os requisitos pró revolucionários, a relembrar, sem uma classe operária expressiva e de consciência formada bem como uma burguesia bem estabelecida, também seria de se esperar que a Itália pudesse se encaixar nesse figurino. De qualquer forma, a Itália, ainda que sendo um país da periferia da Europa e do capitalismo avançado, tinha na sua região Norte um embrião bem formado de uma área de espírito e condições capitalistas. Por outro lado, manifestava profundas desigualdades regionais, com o Sul bastante atrasado, de base agrária. Ademais, o componente religioso tradicional na Itália conferia uma especificidade que conspirava contra qualquer movimento revolucionário. A Itália se mostrava, assim, como uma sociedade híbrida, apresentando componentes expressivos de um capitalismo industrial ao lado de regiões de base agrária, estruturado
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Figura 7: Mural na via Gramsci - Italia. Imagem: Carlo Pelagalli [CC BY-SA 3.0]
em situações típicas de dominação tradicional. A Itália não era a Rússia, mas também não era a Inglaterra, França ou Alemanha ou os Países Baixos. Gramsci, apesar de sua prisão em idade precoce e pelo longo tempo de prisão que tomou grande parte de sua idade adulta, construiu uma teoria bastante sofisticada e que ia além do que Marx e Engels haviam identificado no capitalismo do século XIX. Sem possibilidade neste espaço curto de abarcar a construção gramsciana, vale pontuar seus elementos centrais. O pensador e militante italiano pondera a necessidade de trazer outros elementos além daqueles ligados à economia, como elaborado por Marx e Engels, introduzindo elementos ligados à cultura, à religião, a questões sociais muito presentes na sociedade italiana como também nas nações de capitalismo avançado. O autor visava a entender de forma mais profunda como proceder para realizar a revolução de base proletária. Assim, prega a necessidade da construção da hegemonia, preparar a classe operária para ser protagonista, indo além da compreensão, ou do atendimento das questões que giram em torno do ambiente de trabalho. Do ponto de vista marxista, isso representa uma outra revolução dentro deste pensamento até então focado nas relações entre capital e trabalho, entre capitalistas e trabalhadores, entre a classe burguesa e a classe trabalhadora. Em outras palavras, Gramsci apontava que a realização da revolução pressupunha todo um trabalho de base. Na questão do Estado, este se comportava baseado em dois conceitos: força e hegemonia. Força correspondia ao uso de todo o aparato repressivo contra a classe trabalhadora (prisões, polícia, justiça) e hegemonia, de percepção mais difícil e sutil, consistia em espalhar os valores da classe dominante por sobre a classe dominada no sentido de cooptá-la, trazê-la para seu lado de modo a perder os ímpetos revolucionários. Voltaremos a esse assunto mais adiante.
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Figura 8: Carta comercial de 1929 danificada em acidente de avião- Wikimedia Commons
O Estado de Bem-Estar Social Feita essa breve digressão sobre as proposições teóricas e práticas de base marxista, voltamos agora ao processo histórico tal como se deu nos países de capitalismo mais avançado da época (começo do século XX). O Estado Liberal dura enquanto atende aos interesses das classes dominantes, agora fortemente assentadas nas atividades industriais, enquanto essas classes conseguem administrar as pressões da sociedade, mais especificamente do operariado, bem como suas contradições. E como se sabe bem, esse Estado Liberal, na sua forma mais original, vem a óbito em 1929, marcado pela famosa quebra da Bolsa de Valores de Nova York, indicando que o arranjo liberal de Estado e sociedade havia se esgotado. Instalou-se uma crise que assumiu ares de uma crise generalizada, que se espalhou pelo mundo integrado ao Capitalismo, mas com repercussões em toda uma cadeia ligada ao capitalismo, ainda que de forma subalterna. A crise atinge em cheio os Estados Unidos, já o país líder do ponto de vista econômico da ordem mundial, gerando desespero, desemprego, insegurança. A crise, porém, tinha um componente mais profundo, pois abalava a noção que o capitalismo tinha encontrado o melhor caminho para a sociedade, que daria as respostas em termos de provisão de bem-estar, de crescimento econômico, de oportunidades de emprego. A crise de 1929 ensinou uma dura lição, a de que não existem receitas prontas e infalíveis nem arranjos duradouros, dada a mudança nos processos históricos. Instalada a crise e constatada sua resiliência, inicia-se, relutantemente, uma busca de um
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“A longo prazo, todos estaremos mortos.”
Figura 9: John Maynard Keynes. Graffiti em locais não identificados de Lisboa. Imagem: Wikimedia Commons
novo modelo do Estado. Diante das dificuldades de o mercado se autogerir, novamente recorre-se ao Estado, só que não mais aquele Estado Absolutista e detentor de tanto poder concentrador, mas um Estado que leva em conta a presença de novos stakeholders, que resultam do desenvolvimento não só das forças produtivas como também dos movimentos populares, dos movimentos organizados da sociedade civil que, agora, têm que ser levados em conta no jogo político. É oportuno lembrar que, do final do século XIX e adentrando XX, ocorre, como vimos acima, a formação dos partidos políticos, dos sindicatos, a disseminação do voto e da educação. Assim, as massas populares, até então desorganizadas, começam a clamar por direitos políticos e sociais, como a regulamentação da jornada de trabalho. Então das décadas finais do século XIX às primeiras do século XX, ocorre a constituição da sociedade civil organizada e de movimentos políticos e sociais que vão pressionar o Estado. A saída encontrada para a crise se deu quando alguns países, França, Noruega e mais adiante os EUA, com Roosevelt e o famoso New Deal, e posteriormente a Inglaterra, começam a implantar políticas públicas de geração de emprego no sentido de combater o forte desemprego ocorrido. E, em 1936, a saída para a crise é formulada teoricamente por Keynes, que desde anos anteriores clamava pela necessidade da intervenção do Estado, uma intervenção completa, distante de qualquer coisa que pudesse ser chamada de socialismo, uma intervenção do Estado para gerar empregos e salvar o capitalismo.
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Keynes perfilava no campo liberal, mas tinha conhecimento e percepção de que o arranjo liberal original estava esgotado, a noção ou conceito de equilíbrio não se sustentava mais nesta fase de capitalismo mais avançado, e que era necessária uma intervenção do Estado para salvar o capitalismo. Vencida a crise, os parâmetros básicos dessa sociedade capitalista, a competição, a busca do interesse individual, o ganho, os lucros voltariam a ditar as regras do jogo. A intervenção preconizada por Keynes era tópica, mais no ponto, devendo ocorrer em momentos de crise. Vencida esta, o Estado se retiraria, reassumindo os parâmetros da competição, da liberdade dos agentes, mas estes, agora, estariam debaixo da vigilância do Estado. Só que esse fundamento da política keynesiana não se verificou. O Estado não se retirou, ao contrário, permaneceu. Terminada a 2ª Guerra Mundial, a intervenção do Estado, que se consubstanciava em políticas sociais (investimentos em saúde, educação, infraestrutura para gerar empregos), se manteve por conta da organização social das massas e das classes médias. Assim, a intervenção do Estado, consubstanciada na provisão de bens com conteúdo social: habitação, transporte, saúde, educação, se manteve, conformando o que veio a ser chamado de welfare state, ou Estado de bem-estar social. O novo modelo de Estado representava uma mudança significativa no processo histórico. Por um lado, ao lembrar que no capitalismo a lógica é a de cada agente econômico defender o seu interesse, pressuposto do individualismo, da competição, o Estado teve que intervir no sentido de representar os interesses coletivos. E esses interesses coletivos não se referem apenas a setores das populações carentes, mas também aos interesses das classes capitalistas como um todo para não haver o naufrágio do capitalismo. Por outro lado, o welfare state, de base essencialmente reformista, se afastava dos ideais socialistas inspirados em Marx e Engels, produzindo impactos fortes nos processos revolucionários de base marxista, que perdem seu ímpeto em função de determinadas necessidades da classe trabalhadora estarem sendo atendidas, mesmo dentro da ordem capitalista. Implantado o welfare state em alguns países europeus, com o Estado assumindo uma parcela de responsabilidade na provisão de bens sociais, é criado, então, o chamado “círculo virtuoso Keynesiano”, em que há um acordo entre capital e trabalho sob a égide do Estado. Não dá para se falar em um único modelo de Estado de Bem-Estar Social, visto ter este assumido configurações diferenciadas de acordo com a sociedade onde foi implantado. Assim, o welfare inglês é diferente do alemão
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bem como daquele implantado nos países escandinavos que despontam como sociedades de forte carga welfarista. Praticamente durante os 30 anos após o fim da guerra, esse acordo tem sucesso, alcança êxito. Porém, como observado anteriormente, não existem receitas infalíveis nem perenes, pois, a partir de meados dos anos 70, sucedem-se novas turbulências no sistema econômico. Com o avanço do capital e do capitalismo monopolista, a entrada de novos stakeholders, como o Japão e tigres asiáticos, vai desequilibrar a ordem criada nos anos 30/ 40 e institucionalizada no pós-guerra, o que leva ao diagnóstico da falência do Estado do Bem-Estar Social. A crise desse Estado, surgida em meados da década de1970, é atribuída, entre outros fatores, à agenda sobrecarregada, o que significa que as pressões sociais – por melhor educação e saúde – foram tantas e tão fortes que o Estado ficou incapacitado financeiramente de atender tantas demandas. Por outro lado, desenvolve-se uma crise interna dentro dos próprios sistemas capitalistas, principalmente premidos pela maior produtividade e custos mais baixos vindos dos países emergentes do Oriente. Ocorre, como resultado, uma crise fiscal em função de o Estado não conseguir arcar com todos seus compromissos em um quadro de receitas declinantes.
