E-book: Economia e Desenvolvimento

GestĂŁo do Desenvolvimento Territorial

Genauto Carvalho de França Filho

Economia e Desenvolvimento

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO GESTÃO DO DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL

Genauto Carvalho de França Filho

Economia e Desenvolvimento

Salvador, 2019

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA Reitor: João Carlos Salles Pires da Silva Vice-Reitor: Paulo César Miguez de Oliveira Pró-Reitoria de Extensão Universitária Pró-Reitora: Fabiana Dultra Britto Escola de Administração Diretor: Horacio Nelson Hastenreiter Filho.

Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social Tânia Maria Diederichs Fischer Superintendência de Educação a Distância -SEAD Superintendente Márcia Tereza Rebouças Rangel Coordenação de Tecnologias Educacionais Haenz Gutierrez Quintana Coordenação de Design Educacional Lanara Souza CAIXA ECONÔMICA FEDERAL Presidente da Caixa Nelson Antônio de Souza Vice-Presidente Interino/ Diretor de Habitação: Paulo Antunes de Siqueira Superintendente Nacional SUHEN Henrique Marra de Souza Gerente Nacional GEHPA André de Souza Fonseca

Gerente Executiva Maria Emília Batista Cordeiro Gerente Executiva Escola de Habitação Ana Carolina Rabelo de Castro Matos Gestão do Desenvolvimento Territorial Coordenadora: Profa. Tânia Maria Diederichs Fischer Design Educacional: Agnes Bezerra Freire de Carvalho; Coordenação Executiva: Rodrigo Maurício Freire Soares; Supervisão Acadêmica: Renata Lara Fonseca ; Supervisão de Tutoria: Gizele Amorim Conceição Produção de Material Didático Coordenação de Tecnologias Educacionais CTE-SEAD Núcleo de Estudos de Linguagens & Tecnologias - NELT/UFBA Coordenação Prof. Haenz Gutierrez Quintana Projeto gráfico Prof. Haenz Gutierrez Quintana Foto de capa: Rawpixel Equipe de Revisão: Edivalda Araujo; Julio Neves Pereira Márcio Matos; Simone Bueno Borges

Equipe Design Supervisão: Alessandro Faria Editoração / Ilustração: Ana Paula Ferreira; Marcos do Nascimento Filho; Moema dos Anjos; Sofia Casais; Ariana Santana; Camila Leite; Marcone Pereira; Vitor Sousa; Flávia Moreira Gerente de AVA: Jose Renato Oliveira Design de Interfaces: Raissa Bomtempo Equipe Audiovisual Direção: Haenz Gutierrez Quintana Produção: Ana Paula Ramos Câmera: Valdinei Matos Edição: Deniere Silva; Flávia Braga; Irlan Nascimento; Jeferson Ferreira; Jorge Farias; Michaela Janson; Raquel Campos; Victor dos Santos Animação e videografismos: Bianca Silva; Eduarda Gomes; Marcela de Almeida; Dominique Andrade; Roberval Lacerda; Milena Ferreira Edição de Áudio: Cícero Batista Filho; Greice Silva; Mateus Aragão

Esta obra está sob licença Creative Commons CC BY-NC-SA 4.0: esta licença permite que outros remixem, adaptem e criem a partir do seu trabalho para fins não comerciais, desde que atribuam o devido crédito e que licenciem as novas criações sob termos idênticos.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) F814 FRANÇA FILHO, Genauto Carvalho.

Economia e Desenvolvimento/Genauto Carvalho de França Filho. Salvador: UFBA, Escola de Administração; Superintendência de Educação à Distância, 2019. 97 p. ilust.

Esta obra é um Componente Curricular do Curso MBA em Gestão do Desenvolvimento Territorial com Ênfase em Política Habitacional na modalidade EaD da UFBA/SEAD. ISBN: 978-85-8292-195-1 1. Economia do desenvolvimento. 2. Desenvolvimento econômico – Aspectos sociais. 3. Antropologia econômica. I. Universidade Federal da Bahia. Escola de Administração. II. Universidade Federal da Bahia.

Superintendência de Educação a Distância. III. Título.

CDU 330.3

Sumário Apresentação ....................................................................................................................... 07 Introdução ........................................................................................................................... 13 Unidade 1 - Por uma pedagogia do econômico na sua relação com o desenvolvimento...................... 19 Entendendo o conceito de desenvolvimento: da ideia geral à noção de desenvolvimento local.................................. 19 Entendendo o funcionamento da economia hoje como exercício crítico-pedagógico ..................................................... 26 Crise ambiental e desigualdade: o problema da dupla insustentabilidade .......................................................................... 33 Uma economia e um desenvolvimento sem território? .............................................................................................................. 39 Síntese dos conteúdos da unidade ...................................................................................................................................................41

Unidade 2 - Por uma antropologia do econômico na relação com o desenvolvimento......................... 43 Concepção da relação entre economia e desenvolvimento: a contribuição da antropologia econômica .....................43 A irredutibilidade da economia ao mercado .................................................................................................................................. 44 As duas definições do econômico ..................................................................................................................................................... 46 A pluralidade dos princípios econômicos ...................................................................................................................................... 48 Sobre a questão das mercadorias fictícias ...................................................................................................................................... 53 Economia plural versus economia de mercado ............................................................................................................................. 56 Da antropologia econômica à teoria das organizações: a noção de Paraeconomia em Guerreiro Ramos 58 Paraeconomia como modelo delimitativo de análise dos sistemas sociais.............................................................................61 Quais requisitos para quais sistemas sociais? ................................................................................................................................. 65 A paraeconomia como modelo multicêntrico de alocação de recursos ................................................................................. 66 Síntese e convergências: por uma outra economia ...................................................................................................................... 72 Síntese dos conteúdos da unidade ................................................................................................................................................... 73

Unidade 3 - Por uma solidariedade econômica enquanto desenho e prática de desenvolvimento..... 75 A governança democrática ................................................................................................................................................................. 75 Redes, alianças e reagrupamentos no território ............................................................................................................................ 76 O desenvolvimento territorial solidário e as políticas públicas associadas ............................................................................ 80 Redefinindo o papel e a significação da economia na prática da gestão territorial ............................................................ 82 Propondo um desenho: esboço de política de gestão solidária dos territórios .................................................................... 84 Síntese dos conteúdos da unidade ................................................................................................................................................... 90 Síntese geral de entendimento das três unidades ........................................................................................................................ 91

Referências ...................................................................................................................................................... 92

Sobre o autor Genauto Carvalho de França Filho é bacharel e mestre em Administração pela Universidade Federal da Bahia. Doutor em Sociologia pela Universidade de Paris VII (Denis Diderot). É Professor Titular da Universidade Federal da Bahia e leciona nos cursos de Administração e de Gestão Pública as seguintes disciplinas: Estudos Antropológicos das Organizações, Seminários de Práticas de Gestão II, Gestão de Organizações Associativas e Empreendimentos Solidários, Incubação de Empreendimentos Socioprodutivos, Estratégias de Desenvolvimento Social e Territórios. Nos Programas de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado em Administração e Mestrado em Desenvovimento e Gestão Social) leciona as disciplinas: Estudos Organizacionais, Tópicos Especiais em Estudos Organizacionais, Economia e Desenvolvimento e Economia Solidária. É também Pesquisador do CNPq, Bolsista de Produtividade em Desenvolvimento Tecnológico e Extensão Inovadora. Coordena dois programas de pesquisa e extensão: a Incubadora Tecnológica de Economia Sollidária e Gestão do Desenvolvimento Territorial (ITES/UFBA) e a Agência de Inovação Social (AIS/UFBA). Tem cerca de uma centena de publicações entre livros, capítulos de livros e artigos em diferentes periódicos científicos. Dentre os livros publicados, destacam-se os seguintes: Organisation et Solidarité – Penser une Autre Gestion, em co-autoria com Philippe Eynaud (IAE/Univ. Paris Sorbonne) pela editora francesa Érès em 2019; Bancos Comunitários e Moedas Sociais no Brasil – Reflexões a partir da noção de economia substantiva; em co-autoria com Ariádne Rigo pela EDUFBA (E-livro) em 2017; Bancos Comunitários de Desenvolvimento (BCD’s) como expressão de Finanças Solidárias: por uma outra abordagem da inclusão financeira, pela Editora Arte visual em 2013; Economia Solidária - Uma Abordagem Internacional, em co-autoria com Jean-Louis Laville (CNAM-Paris), pela EDUFRGS em 2004; e, Ação Pública e Economia Solidária – uma Perspectiva Internacional, este último na forma de coletânea de textos em co-organização com Laville, Medeiros e Magnen pela EDUFBA/EDUFRGS em 2006.

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Apresentação Prezado(a) aluno(a), Seja bem-vindo(a) à disciplina do MBA em Gestão do Desenvolvimento Territorial com Ênfase em Política Habitacional, “Economia e Desenvolvimento”!

Esta disciplina apresenta grande ambição nos seus propósitos de conhecimento e ousadia na abordagem dos mesmos. Isto porque, ela parte do seguinte diagnóstico crítico-reflexivo: o mundo vive atualmente grandes dilemas e impasses (crise ambiental, aumento das desigualdades e crises de governança internacional e nacional), cujos maiores efeitos são as profundas dificuldades de desenvolvimento que conhecem as mais variadas sociedades.

Se este diagnóstico constitui uma premissa de fato para o problema da relação entre economia e desenvolvimento que almejamos tratar, é importante então avançar nossa segunda premissa (teórica) para esse mesmo problema: o modo como definimos, analisamos ou interpretamos o econômico pode contribuir na compreensão da diversidade de práticas e visões do desenvolvimento. Como síntese desse diagnóstico, estabelecemos o seguinte entendimento como pressuposto geral: os grandes dilemas e impasses contemporâneos guardam relação direta com um modelo hegemônico de desenvolvimento, que por sua vez, está assentado numa concepção específica de economia.

Então, de posse desse diagnóstico geral, o objetivo maior desta disciplina é o de refletir sobre como seria possível refundar nossas atuais bases de compreensão acerca do que é o econômico, para propor novas possibilidades em termos de sustentabilidade no desenvolvimento, com ênfase na territorialidade. O recorte da nossa abordagem é, desse modo, tanto analítico-crítico quanto propositivo. Ou seja, o intuito é não apenas o de apresentar um outro modo de compreender a relação entre economia e desenvolvimento, como também o de propor caminhos e possibilidades de construção de novos modos de ação pública para o desenvolvimento baseado no território.

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Com esse duplo propósito, nossa disciplina se articula em três unidades.

Na primeira, discutimos uma pedagogia da relação entre economia e desenvolvimento. O intuito inicial é o de visitar brevemente o conceito de desenvolvimento, para entender suas nuances e suas inflexões em torno de noções como as de desenvolvimento local e desenvolvimento territorial, entre outras. Na sequência, busca-se esclarecer o atual contexto de funcionamento da economia no mundo, enfatizando-se sua dinâmica de financeirização, para entender seus efeitos (limitantes) sobre o desenvolvimento nas esferas do nacional ao local. Se essa pedagogia do econômico assume uma postura crítica, é porque consideramos fundamental entender as razões (profundas) que justificam, atualmente, a necessidade de uma outra relação entre economia e desenvolvimento.

Contudo, o esforço de reconstrução dessa relação é um movimento simultâneo na teoria e na prática, exigindo uma necessária refundação do modo como entendemos o que é o econômico. É a razão pela qual propomos, na segunda unidade, uma antropologia da economia enquanto requisito básico para repensar o horizonte de uma outra ideia de desenvolvimento. O objetivo dessa segunda unidade é o de ampliar nossa visão sobre o que é o econômico, indicando suas diversas formas de manifestação conforme resume o conceito de economia plural. A rigor, a unidade busca responder a seguinte questão: como redefinir o papel e significado do econômico numa agenda renovada de ação para o desenvolvimento? Se as soluções para os nossos problemas de hoje são inéditas e, por isso, estão longe de serem buscadas em formas anteriores de organização econômica, o olhar sobre a história e sobre outras culturas permitido pela perspectiva antropológica constitui uma fonte privilegiada de inspiração na construção das reflexões necessárias na base das novas proposições que são pretendidas. A antropologia (econômica) nos convida, assim, não a repetir a história ou imitar outras culturas, mas a aprender com a história e com outras culturas.

Ao lado desta abordagem, trouxemos, ainda nesta unidade, um segundo arcabouço teórico relevante para repensar o lugar do econômico na sua relação com a sociedade, a partir da contribuição do sociólogo brasileiro Alberto Guerreiro Ramos que propõe e discute a noção de paraeconomia.

Com esta noção, iniciamos uma reflexão em termos de redesenhos possíveis para a relação entre a economia e os demais sistemas sociais, que constitui um dos objetivos da unidade.

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O caráter propositivo constitui, justamente, o cerne da terceira unidade, cujo intuito principal é de levar a refletir sobre como desenhar uma estratégia de desenvolvimento (territorial) com base num olhar ampliado sobre o econômico. Para isso, recorremos tanto ao legado da antropologia econômica, ao enfatizar a importância da solidariedade nos processos de institucionalização da economia em diferentes culturas, como as possibilidades de visão abertas pela noção de paraeconomia. Esta parte da disciplina propõe então uma reatualização do debate sobre o conceito de solidariedade na sua relação com o tema da gestão, destacando a fecundidade das formas de solidariedade democrática na contemporaneidade, para sublinhar como seria possível reconstruir formas de organização e gestão a partir de dispositivos de solidariedade econômica na estruturação de uma outra visão do desenvolvimento. O capítulo desenha um modelo propositivo, refletindo sobre um cenário de renovação da ação pública nos territórios.

Em resumo, a primeira unidade situa os grandes impasses e dilemas da relação atual entre economia e desenvolvimento, refletindo no nível do cenário mundo para entender como esse contexto internacional afeta as dinâmicas territoriais em seus diversos âmbitos (nacional, regional e local).

A segunda unidade apresenta os conceitos e ideias permitindo ampliar o entendimento de um dos termos fundamentais dessa relação (a economia), para contribuir com a reflexão sobre outros caminhos do desenvolvimento na sua relação com o território. Finalmente, a terceira unidade se alimenta dessa ampliação conceitual sugerida na segunda unidade, bem como da análise de desconstrução contextual empreendida na primeira unidade, para reconhecer as bases de uma outra ideia de desenvolvimento e propor um caminho possível através de um desenho propositivo de ação pública para tanto.

Integram essa disciplina quatro recursos principais de abordagem do conhecimento e que se encontram absolutamente articulados entre teoria e prática, independentemente de qualquer hierarquia para o seu tratamento.

O primeiro é a reflexão sobre conceitos e noções, incluindo uma perspectiva histórica, permitindo esclarecer as bases fundamentais de entendimento da relação entre economia e desenvolvimento mediada pela territorialidade.

O segundo recurso é a análise de contextos gerais e específicos de realidade, permitindo compreender tendências, características e rumos da relação entre economia e desenvolvimento. O terceiro recurso é a identificação e breve exposição de casos empíricos enquanto experiências concretas,

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10 apontando caminhos, possibilidades e desafios de realização da economia e desenvolvimento na prática. Finalmente, o quarto recurso é a apresentação de modelo, em termos de desenho de ação pública, permitindo refletir sobre metodologia de intervenção para o fomento de outros modos de construção da relação entre economia e desenvolvimento.

Espera-se que esta escolha teórico-metodológica e pedagógica permita que você, ao final do curso, desenvolva quatro competências relevantes enquanto gestor público, gestor social ou cidadão que lida com o tema da relação entre economia e desenvolvimento, quais sejam: a) capacidade de discernimento conceitual entre as diferentes noções envolvidas na compreensão da relação entre economia e desenvolvimento; b) capacidade de análise contextual da realidade mais ampla situando as práticas de economia e desenvolvimento; c) capacidade de estudo de caso no sentido da compreensão dos limites e possibilidades de experiências reais na sua ação para o desenvolvimento; e, d) capacidade de intervenção na realidade através do conhecimento de aportes metodológicos destinados ao fomento e construção de tais práticas.

No final de cada Unidade Temática, será apresentada uma síntese dos principais temas estudados com a finalidade de apoiá-lo na sistematização do seu processo individual e coletivo de aprendizagem. Essa revisão final facilitará a realização das atividades do curso.

Esperamos que esses estudos contribuam para o seu desenvolvimento ético e formativo, como sujeito consciente do mundo e sociedade que vive e como profissional comprometido não apenas em (re)interpretar a realidade, mas também contribuir para a sua transformação.

Bom estudo!

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Tabela 1- Síntese dos conteúdos das três unidades temáticas da disciplina Unidade 1 - Por uma pedagogia do econômico na sua relação com o desenvolvimento Enteder a ideia de desenvolvimento em sentido mais amplo e sua inflexão através da noção de desenvolvimento local Decifrar o atual contexto de funcionamento da economia mundial, caracterizando seus principais efeitos em termos ambientais, socioeconômicos e políticos Reconhecer a importância da noção de territorialidade na análise da relação entre economia e desenvolvimento Unidade 2 - Por uma antropologia do econômico na relação com o desenvolvimento Apresentar uma outra definição e compreensão sobre o que é o econômico a partir da abordagem antropológica Esclarecer a noção de paraeconomia enquanto modo ampliado de entender a relação entre economia e sociedade Refletir sobre o potencial heurístico da noção de outra economia (enquanto síntese da noção de paraeconomia e da abordagem antropológica da economia) para repensar a relação entre economia e desenvolvimento Unidade 3 - Por uma solidariedade econômica enquanto desenho e prática de desenvolvimento Refletir sobre as bases de construção de novas formas de relação entre economia e desenvolvimento a partir das noções de governaça democrática, redes locais de economia solidária, ação pública, alianças e reagrupamentos territorias e solidariedade econômica Apresentar desenho de estratégia renovada de desenvolvimento territorial com base na visão ampliada do econômico

Imagem: Rawpixel

13 Introdução à relação entre economia e desenvolvimento

Economia e desenvolvimento são expressões correntes e que para muitos dispensariam maiores apresentações. Contudo, esse uso comum dos termos costuma ocultar a complexidade na qual as duas noções são portadoras. Isto porque, tanto a economia quanto o desenvolvimento se sujeitam à diferentes interpretações conforme a variedade de possibilidades de analisá-las. Mas, o uso corrente dos termos costuma rejeitar inconscientemente essa variedade de significados. É assim que o sentido usual de economia costuma estar carregado de um significado específico e bem conhecido: ele está comumente identificado àquilo que se conhece como racionalidade mercantil. E a ideia de desenvolvimento também costuma apresentar-se de forma dependente desse significado econômico.

Neste texto, partimos do pressuposto segundo o qual o modo como analisamos ou interpretamos o econômico pode contribuir para a compreensão da diversidade de práticas e visões do desenvolvimento. Neste sentido, buscar alternativas sustentáveis de desenvolvimento nos conduz a repensar nossos atuais paradigmas de compreensão acerca do que é o econômico. A relevância desse tipo de preocupação se impõe atualmente diante dos sinais evidentes de esgotamento dos nossos modos convencionais (e usuais) de compreender a relação entre economia e desenvolvimento. Tais sinais são evidenciados através de uma dupla insustentabilidade: socioambiental e socioeconômica (EYNAUD e FRANÇA FILHO, 2019).

Do ponto de vista socioambiental, a necessidade de níveis sempre elevados de crescimento econômico na base da ideia convencional de desenvolvimento impacta fortemente o meio ambiente, comprometendo as condições de vida no planeta. Se esse é um problema bem conhecido, sendo evidenciado desde algumas décadas atrás, sua recorrência persistente dos últimos anos até os dias atuais indicam as dificuldades de sua superação. Do ponto de vista socioeconômico, a lógica de desenvolvimento, que se encontra cada vez mais relacionada aos

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elevados graus de financeirização da economia (DOWBOR, 2017), tem produzido níveis crescentes de concentração de riqueza e agudizado as desigualdades de diferentes tipos, tanto em países do norte quanto do sul e entre as próprias sociedades.

Essa dupla insustentabilidade confronta o mundo atual com o paradoxo do seu próprio desenvolvimento: como admitir tamanha ausência de recursos para tantos, atualmente, se jamais se produziu tanta riqueza material na história das sociedades humanas? Se esse paradoxo pode se explicar pela escolha de um modelo de desenvolvimento, as soluções não são simples pela própria força de tal modelo. A dupla insustentabilidade nos coloca diante de questões cruciais quanto ao futuro das sociedades humanas, ensejando grandes mudanças de sociedade: Como então gerar desenvolvimento sem impactar negativamente o meio ambiente e sem reproduzir lógicas de desigualdade? As saídas não são simples, pois a força de um modelo de desenvolvimento, com todo o aparato jurídico-político-institucional que ele cria (através das suas relações de poder), está nos processos de dependência que ele engendra, especialmente em termos de organização socioeconômica da sociedade e que acaba por condicionar os comportamentos individuais, grupais e institucionais. A força desse modelo pode ser ilustrada pelos grandes impasses que ele cria ao tornar a sociedade dele subordinado: como construir uma agenda de desenvolvimento menos dependente do crescimento econômico, se este se encontra na base dos mecanismos de redistribuição necessários à generalização da renda dos cidadãos? Dito de outro modo, como abandonar o crescimento se a sociedade passou a depender dele? A armadilha no qual um determinado modelo de desenvolvimento pode induzir, parece, assim, mais facilmente reconhecida quando a interrogação se coloca sobre a relação entre economia e sociedade: ao invés de uma sociedade dependente de um modelo econômico, o caminho sustentável não seria precisamente o inverso?

Se a relação entre economia e desenvolvimento nos convida a refletir sobre um outro modo de relação entre economia e sociedade - marcado pela capacidade desta última de se apropriar do econômico, ao invés de ser por ele apropriado, então, tal reflexão dificilmente terá continuidade sem acrescentar um terceiro eixo que é a relação entre economia e democracia. A capacidade da sociedade de se apropriar do seu sistema econômico exige mecanismos de mediação político-democráticos que permitam, inclusive, a oposição aos modelos econômicos historicamente consolidados, sendo possível assim, transformar as trajetórias de modo negociado. Tais mecanismos são também dispositivos institucionais, não apenas em termos de variados graus de controle cidadão sobre as

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instituições econômicas nas quais ele não faz parte, mas afetam sua vida, como também, trata-se de dispositivos de auto-organização socioeconômico em que cidadãos participam diretamente da atividade econômica. Em ambos os casos estamos diante de práticas de democracia econômica. A democracia econômica constitui assim o antidoto necessário contra a apropriação da sociedade pelo sistema de mercado.

A relação entre economia e desenvolvimento nos convida então a pensar em termos de processos de mudança societal, segundo os princípios de transição ecológica. Uma tal transição representa um esforço sem precedentes em termos de reorientação política, num terreno em que relações de poder instituídos entram forçosamente em conflito com as exigências de mudança. A sustentabilidade ambiental, por exemplo, requer profunda mudança em nossa base ou matriz energética e significa mais do que explorar novos nichos de mercado, daquilo que chamaríamos de economia verde ou circular. Ela requer uma revisão tão importante dos nossos atuais hábitos de consumo que o impacto em termos comportamentais e de valores numa sociedade são muito profundos. Essa é a razão pela qual estamos tendo que falar em termos de crise civilizatória ou reflexões existenciais sobre o viver em sociedade. Ela requer uma sobriedade feliz (VIVERET, 2012), assim como, uma reconsideração da riqueza (VIVERET, 2006). Já a sustentabilidade social, que é também cultural, política e econômica, aponta nossas possibilidades em termos de superação das desigualdades. Essa é uma agenda de ampliação de direitos para as populações ou grupos sociais excluídos, mas também uma agenda de desconcentração dos fluxos de produção e distribuição da riqueza. A ampliação de direitos requer o reconhecimento e valorização da diferença social e cultural. Para tanto se impõe a necessidade de se cultivar mais os valores de solidariedade na vida em sociedade, ao invés do aprofundamento do individualismo. De todo modo, como fortalecer o reconhecimento das diferenças sem distribuição de renda e justiça social? A desconcentração dos fluxos de produção e distribuição da riqueza, então, se impõem. A análise dessa desconcentração não consegue ser feita de forma consequente sem se levar em consideração o contexto da financeirização da economia. Esta é uma dinâmica macroeconômica e que atinge países e sociedades inteiras, na medida em que os governos se submetem às suas injunções. O principal efeito é a diminuição da atividade produtiva em si, cujos recursos são drenados pela especulação financeira.

Com isso os estados deixam de arrecadar e diminuem seu poder de investimento na sociedade, que podem ainda serem agravados por problemas de eficiência na gestão pública ou desvio de recursos (corrupção).

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Se o enfrentamento dos efeitos graves da financeirização requer um combate no nível macroestrutural da política, não se pode, por outro lado, deixar de considerar a importância da desconcentração segundo a forma como ela atinge os territórios. A noção de território e de territorialidade aparece, então, como um elemento estratégico nessa tentativa de repensar a relação entre economia e desenvolvimento.

No trilho das questões fundamentais levantadas acima sobre a superação do nosso atual modelo hegemônico de desenvolvimento, o objetivo desse texto é o de refletir sobre como é possível refundar nossas atuais bases de compreensão acerca do que é o econômico para propor novas possibilidades em termos de sustentabilidade no desenvolvimento. O recorte de nossa abordagem aqui é tanto analítico-crítico quanto propositivo. Ou seja, o intuito é não apenas de apresentar um outro modo de compreender a relação entre economia e desenvolvimento, como também de propor caminhos e possibilidades de construção de novos modos de ação pública para o desenvolvimento territorial.

Em suma, a escolha teórico-metodológica de abordagem do tema central deste livro, conforme indicam as três unidades, pode ser vista como uma trilogia, englobando uma “pedagogia do econômico”, passando por uma “antropologia do econômico” até chegar a uma proposta de “solidariedade econômica”. O intuito é o de estabelecer um percurso analítico-propositivo que seja ao mesmo tempo coerente, consistente e bem fundamentado, ou seja, que trabalhe nossa capacidade de abordagem crítica da realidade, no sentido de sua desconstrução analítica, mas que se propõe, ao mesmo tempo, à reconstrução analítico-propositiva necessária à continuidade do que o tratamento da problemática suscita.

Boa leitura!

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19 Unidade 1 — Por uma pedagogia do econômico na sua relação com o desenvolvimento

1.1 Entendendo o conceito de desenvolvimento: da ideia geral à noção de desenvolvimento local A ideia de desenvolvimento do ponto de vista da sociedade sempre fora vista como uma questão polêmica diante das escolhas políticas que a acompanha. Tal ideia tem sido construída num vínculo permanente com duas outras noções que são crescimento econômico e território, seja de modo complementar ou em oposição. No que diz respeito à dicotomia crescimento versus desenvolvimento, é comum considerar que “enquanto o crescimento ocorre em termos eminentemente econômicos, detectado pelo aumento da quantidade produzida em certo período de tempo, em um dado espaço territorial, o desenvolvimento se manifestaria pela distribuição equitativa dos resultados do crescimento para toda a sociedade” (CHACON, 2014, p. 49). Essa visão contrasta, por outro lado, com diferentes abordagens do desenvolvimento na prática. No Brasil da era militar, por exemplo, a retórica do crescimento foi em grande medida desconectada da distribuição, uma vez que prevalecia o entendimento segundo o qual no primeiro momento o importante é crescer (“o bolo”), para só depois dividir.

De fato, foi a preocupação em se demarcar da noção de crescimento econômico que ensejou a aparição no âmbito das ciências humanas de uma série de outros termos enfatizando o alcance do bem-estar social na dinâmica do desenvolvimento: social ou socioeconômico, sustentável, integrado etc. Com o acréscimo das preocupações ambientais à questão do bem-estar social, aparece desde os anos 90 a noção de ecodesenvolvimento proposta por Ignacy Sachs, vinculando a noção de desenvolvimento mais à dimensão ética do que econômica. Tal ideia foi sendo retrabalhada por

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diferentes autores, posteriormente com a própria difusão desse debate através de uma diversidade de convenções, tratados e discussões promovidas por organismos internacionais reguladores do desenvolvimento nos países ligados à Organização das Nações Unidas (ONU). Dentre as diferentes definições e qualificações para o desenvolvimento trazidas pela ONU, merece destaque a criação do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) em 1990 pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).

“Idealizado por Mahbub ul Haq com a colaboração do economista indiano Amartya Sen”, o IDH surge como um contraponto ao Produto Interno Bruto (PIB) que era o indicador até então mais utilizado e que considera apenas a dimensão econômica do desenvolvimento. “O IDH é uma medida resumida do progresso a longo prazo em três dimensões básicas do desenvolvimento humano: renda, educação e saúde”. Com este indicador, o intuito fora o de “determinar a capacidade de uma sociedade garantir sua plena cidadania” (CHACON, 2014, p. 49).

Embora ilustrativo de um avanço no processo de entendimento do desenvolvimento, o IDH não foi capaz de absorver o aprofundamento das preocupações ambientais intensificadas desde as últimas décadas do século XX e que já haviam sido suscitadas bem antes pelas reflexões e constatações inquietantes de cientistas, ambientalistas e políticos, através de ampla discussão sobre o futuro da terra e da humanidade. Este papel coube ao termo desenvolvimento sustentável, cuja origem remonta aos resultados da Primeira Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, ocorrida na cidade de Estocolmo em 1972. Foi justamente o conhecido Relatório Bruntland, sob o título “Our commom future”, apresentado por essa comissão em 1987 que lançou oficialmente o conceito de desenvolvimento sustentável. No seu conteúdo a ideia é de que a sustentabilidade no desenvolvimento deve refletir a capacidade das atuais gerações em suprir as necessidades da humanidade no presente sem comprometer o direito das futuras gerações em terem também suas necessidades supridas.

A popularização do conceito de desenvolvimento sustentável ocorre efetivamente após a Conferência da ONU sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento no Rio de Janeiro, em 1992, mais conhecida como ECO-92. Nessa popularização, a ideia segundo a qual o desenvolvimento sustentável requer uma atuação harmoniosa de políticas e ações em pelo menos quatro dimensões básicas, como social, econômica, ambiental e política-institucional, conquistou grande adesão. Contudo, sua aplicação não é simples diante dos conflitos e disputas de poder que a abordagem suscita na prática. É assim que a popularização desse conceito tem passado

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acima de tudo por uma agenda governamental. “Nos países considerados ‘em desenvolvimento’, como o Brasil, o desenvolvimento sustentável chegou como um ‘novo dever de casa’, imposto pelos organismos internacionais de financiamento do desenvolvimento, e passou a constar como base obrigatória para os planos de governo” (CHACON, 2014, p. 50).

Se a aplicabilidade de tal conceito requer sua efetiva incorporação em termos de agenda governamental, esta lhe atribuirá maior ou menor importância ao seu tratamento conforme os sabores, humores ou “ventos” da conjuntura política em vigor. No atual momento político brasileiro, com a assunção do novo governo desde o início de 2019, a temática ambiental perde relevância significativa na agenda do desenvolvimento que passa a vigorar.

Em termos de difusão conceitual, podemos assim observar como a ideia mais geral do desenvolvimento se forja em âmbitos institucionais globais, em termos de relações internacionais, e sua operacionalidade parte de agendas governamentais específicas. Observando esse movimento fica uma interrogação sobre o lugar da sociedade na construção de tal discurso.

Mesmo considerando a possibilidade da participação social através de organizações da sociedade civil que tomam assento nas discussões previstas em grandes conferências mundiais, esta ainda é uma tarefa reservada para poucos. Entretanto, essa não foi a mesma dinâmica que se observou com o conceito de desenvolvimento local.

O conceito de desenvolvimento local conheceu suas primeiras formulações no final dos anos 1970, através da contribuição de autores como John Friedmann e Clyde Weaver, Walter Stöhr e David Taylor, José Arocena, Bernard Pecqueur e Bernard Vachon, entre outros. Já o seu reconhecimento político-institucional acontece apenas nos anos 1990, através da importância assumida pelo Programa “Iniciativas Locais de Emprego” da OCDE, no final dos anos 1980, na definição das políticas europeias de combate ao desemprego e à pobreza e exclusão social, na União Europeia.

Com base na contribuição daqueles autores, o desenvolvimento local pode ser definido como: “o processo de satisfação de necessidades e de melhoria das condições de vida de uma comunidade local, a partir essencialmente das suas capacidades, assumindo a comunidade o protagonismo principal nesse processo e segundo uma perspectiva integrada dos problemas e das respostas” (AMARO, 2009, p. 108).

O surgimento desse conceito buscou refletir a emergência de uma ampla variedade de iniciativas locais em resposta aos problemas colocados

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pela crise vivida naquele período. “Tais iniciativas são, desse ponto de vista, a resposta local (das comunidades locais) aos problemas econômicos (crises setoriais, falências e fechamento de empresas, desestruturação das economias locais), sociais (desemprego, pobreza e exclusão social, ausência de respostas sociais para o acompanhamento dos mais novos e dos mais velhos), culturais (marginalização ou descaracterização das identidades, dos valores culturais e dos patrimônios locais, homogeneização cultural) e ambientais (destruição de ecossistemas locais, falta de saneamento básico, ameaças à qualidade de vida, extinção de espécies, desflorestação), provocados pelas alterações dos modelos de desenvolvimento após a década de 1970, pela globalização de predomínio economicista e pelas crises do Estado-Nação e do Estado-Providência (e afirmação das correntes neoliberais)” (AMARO, 2009, p. 108).

A ideia de desenvolvimento local nasce também muito influenciada por uma outra noção prima-irmã: trata-se do termo desenvolvimento comunitário, em alusão aos métodos alternativos de promoção do desenvolvimento a partir das próprias comunidades. Estes foram construídos em reação aos meios empregados na chamada cooperação internacional e de ajuda ao desenvolvimento que desde os seus primórdios nos anos 1950 propunham (e impunham) a imitação, por parte dos países considerados subdesenvolvidos (muitos deles novos países independentes, recém saídos da colonização europeia), dos “modelos de desenvolvimento, baseados no crescimento econômico e na industrialização, já ‘testados’ historicamente nos ‘países mais desenvolvidos’” (AMARO, 2009, p. 109). Vivia-se a era do “paradigma da modernização” que condenava os sistemas tradicionais de organização daquelas sociedades como obstáculo ao progresso, impelindoas a modernizar suas estruturas econômicas, sociais, culturais, políticas e tecnológicas.

“Na prática e no terreno, muitos técnicos dos organismos internacionais (no âmbito da ONU) e das organizações não-governamentais (ONG), que começavam a surgir neste campo de intervenção, constatavam que os modelos (de economia, de industrialização, de tecnologias, de ensino, de medicina, etc.) de que eram portadores, em vez de promoverem processos de autonomização e desenvolvimento, colocavam uma série de problemas, nomeadamente: a) ignorar as necessidades efetivamente sentidas pelas comunidades locais, bem como os seus recursos e capacidades; b) desprezar os seus valores, identidades e saberes, considerando-os primitivos e subdesenvolvidos; c) estimular a dependência e a subordinação em relação ‘ao que vem de fora’; d) criar novos problemas (econômicos, sociais,

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culturais e ambientais), até aí desconhecidos” (AMARO, 2009, p. 109). Essa constatação fora o suficiente para muitos daqueles técnicos experimentarem um método mais pragmático de promoção do desenvolvimento assentado em três premissas fundamentais: “a) o diagnóstico das necessidades das comunidades locais deve realizar-se com participação destas; b) a resposta a essas necessidades deve basear-se na utilização dos recursos e capacidades da própria comunidade; c) os problemas e as soluções devem ser abordados de forma integrada, conjugando os seus vários componentes e áreas de intervenção (alimentação, educação, saúde, emprego, rendimento, cultura, etc.” (AMARO, 2009, p. 109). Em sendo um método prático, essas ideias do desenvolvimento comunitário ficaram menos conhecidas dos teóricos do desenvolvimento durante muitos anos.

Desse ponto de vista, salienta-se o quanto o conceito de desenvolvimento local é tributário de iniciativas e ações da sociedade civil que se reatualizam em resposta aos problemas provocados, tanto pela regulação do mercado via efeitos de uma globalização sem regras, quanto dos limites das tentativas do estado-providência em corrigi-las.

Se, então, o conceito de desenvolvimento local se afirma pela via indutiva, há também uma outra matriz de influência na sua origem que remete a reformulação teórica dos paradigmas do desenvolvimento regional.

Tal reformulação nasce da crítica aos pressupostos funcionalistas dos processos de desenvolvimento. “Segundo este modelo, o desenvolvimento regional deveria ocorrer do centro para a periferia, das grandes metrópoles e das cidades para as zonas rurais, da nação para as regiões, dos polos de desenvolvimento para as suas ‘áreas de influência’ e, portanto, ‘de cima para baixo’, segundo uma lógica (automática) de centrifugação do progresso” (AMARO, 2009, p. 110). A crítica residia nos efeitos inversos produzidos nessa lógica de desenvolvimento, que reforçavam seu caráter concentrador.

A influência deste paradigma em diferentes regiões do mundo foi devastadora, inclusive para o caso brasileiro. A título ilustrativo, quando se observa o mapa do ICM numa região como o estado da Bahia, constata-se a enorme concentração num território que equivale à região metropolitana de Salvador.

Foi em consequência dessa crítica que nasce o paradigma territorialista que propunha “que o desenvolvimento, a nível espacial, devesse ‘partir de baixo’, de cada território, atribuindo a cada comunidade local a iniciativa e o protagonismo dos seus processos de desenvolvimento, a partir das suas capacidades, invertendo, portanto, as dinâmicas e lógicas consideradas até aí. Para isso, consideravam que a essência deste paradigma

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residia nas potencialidades endógenas, mais do que nos impulsos exógenos, embora estes pudessem ser importantes para dinamizar e fecundar aquelas, sobretudo quando as comunidades locais tivessem perdido a capacidade de iniciativa e a vontade de mudança (muitas vezes por ação dos modelos de desenvolvimento importados, desmobilizadores das forças locais)” (AMARO, 2009, p. 110). Muito embora essa ênfase excessivamente contrastada das oposições endógeno-exógeno e local-global, grande parte destes autores evoluíram posteriormente para uma posição conhecida como neoterritorialista, que, mesmo não deixando de enfatizar o endógeno, passaram a buscar maior equilíbrio entre forças “de fora” e “de dentro”.

Com base nesta contextualização acima, Amaro (2009, p. 111) propõe dez atributos definidores da noção atual de desenvolvimento local, a saber: 1. um processo de mudança, levando à melhoria do bem-estar e das condições de vida da população; 2. centrado numa comunidade territorial de pequena dimensão, definida pela existência (real ou potencial) de uma identidade comum, capaz de mobilizar solidariedades de ação (coletiva) e com pretensões a uma autonomia de afirmação do seu destino; 3. que tem como uma das suas motivações fundamentais a resposta a necessidades básicas da comunidade que estão por satisfazer; 4. a partir essencialmente da mobilização das capacidades locais; 5. o que implica a adoção de metodologias participativas e de “emporwerment” da comunidade local (do ponto de vista individual e coletivo); 6. contando também com a contribuição de recursos exógenos, capazes de mobilizar e fertilizar os recursos endógenos (e não de os substituir ou inibir); 7. numa perspectiva integrada, na abordagem dos problemas e das respostas; 8. o que exige uma lógica de trabalho em parceria, ou seja, de articulação dos vários atores, protagonistas e instituições locais ou a trabalhar no local; 9. com impacto tendencial em toda a comunidade; 10.

e segundo uma grande diversidade de processos,dinâmicas e resultados.

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A partir da síntese acima esboçada, a ideia de desenvolvimento local se compreende menos como uma decomposição da noção de desenvolvimento regional e mais como “uma outra perspectiva metodológica de abordagem dos processos de desenvolvimento, centrando-os na comunidade local e no seu território” (AMARO, 2009, p. 111).

Nestes termos, se a reflexão sobre o desenvolvimento local permite reposicionar o debate mais geral sobre o desenvolvimento é no sentido de torná-lo menos abstrato, conforme atesta sua ênfase sobre as noções de território e comunidade. De fato, a ressurgência do desenvolvimento local enquanto temática nos anos 1980 ocorre em simultaneidade com a aceleração dos processos de globalização das sociedades contemporâneas, especialmente acentuados em sua dimensão econômico-financeira.

Para Amaro (2019, P. 112): “pode dizer-se que o desenvolvimento local resulta, por um lado, da resistência das economias locais e das identidades locais às consequências da liberalização da circulação de mercadorias, serviços e capitais, e da homogeneização cultural provocadas pela globalização dominante e que tende a destruir aquelas especificidades. Mas, por outro lado, é também a resposta (local) aos problemas econômicos, sociais, culturais, ambientais e políticos dela resultantes; numa fase em que o Estado-providência, de âmbito nacional, entrou em crise e perdeu a eficácia na regulação daqueles problemas e não surgiu, ainda, em alternativa, nenhum modelo de regulação de âmbito global (supranacional ou transnacional)”.

A constatação acima nos leva a interrogar sobre os limites e possibilidades do desenvolvimento local: estaria ele condenado a funcionar como simples amortecedor das crises e problemas trazidos pela globalização? Ou estaria ele na base de uma reflexão sobre outras formas de globalização a partir do local, como pode suscitar a expressão “glocalização”?

Mas, ao mesmo tempo, como melhor entender o atual contexto e cenário internacional de fragilidade das regulações supranacionais e de ausência de regulações em escala mundial como inoperância da ONU ou dificuldades de acordos entre superpotências? Se existe um padrão econômico global de desenvolvimento atualmente, inibindo as possibilidades do desenvolvimento local, quais suas características e suas formas de governança institucional?

Entender a lógica econômica internacional que atualmente governa o mundo parece uma condição básica para qualquer tipo de esforço analítico e propositivo posterior.

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1.2 Entendendo o funcionamento da economia hoje como exercício críticopedagógico - Financeirização da economia e governança corporativa internacional A característica mais marcante da dinâmica de funcionamento da economia em escala mundial, hoje, tem sido seu elevado grau de financeirização.

Em termos proporcionais, o montante de ATENÇÃO! circulação da riqueza na atividade produtiva representava uma parcela já inexpressiva, se Entende-se por financeirização comparada ao montante total de circulação da econômica o fato da circulação riqueza na economia financeira. Referindo-se material da riqueza ocorrer mais a dados do final dos anos 1990, o economista na esfera das aplicações finane filósofo P.Viveret, no documentário La ceiras ao invés de estar baseadouble face de la monnaie (2006, França), da em circulação real de bens e comenta: “Todos os dias circulam no serviços com base em atividade mercado de capitais perto de 2 trilhões de produtiva concreta. dólares. Enquanto no comércio mundial essa circulação é de 8 trilhões de dólares por ano. Assim, mais de 98% das transações monetárias diárias não correspondem a troca de bens e serviços realmente existente”.