Saiba mais Os opositores conservadores do New Deal. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4182037/mod_resource/content/1/2-Os_ opositores_conservadores_do_New_Deal.pdf Estado do Bem-Estar Social: Padrões e Crises http://www.iea.usp.br/publicacoes/textos/fioribemestarsocial.pdf
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Figura 10: Ronald Reagan e Margaret Thatcher - Public Domain. Foto: wikimedia
O Estado neoliberal Essa nova crise, partindo dos países de Estado welfarista, mas também os EUA, assume ares de uma crise sistêmica se derramando por todo o sistema capitalista internacional. Constatada e reconhecida a crise, tem início uma pregação de retorno aos ideais liberais. Isso vai se concretizar com a eleição de Margareth Thatcher na Inglaterra, Ronald Reagan nos Estados Unidos, Helmut Kholl na Alemanha. Thatcher, em particular, representa um marco do pensamento neoliberal, baseado nos ideais do liberalismo clássico, adequado aos novos tempos, onde o mercado é tido como o melhor regulador das interações econômicas. Argumenta-se que o Estado é hipertrofiado, é grande demais, gigantesco, perdulário, não tem sensibilidade para gastos, gasta em demasia. Para sustentar esse Estado, é necessária uma estrutura de impostos pesada, o que agrava para os contribuintes, tanto os cidadãos quanto as empresas. Frente a isto, a receita preconiza um novo tipo de Estado, configurando um Estado mínimo, pregando a desestatização através de privatizações, ficando o Estado restrito a atividades básicas onde predomina o conceito de regulação dos agentes, que agora respondem pelas atividades de infraestrutura e de âmbito social. Um Estado de caráter mais regulador que interventor. Menciona-se acima a primeira ministra inglesa, Margareth Thatcher, como a precursora da experiência neoliberal, mas o estatuto teórico desta corrente havia sido elaborado durante o período da Segunda
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Guerra Mundial por Frederick Hayek, economista alemão que migra para a Inglaterra fugindo do nazismo. Na concepção do teórico, qualquer intervenção do Estado representava um passo, um caminho para a servidão. Entre os estados intervencionistas, o autor arrolava experiências bastante diferenciadas, entre as quais o nazismo, o comunismo (soviético até então) e o sistema inglês de base welfarista. É interessante notar que Hayek também incluía o welfare state, mesmo tendo este, obviamente, mantido os parâmetros democráticos do Estado liberal. Para ele, no entanto, qualquer intervenção representava a compra de um bilhete para a servidão. No seu entender, o melhor arranjo ainda seria o do jogo das forças de mercado, mantidas livres para perseguir seus interesses e, consequentemente, gerar o melhor resultado para a sociedade. Qualquer intervenção do Estado desviaria o sistema capitalista de sua lógica, produzindo arranjos carregados de interesses que levariam à servidão. É interessante notar que Hayek manteve-se fiel ao seu ideário mesmo não tendo sido realizado de imediato. O economista e um grupo de entusiastas de suas ideias mantiveram reuniões dentro do que se chamou Sociedade de Mont Pèlerin, que realizava reuniões anuais nesta cidade da Suíça. Somente com a crise dos meados dos anos 70 é que as ideias de Hayek são colocadas em prática na experiência inglesa sob o comando de Thatcher. Na verdade, esse Estado neoliberal nesses países mais desenvolvidos não se realizou na forma e intensidade que se propunha, pois se deparou com uma sociedade organizada que resistiu, impedindo o desmanche do welfare state. É verdade que, na implantação da nova ordem, ocorreu, em parte, a quebra do poder dos sindicatos e de movimentos organizados, não se conseguindo, no entanto, abolir o welfare state, como pretendido. Aliás, por conta da resistência da sociedade, o gasto social nesses países desenvolvidos é retomado após o impacto inicial. O neoliberalismo acaba vingando mais em países da semiperiferia ou da periferia capitalista através do instrumento das privatizações, abrindo espaço, em muitos casos, para empresas de países de capitalismo avançado. O Estado Neoliberal tornou-se consenso ao longo dos anos 80, disseminandose também pelos países do leste europeu após a queda do Muro de Berlim. No entanto, é no Chile que se dá a primeira experiência do neoliberalismo, em 1973 e 74, dentro do arcabouço da ditadura que favorecia as condições de implantação de medidas restritivas e antissociais. Essa experiência, entretanto, não teve a repercussão daquela desenvolvida na Inglaterra por ser o Chile um país da periferia do sistema capitalista. Na Inglaterra, onde
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havia um movimento social organizado, sindicatos estruturados, uma tradição histórica de democracia, os parâmetros do neoliberalismo não são cumpridos em sua plenitude. É inquestionável que o neoliberalismo representa uma mudança de porte no rumo que vinha tomando a ordem social. No entanto, nos anos 1990, ao ideário do neoliberalismo se soma a ideia da globalização dos mercados, principalmente financeiros, turbinados pelas novas tecnologias de informação e comunicação, as TIC, assentadas no computador, na internet e nas redes sociais. Também aperfeiçoamentos na infraestrutura de transporte, com a tecnologia dos containers, que reduziu custos de logística, fomentando o transporte e circulação de mercadorias no âmbito internacional. Isto tudo e ainda mais o comércio eletrônico. Do ponto de vista conceitual, fica difícil definir o que seja globalização, que apresenta um conceito gelatinoso. Na verdade, corresponde a uma nova etapa do processo de acumulação do capital que se dá de maneira ainda mais acentuada do que antes no âmbito de um sistema mundo, onde todos os países são incorporados ao sistema capitalista, ainda mais depois da derrocada dos países do Leste europeu e do desmantelamento da União Soviética. O conceito de globalização tenta passar uma imagem de um processo avassalador, do qual nenhum país poderia ficar de fora, o que pressupõe abrir suas fronteiras para o comércio (melhor dizer trade) internacional. Por ter essa visão abrangente, também tem sido chamado de mundialização. A globalização produz um novo arranjo político, levantando a questão do risco do fim do Estado Nação frente ao poder exacerbado de poucas empresas transnacionais. Esses temores, tão comuns no final do século XX, acabaram não se concretizando, embora não seja nada desprezível o poder dessas grandes corporações multinacionais ou supranacionais. Não se concretizaram porque, apesar da dominância cada vez mais presente da economia na ordem mundial, os aspectos culturais que definem uma nação, tais como língua, religião e outros, que levam em geral a questão do nacionalismo, têm um peso grande no sentido de contra restar o ímpeto da globalização, diga-se, das forças econômicas. Uma apreciação crítica da globalização aponta para duas características, entre outras. Uma delas se refere ao fato de que a globalização não é simétrica, mas assimétrica. Em outras palavras, não se cumpre um jogo de ganhaganha. Nações ganham e nações perdem, nações são privilegiadas abrindo mercados enquanto outras, incapazes de suportar as pressões externas,
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sucumbem, perdendo mercados antes ocupados por empresas nacionais. Outra característica crítica da globalização consiste em seu caráter de ser uma nova forma de colonização, feita a partir de produtos, forma de consumir, estilos de vida copiados de contextos de países dominantes. Nesse sentido, fala-se de “americanização do mundo” ou até de “mcdonaldização” do mundo. Vale mencionar que uma forma de fazer frente a essa marcha avassaladora dos países dominantes, mormente os EUA, mas não só, constituiu-se na formação de blocos econômicos, como a Comunidade Europeia, ou, em menor escala, o Mercosul. Deixando este arranjo de lado pelos pífios resultados alcançados, a experiência europeia também tem mostrado problemas sérios, entre outros, a recém saída da Grã Bretanha, indicando como fica difícil costurar interesses comuns quando existem diferenças apreciáveis entre os participantes, quer do ponto de vista econômico, quer do ponto de vista cultural, religioso, etc.
Saiba mais Mercosul http://www.mercosul.gov.br/saiba-mais-sobre-o-mercosul Tigres Asiáticos http://www.scielo.br/pdf/rae/v33n2/a11v33n2.pdf
Um Estado à espera de um nome Nas primeiras décadas do século XX, a Alemanha emergiu das sombras para buscar um espaço no cenário internacional dos países dominantes; se nos anos 1970/80 a emergência dos tigres asiáticos e o Japão representaram uma redefinição dos centros de poder no mundo, no começo do século XXI, desponta a China como nova potência, não se podendo afirmar taxativamente o que vai acontecer. E se isto vai ter desdobramentos no tipo de Estado a ser construído. Apesar de todo crescimento exibido, a China ainda representa um enigma a ser decifrado. Suas taxas robustas de crescimento econômico que tem se mantido ao longo de anos debaixo de um sistema de governo
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até certo ponto exótico, chamado, por falta de outro termo, de capitalismo de Estado, uma mistura de sistema econômico capitalista com um Estado ainda centralizado e autoritário de corte comunista. Pairam fortes dúvidas sobre quanto tempo esse arranjo vai resistir. A expansão de uma classe média que pode clamar por maiores liberdades democráticas pode fazer ruir todo esse sistema até agora aparentemente inexpugnável. Se em momentos anteriores fomos relutantes em fazer certas afirmações, dada a exiguidade de espaço para desenvolver argumentos, no momento de falar sobre a China, a cautela tem que ser maior, pois se “está trocando o pneu com o carro em movimento”. Além de não se conhecer o suficiente como os processos sociais efetivamente se dão na nação chinesa, muitos deles ainda não estão maduros e, portanto, não se sabe o rumo que vão tomar. Mesmo que a presença da China possa causar muito ruído, a hegemonia americana ainda parece consolidada. A influência dos EUA foi construída ao longo do século XX e se derramou pela América Latina, Europa e até pelo Japão. Foi transmitido um modo de vida americano, constituindose, como dito acima, uma americanização do mundo muito assentada em valores não exatamente materiais, como a música, o cinema, os valores de comportamento. Essa construção tem se mostrado sólida e, ao que parece, de difícil remoção ou substituição. O esgotamento das experiências socialistas, com a China como melhor exemplo (ainda que com um Estado centralizador como nos modelos socialistas), tem transformado o mundo em uma paisagem ideologicamente quase monocórdica. Mudanças apreciáveis no rumo que o capitalismo tem tomado ainda são difíceis de identificar, mas a robotização em marcha, como anteriormente o telégrafo, a máquina a vapor e, posteriormente, a eletricidade, bem como a televisão, os meios de transporte mais avançados, podem conformar um mundo que ainda não conseguimos imaginar. Menos ainda conseguimos visualizar o tipo de Estado que se possa construir em um futuro breve. O que parece certo, pois está sendo desenhado assim, é um mundo multipolar com dois ou três centros de poder, quais sejam, os EUA, a China, a Europa (em decadência) e, talvez, um quarto, a Rússia. A força da globalização, o que seja que isso quer dizer, também parece assentada, entendendo-se um sistema de capitalismo mundial onde o comércio internacional tem um peso decisivo. Isso tudo nos leva a refletir sobre qual será o espaço reservado para as nações não líderes desse sistema mundo, o que nos puxa para a discussão do Brasil. Mesmo que esse espaço para qualquer nação não líder possa ter
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se reduzido, mais para umas menos para outras, ainda parece existir um espaço não desprezível dadas as especificidades históricas de cada nação. Assim, ainda parece pesar de maneira não desconsiderável os aspectos da cultura, da religião, da língua, dos padrões de comportamento que marcam e definem cada nação. Não desprezando o poder que os aspectos econômicos têm sobre cada nação, estes ainda não são suficientes para transformar as nações periféricas em meros satélites das centrais. Evidentemente toda essa discussão é bastante polêmica, difícil, nada pacífica e fica para teste da História. Antes de encerrar o conteúdo deste módulo, é interessante trazer as ideias colocadas por dois autores contemporâneos Acemoglu e Robinson (2012), com sugestivo título “Por que as nações fracassam”. Se Adam Smith se debruçava em 1776 sobre “A Riqueza das Nações”, esses autores, dois séculos e meio depois, ainda abordam o mesmo tema. De uma maneira bastante sintética, atribuem papel central às elites dirigentes, trabalhando com duas categorias básicas: inclusivas ou não inclusivas, ou extrativas. Os autores desenvolvem a concepção teórica dentro dos parâmetros da sociedade capitalista, de mercado, mas onde as elites têm um papel fundamental na decisão dos rumos das nações. A forma como as nações constroem instituições sólidas pode ser responsável pelos rumos que as nações tomam e, a depender do enraizamento das instituições, pode ser muito difícil deixar um paradigma para mudar para outro, dentro dos conformes da Teoria do Path Dependence1. Em outras palavras, entender como as nações são o que são, como chegaram à situação que estão, vai depender muito de examinar a trajetória traçada e desenvolvida, mormente pelas elites dirigentes.
Material complementar 1) O Príncipe - Nicolau Maquiavel (Áudio Livro), https://www.youtube.com/watch?v=QilKhZrOHRI 2) Uma simulada conversa entre os pensadores: Karl Marx e Adam Smith, mais influentes dos últimos séculos. Ressaltando sempre que, em determinados aspectos, as teorias de ambos os teóricos se complementam: https://www.youtube.com/watch?v=v_NQsFaB7UE 3) Neste vídeo, o economista ganhador do prêmio Novel, Friedrich A. Hayek, fala sobre o seu livro mais famoso, O Caminho da Servidão. O livro é um importante clássico no período PósSegunda Guerra: https://www.youtube.com/watch?v=zj72RQOj4T0
1 Para aprofundar seus conhecimentos sobre a Teoria do Path Dependence consulte: https://periodicos.fclar.unesp.br/perspectivas/article/view/4978
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Figura 11: Primeira Missa. Imagem: Victor Meirelles [Public domain]
35 Unidade II O Estado no Brasil
Toda a construção teórica e histórica discutida no Módulo I se aplica aos países europeus mais desenvolvidos e aos Estados Unidos em geral. Quando se pensa em Brasil, esses modelos teóricos têm aplicação mais restrita dada ao nosso processo histórico que possui especificidades bem distanciadas desses modelos. As características do processo histórico brasileiro repousam fundamentalmente na colonização portuguesa, um país que, à época do “descobrimento”, tinha uma importância, mas esta vai gradativamente se reduzindo, levando Portugal para uma posição secundária, atrasada mesmo, no contexto europeu. Isso vai reverberar na colonização do Brasil. Outra característica se encontra na escravidão, longa e intensa. O Brasil foi o país que mais trouxe escravos da África. Em outras palavras, foi o país que mais centrou sua economia na mão de obra escrava negra, após uma tentativa frustrada de escravizar o indígena. Uma característica decisiva na sociedade construída no Brasil se localiza no sistema patrimonialista herdado de Portugal, que se implanta no Brasil e ganha raízes sólidas e permanentes no território nacional. Para entender o patrimonialismo, temos que recorrer ao sociólogo alemão Max Weber, que teorizou a respeito. Weber foi um grande estudioso do Estado Moderno, já em sua faceta contemporânea, recorrendo à análise histórica onde aspectos referentes à cultura e religiões têm peso em sociedades arcaicas. Ele criou três categorias como tipos de dominações
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legítimas para entender o poder, o Estado. A primeira é a tradicional que se assenta na tradição, no hábito, no costume. Nesse arranjo, os quadros administrativos são formados em conformidade às tradições, mantendo a ordem existente. Um exemplo encontra-se no respeito ao mais velho, a gerontocracia. Ainda nos dias de hoje, encontram-se sociedades fortemente assentadas na tradição, como as indígenas, onde o líder da tribo é o mais velho, o mais sábio, e não o mais competente do ponto de vista econômico, como nas sociedades modernas e industriais. Também sociedades onde a religião tem um peso considerável na conformação da ordem social, como sociedades do Oriente Médio, lastreiam-se em formas de dominação tradicional, no caso, constituindo teocracias. No entanto, encontram-se traços de sociedade tradicional mesmo em nações avançadas, como o Japão e a Inglaterra. Weber (1981) aponta que as sociedades ocidentais modernas, em geral, são baseadas fundamentalmente na razão, na racionalidade, enquanto a sociedade tradicional se baseia em outros tipos de valores. A segunda forma é a dominação carismática, que se aproxima da tradicional, assentada no carisma do governante. Os subordinados percebem no líder condições especiais de bravura, santidade, de heroísmo; não possuindo esta forma a razão como seu substrato. Ou seja, não é uma dominação de inspiração racional. Neste caso, o líder escolhe seus quadros administrativos no conjunto de seus seguidores, entre os que comungam dos mesmos ideais, sejam ideológicos ou religiosos. Não são obedecidos critérios de mérito na seleção desses quadros. Para Weber (1981), a dominação carismática teria vida curta e não se propaga, pois o carisma não se herda. Assim, a dominação carismática tende a uma dominação tradicional ao longo do tempo. Weber, então, contrapõe a essas duas formas, a sociedade atual, fundamentalmente industrial, não diferenciando entre capitalista e socialista. Ambas conformam sistemas complexos e, assim, diz o sociólogo, requer uma forma de dominação, a terceira, que ele vai chamar de burocrática, ancorada em um sistema burocrático moderno baseado no mérito, na competência, na formação e qualificação especifica para exercer o cargo para a qual é indicada. Vamos revisar? Dominação Tradicional – assentada na tradição, hábitos e costumes. Dominação Carismática – ancorada no carisma do governante. Dominação Burocrática – baseada na qualificação para o cargo.