Essa enorme desproporção não cessa de crescer. Em um dos estudos internacionais recentes mais conhecidos sobre a dinâmica do capital no século XXI, o economicista francês Thomas Piketty demonstra com profundo rigor essa escalada ao evidenciar os níveis cada vez maiores de desigualdade socioeconômica na dinâmica histórica do capitalismo e que se acentuam nas três últimas décadas (PIKETTY, 2013; CAPRARA, 2017).

Sua análise permite descortinar uma nova lógica econômica, reatualizando a problemática da apropriação. De fato, conforme salienta Dowbor (2017), se o PIB geral no mundo evolui a taxas entre 2 e 2,5%, enquanto a rentabilidade das aplicações financeiras fica entre 7% e 9%, passamos a conviver com a substituição do investimento produtivo pelas aplicações financeiras. Essa

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lógica de um capitalismo rentista produz uma deformação importante do sistema econômico pelo aumento da desigualdade via apropriação concentrada da riqueza entre os aplicadores financeiros. Assiste-se, assim, ao surgimento de uma nova lógica de exploração, dessa vez centrada na mais-valia financeira.

Essa tendência altera, de modo substancial, a representação que temos sobre a relação entre economia e valor. Sem aprofundarmos o estudo da história econômica por enquanto, apenas nos atendo à própria dinâmica do capitalismo moderno, estivemos habituados a conceber a criação de valor econômico e geração de riqueza como resultado de investimento produtivo, o que pressupõe produção, consumo e circulação de bens e serviços numa economia (de mercado) real. Nestes termos, a geração de valor seria resultado ou do investimento em trabalho diretamente, ou do investimento em capital associado ao trabalho. Entretanto, com os atuais níveis de valorização da atividade financeira, aqueles detentores de capital preferem, na maioria das vezes, deixar de fazer investimento produtivo, segundo um cálculo elementar de relação risco-retorno, para, literalmente, deixar seu dinheiro, por si, gerar mais dinheiro.

Dois aspectos chamam a atenção nesta tendência: o primeiro não é o simples fato de o dinheiro gerar mais dinheiro. Na medida em que tudo, num sistema de mercado, deve se transformar em mercadoria e, assim, ser dotado de valor próprio para participar de relações de compra e venda, o mesmo ocorre com a mercadoria-dinheiro. Embora o dinheiro, ao lado da terra e do trabalho, sejam mercadorias fictícias, segundo Polanyi (1986), pois não são fabricáveis, também se sujeitam às regras da mercadorização como qualquer outro bem. Portanto, o que chama atenção não é a capacidade de o dinheiro gerar mais dinheiro, mas o nível tão elevado, desmedido ou descontrolado com que esse fenômeno ocorre. Essa desregulação elevada ou autoregulação acentuada de um mercado como aquele da mercadoriadinheiro, produz também um segundo efeito sobre as principais instituições atuando neste âmbito. É assim que os bancos vão pouco a pouco alterando seu papel na dinâmica da sociedade: tornam-se cada vez menos fomentadores ou financiadores da atividade produtiva e cada vez mais especuladores financeiros. Numa expressão forte, alguns autores se referem ao papel da maioria dos bancos na economia brasileira como “sangues sugas” ou “parasitas econômicos”, pois diante das taxas médias de juros cobradas em serviços e operações financeiras em geral, observa-se uma drenagem de

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recursos da economia produtiva para a especulação financeira. Uma das consequências bem conhecidas desse fenômeno tem sido o elevado grau de endividamento da população e a alta mortalidade das empresas. Não sem razão, o setor financeiro, no Brasil, acumulou ganhos tão expressivos em um dos momentos mais recessivos da história econômica nacional.

VOCÊ SABIA? Segundo dados do Diap-Dieese de 2018: “O lucro líquido dos quatro maiores bancos brasileiros com ações na Bolsa totalizou R$ 17,47 bilhões no terceiro trimestre de 2018.

O valor representa uma alta de 28,5% na comparação com o mesmo período de 2017” https://www.diap.org.br/images/stories/desempenho-bancos-dieese-2018.pdf

Se o Brasil sofre os efeitos de uma tendência da economia global, ele também contribui para acentuar, ao seu modo, essa mesma tendência: carregamos o título de campeão mundial das taxas médias de juros. Níveis tão inaceitáveis em outros países reforça o argumento de que vivemos uma situação de profunda imoralidade econômica. Mas, porque a imoralidade política, como os escândalos de corrupção, causa maior indignação na população? Um primeiro ensaio de resposta nos conduz a refletir sobre o grau de desconhecimento das razões para a imoralidade econômica, fazendo com que muitos a aceitem como normal ou natural, tal como interpretam o funcionamento da economia de mercado.Além disso, a complexidade técnica com que se apresentam tais assuntos costuma distanciar seu entendimento do cidadão médio. O funcionamento econômico é visto como uma caixa preta, na qual nos sentimos impotentes em decifrá-lo, tal como uma língua que não sabemos ler, ouvir e muito menos escrever e falar: o “economês”.

E assim, vivendo anestesiados pelo desconhecimento, não sabemos que o funcionamento da economia é fruto de decisões políticas. Afinal de contas, a ideia de que a economia obedece a um fluxo natural invalida qualquer tipo de reflexão ou análise política sobre ela. Assim, a análise das razões pelas quais se toma decisões políticas em matéria de economia fornece um caminho fecundo para o seu entendimento.

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A indagação, portanto, sobre o que explica os atuais padrões e tendência de financeirização da economia mundial é uma reflexão sobre como, por que e por quem as decisões são tomadas. Trata-se de uma reflexão política (e pedagógica) sobre o econômico, assim, um exercício de análise de economia política.

Um dos aspectos marcantes da evolução dessa relação entre economia e política é o fato de que a dinâmica de aceleração dos processos de financeirização da economia acontece simultaneamente aos processos políticos de enfraquecimento do poder, não apenas dos estados-nação como das próprias instâncias supranacionais de regulação internacional.

São inúmeros os encontros internacionais para tratar dos grandes problemas mundiais, como meio ambiente e desigualdade. Propostas são muito bem construídas e elaboradas (a exemplo dos 17 ODS - “objetivos do desenvolvimento sustentável”) e acordos são assinados, mas a questão que permanece é: por que a realidade não muda? A resposta a essa questão nos convida a reflexão sobre onde está o poder de mudar as coisas? Ou, por que a ação de governos se torna tão patética, se corrompendo ou se desorganizando? (DOWBOR, 2017). Se os governos tentam regular seus espaços nacionais, esses espaços são diretamente afetados por injunções e mudanças internacionais. No entanto, não há governos internacionais como instância a se recorrer. Como não há vácuo de poder nas esferas internacionais, é preciso se referir à um deslocamento do poder, a nível mundial, que corresponde a célebre sentença do sociólogo brasileiro Octavio Ianni: “A política mudou de lugar” (IANNI, 1997). À pergunta sobre o novo lugar da política na atual cena internacional corresponde à questão sobre o novo desenho da chamada arquitetura do poder mundial. Nos termos de N. Chomsky (2017): “quem governa o mundo?”

A resposta a essa questão se delineia num paralelismo quase simétrico: ao processo de diminuição do poder econômico dos estadosnação, e seu consequente enfraquecimento de poder político, corresponde o fortalecimento econômico, sem precedentes, de grandes grupos privados que passam a ser conhecidos como gigantes corporativos. A título de ilustração, apenas uma empresa como a BlackRock possui faturamento de 14 trilhões de dólares, quase equivalente ao PIB americano (DOWBOR, 2017, p. 55).

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Entender a dinâmica de funcionamento do chamado poder corporativo mundial se torna um aspecto chave nesse esforço de decifrar a economia hoje. Dowbor (2017) salienta o quanto se trata de tema pouco conhecido, tanto pela dificuldade de acesso às informações, quanto pela falta de apoio institucional para pesquisas sobre o assunto.

Dentre os documentários sobre o tema destacam-se: “A Corporação” (The Corporation) de 2004, “Trabalho Interno” (Inside Job) de 2011 e “The Four Horsemen” (Os Quatro Cavaleiros) de 2012.

Já em termos de pesquisa, um dos raros e talvez o principal trabalho sobre como está estruturado o poder das grandes corporações foi realizada pelo Instituto Federal Suiço de Pesquisa Tecnológica (ETH) em 2011, sob o título “A Rede de Controle Corporativo Global” (DOWBOR, 2015, P. 41). Tal pesquisa revela que 737 grupos controlam 80% do sistema corporativo mundial. Neste, um núcleo de 147 empresas tem o controle de 40% do volume de negócios, dos quais três quartos (75%) são constituídos por bancos. Essa rede é descrita como uma estrutura piramidal de poder, na qual empresas ou grupos financeiros, constituídos por acionistas e investidores, controlam outras empresas, gerando um sistema de dependência financeira entre corporações, que formam um conjunto articulado de poder altamente hierarquizado e concentrado no topo.

Este novo cenário muda radicalmente a estrutura e dinâmica da própria atividade empresarial nos mais variados setores da economia na maioria dos países. A figura do empreendedor que controla seu negócio vai, pouco a pouco, desaparecendo e segmentos inteiros em diferentes ramos da atividade econômica vão sendo reestruturados de acordo com a lógica desse modelo. Os efeitos são desde a mudança profunda do processo decisório com o fenômeno da diluição de responsabilidade no nível da gestão dos negócios, até os níveis políticos nacionais e internacionais, através de diferentes mecanismos de controle institucionais pelo grau de influência exercida (nas instâncias políticas parlamentares, na área jurídica, nos veículos de comunicação de massa etc.) (DOWBOR, 2017).

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Das 773 gigantes financeiras, Dowbor (2017) destaca o papel de 28 delas (bancos e seguradoras), que praticamente controlam o sistema financeiro do planeta:

Figura 1 : Gigantes Financeiros. Fonte: Dowbor (2017)

Cada uma destas é detentora de um valor médio de ativos da ordem de 1,8 trilhões de dólares. Superior, portanto, ao PIB de um país como o Brasil (aproximadamente 1,6 tri), quando ocupava o sétimo posto mundial há poucos anos atrás. Em conjunto, apenas estes 28 grupos financeiros manejam o montante de cerca de 50 trilhões de dólares para um PIB mundial estimado em cerca de 73 tri (DOWBOR, 2017).

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Considerando, então, que a dívida dos governos, em nível mundial, fica também em cerca de 50 trilhões de dólares, pode-se concluir que o poder de influência e controle de tais grupos sobre os governos apenas se fortalece sistematicamente e, assim, transforma a política.

Numa reflexão sobre a governança corporativa desses grupos, ou seja, como funcionam seus sistemas de gestão e, portanto, como são tomadas suas decisões, Dowbor (2017) salienta os efeitos do gigantismo de tais estruturas piramidais, conformando hierarquias de organização econômica com cerca de 7 níveis, em média. São assim chamadas de galáxias econômicas pela sua diversidade de atuação: cada empresa ou gigante empresarial trabalha entre 27 e 164 setores da atividade econômica.

O gigantismo produz uma desarticulação da sua capacidade de gestão ou de organização. Tal como muitos governos, tais gigantes empresariais se tornam também gigantes burocráticos, indicando o problema da sua racionalidade e da sua utilidade em termos econômicos, sociais e ambientais. Com a fragilização dos seus mecanismos de controle e gestão, dado o seu gigantismo, o único critério prevalente nos seus sistemas de tomada de decisão é a rentabilidade financeira. Como num jogo em que empresas compram outras empresas sem o menor conhecimento sobre o seu domínio de atividade, estas devem imperativamente serem lucrativas.

Em sendo a maximização do lucro a lógica de um gigante empresarial, tal critério pode entrar em conflito, inúmeras vezes, com os riscos de impacto ambiental, entre outros riscos compreendidos como custos, o que esclarece motivos e razões para tantos grandes acidentes ou catástrofes ambientais. Verifica-se, em resumo, uma dupla incapacidade: dos governos em não conseguir impor limites e das próprias empresas, internamente, em assegurar as transformações (DOWBOR, 2017).

As características acima mencionadas indicam mais do que uma transformação do paradigma da organização produtiva. Elas apontam um processo profundo de deformação ou de degenerescência econômica pelos efeitos engendrados na sociedade. De fato, pode-se observar, nos últimos anos, uma correlação íntima entre a escalada da financeirização da economia e o aumento crescente da concentração da renda, das desigualdades e dos impactos ambientais. Podemos, em resumo, considerar a realidade de uma dupla insustentabilidade, afetando a vida atual em nossas sociedades.

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1.3 Crise ambiental e desigualdade: o problema da dupla insustentabilidade Os cientistas já nos ofereceram, em abundância, todas as evidências necessárias para anteciparmos a resposta à crise global maior que se desenha. Suas constatações demonstram o caráter insustentável do nosso modelo econômico padrão. De um lado, em razão dos inúmeros efeitos de externalidade negativa que ele produz e seu impacto maior no aquecimento climático (IPCC, 2014) e sobre a biodiversidade (IPBES, 2017); de outro, em função das desigualdades engendradas (PIKETTY, 2013) e que enfraquecem os próprios fundamentos das nossas democracias (SERVET, 2010; JUAN, 2011). Essa dupla insustentabilidade infelizmente se conjuga.

O aquecimento global reforça as desigualdades econômicas engendrando migrações climáticas dificilmente geridas. As desigualdades econômicas precarizam amplas parcelas da população em inúmeros países, condenandoas à sua incapacidade de escolha dos equipamentos e tecnologias que se impõem face aos desafios climáticos.

Detalhando os termos da nossa problemática, comecemos pela questão ambiental. Nosso planeta conhece uma explosão populacional sem precedentes na história, se considerarmos o montante de 1,5 bilhão de habitantes em 1900 e de mais de 7 bilhões hoje. Tal ritmo de crescimento populacional é induzido por um sistema econômico exigindo o uso excessivo dos nossos recursos naturais. Algumas consequências conhecidas são o problema do desmatamento, além da contaminação química dos nossos solos e água. Outro efeito importante é a destruição da nossa biodiversidade: segundo dados de 2016 da World Wild Fund for Life (WWF), em apenas quarenta anos (entre 1970 e 2010), 52% da fauna do planeta fora destruída (DOWBOR, 2017). Além disso, nossos hábitos de consumo de alimentos produzidos através do uso intensivo de agrotóxicos têm efeitos evidentes na saúde pública, observável através da incidência cada vez maior, nas populações, de casos de doenças degenerativas como câncer, entre outros.

Já do ponto de vista socioeconômico, estamos convivendo com níveis crescentes de desigualdade no mundo. Ela tem origem na concentração de renda e de riqueza no planeta, cujos níveis persistentes e crescentes deslocam o debate para o campo da ética e da injustiça.

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Para Dowbor (2017, p. 26): “A desigualdade em termos de riqueza ou patrimônio tem sido amplamente divulgada, em particular depois da crise de 2008. Trata-se do patrimônio domiciliar líquido (net household wealth), que apresenta desigualdade radicalmente maior do que o acesso à renda. A lógica é simples: quem recebe salário médio ou baixo paga comida e transporte, quem tem alta renda compra casas para alugar, ações e outras aplicações financeiras que rendem. Isto leva a um processo de acumulação de fortuna, ainda mais quando passa de pai para filho, criando castas de ricos. Um exemplo simples ajuda a entender o processo de enriquecimento cumulativo: um bilionário que aplica um bilhão de dólares para render módicos 5% ao ano está aumentando a sua riqueza em 137 mil dólares por dia. Não dá para gastar em consumo essa massa de rendimentos. Reaplicados, os 137 mil irão gerar uma fortuna anda maior. É um fluxo permanente de direitos sobre a produção dos outros, recebido sem tirar as mãos no bolso”

O autor chama a atenção para o problema da incongruência entre esforço produtivo e remuneração que tem estado no centro das preocupações da ONU, conforme revelado no “Relatório sobre Desenvolvimento Humano” de 2015 que aborda os riscos da falta de políticas adequadas à geração de igualdade de oportunidades e de recompensas no mundo do trabalho.

Em tom irônico, Dowbor (2017, p. 25) comenta: “Não haverá tranquilidade no planeta enquanto a economia for organizada em função de 1/3 da população mundial. Até quando iremos culpar os próprios pobres pela sua pobreza, pretensa falta de esforço ou iniciativa, sugerindo indiretamente que a riqueza dos ricos resulta de dedicação e merecimento? A desigualdade é fruto de um sistema institucionalizado cuja dinâmica estrutural precisa ser revertida. Os ricos, por seu lado, têm uma impressionante propensão a achar que são ricos por excepcionais qualidades próprias. Não faltam discursos econômicos para louvar esta sabedoria”

Já em termos de avaliação, o coeficiente de Gini tem sido o meio mais utilizado para a medida da desigualdade de renda. O aumento da desigualdade é indicado pela elevação do indicador: fica na faixa de 0,50 no Brasil, 0,45 nos EUA e 0,25 na Suécia.

Nome do Capítulo

Gini Index 23.0 – 27.4 27.5 – 31.9 32.0 – 36.4 36.5 – 40.9 41.0 – 45.4 45.5 – 49.9 50.0 – 54.4 54.5 – 59.9 60.0 – 63.2 No data Source: CIA - The World Factbook

Figura 2: Coeficiente de Gini. Domínio público, Commons. Wikimedia.org

SAIBA MAIS! O coeficiente de Gini é uma medida de desigualdade elaborada pelo estatístico italiano Corrado Gini, e publicada no documento ‘Variabilitá e mutabilitá’ em 1912. Embora seja mais utilizado para medir a desigualdade de distribuição de renda, essa medida tem usos mais amplos.

O coeficiente de Gini consiste em um número de 0 e 1, onde 0 corresponde à completa igualdade de renda (por exemplo, toda população recebe o mesmo salário) e 1 corresponde à completa desigualdade (onde uma pessoa recebe todo o rendimento e as demais nada recebem).

O índice de Gini é o coeficiente expresso em pontos percentuais, sendo igual ao coeficiente multiplicado por 100.

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Os dados mais gerais sobre desigualdade podem ser resumidos na pirâmide da riqueza global, divulgados através de pesquisa do grupo financeiro suíço Credit Suisse, insuspeito de antipatia para com os ricos:

Figura 3 : A pirâmide da Riqueza Global. Fonte: Fonte: James Davies, Rodrigo Lluberas e Anthony Shorrocks, Credit Suisse Global Wealth Databook 2016: https://goo.gl/NBgokb8 In: Dowbor (2017)

Os dados alarmantes apresentados nesta pirâmide são reforçados pelas tendências verificadas no relatório da OXFAM (“Uma economia para os 99%”) de 2017, conforme resume Dowbor (2017, pp. 28-29): “a) Desde 2015, o 1% mais rico detinha mais riqueza que o resto do planeta; b) Atualmente, oito indivíduos detêm a mesma riqueza que a metade mais pobre do mundo; c) Ao longo dos próximos 20 anos, 500 pessoas passarão mais de US$ 2,1 trilhões para seus herdeiros - uma soma mais alta que o PIB da Índia, que tem 1,2 bilhão de habitantes; d) A renda dos 10% mais pobres aumentou cerca de US$ 65 entre 1988 e 2011, enquanto a do 1% mais rico aumentou cerca de US$ 11.800, ou seja, 182 vezes mais”

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Tal tendência vinha sendo alertada por uma imensa literatura, conforme adverte Dowbor (2017, p. 28): “Uma excelente análise do agravamento destes números pode ser encontrada no relatório Report on the World Social Situation 2005: The Inequality Predicament, United Nations, New York 2005. O documento do Banco Mundial, The Next 4 Billion, que avalia em 4 bilhões as pessoas que estão ‘fora dos benefícios da globalização’, é igualmente interessante – IFC. The Next 4 Billion, Washington, 2007. Estamos falando de dois terços da população mundial. Desde o início da crise financeira em 2008, os números vêm se agravando, atingindo agora com força os próprios países ditos desenvolvidos, e em particular os Estados Unidos, gerando um clima amplo de frustração”.

Apoiado no trabalho de Gar Alperovitz e Lew Daly (2010), Apropriação indébita: como os ricos estão tomando a nossa herança comum, que desenvolvem o conceito de “renda não merecida”, Dowbor procura enfatizar o quanto a apropriação de riqueza de todo tipo, especialmente em termos de avanços tecnológicos, tem sido concentrada.

Em resumo, estamos destruindo o planeta em prol de uma minoria que é muito pouco produtiva. Segundo Dowbor (2017) a lógica do sistema não faz sentido para a maioria. Os recursos financeiros, a capacidade tecnológica e todos os meios modernos que desenvolvemos tem que estar a serviço do bem-estar das famílias e ao resgate de uma política que ambientalmente não destrua o futuro dos nossos filhos.

Este efeito conjugado da dupla insustentabilidade é muito prejudicial em matéria de transição ecológica e social, pois complica as decisões de importância baseadas em consensos (CHANCEL, 2017). Se a transição não pressupõe uma ruptura violenta (pela natureza democrática deste caminho), ela supõe, por outro lado, um desejo de mudança compartilhado (CHABOT, 2015). A questão agora é então de saber como suscitá-la e organizá-la.

Neste início de século XX é o caráter inelutável da catástrofe que devemos enfrentar e não sua simples possibilidade (DUPUY, 2002). Da nossa capacidade coletiva de responder com rapidez e pertinência aos problemas que se colocam, dependerá a manutenção de nosso nível civilizatório.