Unidade II
Weber (1981) afirma que agora é o império da lei, o funcionário público estatal está regido pela lei, pela competência, pelo mérito, não é mais dono do cargo, situação que adentra o feudalismo até seus estertores, quando o servidor era dono do seu cargo e podia vendê-lo. O Brasil guarda resquícios disso na figura dos cartórios, herança da sociedade tradicional que muito nos caracteriza. Pesquisa recente da Folha de São Paulo (DATA) revela que, se os cartórios fossem uma empresa, ocupariam a 30ª posição em termos de faturamento, o que indica como uma atividade não produtiva ocupa posição de tanto destaque na realidade brasileira. Os cartórios produzem carimbos e papel, atestam assinaturas. Assim, Weber (1981) postula que as sociedades modernas, complexas por definição, devem ser regidas pela racionalidade, demandando uma nova forma de dominação, longe da tradicional e da carismática, mas burocrática, legal, baseada na lei, onde a organização do Estado funciona na forma definida pela lei, assentada no imperativo da racionalidade, da razão. A dificuldade de entender o Brasil bem como, e mais principal, superar o atraso que nos marca reside na existência de uma sociedade híbrida onde se misturam elementos de dominação tradicional com elementos de dominação racional, legal. Observamos acima que Japão e Inglaterra (entre outros) configuram essa mistura de modernidade e tradição, mas a tradição aparece como residual. No caso brasileiro, a dominação tradicional não é um resíduo, mas parte constitutiva do arranjo político e econômico que nos rege.
O Patrimonialismo Patrimonialismo é uma das formas do domínio tradicional (sendo as outras duas o sultanismo* e o feudalismo**), conforme aponta Weber (1981), entendido como uma forma em que não há distinção clara entre o público e o privado, havendo uma confusão entre as duas esferas que se confundem, se fundem, se sobrepõem. A nação, debaixo do manto do patrimonialismo, torna-se uma extensão do palácio do soberano. Essa estrutura que se mantém e permanece ao longo dos séculos, ainda que sofrendo modificações e adaptações aos novos tempos (industrialização, novas tecnologias), produz efeitos desastrosos, como, por exemplo, a ausência da noção de cidadania, que no modelo clássico nasce de movimentos e lutas no âmbito da sociedade civil.
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Nesse sistema patrimonialista, a figura da cidadania não se coloca, não se impõe, uma vez que o Estado é concentrador e inibidor de movimentos no âmbito da sociedade. O poder está concentrado no Estado, na figura do governante, seja um monarca ou um presidente. Qualquer ato que tenha origem no Estado normalmente se reveste de um caráter de doação, prática que atravessa os séculos. Um exemplo típico encontra-se na legislação trabalhista, que não resulta de lutas populares, de pressão da sociedade, mas de uma concessão do Estado, ainda que tivesse um perfil modernizador. Essa é uma das expressões do poder concentrado no Estado. Raymundo Faoro (1958), no seu livro “Os Donos do Poder”, assevera que: “O Estado português atravessa o oceano e desembarca no Brasil”. Em outras palavras, começamos pelo Estado e a partir deste vai ser criada uma sociedade, mostrando o protagonismo do Estado, sendo este de corte patrimonialista. A sociedade que vai se formando mostra-se tributária, dependente desse Estado, com pouca margem de se tornar uma sociedade autônoma, novamente se distanciando do modelo clássico das democracias onde o papel da sociedade civil é decisivo na construção da Nação. Evidentemente, no caso do Brasil, a escravidão, e sua longa duração, reforçou esse sufocamento da sociedade civil, dado que os escravos não eram considerados cidadãos.
Saiba mais AS DUAS TEORIAS DO PATRIMONIALISMO EM MAX WEBER: do modelo doméstico ao modelo institucional https://cienciapolitica.org.br/system/files/documentos/eventos/2017/04/duas-teoriaspatrimonialismo-max-weber-1070.pdf
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Figura 12: Independencia Brasil. Imagem: François-René Moreau - [Public domain]
O Estado pós Independência Alguns fatos históricos ajudam a entender o Brasil, já tomando o país como uma nação independente. A independência é proclamada a partir do Palácio, ou seja, nas entranhas do regime e do Estado e feita por um português, e não por um brasileiro. A independência que é bem-sucedida é aquela organizada e realizada dentro das estruturas de poder. As que foram empreendidas pela sociedade civil, como a Inconfidência Mineira (entre outras), não lograram êxito porque foram sufocadas pelo poder centralizado. Ao nos tornarmos independentes, mantivemos a escravidão bem como o regime monárquico quando outras nações, mesmo os vizinhos da América Latina, já empreendiam a república. Quando da Independência, o país até parecia que ia tomar o rumo das nações mais avançadas onde predominava o regime liberal e a democracia moderna dava os seus primeiros passos. Nesse sentido, o Imperador convoca uma Assembleia Nacional Constituinte de modo a elaborar a constituição da nação recém independente. Porém, no decorrer dos seus trabalhos, o Imperador não gosta da direção que estava sendo tomada pelos constituintes e dissolve a Assembleia. Para seu lugar, oficializa um grupo de sua confiança para elaborar a Constituição. O ato revela uma demonstração de patrimonialismo e de centralização acentuada de poder, o que ia de encontro a qualquer postulação democrática. Essa decisão não se mostraria isolada, mas indicava um viés de autoritarismo, de dominação, a partir de uns poucos instalados no poder.
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Ao longo do Brasil Império, mantivemo-nos à margem do processo de industrialização já em curso nos países europeus e nos Estados Unidos. A escravidão foi mantida até o fim da possibilidade de extração da última gota de suor dos escravos, o que mantinha o país no conjunto dos países atrasados, não civilizados. A abolição da escravidão se torna um movimento da sociedade civil com a participação de escravos, de libertos e de parte das elites, incluindo os negros, que combatiam o regime escravagista. No entanto, os créditos parecem ter ido mais para os ocupantes do poder, no caso a Princesa Isabel, do que para aqueles que efetivamente pressionaram e fizeram a libertação. Por outro lado, outro componente tem que ser trazido à cena, qual seja, nunca se implantou uma política, tanto nos estertores do Império como na nascente República, de apoio aos recém libertos. Se durante o Império se envergonhava do fato do país ainda ser escravagista, na República não se tomou medidas que promovessem, melhorassem a condição dos ex escravos, como políticas educacionais e de reforma agrária para garantir terra para as populações agora libertas, em um país essencialmente agrário. Em outras palavras, um traço que o Brasil vai exibir está na manutenção de estruturas conservadoras, tradicionais, mesmo quando se dá um salto histórico.
O Estado na República A chegada da República também assumiu o mesmo figurino da Independência: foi feita de dentro das estruturas do Estado, obra dos militares. A proclamação propriamente dita expõe um fato que caracteriza bem o que estava se passando, o povo assiste a tudo “bestializado”, pois não sabia o que aquilo representava, não tinha noção do que estava ocorrendo, não percebia a importância daquele movimento, dado que foi sempre marginalizado de qualquer iniciativa provinda das elites dominantes. E esta foi a tônica da República, deixar de fora o povo. Aliás, uma característica fundamental e decisiva da República deve ser apontada, que é a filiação dos republicanos aos ideais do Positivismo. Enquanto corrente filosófica, o Positivismo, desenvolvido na França por Auguste Comte, encontra um grande número de seguidores no Brasil tanto nos meios civis como militares, com intensidade nestes. O que pregava o Positivismo, enquanto corrente política? Defendia o Positivismo o governo dos mais ilustres, dos mais capazes, visualizava que a dominação dos
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Figura 13: Senado no Rio de Janeiro [1892], Imagem: Wikimedia Commons
militares e dos religiosos havia se esgotado e sinalizava que a sociedade do futuro seria dos industriais, dos homens de negócios e dos homens de saber. Se tinha na visualização da industrialização um conteúdo progressista, por outro lado, entendia que as massas trabalhadoras tinham que ser tuteladas. O governo devia ser exercido pelos mais ilustres e capazes, afastando qualquer conteúdo democrático entendido como a participação das massas nos processos decisórios. Esse tipo de pensamento caía como uma luva no ideário das elites brasileiras apegadas a um pensamento e ação conservadores. A corrente positivista no comando nacional não passa de um mandato presidencial cumprido por Deodoro da Fonseca, que sofre um golpe, sendo substituído por Floriano Peixoto, ambos militares de alta patente. A experiência positivista se esgota com a retomada do poder pelas elites do café concentradas em São Paulo. A partir daí, o poder oscila entre mineiros e paulistas, sendo a sede do governo no Rio de Janeiro, capital da República (como antes do Império). A República, no entanto, não logra alçar o país para um processo de desenvolvimento mais acelerado de modo a ombrear o Brasil senão aos países mais desenvolvidos do mundo, já que o “gap” era imenso, mas, pelo menos, imprimir um ritmo de desenvolvimento que pudesse dar um rumo mais civilizado ao país. Continuaram predominando os interesses mais conservadores com a economia fundamentalmente assentada na riqueza do café. A industrialização continuava sendo vista com desconfiança ou pouco interesse por parte das elites governantes, sendo conduzida em grande parte pelos esforços de imigrantes, fundamentalmente italianos e alemães.
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Figura 14: Placa comemorativa da Revolta dos 18 do Forte. Foto: wikimedia
A década de 1920 vai se mostrar decisiva para os destinos do país. Premida pela falta de oportunidades em uma economia baseada em grande parte na exploração e comercialização do café, as emergentes classes médias começam a esboçar uma reação ainda difusa bem como outros setores da sociedade começam a se manifestar expressando sua insatisfação com o estado de coisas e a falta de perspectivas para uma mudança apreciável no país. Uma série de manifestações e criação de instituições refletem os ânimos existentes. Assim, em 1922, é criado o Partido Comunista Brasileiro (PCB), inspirado no êxito da revolução russa de 1917, demonstrando a intenção de organização da classe operária segundo os parâmetros do marxismo, ao invés daqueles do movimento anarquista que havia marcado as primeiras décadas do século no âmbito operário. Este mesmo ano também assiste a experiência da Semana de Arte Moderna em São Paulo revelando a busca de outra estética, de base mais nacionalista nas artes. Mas, principalmente, esse ano é marcado pela Revolta dos 18 do Forte, quando um número de jovens oficiais resolve contestar o poder e sair em marcha do Forte de Copacabana em direção ao Palácio do Catete para tomar o poder. O movimento Tenentista, como ficou conhecido, mostrava insatisfação com os rumos do país, ou a falta deles, mas tinha um cunho elitista, desde que repudiava a participação popular. O poder passa a ser contestado por um segmento da elite no poder, os militares, sem qualquer busca de interação popular, confirmando um traço da trajetória nacional de afastamento do povo por parte das elites nas suas decisões. Debelada esta rebelião, em 1924 eclode outra rebelião, esta de maior porte, também
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de inspiração tenentista, desta vez em São Paulo, ocorrendo um confronto entre as forças rebeldes e as governistas que também logram debelar a nova rebelião. Os motivos das rebeliões eram a construção de uma nova ordem mais democrática, defendendo-se a lisura do processo eleitoral, até então eivado de vícios e fraudes. No entanto, a nova possível ordem a ser criada era impermeável ao elemento popular. Era uma dissidência das elites que objetivavam construir uma nova ordem por dentro da ordem existente. Face a essa situação, o período governamental de Artur Bernardes (1922/26) é conduzido quase ele todo debaixo do estado de sítio. Duas frases célebres espelham este período exatamente nos estertores da República Velha. O presidente Washington Luiz dizia que a questão social, que já vinha se manifestando, era uma questão de polícia, ou seja, dos instrumentos de repressão do Estado, e não de políticas sociais desse mesmo Estado. Outra frase chegando próximo a 1930 é a que afirma “façamos a revolução antes que o povo a faça”, expressando o temor que havia de insurreições populares bem como indicando que a revolução, ou melhor, as mudanças requeridas teriam que ser conduzidas pelas cabeças das classes dirigentes. A implantação da República, se promoveu algumas mudanças no cenário nacional, não conseguiu promover a ruptura que seria necessária, tanto que, passados 40 anos, já é chamada de República Velha, assentada em um Estado Oligárquico que se esgota, catapultado por suas próprias fraquezas. Este Estado foi montado e funcionou de acordo com os interesses, diferenciados, das oligarquias do café (SP, MG e Estado do Rio), açúcar (Nordeste), borracha (Norte) e fumo (Bahia). Como se percebe, a base econômica do país era essencialmente agrária, despontando, no meio urbano, atividades de comércio e uma indústria bastante incipiente e sofrendo todo tipo de preconceito em um país onde as elites dirigentes tinham assento na propriedade rural. Com a dinâmica lenta, mas ascendente da urbanização, começam a se manifestar as insatisfações de uma emergente classe média que não visualiza perspectivas de colocação em um mercado de trabalho bastante restrito.
O Estado a partir da Revolução de 1930 A chamada Revolução de 30 vem a dar um fim a esse estado de coisas, mas também só consegue ser bem-sucedida em alguns aspectos da
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gigantesca tarefa que seria elevar o país ao rol das nações civilizadas. É oportuno situar que o movimento, filhote do movimento dos tenentistas de 1922 e da rebelião de 1924, só acaba sucedendo por um lance fortuito, que foi o assassinato do candidato a vice-presidente, João Pessoa, na chapa de Getúlio Vargas, o candidato derrotado. Vargas soube explorar a emoção causada pelo fato e dar-lhe uma conotação política. Com isso, consegue levantar forças adormecidas praticamente em todo o país e conduzir, com ajuda dos militares, uma mudança no regime. Vargas, em parte, falava pelos interesses do Rio Grande do Sul, um Estado de base agrária também, mas que direcionava sua produção (charque) para o mercado interno para a classe trabalhadora, principalmente do Sudeste, já centro de gravidade da economia do país, tendo por base a produção cafeeira (como já havia feito anteriormente quando no tempo da escravidão), diferentemente das oligarquias acima mencionadas que direcionavam a maior parte de sua produção para o mercado externo. Ao lado desta característica, Vargas representava uma expectativa e uma esperança de mudança nos rumos da nação sufocada pela estreiteza dos interesses oligárquicos. Assim, Vargas também falava pelos interesses de segmentos de uma população urbana, com ênfase nas classes médias emergentes. Vargas toma o poder com o apoio dos militares e se torna o chefe do governo provisório, conseguindo se desvencilhar de todos os obstáculos remanescentes. Encontra reação na derrotada oligarquia do café sediada em São Paulo que, em 1932, levanta a bandeira da constitucionalidade. Vencida a reação paulista, Vargas atende os clamores dos derrotados, convocando uma constituinte que vai elaborar uma nova Constituição, a de 1934, a partir da qual ele se torna presidente eleito pelo congresso para o período 1934/38. Ao longo desse tempo, com habilidade, Vargas planta os requisitos para o desenvolvimento da indústria no país. Aqui cabe um registro fundamental para entender Vargas e o Brasil que vai ser construído a partir dele. Vargas vinha de uma formação positivista, muito comum no Brasil em certos setores da elite, civil e principalmente militar. Se a experiência no plano federal havia sido breve, apenas o primeiro mandato ao início da República, como vimos, o positivismo havia sido mantido no Rio Grande do Sul marcando os governos daquele Estado. Assim, havia uma prática de governo positivista e Vargas lança mão desse acúmulo de experiência quando chega ao governo federal. O positivismo havia chegado ao Brasil, como vimos, nas
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Figura 15: Constituição de 1934. Imagem: Wikimedia Commons
décadas finais do século XIX, tendo influenciado sobremaneira os militares e algumas elites civis, entre elas se encontrava a elite que governava o Estado do Rio Grande do Sul. Se a experiência positivista tem vida curta no cenário nacional, ela se desenvolve no Estado riograndino e depois chega ao poder em 1930 com Vargas. Desta forma, os parâmetros do pensamento positivista são acionados, a saber, a industrialização, associada ao controle, tutela da classe trabalhadora, em um posicionamento antípoda àquele dos movimentos de base marxista, e um Estado forte, assentado na presença de elites burocráticas preparadas para o exercício do poder. A chamada Revolução de 30 traz, assim, um componente novo no caldeirão das ideologias praticadas no Brasil, sofria uma forte e decisiva influência do Positivismo, conduzida por Getúlio, um positivista de mão cheia. O então presidente acaba efetivamente realizando suas intenções ao final de 1937, quando dá um golpe desembocando em uma ditadura, o chamado Estado Novo, nome que indicava a centralidade que o Estado tinha na vida brasileira. A intervenção que implantava a ditadura abortava as eleições previstas para 1938, que, aliás, já tinham candidatos postos, e abortava, principalmente, a incipiente democracia que estava sendo construída. Na verdade, o golpe revelava as intenções originais do movimento de 1930, que apresentava, ainda que implicitamente, um conteúdo autoritário, nada desconforme com o positivismo.
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O golpe foi justificado por Vargas pela necessidade de manter o governo afastado das pressões tanto da direita, com o fascismo, quanto da esquerda, com o movimento comunista que começava a ter alguma relevância no país. Na verdade, o pensamento político de Vargas se aproximava da primeira corrente com a qual mantinha afinidades. O epíteto Estado Novo emulava o Estado que havia sido instalado em Portugal por Salazar, poucos anos antes, de perfil nitidamente fascista. Torna-se necessário identificar algumas características básicas do positivismo para ver como ele se encaixou na alma das elites nacionais. O positivismo pregava o governo dos mais qualificados, apoiava a industrialização, que era sua característica progressista, mas tinha uma aversão às classes populares, ao povo, que deveria ser tutelado, mantido à margem das estruturas de poder. O receituário do positivismo defendia a ditadura, no sentido de um governo dos mais qualificados, mas só vem a acontecer plenamente no Estado Novo. O novo regime implanta os alicerces básicos de uma ditadura: encerramento da vida partidária, das atividades políticas em geral com o fechamento do Congresso, censura à imprensa, repressão e tortura e forte aparelho de propaganda do regime onde Vargas emerge como o “pai dos pobres”, e o caráter de um líder populista e carismático. Do ponto de vista econômico, o ideário positivista pregava a intervenção do Estado na economia, o que era reforçado pela existência entre nós de um capitalismo retardatário e dependente em relação aos centros do capitalismo mundial, EUA e alguns países da Europa. Não pode deixar de ser mencionada como talvez a maior realização do governo Vargas a construção da siderurgia no Brasil, com a construção da CSN em Volta Redonda. O Brasil dava um passo para a inserção na sociedade industrial da época, onde a siderurgia, a produção de aço, constituía um requisito fundamental. A construção foi viabilizada através do apoio do capital americano que financiou a grande obra, apoio este em um jogo onde o Brasil desempenhava papel estratégico do ponto de vista geopolítico na 2ª Guerra Mundial. Ainda no lote de realizações de Vargas, encontra-se a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), um aceno as classes trabalhadoras, urbanas, de que o regime se preocupava com elas. De acordo com o positivismo, também era necessário preparar o Estado, sua burocracia, para uma postura mais modernizadora da gestão pública, e isso levou à criação do DASP, Departamento de Administração do Serviço Público, em 1938, que visava
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implantar uma burocracia moderna, de perfil weberiano, para dar conta das novas atribuições que o Estado deveria assumir na vida nacional, quer no plano econômico, social ou na própria gestão governamental. Tal ação representava uma manifestação que impregna a cena nacional em diversos momentos, chamada de modernização conservadora, aparentemente uma ambiguidade. A modernização é conduzida e implantada por setores conservadores que sentem a necessidade de modernizar o país de acordo com o que tem de mais moderno no plano internacional, mas sem perder o controle dos parâmetros de uma sociedade conservadora e tradicional.