Conforme observa Diamond (2005), o desmoronamento de uma sociedade não se atribui unicamente aos danos ecológicos. Outros fatores agravantes se

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acrescentam dentre os quais as respostas (ou as não respostas) apresentadas face ao problema. Uma vigilância é então necessária, para além apenas dos fatores ambientais, em relação ao conjunto das problemáticas e práticas sociais. Estamos atravessando atualmente uma crise civilizatória (KLEIN, 2015).

A gravidade da mudança climática e a perda da diversidade interpelam a distinção tradicional entre história da natureza e história humana, nos conduzindo a pensar o antropoceno (BEAU, LARRÈRE, 2018) e nos impõe vislumbrar maneiras de agir com a natureza e não contra ela (LARRÈRE ET LARRÈRE, 2015). Isto supõe sair do “progressismo tecnológico (…) que se tornou a figura maior do niilismo contemporâneo” (GRAS, 2003, p.

293) e recusar os modelos econômicos “em guerra contra a vida na terra” (KLEIN, 2015). É preciso abandonarmos um modelo de desenvolvimento que coloca em risco os recursos naturais e que “arruína as possibilidades de se viver uma vida humana” (REY, 2014, p. 44). A finitude do mundo não é suficientemente levada em consideração, prisioneiros que somos de um desenvolvimento infinito das técnicas.

Os atores conscientes dos desafios à superar encontram-se na mesma posição de Cassandra, anunciando aos troianos a ameaça pesando sobre sua cidade: ninguém parece verdadeiramente disposto à escutá-la. As decisões radicais que se impõem penam à serem tomadas. Parecemos coletivamente anestesiados ou assustados e, de certa forma, fragilizados por nossa própria impotência (GRAS, 2003). Há, com efeito, um hiato flagrante e perigoso entre o nível de capitalização e de controle tecnológico alcançado pela humanidade e seu nível de maturidade política.

SAIBA MAIS Cassandra faz parte da mitologia grega. Ela é conhecida por ter premunido e anunciado a queda de Troia e por não ter sido escutada pelos troianos muito embora a justeza da sua premonição.

Unidade 1 - Por uma pedagogia do econômico na sua relação com o desenvolvimento

1.4 Uma economia e um desenvolvimento sem território?

As reflexões acima podem ser resumidas em um importante ponto de vista, exposto em editorial da revista New Scientist em 2008: “a ciência nos diz que se queremos ser sérios com a visão de salvar a Terra, precisamos dar outra forma a nossa economia” (HIGHFIELD Apud DOWBOR, 2017, p .19). A questão que passa a nos ocupar, neste momento, é, então, sobre como repensar a ideia do econômico. Contudo, antes de adentrarmos esse assunto no capítulo seguinte, mais uma indagação fundamental se coloca: a reflexão sobre o econômico em novas bases, não requer, ao mesmo tempo uma apreciação sobre o contexto, lugar ou lócus de sua existência; isto é, um dado território ou uma territorialidade?

Vimos que a ideia de território é negada dentro de uma lógica de financeirização da economia. O movimento do capital não tem apego algum, nem com uma suposta origem, muito menos identidade ou qualquer forma de enraizamento. Ele não pode estar preso a nada, deve funcionar livremente e fazer suas escolhas em função de um único critério, sua lucratividade. Por isso, ele pode ir para qualquer lugar sem o menor compromisso de permanecer. Ele entra, ao sabor do seu interesse de rentabilidade, e sai livremente também ao sabor desse mesmo interesse quando se sente insatisfeito. Os diferentes fenômenos de deslocalização ou desterritorialização de empresas em diferentes regiões do mundo indica essa lógica.

Se essa visão do econômico quer prescindir do território é porque ela se sente autosuficente. De fato, o princípio básico que orienta essa conduta econômica é sua auto-referencialização, que ensejaria sua capacidade de autorregular-se. Uma visão assim tão autocentrada do econômico o conduz a separar-se do território ou da própria sociedade, tal como um fenômeno abstrato, desvinculado de tudo. Não à toa expressões como “solipsismo econômico” ou “economia autista” são empregados em sua referência. Porém, como essa concepção é demasiadamente abstrata, mas precisa existir num mundo real, então, a concepção de autocentramento do econômico inverte os termos históricos da relação entre economia e sociedade. Agora, o território fica dependente desse modelo econômico e, em última instância, a própria sociedade passa a dele depender. Para Polanyi, o risco de fortalecimento do chamado sistema de mercado é justamente

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a passagem de uma economia de mercado à uma sociedade de mercado.

Nessa capacidade de a tudo subordinar, vivemos o drama da uniformização cultural ou da homogeneização dos comportamentos, da prevalência de valores materialistas entre as pessoas. E, muito especialmente, vivemos também o aprisionamento da política ou na expressão de Caillé (1988) o seu esquecimento. A subordinação da política à economia representa o aniquilamento do sentido da política, enquanto espaço de mediação das diferenças e dos conflitos. A ideia de que a política se torna desnecessária, corresponde à visão de um mundo onde não há conflitos, onde não há diferenças e pode, assim, ser tecnocraticamente gerido. A subordinação da política pela economia corresponde ao assassinato da democracia. Se é a sociedade que deve servir à lógica econômica, a capacidade democrática dos sujeitos de decidir sobre ela se desfaz.

Em contraponto, redesenhar ou “dar outra forma a nossa economia” pressupõe inverter os termos da relação entre economia e sociedade, bem como, aquele da relação entre economia e democracia. Uma economia que esteja, de fato, a serviço da sociedade requer a construção de mecanismos ou dispositivos democráticos de decisão sobre esse redesenho. Se tais mecanismos podem ser vistos como dispositivos institucionais, eles pressupõem um lócus fundamental de existência. Este, justamente, só se define territorialmente.

O conceito de território adquire então uma importância vital ao lado dos termos fundamentais aqui tratados que são economia e desenvolvimento. É assim que vimos, no início desse capítulo, como a ideia de território a partir de diferentes acepções (local, comunitário, regional etc.) tenta qualificar a prática do desenvolvimento. Enquanto um conceito próprio, a ideia de território foi assimilada à ciência geográfica durante o século XX e apresenta distintas abordagens (SAQUET, 2007 e 2011).

Sua difusão tem ocorrido juntamente com a noção de territorialidade: “A territorialidade significa relações políticas de governança, sem deixar de envolver processos econômicos, culturais e diferentes formas de apropriação e uso do ambiente. Nesta abordagem, há uma especificidade vinculada ao entendimento do território enquanto espaço de mobilização e luta política em favor da conquista da autonomia decisória (SAQUET, 2014, p. 176)”.

O estudo da territorialidade ou de cada território constitui um elemento básico num esforço renovado de reflexão sobre a relação entre economia e desenvolvimento. Lugar de mediação, o território modela essa

Unidade 1 - Por uma pedagogia do econômico na sua relação com o desenvolvimento

relação, ao passo que também é por ela modelado, conforme as distintas sobredeterminações: do global ao local.Assim, a tarefa de repensar o sentido do econômico numa agenda renovada de visão sobre o desenvolvimento, não se elabora como pura abstração: ela se constrói a partir das demandas expressas pela territorialidade.

1.5 Síntese de conteúdo da Unidade Nesta unidade buscamos criar as condições para uma leitura - no sentido de compreensão e interpretação da realidade, permitindo esclarecer as razões pelas quais estamos vivendo grandes dificuldades com o modelo prevalente de relação entre economia e desenvolvimento. Foi com este intuito de esclarecimento que a metáfora da pedagogia fora mobilizada no título da unidade. De certa forma, trabalhou-se nesta unidade os dois termos fundamentais que definem nossa disciplina (economia e desenvolvimento) e acrescentou-se brevemente um terceiro: a noção de territorialidade.

Num primeiro momento, esclarecemos a ideia de desenvolvimento e salientamos como tal ideia requer sua qualificação (ou adjetivação) para melhor compreendermos seus desafios na prática. Foi assim que abordamos a noção de desenvolvimento local e outras noções correlatas como desenvolvimento comunitário. Através dessa breve revisão de conceitos o intuito fora também o de indicar como a discussão sobre o tema do desenvolvimento faz apelo, de certa forma, à importância da questão do território ou do lugar onde ele acontece. Num segundo momento, o intuito fora o de abordar mais o segundo conceito – o de economia – com o propósito de desvendar, ou desvelar, o seu funcionamento atual no contexto mundial. A rigor, buscamos mais precisamente identificar suas principais características, destacando o tema da financeirização da economia. Assim, pudemos abordar os principais efeitos dessa característica principal, segundo três dimensões: ambiental, socioeconômica e política, razão pela qual, nesta unidade, foi dado destaque ao tratamento dos temas da crise ambiental, da desigualdade e da nova forma de governança política internacional.

Buscamos, ainda, salientar que seus efeitos têm incidência direta sobre a dinâmica dos territórios, em suas múltiplas dimensões (do nacional ao local). Por isso, no terceiro momento, abordou-se brevemente a noção de territorialidade para sublinhar sua centralidade em qualquer reflexão que se queira fazer sobre a relação entre economia e desenvolvimento.

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Ilustração: Designed by Freepik

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2.1 Para construir outra concepção da relação entre economia e desenvolvimento – a contribuição da antropologia econômica Se a análise do econômico pode contribuir na compreensão da diversidade de práticas e visões do desenvolvimento, então, como redefinir o papel e significado do econômico numa agenda renovada de desenvolvimento territorial?

A redefinição do significado do econômico se apoia numa tradição de estudos da antropologia econômica muito mais como ampliação do olhar para produzir as inspirações necessárias ao exercício criativo de reatualização contemporânea das visões e práticas do desenvolvimento.

A antropologia econômica nos ensina como, em diferentes culturas ao longo da história, as sociedades desenvolveram seus meios institucionais de garantia das condições materiais de existência. Trata-se, portanto, de um olhar sobre o funcionamento da economia nas mais variadas sociedades.

Esse olhar nos aponta os caminhos para inverter a visão de dependência do território em relação ao econômico, para pensar-se um território definidor do tipo de economia adequada às suas próprias condições e características, o que equivale a inverter a própria fórmula de entendimento do econômico: da sua visão como um fim em si mesmo para sua abordagem enquanto um meio para realização de outros propósitos.

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2.2 A irredutibilidade da economia ao mercado Polanyi (1986; 2012) mostra, antes de tudo, que o mercado não é a forma exclusiva de circulação de bens e serviços econômicos. O autor qualifica de sofisma economicista a vontade, doravante comum, de reduzir a economia a uma economia de mercado. Para ele, a importância adquirida pelo mercado em nossas sociedades tende, com efeito, a mascarar outras formas de economia coexistindo com o mercado, como a reciprocidade, a redistribuição ou a domesticidade (que serão esclarecidas mais adiante). A análise histórica proposta por Polanyi é particularmente esclarecedora sobre esse assunto. Ele salienta que a dominação do mercado é historicamente datada e relativamente recente, sendo o período atual um caso de exceção, do ponto de vista do conjunto da história da humanidade. Apoiando-se em inúmeros trabalhos de autores clásssicos da antropologia como Bronislaw Malinovski, Franz Boas e Richard Thurnvald, demonstra que outros princípios econômicos, como a redistribuição ou a reciprocidade, primaram no passado. Na época pré-moderna, por exemplo, Polanyi (1986) mostra que a fixação dos preços para as trocas nos mercados era uma decisão das autoridades e dos responsáveis pela cité.

O funcionamento dos mercados estava enraizado nos mecanismos de controle sociais e políticos. Polanyi (1986) (1994) salienta que a ascensão forte do capitalismo está associada à emergência dos mercados autorregulados; isto é, mercados caracterizados pela fixação de preços não controlados. Num mercado autorregulado os preços são gerados pela lei de oferta e demanda e não dependem (em primeira análise) de fatores sociais, culturais ou políticos. O autor avança na ideia de que a aparição dos mercados autorregulados foi o fator desencadeador da “grande transformação” observada nas sociedades com o advento do período moderno. Sem a multiplicação desse tipo de mercado, a economia de mercado não teria podido se impor, nem a percepção dos atores teria se modificado. O crescimento da economia de mercado está, portanto, ligado ao desenraizamento progressivo do econômico vis-à-vis das relações sociais.

O avanço em força do mercado nos tempos atuais é, então, em grande medida, uma construção ideológica. O desenraizamento social e político do mercado o valorizou, conferindo-o uma nova legitimidade. O capitalismo

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aproveitou esta mutação para inverter a relação de dependência: doravante é a sociedade que se encontra enraizada no mercado. Evidentemente que essa abordagem pode ser ligeiramente relativizada, pois as lógicas de mercado não se resumem sempre à simples busca do interesse material. Elas estão também submetidas pontualmente aos desafios de reconhecimento, de poder ou de socialização (GRANOVETTER, 2000). Em todo caso, prevalece a constatação histórica da grande transformação, cuja principal característica tem sido a hegemonia da lógica de mercado sobre o conjunto das sociedades modernas.

Com essa análise podemos concluir que a indissociabilidade entre o econômico e o social constituiu a norma da organização da vida em sociedade, ao longo da história, pelo simples fato de não se conhecer sistema econômico algum que fosse independente ou que não estivesse submetido às próprias regras elementares da vida social (Polanyi, 2012). É o fenômeno do enraizamento do econômico no social. Prevalecia, a esse respeito, aquilo que poderíamos designar como uma determinação social do econômico; ou seja, quando as atividades econômicas não fazem sentido em si mesmas, mas apenas enquanto um meio para a realização de outros propósitos. É precisamente essa inversão, na forma de uma determinação econômica do social, que será conhecida apenas com o advento não do princípio do mercado em si, mas do princípio do mercado autorregulável na sua forma mais conhecida hoje como economia de mercado (POLANYI, 1986).

Figura 4 : Ações. Fonte: Pixabay

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2.3 As duas definições do econômico Deduz-se dessa reflexão polanyana duas significações possíveis para o econômico: como um fim em si mesmo e como um meio para realização de outros propósitos. Tais significações são esclarecidas nas duas definições do econômico presente em sua abordagem.

A visão da economia como um fim em si mesmo participa da chamada definição formalista do econômico. Esta atribui um significado apenas formal ao econômico como atividade humana, identificando-o com o caráter lógico da relação meios-fins, “como em economizar ou conseguir algo a baixo preço; desse significado deriva a definição de econômico pela escassez” (Polanyi, 2012, p.63). Aqui, a ideia do econômico se reduz ao chamado comportamento maximizador, que corresponde a “obter o máximo a partir dos recursos de que se dispõe” (Ibid., p.64). É assim que a definição formalista se encontra na base da visão de escolha racional identificando-se com a lógica do princípio de mercado.

Observa-se, então, como nessa concepção negligencia-se a dimensão institucional focalizando-se apenas o processo de economia dos meios num contexto de escassez. A economia é entendida como “toda forma de alocação de recursos raros para fins alternativos” (ROBBINS apud CAILLÉ, 2003, p. 220). Esta é a definição encontrada na maioria dos manuais de economia. De modo mais sintético, conforme sugere Caillé (2003, P. 220), esta definição formalista compreende por economia “todo comportamento visando economizar recursos raros procedendo sistematicamente a um cálculo de custos e benefícios envolvidos numa decisão pensada como uma questão de escolha racional”.

Ao menos duas implicações problemáticas podem ser constatadas em decorrência dessa definição, indicando seu caráter reducionista. A primeira diz respeito ao pressuposto de escassez, caracterizando a realidade e o meio ambiente econômico a priori, através da ênfase sobre a noção de recursos raros. Com base neste pressuposto, anula-se qualquer possibilidade de entender a natureza política da escassez de recursos em diferentes contextos da vida em sociedade, especialmente aqueles provocados pela dinâmica da acumulação capitalista. Ou seja, nem sempre os recursos são naturalmente escassos ou estão escassos, eles podem encontrar-se profundamente mal distribuídos, pela própria tendência de concentração ou acumulação de riquezas inerentes a determinados sistemas econômicos. A segunda

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implicação dessa definição formalista é relativa à visão de natureza humana, cujo comportamento é reduzido a uma questão de escolha racional, como se fosse próprio da ação e da conduta humana proceder sempre a partir de um “cálculo utilitário de consequências”, segundo a expressão de Guerreiro Ramos (1989). Em suma, tal definição formalista de economia baseia-se na axiomática do interesse (CAILLÉ, 2002), isto é, ela não compreende a multidimensionalidade de motivos que orientam o comportamento e conduta do sujeito humano em diferentes circunstâncias e contextos de sociedade.

Em constraste com essa definição formalista, Polanyi (2012, P. 63) nos apresenta aquilo que chama de definição substantiva do econômico: “O significado substantivo provém da flagrante dependência do homem em relação a natureza e aos seus semelhantes para sobreviver. Ele sobrevive graças a uma interação institucionalizada com o meio natural; isso é economia, que lhe fornece os meios de satisfazer suas necessidades materiais”.

O autor elabora esse significado ao estudar os diferentes sistemas econômicos na história e ao constatar a inexistência de instituições econômicas independe das dimensões ou esferas que organizam a vida em sociedade. Desse modo, ele apenas constata o fenômeno do enraizamento do econômico na sociedade e indica a pluralidade das formas históricas do econômico, ao se referir aos três outros princípios econômicos ao lado do mercado: a redistribuição, a reciprocidade e a domesticidade.

Nos termos de Caillé (2003:221), a definição substantiva, compreende a economia como “um processo institucionalizado de interação entre o homem e a natureza que permite um aprovisionamento regular de meios materiais para satisfação de necessidades”. Este sentido substantivo relaciona-se com a concepção aristotélica de economia e com a própria etimologia da palavra, remetendo à noção de ciência da boa gestão da casa (oikós) ou das condições materiais de existência.

A partir dessas duas definições pode-se constatar o sentido da economia relacionado ao problema da materialidade humana, muito embora a definição substantiva amplie, sobremaneira, essa compreensão. Ou seja, a economia em sentido amplo (substantivo) é o meio pelo qual as sociedades tentam viabilizar a reprodução das suas condições materiais de existência.

Ela (a economia) pode então encontrar diferentes mecanismos, formas

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ou princípios institucionais (POLANYI, 2012), conforme os diferentes contextos de sociedade ao longo da história. Já a economia em sentido muito restrito (definição formalista) pensa que apenas uma dessas formas de reprodução das condições materiais (baseado no princípio do mercado autoregulado) pode ser identificado como economia.

Importa salientar ainda que, neste sentido substantivo, a reprodução das condições materiais de existência (aquilo que constitui o sentido da economia) é parte de um processo mais amplo de reprodução da vida em sociedade, por isso não pode descolar-se dela. A rigor, a ação econômica pode ser vista como mais um tipo de ação social, conforme a sentença weberiana, o que aponta um horizonte de ruptura em relação as separações disciplinares. Pode-se considerar, assim, que a antropologia econômica, enquanto domínio interdisciplinar, constitui uma área fértil do conhecimento para um entendimento renovado sobre esse assunto. Se, então, o econômico é parte de um processo mais amplo de reprodução da vida em sociedade, isto não ocorre de modo abstrato, já que ela pressupõe um contexto ou lócus de realização, isto é, um dado território. Logo, o econômico deve ser compreendido na sua relação com as demais esferas ou dimensões que organizam a vida em qualquer território, a exemplo do social, do cultural, do político, ou do ambiental.

2.4 A pluralidade dos princípios econômicos De fato, num esforço de tentar entender o lugar da economia na sociedade ao longo da história e em diferentes culturas, Polanyi (1986) constata o seu enraizamento. Ou seja, ele salienta a impossibilidade do estudo de instituições especificamente econômicas em sociedades não modernas pela sua simples inexistência. Este, aliás, constitui o motivo pelo qual tantos economistas encontram profunda dificuldade em descobrir a origem das transações econômicas. O argumento de Polanyi consiste em dizer que “nenhuma sociedade poderia sobreviver durante qualquer período de tempo, naturalmente, a menos que possuísse uma economia de alguma espécie. Acontece, porém, que, anteriormente à nossa época, nenhuma economia existiu, mesmo em princípio, que fosse controlada por mercados” (POLANYI, 1986, p. 45).

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A preocupação do autor se concentra, então, na compreensão sobre a forma como o econômico se institui na vida em sociedade, em diferentes épocas ou lugares. É nesta abordagem institucional do econômico que Polanyi evidencia a diversidade das suas formas de manifestação. Sua ambição é a de construir uma visão ampliada do econômico, permitindo abarcar tanto a história das economias modernas quanto daquelas não modernas. Ele destaca três princípios do comportamento econômico, também chamados de formas de integração, a saber: a reciprocidade, a redistribuição e a troca. Cada um desses princípios apenas se torna efetivo quando encontra respaldo numa estrutura social de apoio, que definem padrões institucionais, que são: a simetria, a centralidade e o mercado.

Apesar de as formas de integração serem empregadas, com frequência, para denotar relações interpessoais, Polanyi (2012, p. 304) adverte que “meros agregados das condutas pessoais, não produzem, por si sós, estas estruturas”, razão pela qual elas representam também arranjos institucionais, como organizações simétricas, pontos centrais e sistemas de mercado.

Assim, se as formas de integração estão ancoradas no comportamento pessoal, seus elementos vitais de organização e validação provém de um arranjo institucional.

Neste sentido, a reciprocidade“diz respeito a movimentos entre pontos correlatos de grupos simétricos” (POLANYI, 2012, p. 303). Ela integra a análise econômica quando há estruturas simetricamente organizadas, como um sistema de parentesco. Entretanto, esse mesmo sistema apenas surge como resultado de um comportamento de reciprocidade no nível pessoal.

Para ilustrar esse aspecto Polanyi (2012, p. 306) se apoia em Aristóteles para salientar o vínculo entre afeição e reciprocidade: “Aristóteles ensinava que a todo tipo de comunidade (koinõnia) correspondia uma espécie de afeição (philia) entre os membros, a qual se expressava na reciprocidade (antipeponthos)”. Em todo caso, a reciprocidade não é entendida apenas em relações de um para um, mas compreende também uma multiplicidade de grupos e organizações mais permanentes, como as famílias, tribos ou cidades-estado, além de outras organizações menos permanentes, como organizações profissionais, religiosas ou sociais.

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“A reciprocidade como forma de integração ganha enorme poder por sua capacidade de usar a redistribuição e a troca como métodos subalternos. A reciprocidade pode ser alcançada mediante um compartilhamento do fardo do trabalho, de acordo com regras definidas de redistribuição, como quando as coisas são feitas ‘em revezamento’. Do mesmo modo, às vezes se chega à reciprocidade mediante a troca de equivalências fixas, em prol do parceiro que por ventura esteja carecendo de algum tipo de necessidade básica – uma instituição fundamental nas antigas sociedades orientais. Nas economias que não são de mercado, com efeito, essas duas formas de integração – reciprocidade e redistribuição – costumam ocorrer juntas” (POLANYI, 2012:306-307).

Já a redistribuição “designa movimentos de apropriação em direção a um centro e partindo dele” (POLANYI, 2012:303). Ela prevalece num sistema em que os bens são coletados por um grupo e redistribuídos para outro, em virtude do costume, da lei ou de decisão central. Essa forma de integração ocorre desde as sociedades mais antigas até os sistemas de armazenamento do Egito e o modelo de estado do bem-estar social moderno. Porém, essa forma de integração, que pressupõe a presença de um centro de alocação e redistribuição, não “surge como mera consequência dos atos frequentes de compartilhamento entre indivíduos”, pois “só quando se instalaram centros de alocação é que os atos individuais de compartilhamento puderam produzir uma economia redistributiva” (POLANYI, 2012:305).

Outros exemplos conhecidos e citados pelo autor foram o kraal centroafricano, a família patriarcal hebraica, o estado grego da época de Aristóteles, a família romana, a senhoria feudal da idade média.

A troca mercantil para atuar como forma de integração pressupõe o apoio de um sistema de mercados formadores de preços. Polanyi (2012) identifica três tipos de troca: “O movimento meramente locativo de uma ‘mudança de lugar’ entre mãos (troca operacional) e os movimentos apropriativos de troca com uma taxa fixa (troca decisória) ou com uma taxa negociada (troca integradora). Na medida em que se trata da troca com taxa definida, a economia é integrada pelos fatores que determinam essa taxa, não pelo mecanismo de mercado. Os próprios mercados formadores

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de preços só são integradores quando estão ligados em um sistema que tenda a disseminar o efeito dos preços para outros mercados que não os diretamente afetados” (POLANYI, 2012, p. 308-309).

As nuances observadas no princípio da troca apenas indicam uma diferença histórica importante de ser salientada em relação ao mercado como princípio econômico. Trata-se da necessária distinção entre dois tipos de mercado. O primeiro tipo corresponde às formas históricas mais antigas de mercado, enquanto um fenômeno efêmero e episódico da vida em sociedade e que se encontrava socialmente enraizado, seja pela não determinação livre dos preços, seja pelo simples fato de representar um espaço de vida social, cultural e política mais amplo. Duas imagens contrastadas historicamente indicam essa característica: a figura da ágora ateniense de 2.500 anos atrás, de um lado, e, uma feira popular na cidade mais distante do mais longínquo interior brasileiro, do outro. Já o segundo tipo de mercado é representado por sua forma mais conhecida e predominante, assumida na modernidade através da noção de mercado auto-regulado (que esclareceremos um pouco mais adiante).

Há ainda um quarto tipo de princípio econômico também identificado pelo autor, mas que se situa num arranjo institucional entre a simetria e a centralidade: trata-se da domesticidade. Esse princípio define uma lógica de reciprocidade fundada na produção para auto-consumo cuja referência central é a unidade doméstica. Constitui, de certa forma, uma reciprocidade mais restrita.

Para Polanyi (2012, p. 310) “(...) seja como for, as formas de integração não representam ‘estágios’ de desenvolvimento. Não há nenhuma sequência temporal implicada. (…) As sociedades tribais praticavam a reciprocidade e a redistribuição, enquanto as sociedades arcaicas eram predominantemente redistributivas, ainda que, em certa medida podiam dar margem à troca”.

Já as sociedades contemporâneas são regidas, predominantemente, pelo princípio institucional do mercado-autoregulado, mas convivem com formas reatualizadas de economias de reciprocidade e de redistribuição.

Estas últimas, costumam encontrar-se numa condição de subalternização dada a chamada dinâmica da acumulação capitalista desde o advento dos tempos modernos.

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As observações acima permitem constatar, na história, a predominância de diversas formas de economia marcadas por mecanismos variados de solidariedade, sinalizando o caráter de excepcionalidade da forma de mercado. Isto se compreende, nos termos da definição substantiva de economia que abordamos acima, através da constatação de um sentido do econômico que é muito diferente daquele que predomina em tempos atuais: a economia, enquanto uma atividade humana voltada para a garantia das condições materiais de existência, era vista como parte de um processo mais amplo de reprodução da vida em sociedade, por isso não poderia descolar-se dela. Essa é a razão pela qual também em diferentes tradições do pensamento sociológico, a ação econômica é entendida como apenas um tipo de ação social, conforme especialmente a abordagem weberiana. Isto aponta um horizonte de ruptura em relação às separações disciplinares clássicas, como sociologia e economia, assim como, reafirma o caráter interdisciplinar da antropologia econômica e sua fecundidade epistemológica num momento de renovação das formas como a ciência tenta compreender os grandes problemas do mundo.

Num esforço de atualização dessa visão ampliada do econômico, podemos definir a ideia de economia como toda forma de produção e distribuição de riqueza. Considerando, então, a diversidade históricocultural da forma de “fazer economia”, uma compreensão fecunda pode ser encontrada através da noção de economia plural (LAVILLE, 1994; 2009). Com esta noção, os quatro princípios históricos do comportamento econômico - o mercado, a redistribuição, a reciprocidade e a domesticidade - podem resumir-se a três tipos de economia com as mutações da modernidade: mercantil, não mercantil e não monetária.

Cada um desses princípios indica tendências de lógicas econômicas específicas, que podem estar em constante interação na dinâmica contemporânea. O princípio mercantil, identificado a lógica do mercado autorregulado, constitui o modo hegemônico de organização institucional da economia nos tempos atuais, dispensando maiores apresentações. De um ponto de vista ideal-típico, trata-se de um tipo de troca marcado pela impessoalidade e pela equivalência monetária, limitando a relação a um registro puramente utilitário. Nesse tipo de troca/relação, o valor do bem (que se mede pelo seu preço) funda a lógica do sistema, ao contrário do primado do valor do vínculo ou da relação social, que se busca numa lógica reciprocitária.

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Já o princípio não-mercantil, identificado com a lógica histórica da redistribuição, é marcado pela verticalização da relação entre sujeitos, grupos e instituições, criando um sistema de arrecadação e transferências de recursos que anula a relação de troca. Na modernidade aparece a figura de uma instância superior (o Estado), que se apropria dos recursos a fim de distribuí-los. Finalmente, o princípio não-monetário está identificado tanto com a reciprocidade quanto com a domesticidade. Tal princípio compreende-se através de uma variedade de formas de solidariedade como a cooperação, a ajuda mútua, a mutualização de recursos, entre outros. Sua lógica de ação pode ser melhor compreendida à luz do conceito de dádiva na tradição antropológica (MAUSS, 2001). A dádiva envolve três momentos: o dar, o receber e o retribuir. Neste tipo de sistema, os bens circulam de modo horizontal e o objetivo da circulação destes bens e/ou serviços vai muito além da satisfação utilitária das necessidades. Trata-se, sobretudo, de perenizar os vínculos sociais. A lógica da dádiva obedece, assim, a um tipo de determinação social específica, pois ao mesmo tempo livre e obrigada, a dádiva é essencialmente paradoxal (FRANÇA FILHO e DZIMIRA, 1999).

Em resumo, se o conceito de economia plural identifica o mercado como mercado-autoregulado é pela importância dessa ideia adquirida na contemporaneidade, conforme suas características institucionais mais comuns e predominantes. Entretanto, compreender um pouco mais a fundo essa diferença, mudança ou passagem de um tipo para outro de mercado, torna-se relevante para o propósito desse texto.

2.5 Sobre a questão das mercadorias fictícias Entender como os mercados se transformam em mercados autorregulados e passam a ocupar a grande centralidade nas sociedades modernas constitui um dos objetivos maiores da obra de Polanyi (2011). No longo período histórico em que predominava a reciprocidade e a redistribuição, “o comércio, a moeda e os mercados não constituíam um conjunto institucional integrado” (POLANYI, 2011, p. 367). Os mercados existiam, mas eram socialmente regulados. A fixação dos preços nestes mercados implicava diretamente os próprios atores concernidos, diferentemente do que ocorrerá com a aparição dos mercados autorregulados.

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Para explicar como uma mudança tão profunda foi possível, Polanyi (1986; 2012) avança a hipótese de uma vontade deliberada de transformação de três fatores de produção (o trabalho, a moeda e a natureza) em mercadorias. Estes três fatores não foram escolhidos ao acaso. Com efeito, eles tentam responder a uma possível limitação no exercício de um mercado autorregulado: o mercado tendo a necessidade de atribuir um preço às matérias-primas, um preço ao número de horas trabalhadas e um preço aos bens de produção financiados pelo crédito. A pressão é importante, pois a “construção política destes três mercados é a condição sine qua non da aparição de um mercado autoregulador” (POSTEL et SOBEL, 2010, p.9).

Para Polanyi (1986) esta transformação é, a priori, inconcebível. O trabalho, a moeda e a natureza não são mercadorias. Jamais estes fatores foram produzidos para serem vendidos. Existe assim, segundo o autor, um trabalho ideológico contribuindo para criar e entreter uma ficção estimada por ele como a mais potente ficção já imaginada. “Mercadorizar” estes fatores apresentam, então, uma dupla vantagem: a alimentação ilimitada dos mercados graças a uma regulação automática dos fluxos, de um lado, e o enfraquecimento das resistências sociais, diante de um dispositivo anônimo.

A economia de mercado tem, portanto, necessidade dessas “mercadorias fictícias” para assentar sua hegemonia e assegurar sua extensão sem fim.

O processo de “mercadorização” do trabalho, da moeda e da natureza não foi realizado de maneira linear. Constata-se que as ondas de “mercadorização” se sucedem e se entrecruzam “na medida em que elas passam do trabalho à moeda e em seguida à natureza, cada onda integrando a mercadorização do período precedente” (BURAWOY, 2013, p. 103) para minar, com uma força cada vez maior, “os direitos do trabalho, em seguida os direitos sociais (que compreendem os direitos do trabalho) e os direitos humanos que englobam estes três tipos de direitos” (BURAWOY, 2013, p.

103).

Desde então, a constatação é clara: o desenvolvimento do mercado se joga em desfavor da democracia. A partir de questões tão importantes quanto o bem-estar e a gratificação (ou realização) no trabalho, a confiança na moeda ou a preservação da natureza, a economia de mercado instala seus próprios dispositivos para invalidar qualquer controle social. O recurso à história é muito pertinente neste caso, pois nos mostra que este fenômeno de desenraizamento não é inelutável – ele foi notadamente revertido depois da segunda guerra mundial com a Declaração de Filadelfia e a vitória contra

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o fascismo (SUPIOT, 2010). A reversibilidade hoje pode se exprimir sob a forma de novos arranjos e dispositivos institucionais socioeconômicos inovadores conforme abordaremos no capítulo seguinte.

SAIBA MAIS! Declaração da Filadélfia é o título de um documento aprovado na 26ª Conferência da OIT, ocorrida logo ao final da segunda grande guerra, em 10 de maio de 1944, na cidade de Filadélfia, nos Estados Unidos, e que foi anexada a constituição da OIT em 1946. Essa Declaração afirmou uma série de princípios e estabeleceu um pacto de entendimento entre as nações segundo o qual não seria possível construir o desenvolvimento econômico sem o desenvolvimento social, isto é, um conjunto de direitos sociais mais amplos (habitação, saúde, educação, entre outros) garantidores das condições de bem estar de vida para as famílias num mundo que se pretendia civilizado. Os princípios e preconizações da Declaração de Filadélfia inspiraram e orientaram as grandes políticas de desenvolvimento do pós-guerra nos Estados Unidos e principais países da Europa. O período que vai aproximadamente da metade dos anos 1940 até a metade dos anos 1970 ficou conhecido através da expressão “trinta gloriosos” difundida por economistas e outros estudiosos para explicar a grande expansão e êxito no desenvolvimento das principais economias do ocidente, cuja característica marcante foi o elevado padrão de distribuição da riqueza e generalização do bem-estar social na população. A mobilidade socioeconômica das famílias e aumento populacional foi um fator importante acompanhando essa dinâmica, daí o uso também da expressão baby boom referindo-se ao mesmo período.

A principal contra-reação às preconizações da Declaração da Filadélfia veio quase meio século depois, através de um outro documento que ficou conhecido como “Consenso de Washington”. Este documento reúne um conjunto de medidas formuladas em novembro de 1989 por economicistas de instituições financeiras situadas em Washington D.C., como o FMI, o Banco Mundial e o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos. Nesta ocasião, decide-se que as garantias sociais teriam um custo elevado para os estados, devendo o desenvolvimento voltar a ser perseguido apenas através das livres forças de mercado, reatualizando então a ênfase exclusiva na ideia de crescimento. O documento se tornou a política oficial do FMI em 1990, quando passou a ser “receitado” para promover o “ajuste macroeconômico” dos países em desenvolvimento que passavam por dificuldades. Tais políticas ficaram também conhecidas como “neoliberais” pelo seu conteúdo revisionista das principais teses do liberalismo econômico. Posteriormente, sucessivas crises nos países que apostaram neste modelo fizeram o FMI rever suas posições. São, portanto, recomendações que há muito já deixaram de ser praticadas em razão do seu fracasso real

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A reflexão acima amarra o argumento central de Polanyi trazido na sua obra principal The Great Transformation, de 1944. Ele nos mostra historicamente como a revolução industrial consistiu na transformação do mercado num sistema autônomo de relações ao qual a sociedade em geral se tornou progressivamente subordinada e, assim, conforme salienta Guerreiro Ramos (1981), produziu as condições necessárias para que o mercado assumisse o papel regulador da política e a economia se tornasse uma ciência. Se a discussão sobre as mercadorias fictícias, hoje, nos convida a refletir sobre os limites e possibilidades de práticas de desmercadorização do trabalho, da moeda e da natureza, sua associação com a ideia de economia plural favorece o delineamento conceitual dos termos fundamentais contido nessa possibilidade.

2.6 Economia plural versus economia de mercado A outra ideia do econômico contida nesta discussão não constitui uma mera oposição de conceitos. Vimos antes como a definição substantiva do econômico, por ser ampliada, engloba ou envolve a definição formalista.

Do mesmo modo que o conceito de economia plural envolve ou ultrapassa a noção de economia de mercado. A noção de economia plural cumpre, a rigor, um propósito analítico-normativo, ao envolver a noção de mercado, conforme pode se esclarecer através da dupla acepção do verbo conter. Em um primeiro sentido, a economia plural contém a ideia de mercado, pois este é apenas parte de uma concepção mais ampla. Ou seja, está contido nela. Em um segundo sentido, a economia plural contém a economia de mercado em termos de refrear seus efeitos de externalidade negativa ou barrar sua pretensão de subordinar a sociedade à sua lógica.

Neste sentido, a fecundidade heurística do conceito de economia plural pode se situar numa reatualização do olhar sobre as dinâmicas econômicas contemporâneas para pensar novas possibilidades de desenvolvimento, segundo pelo menos três matrizes analíticas: a) o de permitir entender a especificidade de distintas lógicas socioeconômicas; b) o de permitir entender as possibilidades de articulação (ou de hibridação)

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entre tais lógicas, apontando caminhos inovadores em termos de arranjos institucionais; c) o de permitir ressignificar as próprias práticas de mercado, através de inovações institucionais nos próprios modos de produzir, comercializar, consumir e se relacionar financeiramente.

De todo modo, um aspecto de grande relevância neste esforço de atualização conceitual da ideia do econômico através da noção de economia plural, consiste precisamente em pensar a relação de cada uma das formas de economia com a democracia. É um imperativo de solidariedade democrática que acompanha a proposição de uma outra ideia de economia contida na noção de economia plural. Se ela nos ajuda a refletir sobre outro modo de enxergar o funcionamento da economia real, pelo menos dois níveis indissociavelmente articulados podem ser vislumbrados.

Um primeiro nível mais micro ou meso-sistêmico consiste em identificar práticas organizativas no seio da sociedade, baseado em mecanismos de solidariedade econômica, como uma projeção miniaturizada do conceito mais amplo de economia plural. Isto porque, tais práticas podem ser vistas com ênfase nos modos de gestão de diferentes lógicas em tensão nas respectivas dinâmicas organizativas que são analisadas. Nessas, enfatiza-se o desafio da busca do equilíbrio necessário à sustentabilidade de tais práticas, em meio à tensão entre as lógicas mercantil, não mercantil e não monetária. Isso significa reconhecer que uma mesma iniciativa, como, por exemplo, um empreendimento no seu funcionamento cotidiano, pode estar mobilizando recursos, simultaneamente, via atividade de comercialização contraprestação financeira (lógica mercantil), via financiamento público governamental ou não governamental (lógica não mercantil ou redistributista) ou via relações de solidariedade na forma de ajuda mútua, contribuições voluntárias, produção para autoconsumo, mutualização de recursos, entre outros (lógica não monetária ou reciprocitária). Neste sentido, o desafio da gestão encontra-se em manter a lógica mercantil subordinada à lógica solidária.

Num segundo nível, mais macro-sistêmico, o conceito de economia plural pode nos ajudar a melhor compreender a relação entre estado, mercado e sociedade em termos de novas formas de regulação sócioeconômicas.

Trata-se nesse caso de superar enfoques funcionais, que tentam entender a regulação a partir de setores, para valorizar uma abordagem mais sócio-

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política sobre o papel ressignificado do mercado, do estado e, sobretudo, da sociedade, na provisão de bens e serviços de modo mais acessível ao conjunto da população. É precisamente essa preocupação com novos padrões de relação entre o estado, o mercado e a sociedade, redefinindo a compreensão do econômico que aparece na obra de Guerreiro Ramos (1981). Na abordagem desse autor, reside um segundo aporte conceitual valioso em nosso esforço de ressignificação do econômico, para redesenhar estratégias de desenvolvimento compatíveis com padrões mais éticos, solidários e democráticos de relação entre economia e sociedade.

2.7 Da antropologia econômica à teoria das organizações: a noção de Paraeconomia em Guerreiro Ramos (GR) Se apenas através do conceito de economia plural já é possível encontrar elementos valiosos para a construção de uma outra ideia de desenvolvimento na prática, conforme abordaremos no capítulo seguinte, esta construção será ainda mais fortemente alicerçada com o acréscimo de mais um aporte conceitual significativo: a noção de paraeoconomia. Essa noção amplia também a compreensão do econômico, porém menos no seu significado profundo, conforme a perspectiva da antropologia econômica, e mais no sentido da relação entre a economia e os sistemas sociais.

Paraeconomia é o termo empregado por Guerreiro Ramos (GR) para fazer referência à necessidade de um modelo de análise de sistemas sociais e dinâmicas organizacionais que não se restringe à regulação pela economia de mercado. O termo é desenvolvido nos capítulos finais do seu último livro, publicado originalmente em inglês através de uma editora canadense nos finais dos anos 70 sob o título “A nova ciência das organizações”, mas cujo subtítulo, “uma reconceituação da riqueza das nações”, parecia indicar a preocupação salientada no texto.

Nesta obra, GR sugere uma refundação crítica da teoria organizacional convencional, cujos ensinamentos esbarravam, segundo ele, nos limites próprios de uma teoria organizacional nascida e desenvolvida a partir, fundamentalmente, das referências típicas de um modelo específico de sociedade – aquele centrado no mercado. Seu objetivo é “contrapor um

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modelo de análise de sistemas sociais e de delineamento organizacional de múltiplos centros ao modelo atual centralizado no mercado, que tem dominado as empresas privadas e a administração pública nos últimos 80 anos” (GUERREIRO RAMOS , 1989, p. XI).

O alcance da sua discussão proposta é bastante ambicioso, já que se estende à indagação sobre os fundamentos de praticamente qualquer teoria social. É assim que segundo o autor, a tarefa básica de uma nova ciência das organizações repousa sobre a necessidade fundamental de desconstrução de três pilares ou pressupostos encontrados na base da atual teoria organizacional. Não sem razão, os três pressupostos correspondem a três premissas fundantes de toda e qualquer teoria social, sendo relativos: ao conceito de razão; à concepção de natureza humana; e à concepção ou projeto de sociedade.