O Estado Democrático no Brasil – primeira experiência Com o término da 2ª Guerra Mundial, e com a condenação do fascismo e nazismo e das ditaduras em geral, Vargas não logra manter-se no poder e sofre uma intervenção dos militares que reconduzem a nação ao curso da democracia. Na verdade, houve também movimentos no âmbito da sociedade civil no sentido de contestar a legitimidade do governo ditatorial. A retomada da democracia, na verdade, a construção de uma primeira fase da democracia no país pedia um novo ordenamento jurídico, o que leva à Constituição de 1946, a realização de eleições ainda em 1945 com a legalização dos partidos políticos então proscritos, esta última ainda no final do governo de Vargas. A democratização promove alguns avanços, entre eles a consolidação da industrialização que se realiza em um novo governo Vargas ao início dos anos 50, agora dentro dos parâmetros da democracia e tendo como base a exploração do petróleo e a criação da Petrobrás bem como investimentos em energia elétrica. E toda sua política esteve assentada no princípio da intervenção do Estado para acelerar o crescimento, onde se destaca a criação do BNDE, banco criado para incentivar financiamentos públicos, principalmente para a indústria. Vargas, como é conhecido, não completa o seu período de governo porque comete suicídio. É interessante identificar as razões principais deste ato extremo, entre os quais se destacam um viés nacionalista de sua política, ainda que houvesse abertura para o capital estrangeiro, e acusações de corrupção em seu governo. Vargas não logrou administrar as pressões em um período muito conturbado e polarizado da vida brasileira.
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A industrialização, enquanto política governamental plantada por Getúlio Vargas, vai ser consolidada no governo JK que cunhou o lema “50 anos em 5”, o que denotava como o país, ou certos segmentos de suas elites, tinha consciência de como estávamos atrasados no cenário internacional. JK dá ênfase à indústria automobilística, o que demandava não só a implantação das fábricas em território nacional bem como a indústria de bens de consumo durável de base doméstica. Além disso, empreende a construção de uma nova capital, Brasília, colocando em prática um antigo projeto que iria promover a ocupação fora das margens do litoral e áreas próximas, abrindo principalmente uma nova fronteira agrícola. O financiamento desse projeto de Nação tão ambicioso contava com o capital nacional, o capital internacional e investimentos governamentais. A dimensão do empreendimento fugia da capacidade de financiamento, o que acabou levando a uma inflação expressiva, conduzindo o país ao FMI e refreando os ímpetos de crescimento do governo JK. Jânio Quadros se elege para suceder JK com uma plataforma de governo bastante conservadora e ambígua onde se destacava o combate à corrupção apontada por ele no governo anterior. Nota-se como o fenômeno da corrupção começa a ficar evidente e recorrente no setor público. Jânio, eivado de ambiguidades, não logra concluir seu mandato; aliás, mal havia começado, renuncia, assumindo o poder o seu vice, João Goulart (Jango), eleito em uma eleição separada (o vice também participava na eleição, sendo eleito diretamente). Jango, outra figura ambígua, tinha referenciais que causam receio nas classes dominantes. Em primeiro lugar, era o herdeiro natural de Getúlio, que havia sido removido do poder fazia poucos anos, mas que sobrevivia principalmente no identitário das classes populares. Em segundo lugar, e não era nada desprezível, havia uma suposta ligação sua contra os comunistas. De qualquer forma, um golpe é evitado e Jango assume o poder, tendo sido construída uma blindagem institucional do parlamentarismo, forma de governo totalmente alheia à tradição personalística brasileira. Jango vence esse óbice através de um plebiscito e assume o governo com plenos poderes presidencialistas. Começa a realizar o seu governo com ênfase em planejamento e na intervenção do Estado, vistos ambos com extrema desconfiança pelas elites por representarem um prenúncio de comunismo. Outra proposta de Jango, que era vista com o mesmo diagnóstico, era a das Reformas de Base, entre as quais se sobressaía a Reforma Agrária, tudo causando mal-estar e apreensão nos setores dominantes da sociedade brasileira, aí incluída também as ascendentes classes médias de base urbana,
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considerando que o país havia sofrido e sofria um acelerado processo de urbanização no pós-guerra. Outro fator de extrema importância para entender o desenrolar dos fatos reside no fato de que o período em tela é marcado pela Guerra Fria, tendo ocorrido em tempo recente o episódio dos mísseis em Cuba, o que fazia redobrar as atenções dos interesses americanos no continente latino-americano e, em especial, no Brasil. No plano econômico, estourava uma crise econômica resultante da inflação já desenhada no final do governo JK e que ainda não havia sido debelada; além disso, encontrava-se a estreiteza do mercado interno que não conseguia absorveras bases industriais implantadas, principalmente os bens de consumo duráveis em um país de forte desigualdade e concentração de renda. Com tudo isso junto, Jango não logra encontrar êxito nas suas propostas econômicas e políticas. Por outro lado, vastos setores da sociedade, assustados com as propostas janguistas, se organizam no sentido de derrubar o governo. E são bem-sucedidos, tendo por comando os militares associados ao latifúndio, a burguesia industrial e comercial, classes médias urbanas e a igreja tradicional, com apoio velado do capital estrangeiro, mormente americano.
Saiba mais! https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas2/ar tigos/DoisGovernos/ Constituicao1946 https://www.youtube.com/watch?v=7pxLebLIoBs https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/JK/artigos/Economia/PlanodeMetas https://www.youtube.com/watch?v=lRhjziew9xg
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O Estado Burocrático-Autoritário A curta construção democrática, iniciada em 1946, é interrompida por um novo golpe militar em 1964, vindo a configurar um Estado chamado de Burocrático-Autoritário, onde o elemento militar e sua ideologia assumem o controle da Nação. Os militares, cabeça do movimento, postulavam que a burguesia nacional não havia conseguido construir um projeto de nação, pois a inflação virava um fantasma que atemorizava, e que o Estado populista apresentava problemas derivados de sua essência, como a permissividade de gastos e a corrupção, que novamente era sacada como um argumento para destituir o governo eleito. Mesmo se dizendo portador de uma racionalidade que superava a da vida política tradicional, os militares, apesar de alguns avanços na área econômica, mostram sua incapacidade de construir uma nação assentada nos parâmetros da democracia, instalando a repressão contra sindicatos e líderes do governo anterior, implantando a tortura, além da censura à imprensa e mídia em geral. Um pouco mais adiante, quando ainda pairavam dúvidas sobre qual seria o alcance do novo regime, os militares acabam com os partidos existentes, criando um sistema bipartidário com o partido da situação (Arena) e um partido da oposição (MDB), este mantido sob estreita vigilância. Após cassações iniciais de políticos antagonistas da nova ordem, os militares voltam-se também contra líderes democráticos sem qualquer viés esquerdista e contra alguns de seus apoiadores originais, promovendo um total isolamento da sociedade. O Estado burocrático-autoritário tinha como premissa a instalação de uma burocracia profissional fortemente ancorada em quadros trazidos da corporação militar, principalmente para ocupar cargos de direção nos ministérios e nas empresas estatais, ou seja, o regime militar isolava os principais centros decisórios da presença do componente político, ainda que este já houvesse sido expurgado por cassações de políticos não simpáticos ao regime. A nova estrutura de poder ousou inovar no sentido de criação de uma ditadura onde o congresso funcionava durante todo quase o tempo (diferentemente do Estado Novo), evidentemente debaixo de forte censura e ameaça a qualquer transgressão da ordem autoritária imposta. Ademais, não havia um único ditador, sendo o governante escolhido através de eleições indiretas. Do mesmo modo, as eleições para governadores, prefeitos de capitais e cidades consideradas áreas de segurança nacional
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foram proibidas, ocasionando a ausência da política na vida dos cidadãos. Do ponto de vista econômico, os governos militares enfrentam a recessão que havia se instalado em 1962, mas, com políticas de contenção de reajustes salariais, o chamado arrocho salarial, conseguiu debelar a inflação e promover a retomada do crescimento econômico.