Se a argumentação do autor foi mais conhecida pela sua crítica da racionalidade utilitária e sua apresentação da racionalidade substantiva aplicadas ao estudo e gestão das organizações, é na reflexão crítica sobre a premissa de sociedade na base da teoria organizacional convencional que GR avança sua noção de paraeconomia. Seu diagnóstico inicial consiste em pensar que o conhecimento mobilizado pela teoria organizacional convencional esta baseado em pressupostos da sociedade centrada no mercado, acarretando sérias limitações em termos de sua aplicabilidade: “a aplicação de seus princípios a todas as formas de atividade está dificultando a atualização de possíveis novos sistemas sociais, necessários à superação de dilemas básicos de nossa sociedade” (GUERREIRO RAMOS , 1989, p.XI).

Neste sentido, a noção de paraeconomia eleva-se à categoria de um modelo de análise ou paradigma de compreensão da realidade, sugerindo outro olhar sobre a relação entre economia e sociedade. Sua formulação se apoia em três aspectos estreitamente interrelacionados: a) uma ideia de delimitação dos sistemas sociais; b) uma visão acerca da variedade de critérios ou requisitos adequados para um desenho delimitativo de sistemas sociais; e, c) uma abordagem sobre as implicações políticas da adoção de um conceito que se formula como um modelo multicêntrico de alocação de recursos.

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SAIBA MAIS! Sobre as noções de racionalidade instrumental e racionalidade substantiva, a importância do trabalho de Guerreiro Ramos (1989) está em mostrar “como nas sociedades modernas o conceito de razão incorpora um outro sentido, que passa a constituir a norma de entendimento sobre o que seja racionalidade. Esta é, precisamente, a visão da razão como um ‘cálculo utilitário de conseqüências’, consubstanciado na idéia de racionalidade instrumental ou funcional.

O vigor da análise de GR encontra-se na sua capacidade em retomar o debate sobre a transmutação do conceito de razão ao longo da história da filosofia e ciências sociais. O passeio teórico de GR consiste em retomar, inicialmente, o conceito de razão na teoria política clássica, com Aristóteles, estendendo sua discussão até a proposição crítica da Escola de Frankfurt, com Horkheimer e Adorno, na Dialética da Razão. Assim, o autor mostra como a razão em seu sentido clássico (entendida como a capacidade de discernimento próprio aos sujeitos humanos, habilitando-os a distinguir o falso do verdadeiro, o bom do mal ou o justo do injusto) transforma-se em algo exterior à figura humana, ou seja, no lugar da razão como equilíbrio, a razão passa a ser vista como uma capacidade de maximização de resultados.

A alternativa apresentada por GR (1989) ao conceito unidimensional de razão (traduzido na idéia de racionalidade instrumental, e largamente difundida pelas faculdades de gestão, por exemplo) é a noção de racionalidade substantiva, que o autor desenvolve a partir de uma tradição crítica da razão moderna presente em Weber, Mannheim, Horkheimer, Habermas e Voeglin. Enquanto na racionalidade instrumental deve prevalecer a assertiva maquiaveliana – segundo a qual “os fins justificam os meios”, pois o que importa, neste parâmetro de racionalidade, é a capacidade que possuem os meios para atingir os objetivos pré-fixados, ou seja, os meios não têm importância em si mesmos –, na racionalidade substantiva, por outro lado, avalia-se a qualidade intrínseca de cada ação empreendida, já que o propósito dessa razão é o entendimento humano. Nela, a escolha e definição dos fins não podem ser jamais exteriores à condição humana. Isto é, os fins definem-se como valores” (FRANÇA FILHO, 2010, P. 177).

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2.8 Paraeconomia como modelo delimitativo de análise dos sistemas sociais Inspirado em Marcuse (1966), GR parte do pressuposto de existência de um caráter unidimensional nos modelos de análise e planejamento dos sistemas sociais, que predominam não apenas no campo da administração, mas também naqueles da ciência política, da economia e mesmo das ciências sociais em geral. Tal caráter deve-se à centralidade ocupada pelo mercado enquanto categoria de ordenação dos assuntos pessoais e sociais. Diante deste diagnóstico, GR propõe um modelo multidimensional “para a análise e a formulação dos sistemas sociais, no qual o mercado é considerado um enclave social legítimo e necessário, mas limitado e regulado” (GUERREIRO RAMOS, 1989, p.140). É precisamente este modelo que ele denomina de “paradigma paraeconômico”. Um aspecto fundamental presente na concepção de tal modelo refere-se à assunção de “uma visão de sociedade como sendo constituída de uma variedade de enclaves (dentre os quais, o mercado é apenas um)” (GUERREIRO RAMOS, 1989, p.140), o que permitiria aos humanos dedicarem-se a formas muito diferentes e, segundo ele, integrativas de atividades substantivas. Além de um pressuposto de visão de sociedade, tal modelo supõe ainda a ideia de “um sistema de governo capaz de formular e implementar as políticas e decisões distributivas requeridas para a promoção do tipo ótimo de transações entre tais enclaves” (GUERREIRO RAMOS, 1989, p.140).

Figura 5: O paradigma paraeconômico de Guerreiro Ramos. Ilustração: Ariana Santana

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A delimitação organizacional proposta nesse modelo de análise descreve seis categorias constitutivas do seu paradigma: economia, isonomia, fenonomia, anomia, motim e isolado. Tais categorias podem ser compreendidas a partir dos dois pares de critérios utilizados pelo autor como eixos de estruturação do seu modelo, a saber: “orientação individual e comunitária”, de um lado, e, “prescrição contra ausência de normas”, do outro.

SAIBA MAIS! O que Guerreiro Ramos denomina como “economia” neste paradigma corresponde aos enclaves organizacionais caracterizados por sistemas altamente hiearquizados e com alto grau de prescrições operacionais inibindo a atualização dos sujeitos, a exemplo das grandes empresas convencionais.

Em contraste, as “isonomias”, para ele, são contextos organizacionais de pequeno ou médio porte favorecedores de autogratificação dos sujeitos que dele participa. Tem como características a livre associação de pessoas, com elevado grau de igualdade de direitos e tendendo a autogestão do seu processo de governança.

Já as “fenonomias” são iniciativas baseadas no trabalho de um único indivíduo ou no máximo três, de caráter esporádico ou mais ou menos contínuo, voltadas ao desenvolvimento de atividades altamente recompensadoras em termos de gratificação pessoal.

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Em relação ao primeiro par de critérios neste paradigma, a preocupação de GR é com a proposição de um modelo suficientemente amplo para não embutir uma interpretação da conduta humana que reduz “o indivíduo, ou cidadão, a um agente de maximização da utilidade, permanentemente ocupado em atividades de comércio” (p.141). O debate que conduz o autor, neste aspecto, pode ser resumido nos termos “maximização da utilidade” versus “atualização pessoal”, esta última entendida de um ponto de vista muito crítico em relação às tendências de escolha racional. Conforme explica GR: A delimitação organizacional é, portanto, uma tentativa sistemática de superar o processo contínuo de unidimensionalização da vida individual e coletiva. A unidimensionalização é um tipo específico de socialização, através do qual o indivíduo internaliza profundamente o caráter – ethos – do mercado, e age como se tal caráter fosse o supremo padrão normativo de todo o espectro de suas relações interpessoais (...). A afirmação inadequada de que o interesse pelas pessoas pode ser harmonizado com o interesse pela produção de mercadorias só se justifica à base de uma abordagem unidimensional da organização. E esse é, precisamente, o erro característico das atuais tendências do pensamento e da prática, no campo administrativo. (...)em vez de proclamar a possibilidade de uma total integração das metas individuais e organizacionais, o paradigma aqui apresentado mostra que a atualização humana é um esforço complexo” (GUERREIRO RAMOS, 1989, pp. 142-143).

Já em relação ao segundo par de critério, a preocupação de GR consiste em salientar os efeitos psicológicos das prescrições operacionais. Sua discussão busca mostrar o caráter inversamente proporcional da relação entre prescrições operacionais e atualização pessoal. Conforme ele explica: “quanto maior é o caráter econômico do trabalho, menos oportunidade de atualização pessoal é oferecido aos que o executam pelas respectivas prescrições operacionais” (GUERREIRO RAMOS 1989, p. 143), o que ocorre em razão da ausência de capacidade autônoma de decisão dos sujeitos sociais diretamente afetados. O autor sublinha, desse modo, a profunda contradição entre as necessidades individuais e as exigências da organização econômica, que não encontra solução possível no âmbito do chamado comportamento administrativo, o qual “consiste na atividade humana sob prescrições operacionais formais e impostas” (GUERREIRO

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RAMOS, 1989, p. 144). Quanto mais esta atividade humana é considerada administrativa, menos ela é propícia à atualização pessoal. A preocupação do autor é a de denunciar a tendência da teoria organizacional em identificar esse comportamento administrativo com a própria natureza humana, deixando de reconhecer que se trata de uma “síndrome psicológica inerente à economia e aos sistemas ameaçadores em geral” (GUERREIRO RAMOS, 1989, p.144).

As razões para esse fenômeno encontram-se no processo de superorganização e de despersonalização característico do desenvolvimento das sociedades industriais modernas, nas quais: “se espera sempre que o indivíduo viva como um ator, a quem cabe um papel determinado. (...) o indivíduo não dispõe de lugar e tempo verdadeiramente privados, duas condições para uma vida pessoal criativa. (...) preso continuamente a uma trama de exigências sobre método e organização, o indivíduo acaba por aceitar uma visão predeterminada da realidade” (GUERREIRO RAMOS, 1989, pp 144-145).

O autor lembra que tal processo apenas reforça à tendência de despersonalização do indivíduo. Em resumo, segundo GR (1989), o reconhecimento dos efeitos psicológicos das prescrições operacionais não significa admitir a necessidade de sua eliminação do mundo social, uma vez que os mesmos têm grande importância na manutenção e apoio de qualquer coletividade. A questão é de delimitação dos enclaves em que podem caber tais prescrições: e nos quais podem até ser legitimamente impostas ao indivíduo. (...) Nos sistemas que visam maximizar a atualização pessoal, as prescrições não são eliminadas.

São mínimas, porém, e nunca são estabelecidas sem o pleno consentimento dos indivíduos interessados. Tais sistemas são bastante flexíveis para estimular o senso pessoal de ordem e de compromisso com os objetivos fixados, sem transformar os indivíduos em agentes passivos. A total eliminação das prescrições das normas é incompatível com uma significativa atualização humana, no contexto do mundo social (GUERREIRO RAMOS, 1989, pp. 145-146).

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2.9 Quais requisitos para quais sistemas sociais?

Uma vez descritas as categorias constitutivas do paradigma paraeconômico, cabe a tarefa de construí-lo na prática. E esse é um esforço eminentemente político, exigindo uma avaliação dos requisitos mais adequados à variedade de sistemas sociais. Assim, para GR, a efetividade de uma sociedade multicêntrica, vislumbrada no paradigma paraeconômico, envolve um embate político, de vigorosa resistência às tendências da sociedade centrada no mercado, no sentido de conter sua influência sobre o espaço vital humano. Isto não significa dizer que os objetivos da paraeconomia sejam a supressão do mecanismo de mercado. Segundo o autor, as capacidades sem precedentes criadas por este ultimo, “ainda que por razões erradas (...), pode (...) atender as metas de um modelo multidimensional de vida humana, numa sociedade multicêntrica” (GUERREIRO RAMOS, 1989, p.155). A construção de tal tipo de sociedade, enquanto empreendimento intencional envolve planejamento e implementação de um novo tipo de estado, com o poder de formular e pôr em prática diretrizes distributivas de apoio não apenas de objetivos orientados para o mercado, mas também de cenários sociais adequados à atualização pessoal, a relacionamentos de convivência e a atividades comunitárias dos cidadãos. Uma sociedade assim requer também iniciativas partidas dos cidadãos, que estarão saindo da sociedade de mercado sob sua própria responsabilidade e a seu próprio risco (GUERREIRO RAMOS, 1989, p.155).

Para além de um mero exercício abstrato, GR esclarece que esse modelo delimitativo reflete na prática “o tipo de vida procurado por muita gente, em muitos lugares” (GUERREIRO RAMOS, 1989, p.156). Tais iniciativas se dão, por outro lado, muito a partir de processos de ensaio e erro, refletindo o seu caráter de incompletude enquanto sistemas sociais; faltando para sua força impulsionadora, esforços sistemáticos e disciplinados de elaboração teórica. Reside, precisamente, neste ponto um dos propósitos maiores do seu paradigma/modelo: “A formulação de diretrizes de uma nova ciência organizacional, em sintonia com as realidades operativas de uma sociedade multicêntrica” (GUERREIRO RAMOS, 1989, p. 156).

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Partindo, então, do pressuposto de que a existência de uma variedade de requisitos constitui “qualificação essencial de qualquer sociedade sensível às necessidades de atualização de seus membros” (GUERREIRO RAMOS,1989, p. 156), a tarefa que se propõe GR é a de definir os requisitos de planejamento próprio a cada sistema social. Para tanto, ele passa a examinar cinco dimensões principais de tais sistemas: tecnologia, tamanho, espaço, cognição e tempo. Seu intuito é o de sublinhar a variedade de traços característicos possíveis segundo cada uma das cinco dimensões e conforme a natureza do sistema social em análise, o que permite desconstruir certas “verdades” preconcebidas sobre cada uma dessas dimensões.

Com a ênfase dada à variedade de requisitos conforme a natureza e propósitos dos diferentes sistemas sociais, GR pretende repensar a ideia de eficiência na alocação de recursos, indicando a fecundidade de uma perspectiva multicêntrica de análise e orientação para a ação.

2.10 A paraeconomia como modelo multicêntrico de alocação de recursos A paraeconomia é concebida por GR como “proporcionadora da estrutura de uma teoria política substantiva de alocação de recursos e de relacionamentos funcionais entre enclaves sociais, necessários à estimulação qualitativa da vida social dos cidadãos” (GUERREIRO RAMOS, 1989, p.177). O paraeconomista, segundo GR, seria todo cidadão que pensa e busca implementar cenários alternativos aos sistemas centrado no mercado. No nível da análise e planejamento de sistemas sociais, ao invés de um enfoque centrado no mercado, tal paradigma pressupõe a ideia de “uma sociedade suficientemente diversificada para permitir que seus membros cuidem de tópicos substantivos de vida, na conformidade de seus respectivos critérios intrínsecos” (GUERREIRO RAMOS, 1989, p. 178). Assim, do ponto de vista de uma política paraeconômica, afirma-se a necessária legitimidade das isonomias e fenonomias (para além das economias) como agências por meio das quais se deve efetivar a alocação de mão-de-obra e de recursos para uma viabilização da sociedade em seu conjunto.

Como embasamento da sua proposição, GR relembra as duas formas básicas de implementação de diretrizes e decisões alocativas numa sociedade: de um lado, as transferências nos dois sentidos, característica das

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economias de troca, e, do outro, as transferências em sentido único, próprio das chamadas economias de subvenções – termo que GR toma emprestado de K.Boulding (1973). Os critérios de avaliação da eficácia alocativa, no primeiro caso, são definidos a partir da contabilidade convencional de preço/lucro.

Contudo, adverte GR: “a qualidade e o desenvolvimento de uma sociedade não resultam apenas das atividades desses sistemas centrados no mercado. Qualidade e desenvolvimento resultam também de uma variedade de produtos, distribuídos através de processos alocativos que não representam troca. A avaliação da eficácia desses processos alternativos e de seus ambientes sociais envolve mais do que uma contabilidade direta de fatores de produção. Sua contribuição para a viabilidade do conjunto social não pode ser determinada numa estrutura convencional de custo/benefício. Esses sistemas, normalmente, não podem funcionar, a menos que sejam financiados por subvenções” (GUERREIRO RAMOS, 1989, p.178).

A questão importante, nesse ponto, diz respeito à reflexão sobre quais atividades numa sociedade deveriam ser financiadas por subvenções ou organizadas segundo um critério de troca, algo que não é desenvolvido por GR. De todo modo, o autor critica o caráter estreito da concepção de recursos e produção próprios aos modelos alocativos dominantes. Esses, baseados numa lógica de mercado, entendem recursos e produção apenas enquanto insumos e produtos de atividades de natureza econômica. Assim sendo, tudo o que resulta de atividades domésticas que esteja relacionado às atividades associativas de todo tipo, baseadas em engajamento voluntário ou militante, não pode ser considerado formalmente como “fatores contributivos da riqueza nacional”. Desse ponto de vista, até mesmo uma grande parte da atividade dita camponesa também não pode ser considerada produtiva. Nesta lógica, o fato de o produto do trabalho não ser diretamente transferível para o mercado, o leva a ser ignorado pelo sistema oficial de estatística, fazendo com que “um imenso reservatório de recursos e de capacidade produtiva seja negligenciado e permaneça inexplorado pelos modelos alocativos predominantes” (GUERREIRO RAMOS, 1989, p.180).

Diferentemente dessa visão, no paradigma paraeconômico, a concepção de produção e consumo considera, de maneira formal, tanto as atividades remuneradas quanto as não remuneradas. Para GR, existem dois pontos cegos no modelo alocativo convencional: em primeiro lugar,

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a identificação do indivíduo produtivo como detentor de emprego; em segundo lugar, a pressuposição de que “o montante e a qualidade do consumo do cidadão estão expressos naquilo que ele compra” (GUERREIRO RAMOS, 1989, p. 180), importando, desse modo, muito mais o que o mercado é capaz de vender e as pessoas são levadas a consumir, do que propriamente o que elas necessitam.

Conforme considera o autor: “presas entre essas ilusões e entre esses pontos cegos, as políticas alocativas do governo têm sido incapazes de ultrapassar o círculo vicioso do sistema de mercado, para tirar vantagem das possibilidades existentes de construção de uma variedade de ambientes produtivos, que não dispõem de dinheiro, como parte de uma sociedade multicêntrica” (GUERREIRO RAMOS, 1989, p. 181).

Um outro pressuposto necessário de ser revisto com a adoção de um paradigma paraeconômico diz respeito à questão dos recursos finitos.

Para o autor: “um sadio conceito de recursos inclui mais do que aquilo que o mercado se inclina a definir como recurso. Inclui dimensões ecológicas e psíquicas, para as quais a epistemologia mecanística inerente à lei clássica da oferta e da procura não tem sensibilidade (...). Limites às atuais atividades do mercado não representam, necessariamente, limites ao crescimento. Há abundância de recursos e substancial capacidade produtiva que permanecem ociosas, graças à falta de adequado esquema teórico para organização dessas potencialidades. Do ponto de vista paraeconômico, os recursos são infinitos e não há limites ao crescimento” (GUERREIRO RAMOS, 1989, p.181).

Assim, questionando a estreiteza de visão presente na interpretação vulgar do fenômeno da economia dual, GR ressalta a existência de dois tipos de sistemas de produção característicos de todas as nações contemporâneas: o sistema de orientação para o lucro, de um lado, e, os sistemas de orientação mutuária, do outro. Relacioná-los sempre de maneira antagônica, como na ideia de dualidade econômica, significa em incorrer numa visão

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míope do fenômeno. Esta é precisamente a postura dos formuladores de política econômica (e ele pensa especialmente no caso americano), os quais, subjugados a uma mentalidade de mercado, deixam de considerar o potencial maior de sua estrutura de produção. O autor mostra, então, a importância dos sistemas de produção orientados para a mutualidade na estrutura econômica americana, a mesma situação podendo refletir o caso de praticamente toda e qualquer economia contemporânea, tanto em sociedades do norte quanto do sul.

Do ponto de vista da formulação de políticas de governo, é o apoio adequado e sistemático a iniciativas particulares, as quais expressam inovações importantes em temos de esquemas construtivos de alocações de recursos, que pode representar, segundo o autor, os antídotos eficazes contra os vícios e distorções causadas pelo sistema de mercado. No entanto, não apenas acontece falta de reconhecimento dessa possibilidade na política oficial americana, alega GR, quando tal fenômeno tem sido acompanhado de um sentimento de desprezo pela chamada economia de subvenções.

Para o autor, essa economia dual americana, caracterizada pelo setor de troca e pelo setor de subvenções, não deveria ser vista como uma anormalidade, nem cada setor “ser classificado segundo os imperativos de meta do outro. Ambos os setores deveriam ser visualizados em sua distinta e específica natureza e como executores de funções complementares e socialmente integrativas” (GUERREIRO RAMOS, 1989, p. 187).

Contudo, argumenta o autor, a má gestão das subvenções por quem as concede, sejam os entes públicos ou privados, gera consequências dramáticas, como a questão do desemprego, pois como a incapacidade do sistema de mercado em absorver o contingente populacional em idade ativa não é vista como um problema estrutural do sistema (pela grande maioria dos formuladores de política), mas, normalmente, atribuída às vicissitudes temporárias da economia, acaba ocorrendo um processo de estigmatização e de degradação social da população desempregada (absorvida pelos sistemas de previdência e assistência social), que assume a condição de desempregado como uma incapacidade pessoal. Neste sentido, a ideia de uma plena ocupação da força de trabalho, escapa completamente a visão dos formuladores de política reféns de uma mentalidade de mercado.

Contudo, argumenta GR:

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“um ato de imaginação poderia permitir que a reserva de capacidade ociosa, representada pelas pessoas sem empregos formais, fosse mobilizada para a corrente principal do sistema de produção americano, através da alocação desses fundos de assistência e previdência social, não como um simples auxílio benevolente, mas como subvenções para financiamento das atividades e da criatividade dos cidadãos, em empreendimentos de orientação mutuaria e comunitária, socialmente reconhecidos” (GUERREIRO RAMOS, 1989, p. 188).

Segundo o autor, “um dos objetivos das políticas paraeconômicas é uma equilibrada alocação de recursos” (GUERREIRO RAMOS, 1989, p.

188). Neste sentido, a existência de uma economia dual passa a ser vista antes como uma vantagem, ao invés de um inconveniente: “A coexistência de sistemas de orientação mutuaria, nos quais os respectivos membros produzem para si mesmos uma grande parte dos bens e serviços que diretamente consomem, e de sistemas orientados para o lucro, em que os membros são, essencialmente, detentores de emprego, que tiram de seus salários o poder aquisitivo que lhes proporcionará todos os bens e serviços de que necessitam “(GUERREIRO RAMOS, 1989, p. 188).

Outra questão levantada pelo autor se refere ao fato de as políticas serem formuladas sem se considerar a peculiaridade cultural de cada sociedade, sendo este um processo inerente ao sistema de mercado, o qual induz, por meio das nações industriais hegemônicas do ocidente, “o resto do mundo a se ajustar à sua inclinação expansionista” (GUERREIRO RAMOS, 1989, p. 189). É precisamente contra as consequências práticas dessa ideologia anglo-saxônica, particularmente no que se refere aos seus efeitos de deterioração do meio-ambiente e de exaustão das reservas de fontes de energia renováveis ou não renováveis, que surgiram em certos setores do pensamento teórico uma reavaliação crítica dessa economia clássica, e muito especialmente, “tentativas de elaboração de uma ciência da alocação de recursos como disciplina ecológica” (GUERREIRO RAMOS, 1989, p. 189).

Ao destacar a contribuição de Georgescu-Roegen – o qual, mais do que se contentar com uma análise das “distorções ecológicas resultantes da prática da economia clássica”, estabeleceu “os pressupostos fundamentais da nova ciência da alocação” (GUERREIRO RAMOS, 1989, p. 189), num esforço de pensar uma reorientação do processo de alocação de recursos em escala mundial;

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GR afirma que: “a produção de bens e serviços deveria ser promovida mediante o máximo uso de recursos renováveis e o mínimo uso razoável dos não renováveis. A escassez dos recursos não renováveis não é de natureza temporária e tratar sua utilização e alocação em termos de mecanismos de mercado, isto é, como se devessem ser apreçados de acordo com a lei clássica da oferta e da procura, é uma ilustração da regra utilitário-hedonista do aprés-moi le déluge” (GUERREIRO RAMOS, 1989, p. 190).

A partir dessa argumentação, GR afirma o caráter ecológico e social do paradigma paraeconômico, para além da consideração sobre a termodinâmica da produção. Ele enxerga a institucionalização de uma sociedade multicêntrica em termos incertos, seu êxito dependendo da capacidade criadora de aproveitamento de outras possibilidades pelos agentes. Para tanto, torna-se imperativo, segundo ele, restringir ou delimitar o grau de influência do que ele chama de “organizações econômicas” (ou seja, as empresas de mercado) sobre a existência humana como um todo.

Conforme ele explica: “Por serem as organizações econômicas precisamente aquelas que mais retiram insumos do limitado orçamento da matéria-energia de baixa entropia disponível, deveriam elas ser rigorosamente replanejadas, tendo-se em mente um interesse ecológico. Deveriam tais organizações ficar circunscritas a um enclave, como parte de uma sociedade multicêntrica provida de muitos cenários para propósitos autocompensadores, envolvendo consumo mínimo de insumos de baixa entropia” (GUERREIRO RAMOS, 1989, p. 191).

Ao final, revelando seu otimismo e senso militante, GR é categórico: “O mundo industrial em que vivemos também começou como uma possibilidade objetiva. Foi modelado no decorrer de todo um processo acumulativo de inovação institucional, deliberadamente empreendido por muitos indivíduos. Podemos estar agora num similar estágio incipiente de institucionalização, de que pode emergir uma alternativa para a sociedade centrada no mercado – a sociedade multicêntrica ou reticular” (GUERREIRO RAMOS, 1989, p. 191).

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2.11 Síntese e convergências: por uma outra economia O deslocamento da centralidade do mercado é tanto uma reflexão conceitual, como vimos até aqui, quanto um exercício aplicado. Nesse último sentido, requer um olhar sobre o que se faz hoje e que constituem práticas emergentes. Nesta perspectiva, as noções de paraeconomia e economia plural tendem a convergir na direção do debate contemporâneo sobre a outra economia.

A outra economia não é uma formulação imaginária acerca de uma suposta economia “ideal” a ser buscada na prática. O termo faz referência a um conjunto de experiências socioeconômicas diferenciadas que se disseminam em diferentes lugares, enquanto modo de enfrentamento dos graves problemas que se vive atualmente (LAVILLE et alli, 2009). Do mesmo modo, no campo teórico, com esse termo pode-se fazer alusão ao debate acerca da definição do econômico, ensejando a possibilidade de reflexão sobre as múltiplas e diferenciadas formas de instituição do econômico na vida em sociedade e que permite escapar a tendência reducionista de visão da economia. Contudo, o termo tem sido ocultado em larga medida no debate teórico, em função da forma predominante de entendimento sobre o econômico presente, seja na agenda de pesquisa na ciência, seja na própria difusão do conhecimento que se faz pela mídia. Essa hegemonia de uma visão reducionista do econômico acaba assim por encobrir as possibilidades de entendimento do modo específico pelo qual se manifesta essa outra economia na prática.

As noções de sociologia das ausências e das emergências em Sousa Santos (2016) nos ajuda a melhor compreender esse desafio do olhar. Seu intuito é o de repensar as bases epistemológicas nas quais estamos, hoje, problematizando a realidade. A sociologia das ausências baseia-se na observação de que “o que não existe é, na verdade, produzido ativamente como inexistente”. Assim, o inexistente é ou ignorado ou pensado como “uma alternativa não crível para o que é suposto existir” (SOUSA SANTOS, 2016, p. 34). O não existente é então “considerado retrógrado, inferior, local e particular, improdutivo e estéril” (LAVILLE, 2015, p. 427). No plano metodológico, o objetivo da sociologia das ausências é “liberar as práticas sociais de seu status de resíduo, transferir sua própria temporalidade e, assim, abrir a possibilidade de desenvolvimento autônomo”. (SOUSA SANTOS,

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2016, p. 259). A sociologia das emergências, por outro lado, consiste em “substituir o caráter vazio do futuro por um futuro de possibilidades plurais e concretas, utópicas e realistas ao mesmo tempo, e construídas no presente por meio de atividades assistenciais” (SOUSA SANTOS, 2016, p. 266). A sociologia das emergências, portanto, propõe quebrar os grilhões do tempo linear. Permite estender o presente “acrescentando à realidade existente as possibilidades futuras e as esperanças que essas possibilidades suscitam” (LAVILLE, 2015, p. 427).

Tentar entender a outra economia significa,então,superar preconceitos para refletir sobre os limites e possibilidades de práticas emergentes atualmente, que tentam articular economia e solidariedade. Como definilas? Em quais contextos se desenvolvem? Que tipo de problemática as situa?

Qual seu potencial de inovação institucional? Como podem contribuir numa agenda renovada de visão e prática do desenvolvimento?

2.12 Síntese de conteúdo da Unidade Nesta unidade, o objetivo mais geral foi o de ampliar o entendimento sobre a noção de economia, já que ela é de fundamental importância numa reflexão sobre outras formas de desenvolvimento. Para tanto, construímos um percurso de conhecimento em três momentos. No primeiro, apresentamos a visão da economia segundo a tradição dos estudos da antropologia econômica, com destaque para os trabalhos de Karl Polanyi e sua definição substantiva do econômico. Em seguida, num segundo momento, apresentamos a noção de paraeconomia a partir da contribuição do sociólogo brasileiro Alberto Guerreiro Ramos. Finalmente, no terceiro momento, mobilizamos a noção de “outra economia”, enquanto uma ideia com forte potencial de síntese em relação às duas abordagens anteriores e, ao mesmo tempo, uma noção que indica a emergência de uma série de fenômenos de auto-organização da sociedade apontando novas possibilidades de elaboração de atividades econômicas, numa perspectiva de refundação da agenda do desenvolvimento.

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Ilustração: Designed by Freepik

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3.1 A governança democrática Uma das características mais marcantes das formas emergentes de solidariedade econômica, indicada através da noção de outra economia, diz respeito à centralidade da dimensão democrática. Ela faz assim referência às práticas de auto-organização de grupos constituídos enquanto coletivos nos seus respectivos territórios e que se voltam à resolução de problemas concretos afetando seu cotidiano de vida. Diferentes temáticas têm emergido nos últimos anos para tentar refletir tais práticas: economia solidária, gestão de bens comuns, inovação social ou democracia econômica.

Essa dimensão democrática estabelece uma singularidade importante das novas formas de solidariedade. Em primeiro lugar, em relação às formas tradicionais de solidariedade, ao se constituir como uma solidariedade que se abre sobre um espaço público e se baseia na adesão livre e voluntária dos sujeitos. Em segundo lugar, em relação às formas de solidariedade filantrópicas, que não se baseiam em mecanismos democráticos de ação e optam por mecanismos exclusivamente tecnocráticos de decisão. Para aprofundar o potencial dessas novas formas de solidariedade numa agenda renovada de visão e prática do desenvolvimento, torna-se imperativo pensar o potencial dessas novas práticas na construção simultânea de redes, de diferentes tipos e formas, e de processos de governança democrática.

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Figura 6: Redes solidárias. Foto: Pixabay

3.2 Redes, alianças e reagrupamentos no território Se a governança democrática pode ser vista como um modo de ressolidarizar as iniciativas ou organizações locais, esta prática pode ser reforçada através da implantação de redes solidárias entre os atores no contexto de suas ações no território. As práticas solidárias no seio das organizações podem então se enriquecer e se desenvolver através do cruzamento com aquelas oriundas de outras organizações solidárias.

Dito de outro modo, a solidariedade intraorganizacional se duplica de uma solidariedade interorganizacional. Num contexto de mercadorização crescente e de aumento da concorrência entre os atores dos territórios, as alianças e os reagrupamentos entre os atores e as organizações solidárias podem constituir um meio de resposta aos desafios multidimensionais da solidariedade, abrindo uma via de desenvolvimento territorial como vetor de uma outra economia.

Na França, as organizações de economia social e solidária (ESS) conheceram mudanças importantes no seu meio ambiente institucional ao longo das últimas décadas. Uma das mais importantes foi o aumento das demandas governamentais, através dos editais públicos forçando a competição por projetos, cujo efeito forte foi de gerar concorrência entre

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Figura 7: Redes solidárias. Foto: Pixabay

as organizações de ESS. Esta mudança implicou o desenvolvimento de novas competências para os atores como a montagem de projetos, o acompanhamento analítico-consultivo e a gestão de indicadores (para se adequar as demandas de avaliação requeridas pelos financiadores).

O tamanho e a tecnicidade dos projetos propostos favoreceram atores dispondo de uma estrutura maior e com elevada probabilidade de resposta.

Desse modo, um amplo movimento de reestruturação foi empreendido, induzindo um grande número de fusões entre tais organizações de ESS (EYNAUD, GÉROME, 2014). Essa dinâmica teve o efeito de permitir as organizações de ESS de responder aos novos desafios, especialmente, à concorrência recente das empresas privadas se imiscuindo no campo social graças aos benefícios das mudanças institucionais. O aumento do tamanho dos atores pressupunha da parte deles uma mudança no seu modo de gestão. Esse fora profissionalizado e se aproximou dos métodos utilizados pelas organizações de mercado. A profissionalização, outrora sinônimo de competência no campo da ação, evoluiu na sua significação para designar cada vez mais a aquisição de uma competência gestionária. Como num jogo de dominós, os atores de menor porte e mais frágeis financeiramente foram levados à serem absorvidos pelas estruturas maiores afim de perenizar seus empregos. Isto não ficou sem consequência em relação aos métodos de gestão dessas organizações, como também em relação aos seus projetos, sua imagem e a própria legitimidade de tais organizações

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(MARIVAL et alli, 2015). Uma reestruturação pode também suscitar um bloqueio (questionamento) do contrato psicológico que vincula as partes interessadas e provocar um sentimento de injustiça (EYNAUD, SCHIMIDT, 2012). Ela pode, finalmente, bloquear a capacidade de identificação de novas necessidades e de inovação. É mister reconhecer que um dos maus mais recorrentes em matéria de organização face à um problema é de buscar “resolvê-lo pelo alto através de uma organização de escala superior” (REY, 2014, p. 207). Na luta contra este tipo de deriva, muitos atores tentaram preservar seus respectivos projetos e se proteger da ameaça das fusões recorrendo à cooperação e à mutualização dos seus recursos e dos seus meios entre si (EYNAUD, GUIBERT, 2012).

A mutualização pode assumir diferentes formas: partilha de um imóvel, de meios materiais, de competências, de práticas, de savoirsfaires, de informações etc. Ela pode ser ou não estruturada juridicamente.

Numerosas partilhas se realizam de maneira informal no quadro de relações de reciprocidade. Outros se organizam de maneiras mais estruturadas.

Um exemplo relevante na França a esse respeito são os chamados “Pólos Territoriais de Desenvolvimento Econômico” (PTCE), reconhecidos pela lei francesa da economia social e solidária do 31.07.2014 no seu artigo 9: “Os polos territoriais de cooperação econômica são constituídos pelo agrupamento no mesmo território de empresas da economia social e solidária, na acepção do art. 1º desta lei, que se associam às empresas vinculadas com as municipalidades e suas aglomerações territoriais, centros de pesquisa, estabelecimentos de ensino superior e de pesquisa, organismos de formação ou qualquer outra pessoa física ou moral, para implementar uma estratégia comum e contínua de mutualização, de cooperação e de parceria ao serviço de projetos econômicos e sociais inovadores, socialmente ou tecnologicamente, e trazendo desenvolvimento local sustentável” (http:// www.lelabo-ess.org/-poles-territoriaux-de-cooperation-economique).

Na carta de princípios da rede do PTCE, algumas perspectivas são apresentadas: “Ciar, consolidar e desenvolver atividades, de empregos duráveis e de qualidade, ao benefício do seu território e dos seus habitantes; trabalhar no enraizamento territorial de atividades econômicas, num espaço caracterizado pela cooperação entre partes interessadas; adotar uma governança democrática apoiando-se em princípios de equidade, de reciprocidade, sobre o engajamento voluntário das pessoas e associando o conjunto das partes interessadas; implicar no seu território cidadão ator e

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instituições de qualquer tamanho; investir na inovação social e na pesquisa de utilidade social, em resposta às necessidades sociais ou societais” (EYNAUD, FRANÇA FILHO, 2019, p.102).

Os valores comuns dessa rede são os seguintes: “ele respeita, mobiliza e valoriza seu patrimônio local, os recursos do seu território (humanos, naturais, materiais, culturais e financeiros) e se apoia sobre engajamentos dos seus atores (atrizes); ele se apoia sobre o respeito mútuo, a diversidade reconhecida, a confiança e a convivialidade, valor em ato do viver juntos e do fazer juntos; ele reconhece a co-construção, a formação e o conhecimento como eixos do desenvolvimento; ele pratica a solidariedade em ato no nível local e global; ele coloca à serviço do seu desenvolvimento a pesquisa de inovação social; ele promove e faz prova de criatividade à todos os estágios de sua evolução e da implantação de suas atividades; ele busca a qualidade das trocas na comunicação e na transmissão de informações” (EYNAUD, FRANÇA FILHO, 2019, p.103).

Por trás dessas alianças, reagrupamentos e suas modalidades, se desenha uma outra visão, uma outra compreensão do mundo. Contra a lógica dos grandes empreiteiros, essa visão vislumbra a relação com o outro como primordial e defende para as organizações solidárias um tamanho compatível com seus projetos. Contra a ideia difundida que tende a associar “o pequeno número ao primitivo”, essa visão demonstra por suas inovações que “o mais alto grau de civilização se acomoda à tamanhos modestos” (REY, 2014, p. 87). Como demonstrou Guerreiro Ramos (1989) através da noção de paraeconomia trata-se de preservar as lógicas frágeis fundadas nos vínculos sociais tal como se exprimem nas isonomias e fenonomias. Então, não se trata de fazer apologia do pequeno e sim de buscar em qualquer tipo de coisa “o tamanho mais apropriado à auto-realização e a fecundidade das existências” (REY, 2014, p. 102).

No Brasil, um exemplo valioso são experiências muito pouco conhecidas de criação de redes locais de economia solidária em áreas consideradas de alto grau de vulnerabiliadde socioeconômica, como bairros populares na periferia de centros urbanos, comunidades rurais e/ou comunidades tradicionais próximas ou distantes de áreas populacionais maiores. Tais experiências surgem a partir de dinâmicas sociopolíticas locais de autoorganização como associações de moradores que se articulam com outras iniciativas locais de natureza socioeconômica ou sociocultural e socioambiental para o desenvolvimento de atividades conforme as

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necessidades e demandas do território. Tais redes tem o intuito de repensar a reorganização das economias locais em conexão com as demandas do lugar. As iniciativas criadas têm caráter tanto socioprodutivo quanto socio-organizativo. A formação de tais redes envolve as formas préestabelecidas de organização econômica e demais instituições do próprio território. Razão pela qual o processo de mobilização dos atores requer diferentes práticas de inovação social, na relação com o comércio local, por exemplo, ou com a prefeitura, ou ainda, com atores institucionais variados para além do território (organizações da sociedade civil, instituições públicas e/ou privadas, incubadoras tecnológicas de economia solidária vinculadas às Universidades e centros de pesquisa, entre outros).

Dentre as inovações locais observadas tem sido relevante o papel desempenhado pelos bancos comunitários de desenvolvimento e a circulação de moedas sociais na dinâmica de constituição de tais redes (FRANÇA FILHO, CUNHA, 2009; FRANÇA FILHO, 2013; RIGO, FRANÇA FILHO, 2017). Dentre alguns casos, é importante mencionar a rede constituída em torno da experiência do banco palmas no bairro do conjunto palmeiras na periferia de Fortaleza ou a rede constituída em torno do banco comunitário dos cocais no município de São João do Arraial, no interior do Piauí.

3.3 O desenvolvimento territorial solidário e as políticas públicas associadas Vimos assim como a governança democrática se elabora numa dialética em tensão entre suas dimensões interna e externa. Com efeito, ela pressupõe um duplo registro da ação sociopolítica. Trata-se, de um lado, de impulsionar e de manter localmente uma dinâmica cotidiana de auto-organização e, de outro lado, de se inscrever numa ação pública à vocação mais ampliada. É justamente essa dupla perspectiva que reforça a prática da democracia. Ela faz do território o lugar fundamental para o seu exercício. O território aparece assim como espaço de mediação ideal para vincular e traduzir as duas perspectivas. Neste sentido, o processo de organização da solidariedade ligado a afirmação de uma outra economia torna-se um exercício de desenvolvimento territorial. Dito de outro modo, uma outra economia (como no exemplo de práticas de economia solidária) não pode se conceber independentemente da ideia de territorialidade. Isto

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nos conduz à uma dupla constatação: a) no plano analítico, o território e seu desenvolvimento é um elemento indissociável da compreensão de uma outra economia; b) uma outra economia é um elemento estratégico para a formulação de uma agenda renovada em matéria de desenvolvimento territorial.

Os dois tópicos acima guardam uma relação direta e, por razões pedagógicas, podem ser demonstrados através de duas indagações absolutamente imbricadas. À primeira interrogação, de caráter eminentemente aplicado, suscita o tratamento de uma segunda indagação, de caráter mais conceitual: 1) como desenhar uma estratégia de desenvolvimento territorial com base num olhar de outra economia? 2) como redefinir o papel e significado do econômico numa agenda renovada de ação para o desenvolvimento territorial? Se a ideia de outra economia constitui a resposta aplicada ao problema teórico mencionado na segunda questão acima (conforme abordamos na unidade anterior), o intuito neste momento é de avançar na primeira questão sem, entretanto, deixar de reconhecer o caráter quase que indissociável das duas questões refletida na dupla constatação observada no parágrafo anterior.

Numa abordagem econômica convencional as duas questões acima não revelam pertinência. De fato, o território não tem verdadeiro interesse em si mesmo. Ele é apenas abordado e considerado na sua relação com a economia. Espera-se que o território esteja a serviço da empresa, mas esta última não está ligada ao território. Segundo os princípios econômicos do mercado autoregulado, a empresa fica livre para se deslocar em função dos seus interesses estratégicos e financeiros. Nesta ótica, a dinâmica territorial é guiada pela atividade econômica, sem que haja uma verdadeira contrapartida em direção ao território. Em outros termos, o território é visto como um vetor de atratividade e uma variável de ajuste suscetível de atrair os investidores ditos “produtivos”.