que foi usado e ativado pelos militares para mostrarem sua competência
No entanto, durou pouco este idílio, pois o choque do petróleo de 1973, e outro posteriormente em 1979, expuseram as fragilidades do país do ponto de vista econômico e, principalmente, de uma matriz energética fortemente assentada no petróleo e com a Petrobrás ainda desempenhando um papel pouco protagonista. Do ponto de vista político, esse também foi o período onde o regime, o sistema, aprofundou mais seu caráter repressivo com nova onda de prisões, cassações e tortura. Conforme a literatura aponta, o governo Geisel viria dar um basta nisso, exercendo controle sobre a comunidade de informações e os chamados “porões” do regime. Esse diagnóstico está sendo revisado justamente agora (maio 2018) com notícias divulgadas pela agência americana CIA, que mostra a aprovação da tortura, e mesmo execuções, por parte da autoridade máxima do país. Geisel vai empreender um governo que visava a transformar o país em uma potência, acionando para isso a implantação da energia nuclear, a petroquímica e a ampliação do papel da Petrobrás, entre outras iniciativas. De qualquer forma, as taxas de crescimento econômico caem consideravelmente, param em torno de 7% a.a., gerando uma crise social e começando a mostrar as falhas do regime que se dizia superior ao elemento civil. Geisel inicia um processo que vai se chamar distensão, percebendo que existiam pressões não só internas, mas principalmente externas, e em destaque a eleição de Jimmy Carter nos EUA, pela volta da democracia. A política econômica de Geisel, dependente de financiamentos externos, vai se curvar a esse cenário e inicia uma volta lenta e gradual para uma sociedade democrática. No entanto, ainda era patente que os militares detinham o controle da agenda política, tanto que lograram fazer o sucessor, indicando mais um general, Figueiredo, para o novo mandato presidencial, acrescido de um ano, perfazendo um total de seis anos (1979/85).
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Figura 16: Golpe de 1964. Imagem: Wikimedia Commons
Com as pressões existentes, tanto no plano interno como internacional, Figueiredo assume o governo tendo como compromisso a chamada Abertura, o que pressupunha a anistia e a reformulação partidária, que efetivamente se concretizaram. No processo de redemocratização, também começaram a ocorrer eleições para governadores de Estado em 1982 trazendo três resultados promissores para a confirmação da democracia, como as eleições de Franco Motoro em SP, Tancredo Neves em MG e Leonel Brizola no Estado do Rio. No plano econômico, o governo Figueiredo não consegue debelar a crise que já se instalara no governo anterior, causando um agravamento nas condições sociais e gerando uma insatisfação que se propagava rapidamente. Um indicador desta situação foi a ida ao FMI para negociar a dívida externa e seu pagamento. Em síntese, os militares deixam o poder mostrando incapacidade de superar a crise que já mostrava sua face: desemprego, inflação, dívida externa, além de desconfianças veladas à existência de corrupção. Mais que isso, a propagada superioridade dos militares, por se julgarem à parte da vida política partidária, mostrava-se uma falácia. Aumentava-se, assim, a pressão e também a organização da sociedade civil para reivindicar a volta à normalidade democrática. No entanto, as forças conservadoras instaladas no Congresso Nacional (ainda mais após o acionamento do chamado Pacote de Abril de 1977, quando Geisel cria a figura do senador biônico para um terço do Senado) são capazes de impedir a aprovação da Emenda Dante de Oliveira para reintrodução das eleições diretas para a Presidência. Isto posto, as eleições transcorrem como antes no âmbito do Colégio Eleitoral, composto fundamentalmente pelo Congresso e onde predominavam forças ainda aliadas ao regime ora agonizante. É oportuno observar que a votação dessa Emenda no Congresso foi precedida de grandes manifestações populares, reunidas em torno do lema “Diretas Já”, onde milhões de pessoas acorreram às ruas nas maiores capitais e cidades do país. Essa organização popular, no entanto, não foi suficiente para mudar o voto da maioria do Congresso, de perfil conservador.
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O Estado na transição e na democracia Em que pese este quadro bastante desanimador, alguns avanços foram feitos. A indicação de um candidato “outsider” das forças governistas, Paulo Maluf, causava aguda desconfiança, o que fez com que forças situacionistas fossem buscar um candidato na oposição confiável, Tancredo Neves, em torno do qual de acumulou uma série de forças de várias colorações ideológicas. Poucas forças políticas ficaram de fora do arranjo construído em torno do conservador político democrático – conservador, mas imbuído do espírito democrático. Vencido o período ditatorial mais recente, cabe olhar o processo de transição para a democracia. Este processo tem sido apontado como longo, lento, onde não estavam claras as intenções, se o regime militar estava efetivamente se retirando de cena ou apenas promovendo uma liberalização. Pode-se observar, nesse processo, como as forças conservadoras conseguiram se manter no poder promovendo alguns afrouxamentos nas estruturas de dominação, indicando como a construção de uma sociedade mais justa e democrática no Brasil padece de dificuldades de monta. Elites com poder do regime militar lograram permanecer no poder mesmo quando este assumiu uma configuração mais democrática, indicando como no Brasil as estruturas de poder são resistentes a choques modernizantes e democráticos. A transição democrática é, mais uma vez, construída sem o elemento popular já que as eleições diretas para presidência foram postergadas, conseguindo os detentores do poder manter por mais um tempo a posse do poder. A transição para a democracia foi lenta, levando mais de uma década e esteve o tempo todo sob controle dos militares. A indicação de Tancredo para a presidência tinha o aval destes, onde Tancredo teria dado garantias aos militares de que o passado não seria revirado. E, como se sabe, o presidente eleito (pelo Colégio Eleitoral) morre na véspera da posse, assumindo o poder José Sarney, um dos líderes do antigo regime que havia se mudado para o partido da oposição, num lance de oportunismo. Assim, o novo governo que se inicia vem, ainda mais do que antes com Tancredo, tingido pelo conservadorismo. Sarney herda a crise que vinha do último governo do ciclo militar e não logra êxito em superar todas as faces da crise, inclusive tendo alguns de seus aspectos potencializados como a inflação, que beirou a hiperinflação.
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Ainda neste período governamental ocorre a convocação de uma constituinte e a elaboração de uma nova Constituição, 1988, que vai dar outro referencial para a vida política e governamental no país. É no cenário acima apontado, de uma crise agravada e de falta de horizontes, que vão ocorrer as eleições de 1989. Com o quadro partidário em reestruturação, surge uma candidatura de corte conservador, Collor de Melo, que vai ser catapultado por parte da mídia, que baseia sua plataforma no combate à corrupção, apontada como fator de peso no governo Sarney. Collor, que também tinha feito parte do regime autoritário, se mostrava como um candidato sem ligações com este e propunha uma revisão do serviço público com o chamado combate aos “marajás”, funcionários que não trabalhavam, mas faziam parte da folha do serviço público. Collor vence a eleição contra uma força nova e emergente, Lula da Silva, do então recém-criado Partido dos Trabalhadores (PT). O governo instalado mostra-se também incapaz de debelar a crise econômica e social. Além disso, mostra-se incapaz de assumir uma postura de governante de um país e acaba sofrendo um processo de impeachment, resultado da articulação de forças políticas e da sociedade civil. A posse do vice, Itamar Franco, que tinha origem no campo democrático, desvela a possibilidade de construção de um rumo não só democrático, mas até certo ponto progressista. O maior inimigo a enfrentar era a inflação e isto é feito através do Plano Real conduzido pelo Ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso (FHC). O êxito alcançado e a retomada de certo desenvolvimento chancelaram FHC a concorrer à presidência, sendo eleito. E, instalado o expediente da reeleição, vence novamente e assume o poder para um segundo mandato consecutivo. Após o período de FHC, o candidato Lula da Silva e o PT lograram vencer as eleições. Oriundo de um partido situado mais à esquerda, Lula consegue chegar ao poder após três tentativas anteriores, mas também acenando para forças conservadoras com a sua Carta aos Brasileiros, onde dá garantia aos mercados (principalmente ao sistema financeiro) que não se afastará dos parâmetros não só de uma sociedade democrática e nem dos de mercado. Ainda assim, alguns avanços são conseguidos, como o enfrentamento da perene desigualdade salarial, de renda e social, que nos caracteriza desde sempre. No entanto, as políticas implantadas careceram de um caráter mais estrutural e, assim, muitas expectativas geradas ficaram frustradas.
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Ao final de três mandatos, o quarto mandato do PT, sob a batuta de Dilma Rousseff, sofre um impeachment, resultado de acusações de corrupção e de uma crise que se mostrava de maior escala do que qualquer outra antes experimentada. O governo que a sucede, em curso, não logra vencer a crise, em alguns aspectos até a aprofunda.