Em geral, o desenvolvimento das forças produtivas do mercado orienta a lógica do desenvolvimento territorial. Há neste caso prevalência de princípios exógenos sobre os princípios endógenos. Ao enfatizar a atratividade do território, os capitais e os investimentos estrangeiros tornam-se os principais motores do desenvolvimento territorial. Três efeitos combinados aparecem como consequências correntes do desenvolvimento da lógica mercantil sobre os territórios: a) acentuação das desigualdades em médio e longo prazo, diante do efeito concentrador do investimento,

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mesmo se possa haver algum grau de efeito redistributivo econômico na cadeia produtiva no curto prazo; b) dependência das economias locais ou territoriais em relação à atividade produtiva objeto desse investimento; c) riscos de desinvestimento ou de desinstalação (deslocalização) que costuma ocorrer após um período médio da alta de ganho seguido de oscilações e diminuições desses mesmos ganhos em outros períodos. Se o desinvestimento é fruto da liberdade que usufruem as empresas, seu efeito costuma ser seguido de impactos dramáticos no plano sociocultural e ambiental.

Se a busca de alternativas se inclina em favor de uma inflexão da relação entre economia e território e de um reenraizamento da economia no território, é porque as questões relativas ao desenho de novas estratégias de desenvolvimento territorial apenas conseguem ser formuladas e avançam num diálogo permanente com essa ideia de ressignificação do econômico.

Essa inflexão corresponde a passagem de uma concepção insercionalcompetitiva do desenvolvimento para uma concepção sustentável-solidária (FRANÇA FILHO, 2008).

3.4 Redefinindo o papel e a significação da economia na prática da gestão territorial Vimos na Unidade anterior como é possível redefinir o sentido da economia, seja através dos estudos da antropologia econômica, seja através de uma outra concepção da teoria organizacional com Guerreiro Ramos (1989). Essa redefinição é um exercício de mudança do olhar. Trata-se, para os estudos do desenvolvimento territorial, de inverter a perspectiva convencional que consiste em compreender como o território é dependente da economia, para pensar uma redefinição da articulação entre economia e território. Isto nos convida a mudar de registro: ao invés de olhar a economia como um fim em si mesmo, buscar enxergá-la como meio para realização de outros propósitos.

A força da abordagem de economia substantiva, conforme discutimos na unidade anterior, reside, em sua ênfase, na questão da reprodução social.

Enquanto a economia de mercado permanece focalizada na produção

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econômica, o olhar antropológico amplia nossa visão de mundo. Ele nos permite refletir sobre os meios pelos quais as sociedades constroem suas condições materiais de existência e de vida social. Desse modo, a análise econômica não pode subtrair a questão da reprodução da vida social. Aqui, a abordagem não é abstrata, ela se constrói historicamente na sua relação com um dado território. Trata-se, na prática, de compreender como a economia constrói localmente suas relações com as esferas social, cultural, política e ambiental. Alguns ensinamentos podem, assim, serem discernidos. Em primeiro lugar, a compreensão ampliada da economia tornada possível com a antropologia econômica abre o caminho para a exploração de uma outra economia; em seguida, a visão da economia é transformada pela sua inscrição nas esferas da vida em sociedade; além disso, a dimensão institucional e o caráter situado do território orientam os estudos sobre o desenvolvimento territorial na direção de uma abordagem solidária. Enfim, a outra economia desenhada pelo olhar antropológico compreende uma diversidade de formas de economia em interação, conforme vimos com o conceito de economia plural.

A noção de economia plural contém nela mesma duas ideias, quais sejam: 1) é intrinsicamente adaptada à possibilidade de uma transição social e ecológica, em razão do pluralismo que ela pressupõe; 2) ela tem o objetivo de garantir o equilíbrio entre os diferentes componentes ou lógicas que a formam. O caráter hegemônico da dimensão mercantil deve ser contido a fim de deixar espaço aos outros componentes, conforme a dupla acepção do verbo conter. Se a economia plural pode conter a lógica de mercado, é preciso então definir precisamente esse conteúdo, isto é, um perímetro onde o mercado seja possível. É preciso, em seguida, refletir sobre os meios de prevenir uma possível extensão predatória, afim de conter possíveis externalidades negativas. As duas acepções do verbo conter neste caso indica um horizonte de regulação socioeconômica enquanto estratégia de governança democrática, dirigida para três aspectos articulados: em primeiro lugar, trata-se de domar os efeitos destrutivo da racionalidade de mercado, contendo-a. Em segundo lugar, trata-se de favorecer o potencial do próprio princípio do mercado, quando suas práticas são ressignificadas, isto é, são modificadas através da introdução de mecanismos de auto-organização, fundado em valores de cooperação e solidariedade, redefinindo as regras das relações de comercialização, produção, consumo e financiamento. Em terceiro lugar,

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trata-se de fomentar o potencial contido nas diferentes formas ou princípios econômicos radicalmente distintos do mecanismo de mercado. É neste sentido que a governança democrática pode desempenhar seu papel de regular a atividade econômica, promover a cooperação e favorecer lógicas econômicas para além do mercado. O enriquecimento da democracia no território é a condição desta regulação.

Uma estratégia de desenvolvimento territorial renovada (pois inspirada nas noções de economia plural e de paraeconomia) supõe uma agenda que a inscreva no quadro de uma política pública. Para tanto, uma reflexão sobre a regulação deve ser engajada com as instituições.

Trata-se, em primeiro lugar, de reanalisar a relação de mediação ou de negociação com os atores externos e os investidores. Os possíveis aportes externos devem ser filtrados segundo critérios, permitindo favorecer o conjunto da sociedade local. A regulação é, então, vista como um sistema de proteção em condições de bloquear as externalidades negativas dos investimentos que chegam. Trata-se, igualmente, de abrir um tempo para a reconstrução institucional, isto é, para a dimensão endógena da análise, da concepção e da ação territorial. Esses dois tempos de concepção e ação permitem lançar, a título propositivo, um esboço de política pública de desenvolvimento territorial fundado numa ressigificação do econômico.

3.5 Propondo um desenho: esboço de política de gestão solidária dos territórios As grandes linhas de uma tal política se desenham segundo dois níveis estratégicos e quatro eixos de intervenção (conforme Figura 4 abaixo).

Figura 8: Níveis estratégicos e eixos do desenvolvimento de uma gestão territorial solidária

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Os dois níveis são, então, denominados de regulação institucional e de reconstrução institucional.A reconstrução institucional não deixa de ser uma regulação institucional, na medida em que ela implica um modo específico de operar, fundado num arcabouço institucional, bem como, um modo de provisão de bens e serviços. De todo modo, por regulação institucional entende-se a relação de mediação ou negociação com a economia préestabelecida e os potenciais agentes externos enquanto investidores. Essa visão da política pública não pretende fundá-la simplesmente na atração de investimentos privados externos, mas quer pensar sobre como esse investimento externo pode efetivamente favorecer o conjunto da sociedade local. Regulação aqui entendida como mediação é um modo de avaliar e corrigir possíveis efeitos de externalidade negativa do investimento e salientar o potencial de efeitos externalizadores positivos para o território.

Como um determinado grande empreendimento privado pode oferecer contrapartidas a sociedade local em temos de reinvestimento? Quais as diferentes formas de investimento externo que não estão baseadas numa lógica de mercado convencional? Essas questões indicam alguns caminhos em termos de regulação institucional. Em complemento, por reconstrução institucional entende-se todos aqueles investimentos inovadores do ponto de vista do desenvolvimento das atividades (novos tipos de agentes ou atores socioeconômicos, novos tipos de arranjos ou redes inter-atores etc.).

Enquanto a reconstrução institucional enfatiza o endógeno (ou a relação endógeno-exógeno), a regulação institucional lida fundamentalmente com o exógeno.

No que diz respeito aos eixos de intervenção, os três primeiros representam princípios de ação pública em matéria de reconstrução institucional: o princípio mercantil ressignificado; o princípio redistributivo; e, o princípio reciprocitário. O quarto eixo diz respeito à relação com os investidores externos e exprime uma modalidade de regulação institucional. Os quatro eixos de intervenção não devem ser concebidos como práticas isoladas.

Suas distinções revelam de maneira analítica a natureza específica de cada princípio econômico, mas suas complementaridades devem ser sublinhadas e valorizadas na prática. A tradução do conceito de economia plural permite não apenas modelizar as formas específicas de ação econômica como também inventar formas de ação combinando (ou fusionando) a diversidade dos princípios econômicos. A implantação desses eixos não

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obedece a uma ordem particular a priori, nem a uma hierarquia qualquer.

A maior ou menor importância acordada a cada um dos eixos é definida pela demanda e características do contexto local.

O primeiro eixo consiste em revalorizar o princípio mercantil no sentido de uma ressignificação de suas práticas. Para tanto, trata-se de introduzir mecanismos de cooperação e de solidariedade entre os agentes econômicos nas atividades locais de produção, de prestação de serviços, de comercialização, de consumo e de serviços financeiros. Esse eixo enfatiza a necessidade de um suporte à criação e/ou consolidação de organizações de economia solidária. Ele conduz as políticas públicas a sustentar, nas suas ações, as cooperativas, as associações, as fundações e empreendimentos econômicos solidários (EES). A vocação de tais políticas deve ser ampla e incluir as iniciativas privadas com fins lucrativos que adotam ou empreendem modelos de negócios capazes de compartilhar ou de produzir efetiva distribuição de riqueza.

O objetivo do eixo é de apoiar os atores que inovam, operando um trabalho de ressignificação das atividades de mercado. Os exemplos são numerosos e particularmente promissores, tanto no contexto nacional quanto na realidade internacional. Podemos salientar o caso do comércio justo e solidário, uma das primeiras práticas inovadoras neste sentido.

As organizações do comércio justo se colocam, com efeito, no espaço do mercado para modificar suas regras por dentro. Com os seus produtos, eles quebram o livre jogo do mercado para inventar um novo enquadramento na origem das trocas mercantis, segundo regras sociais e ecológicas. Assim, o comércio justo trabalha com os pequenos produtores nos quais ele garante um preço fixo, no qual estes poderão planificar razoavelmente suas economias domésticas.

O preço de compra é, desse modo, subtraído, via regras autoproduzidas, dos mecanismos de livre fixação dos mercados. Um outro exemplo pode ser encontrado no âmbito dos chamados circuitos curtos, na França, especialmente através das associações de manutenção da agricultura camponesa (AMAP – association pour le mantien de l’agriculture paysanne).

Estas associações criam um vínculo entre as áreas de exploração agrícola familiar com os coletivos de consumidores de suas vizinhanças. Trata-se de um acordo ou entendimento sobre a venda da produção em condições justas para o produtor. Este pode melhor planificar sua atividade e escapar dos ditames impostos pelos intermediários. Autoriza-se, neste caso, trocas

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de serviços gratuitos entre consumidores e produtores. Essa experiência tem se difundido mais recentemente em diferentes países, inclusive o Brasil, através da sigla CSA (consumidores sustentam agricultura).

No Brasil, experiências similares e menos recentes têm sido empreendidas, através dos chamados grupos de consumidores responsáveis e outras práticas de cooperativismo de consumo. De qualquer sorte, o conjunto de tais iniciativas se situam entre inúmeras outras experiências que na realidade brasileira participam do universo mais amplo das práticas de economia solidária, como as finanças solidárias através das cooperativas de crédito solidário, dos bancos comunitários de desenvolvimento e o uso de moedas sociais, dos fundos rotativos solidários, além de uma enorme diversidade de outras experiências indicando outras temáticas: turismo de base comunitária, empresas recuperadas, cooperativismo de plataforma etc. Nesse contexto, experiências de redes locais de economia solidária, conforme aludidas anteriormente, indicam importante potencial de contribuição.

O segundo eixo de ação diz respeito ao melhor uso do potencial transformador do princípio redistributivo, pela sua capacidade em gerar uma lógica de economia não mercantil. As políticas públicas se encarregam, neste nível, de financiar atividades portadoras de forte potencial de transferência, de realocação ou de impacto social. Trata-se de atividades que nem sempre podem gerar todos os recursos de que necessitam através do seu próprio autofinanciamento , mas que possuem forte potencial de socialização, além de outros indicadores de utilidade social. Elas contribuem com o fortalecimento dos vínculos sociais ou com a elevação do nível de conhecimento e formação das pessoas distanciadas da ação pública, ou ainda, com o necessário trabalho de reconhecimento e de identidade dos grupos e indivíduos marginalizados. O esforço da política pública se situa, então, no ponto cego das atividades de mercado e das análises clássicas do desenvolvimento territorial.

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SAIBA MAIS! Neste sentido parece relevante a noção de “economia residencial” em Davezies (2008). Este conceito indica o conjunto dos fluxos de renda captados pelos territórios independentemente da sua capacidade produtiva. Esse autor chama a atenção para a importância de uma infinidade de outros “fluxos de riquezas” (DAVEZIES 2004), a exemplo de despesas de turistas, montante das aposentadorias ou salários de imigrantes, entre outros, que não estão ligados à produção e que podem constituir motores do desenvolvimento.

Em outros trabalhos (TALANDIER et DAVEZIES, 2009), os autores salientaram a desconexão crescente entre desafios do crescimento, da produção, da exportação e os desafios do desenvolvimento, no sentido da melhoria qualitativa das condições de vida das populações.

De fato, os territórios onde se produzem mais riquezas não são necessariamente os territórios que mais se aproveitam destas riquezas, nem necessariamente aqueles onde o bem-estar das populações é mais elevado. Esses estudos levaram a maior conscientização de atores locais e decidores nacionais, conduzindo a pensar o desenvolvimento em termos de «sistemas produtivo-residenciais» de interações e de reciprocidade entre territórios

(TALANDIER, 2016) e não somente através de abordagens binárias de tais questões do tipo «modelo centro-periferia». Em resumo, o desenvolvimento dos territórios repousa sobre três mecanismos: a) a capacidade dos territórios à criar riquezas (representada pela base produtiva); b) a capacidade dos territórios para captar rendas do exterior (representada pelas bases não produtivas); c) a circulação de riqueza e, então, a maximização da propensão à consumir localmente, que estimula o setor doméstico, determinando o nível de renda, emprego e coesão do território.

Num nível micro ou meso territorial, experiências de finanças solidárias através de bancos comunitários de desenvolvimento com circulação de moeda social no Brasil, nas áreas consideradas de menor desenvolvimento, tem pautado sua prática no estímulo ao consumo local enquanto mecanismo de endogeneização da renda localmente. O intuito é de inverter a tendência de evasão de recursos financeiros que acontece quando a maior parte da população consome fora da sua localidade (FRANÇA FILHO, 2013; RIGO, FRANCA FILHO, 2017). Num nível macro territorial, Dowbor (2017) salienta o papel da renda e consumo das famílias enquanto motor da economia brasileira, representando mais de 60% do nosso PIB.

Este tipo de suporte público participa de uma estratégia de longo prazo de revalorização do território até suas áreas remotas e o apoio à população, incluindo aquela de muito maior dificuldade de acesso. A proposta desse eixo é a de financiar atividades não geradoras de recursos próprios, mas com alto potencial de bem-estar social nos campos do esporte e da arte e cultura em geral, através de um criativo programa de bolsas auxílio. O caso de uso de um sistema público de remuneração através do dispositivo das moedas sociais eletrônicas e em articulação com a rede brasileira de bancos comunitários de desenvolvimento levado a frente pela prefeitura de Maricá, no Rio de Janeiro, constitui experiência inspiradora.

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O terceiro eixo de ação faz referência ao princípio reciprocitário, compreendendo notadamente uma lógica econômica não monetária e abrindo espaço para uma circulação monetária sem fins lucrativos, a exemplo das variadas formas de mutualização de recursos financeiros. A política pública deve ajudar na estruturação de atividades, escapando à circulação monetária ou que favorecem mecanismos de apropriação democrática dos recursos financeiros. Aqui reside um inventário muito amplo e variado de possibilidades, passando por diversas formas de mutualização de recursos, de ajuda mútua, de práticas de reciprocidade enquanto mecanismos de solidariedade econômica. Seja na forma de financiamentos coletivos, passando ainda por ações de mutirões, trata-se, na maioria das vezes, de ações coletivas de auto-organização permitindo inovar socialmente na resolução de problemas concretos afetando o cotidiano da vida das pessoas e grupos, indicando formas de “economia mutuária” segundo a expressão de Guerreiro Ramos (1989). Se tais ações dizem respeito à atividades mais conhecidas desde às últimas décadas no mundo, como os sistemas de trocas locais na França, ou sua modalidade semelhante em países anglofônicos, na forma de bancos do tempo (Timebanks ou LETS – Local Exchange Trade System), que aliás encontra outras versões na américa latina através dos clubes de trocas, elas também fazem alusão às formas ainda mais antigas em nossa realidade participando de uma tradição histórica de auto-organização do meio popular (mutirão, fundo de pasto), como também abrem caminhos para se pensar as novas possibilidades em torno das ferramentas digitais. As novas tecnologias podem trazer uma contribuição relevante no desenvolvimento de soluções criativas em matéria de reciprocidade.

Neste âmbito, podemos citar as plataformas cooperativas, os aplicativos de compartilhamento (para deslocamento ou alojamento, entre outros) e que não entraram num circuito agressivo de mercado. Estas iniciativas participam do fortalecimento dos vínculos sociais e do enriquecimento da vida individual através da descoberta do outro.

Finalmente, o quarto eixo diz respeito à negociação com potenciais investidores externos. Os atores públicos, numa estratégia de instauração de territórios solidários, são convidados a rever os elementos de apreciação e critérios de avaliação das contribuições esperadas ligadas aos investidores externos. Trata-se de vislumbrar não somente os pontos positivos ligados à chegada de novos capitais, mas também todos os efeitos deletérios no plano social, cultural ou ambiental. Um tal tipo de política é preventivo por natureza e objetiva zerar qualquer efeito de externalidade negativa. Ela

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privilegia investidores que venham para permanecer, de maneira durável, no território e que se engajem por consequência, assim como outras ações propondo soluções de reinvestimento local com participação ativa do agente externo enquanto um modo de refazer o próprio princípio da transferência direta ou da redistribuição. O intuito neste eixo é de realinhar uma ação que seria característica do segundo eixo, como um complemento a esse trabalho de atração do investimento externo.

Dois exemplos na França, a esse respeito, parecem particularmente relevantes.No primeiro caso,uma organização como Terres de Liens promove iniciativas de aquisição e recompra de áreas de exploração agrícola locais para evitar a especulação fundiária e garantir a permanência de pequenos agricultores nas suas terras. Terres de Liens é uma rede associativa surgida em 2003, associando uma organização de economia social e solidária e uma fundação. O trabalho desta rede encontra-se na confluência de muitos campos como a educação popular, a agricultura orgânica e biodinâmica, a finança ética, a economia solidária e o desenvolvimento rural. No segundo caso Habitat et Humanisme é uma organização de grande reconhecimento no âmbito do trabalho de gestão de obras sociais. Sua ação principal consiste em construir, comprar ou renovar imóveis voltados para o público constituído prioritariamente por pessoas e/ou grupos socialmente excluídos. Nos dois exemplos há, portanto, uma forte dinâmica de ação de financiamento em direção à um público que encontra dificuldades de se financiar pelos mecanismos convencionais de mercado. Tal dinâmica de financiamento vem adicionar-se ao trabalho de acompanhamento e apoio técnico.

3.6 Síntese de conteúdos da Unidade Nesta unidade o objetivo mais geral foi o de refletir sobre caminhos, possibilidades e desafios na construção de outras formas de relação entre economia e desenvolvimento. Para tanto, o percurso de conhecimento foi baseado em dois momentos. No primeiro, tratamos das condições necessárias à superação das formas convencionais do desenvolvimento ao abordar algumas noções-chave como governança democrática, gestão territorial, solidariedade econômcia e redes locais de economia solidária.

No segundo momento foi apresentado esboço de proposta de reconstrução institucional através de desenho de estratégia política de gestão solidária de territórios.

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3.7 Síntese geral de entendimento das três unidades Neste livro vimos que a tarefa de pensar um outro desenvolvimento em tempos atuais pressupõe um outro olhar sobre o que é o econômico, ensejando um conjunto renovado de práticas de ação pública na fronteira entre economia, solidariedade, democracia e territorialidade. Vimos que os caminhos de superação dos problemas complexos envolvendo as relações entre economia e desenvolvimento requerem um outro olhar para a relação entre economia e sociedade, nos conduzindo a refletir, desta vez, sobre as formas de apropriação da economia pela sociedade. Tal possibilidade exige ainda um outro padrão de relação entre economia e democracia, que é o mesmo que pensar um outro tipo de relação entre economia e política.

Ou seja, os rumos e decisões equilibradas numa dinâmica econômica requer dispositivos institucionais de natureza democrática. É assim que a emergência de novas formas de relação entre economia e solidariedade na contemporaneidade passam necessariamente por uma dimensão central de mediação democrática. A rigor, as formas atuais de solidariedade na economia ou de economias solidárias constituem-se enquanto formas de democracia econômica. Finalmente, esse conjunto de relações se completa com um outro olhar sobre a relação entre economia e território. Afinal de contas, alguém duvida que são os próprios territórios que devem (ou deveriam) decidir democraticamente sobre as formas econômicas que irão melhor guiar seu desenvolvimento?

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Economia e desenvolvimento O objetivo maior desta disciplina é de refletir sobre como é possível refundar nossas atuais bases de compreensão acerca do que é o econômico para propor novas possibilidades em termos de sustentabilidade no desenvolvimento com ênfase na territorialidade. O recorte da nossa abordagem é, desse modo, tanto analítico-crítico quanto propositivo. Ou seja, o intuito é não apenas de apresentar um outro modo de compreender a relação entre economia e desenvolvimento, como também de propor caminhos e possibilidades de construção de novos modos de ação pública para o desenvolvimento baseado no território.