Tentando uma síntese A trajetória brasileira tem sido a de uma sociedade debaixo da tutela do Estado centralizado e poderoso, embebido em um caráter patrimonialista. Na década de 1970/80, Simon Schwartzman (1988) cria o conceito de neopatrimonialismo para explicar a realidade brasileira, postulando que, apesar de todo o avanço na industrialização, inclusive em indústria de ponta, moderna, as nossas bases e referências políticas continuam muito atrasadas, exalando ainda os valores do patrimonialismo. O autor mostra que não somos nem uma sociedade tradicional, como aquelas fortemente regidas por valores religiosos e tradicionais, mas também não somos uma sociedade marcada pela lógica e ética da industrialização, da competitividade, da competição. Somos uma mistura das duas, mas com a condução, a partir do Estado, feita por valores fortemente conservadores, tradicionais, de base patrimonialista. Em outras palavras, o Estado mostrase um ativo a ser explorado e acionado por forças políticas de formação extrativista, espoliadora. A democracia no Brasil tem sido olhada com muitas reservas e com expectativas de cautela. Assim, é que Guillermo O’Donnell (1991) cria o conceito de democracia delegativa, entendendo que os parâmetros da democracia representativa foram instalados no país, mas nota a ausência de uma efetiva participação política e onde os eleitores (os cidadãos) votam e se afastam da vida política, delegando o poder aos vitoriosos, o que revela nosso padrão ainda baixo de cidadania. O Estado mantém-se centralizador e autoritário, e isso não ocorre apenas nos períodos que estivemos debaixo de ditaduras (Estado Novo: 1937/45, e ditadura civil/militar: 1964/85), mas também quando estamos debaixo da ordem da democracia, que, como a cidadania, é bastante limitada. O ingresso do país na modernidade se dá normalmente com o forte peso do Estado, ocorrendo uma modernização chamada de conservadora, tanto a empreendida por Getúlio Vargas como a dos militares, uma modernização
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que vem de cima, onde o Estado é extremamente poderoso. Se o Estado é assim, nos falta, nos tem faltado, uma sociedade civil organizada, ativa, capaz de reorientar essa equação política. De qualquer forma chegamos aos parâmetros de uma poliarquia1, onde os requisitos básicos da vida democrática são atendidos, tais como o voto, a posse dos eleitos, a liberdade de pregação política, etc. No entanto, percebese que, seja qual for o agrupamento ideológico no poder, no Estado, não se consegue detectar mudanças apreciáveis no rumo da Nação, notando-se as dificuldades de superar nossos déficits históricos de educação, qualificação da força de trabalho, sociais e étnicos. Em outras palavras, não temos conseguido nos colocar nos parâmetros de uma sociedade moderna. O que tem acontecido nos últimos anos merece registro, pois pode representar um reposicionamento do Brasil no tocante a questões éticas de uso e apropriação do Estado. A corrupção que existe de longa data parece que extrapolou os parâmetros aceitos (não aceitáveis) levando a uma indignação da sociedade civil e a uma descrença muito forte em relação à classe política. Uma palavra entrou recentemente no nosso léxico, qual seja, accountability2, um termo que não tem exata tradução para o nosso idioma. Na verdade, não temos o termo, pois nos falta conceito, conforme apontado por Anna Maria Campos (1990). Nos últimos anos, essa palavra começou a povoar o debate político levando a modificações na organização do Estado (a criação e fortalecimento da CGU, por exemplo) e o surgimento de organizações na sociedade civil de vigilância dos atos públicos bem como uma ativação do papel da mídia. Pinho e Sacramento (1988) mostraram que, passadas quase duas décadas do mal-estar apontado por Campos, o Brasil, apesar de alguns avanços, ainda não conseguia incorporar a palavra ao seu léxico político, identificando uma sociedade civil tutelada, de uma forma ou de outra, pelo Estado. As manifestações de junho/2013 e as subsequentes que causaram tanta expectativa para construção de uma sociedade civil mais ativa se recolheram, não causando mudanças estruturais como havia sido pensado. De qualquer forma, com mudanças feitas, os resultados começaram a aparecer. Se já conseguimos atingir níveis maiores de transparência por parte do setor público, do Estado, ainda estamos longe de atingir níveis 1. Poliarquia é um conceito da ciência política, formulada por Robert Dahl nos Estados Unidos. O conceito, em resposta das diversas críticas sobre a não-soberania da democracia plena nas nações, procura classificar em diferentes graus os “níveis de democratização” das sociedades industriais desenvolvidas. 2. Accountability em português é um conceito que expressa transparência, responsabilização e punição de dirigentes da coisa pública.
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desejados nos quesitos de responsabilização e ainda mais de punição dos dirigentes falsos aos interesses públicos. No entanto, também já temos avançado mais recentemente, mostrando um alento para uma possível e desejada reformulação do Estado no Brasil. Outra palavra que também adquiriu status de conhecimento público tem sido o patrimonialismo. Tem ocorrido uma maior consciência do que se trata e dos males que causa à sociedade e à nação. Parece haver consciência de que o Patrimonialismo, se não é o único mal nacional, é um dos principais, um que tem centralidade na forma como a vida política é conduzida no Brasil, como se constroem as sinecuras para se chegar ao Estado para promover sua espoliação, políticas extrativistas. Parece haver consciência também, face aos graves problemas ainda não foram superados nem equacionados, de que nos falta um projeto de Nação. As elites têm tido um descompromisso gigantesco no projeto da construção da nação e a sociedade civil ainda não conseguiu se organizar e convergir para uma agenda de enfrentamento dos problemas nacionais, indicando o que é prioridade e juntando forças no sentido de alcançar os propósitos desenhados. Nos tempos atuais, tanto no caso brasileiro como de uma maneira geral nas democracias, se está a frente de uma redefinição do Estado. No caso específico do Brasil, o Estado precisa ser reconstruído no sentido de um assentamento em bases sólidas de uma democracia, mas uma tarefa paralela se coloca, que é construir uma sociedade. É bom ter em mente que isto não vai acontecer de uma hora para outra, como não aconteceu nem acontece em lugar nenhum, em nenhuma nação, não existem soluções mágicas. A construção de uma sociedade mais justa, mais equânime, mais desenvolvida, enfim mais democrática, que rompa com essas bases patrimonialistas, alimentadoras das estruturas de corrupção, é uma obra lenta, o importante parece ser não admitir recuos. Como se pode perceber, este módulo não teve subtítulos. Como dito ao início, os modelos de Estados construídos em sociedades mais avançadas não se adaptam ao Brasil. Fica difícil expor a trajetória brasileira em termos de Estado Liberal e Estado de Bem Estar Social. Embora tenha havido um pensamento de que tínhamos um Estado Liberal, mesmo no Império, convivendo com o estatuto da escravidão, o que seria uma absoluta contradição, esse nunca se realizou no Brasil. O Estado sempre ditou as normas da condução da vida econômica e política.
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O Estado do Bem Estar Social (welfare state) seria outra expressão que não tem tradução para o léxico político nacional, falta-nos o conceito. Sempre tivemos arremedos de bem estar social, com pequenos benefícios doados a partir do Estado, incapazes de promover emancipação ou uma mudança apreciável de status das populações necessitadas. Na verdade, tivemos várias configurações de Estado autoritário, quer em mãos militares quer civis. Assim, parece que falta não só um projeto de Nação, mas falta uma nação a ser construída e nessa construção o papel que desejamos para o Estado se reveste de enorme importância para aspirarmos pertencer ao rol das nações desenvolvidas e civilizadas. José de Souza Martins (2011) tem apontado que o Brasil se mostra um país de história lenta, onde as mudanças são lentas e mais de ajustes do que de rupturas, de superação da ordem tradicional existente. A se confirmar isso, a trajetória do Brasil em direção a um patamar mais civilizado, igualitário, ainda demorará muito tempo para acontecer. Mas o mais importante parece residir no fato de termos um rumo, uma direção democrática, sem recuos ou retrocessos, o que já pode ser saudado como positivo.
Material complementar 1) 1964: Entrevistas | Francisco Weffort O entrevistado desta edição é o cientista político Francisco Weffort, que é professor emérito da Universidade de São Paulo. Ele faz uma análise dos fatos que levaram ao golpe militar e da situação político-econômica do Brasil na época. https://www.youtube.com/watch?v=slX2EYgpPGQ 2) Artigo: Constituição e Evolução do Estado Brasileiro, de Dalmo Abreu Dallari. fi l e : / / / C : / U s e r s / 3 0 3 7 5 9 5 8 8 / D o w n l o a d s / 6 6 8 0 0 - T e x t o % 2 0 d o % 2 0 artigo-88192-1-10-20131125.pdf 3) Artigo: A Semidemocracia Brasileira: autoritarismo ou democracia?, por José Maria Pereira da Nóbrega Jr. http://www.aprapr.org.br/wp-content/uploads/2011/10/A-semidemocracia-brasileiraautoritarismo-ou-democracia.-Pereira-da-N%C3%B3brega.pdf
Figura 17: Congresso Nacional. Imagem: Pixabay
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Cultura e Identidade
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Referências
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Política, Governo e Sociedade Esta disciplina tem por ementa as teorias sobre Estado e Sociedade e situa, ainda, os fenômenos da globalização e da emergência das tecnologias de
uma oportunidade única de aprofundamento nos estudos e produção de