Objetos Dialógicos

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UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro CTC Centro de Tecnologias e Ciências ESDI Escola Superior de Desenho Industrial

ARTEFATOS DIALÓGICOS: expandindo o debate sobre questões de gênero

Clara Juliano 2018



Clara Juliano

ARTEFATOS DIALÓGICOS: expandindo o debate sobre questões de gênero

Relatório final de desenvolvimento de projeto como requisito parcial para obtenção do título de Barachel em Desenho Industrial, ao Programa de Graduação em Desenho Indutrial, da Escola Superior de Desenho Indutrial, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Orientadora: Prof.a Dra. Zoy Anastassakis Rio de Janeiro, 2018



AGRADEÇO a minha mãe e meu pai, por tudo; à minha outra família, mulheres com quem escolhi divir casa e cotidiano; a meu companheiro, que cozinhou todas as noites em que eu trabalhava neste projeto; a zoy, que abriu novos caminhos para a prática de um design mais engajado, sustentável e vivo; que me guiou e acreditou em mim; a bibiana, pela parceria e pelo apoio, muito além deste projeto; às mulheres.



RESUMO Este documento relata o desenvolvimento do projeto de conclusão de graduação em design na Escola Superior de Desenho Industrial da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Esdi-UERJ) no ano letivo de 2017. Na forma de pesquisa prática, investigo processos de design engajados e participativos para criar espaços de debate sobre questões de gênero através da construção coletiva de artefatos. Para tal, recorro ao conceito de dispositivos de conversação como ferramenta engajadora de diálogo e materializadora de questões. Articulo conceitos de Design Anthropology, Design Participativo e Design Ativismo para estruturar e analisar esses processos e o uso dos dispositivos em uma série de encontros e atividades. O projeto, como investigação processual e metodológica, intenta contribuir com práticas investigativas emergentes e diferentes formas de construção de conhecimento na pesquisa em Design, sugerindo ainda um viés ativamente político para pesquisa e prática nesta disciplina. 1.Design Anthropology 2.Design Participativo 3.Design Ativismo 4.Gênero 5.Dispositivos de Conversação 6.Pesquisa Prática

ABSTRACT This document reports the development of the graduation project in design at the Superior School of Industrial Design of the State University of Rio de Janeiro (Esdi-UERJ) in the year of 2017. In the form of constructive design research, I investigate engaged and participatory design processes in order to create spaces for debate on gender issues through the collective construction of artifacts. To that end, I turn to the concept of conversation dispositifs as an engaging dialogue and questioning tool. I join concepts of Design Anthropology, Participatory Design and Design Activism to structure and analyze these processes and the use of the dispositifs in a series of meetings and activities. The project, as a methodological investigation, intends to contribute with emerging research practices and different forms of knowledge construction in Design research, and suggests an active political bias for research and practice in this area. 1.Design anthropology 2.participatory design 3.Design Activism 4.Gender 5.conversation dispositifs 6.Constructive Design Research



SUMÁRIO 01. Introdução 02. Motivação

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03. . . . . .

Pesquisa teórica /18 Trajetória de pesquisa /9 Síntese preliminar: tecendo temáticas Fundamentação teórica /23 Sínteses visuais /34 Encaminhamentos da pesquisa /39

04. . . . . .

Projeto /40 Considerações iniciais /41 Proposta /44 Primeiro momento: experimento inicial /45 Segundo momento: investigação em parceria /52 Terceiro momento: conclusão expansão /74

05. Considerações finais

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06. Referências bibliográficas 07. Anexos /106 . anexo 1 /107

/103

/21


01.INTRODUÇÃO


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O que significa a prática do design em um mundo em constante construção por seus habitantes, mantendo a vida em movimento, viva? Onde nada permanece estático (Gatt; Ingold, 2013)? A questão abre os caminhos para a elaboração do projeto aqui apresentado que busca contribuir de forma crítica com essa realidade fluida. Este documento relata uma investigação, desenvolvida na forma de pesquisa prática (Olander, 2014; Koskinen et al., 2011; Halse; Boff, 2014; Brandt et al., 2011), do uso de ferramentas do design, não para projetar, apontando para o futuro, mas para entender e expandir o presente através de artefatos construídos colaborativamente, criando novos espaços de diálogo, repensando práticas investigativas e propondo novas formas de construção de conhecimento (Koskinen et al., 2011). Seguindo princípios apresentados pelos campos de design anthropology, design ativismo e design participativo, além das preocupações metodológicas e processuais, o projeto encontra suas temáticas, seus pontos de interesse e desafios em questões políticas e sociais emergentes (Brandt et al., 2011; Markussen, 2013). O design é então trabalhado através de práticas críticas e politicamente engajadas, em um processo aberto e improvisatório (Ingold, 2011). As ferramentas e os experimentos aqui apresentados foram desenvolvidos e se situam em contextos sociopolíticos específicos, visando expandir o debate sobre questões de gênero, em um processo de contínua correspondência (Gatt; Ingold, 2013). As atividades desenvolvidas ao longo do projeto visavam criar espaços para debater questões de gênero através da troca de histórias e vivências através do uso de dispositivos de conversação (Anastassakis; Szaniecki, 2016) e se deram em três momentos. Primeiro, foi organizado um encontro na Esdi, em que 4 mulheres debateram questões de gênero presentes em suas vidas a partir de objetos e imagens, construindo coletivamente um painel para mapear e visualizar as temáticas ali tratadas. No segundo momento, em parceria com a rede Agora Juntas e com a pesquisadora doutoranda do PPDESDI Bibiana Serpa, foi realizada uma série de quatro encontros dentro de um curso de formação popular feminista que atendia um grupo de 15 mulheres. Cada encontro previa atividades e objetivos educacionais específicos, com os quais as atividades da pesquisa dialogaram, negociaram e coexistiram. O terceiro momento se preocupa em abrir mais ainda os processos de co-criação experimentados nos momentos anteriores através de duas


atividades, dando continuidade à investigação e levando o debate sobre gênero a públicos mais diversos, compostos não só por mulheres. Primeiro, uma oficina realizada em três aulas da disciplina de Design e Antropologia do primeiro ano do curso de graduação em design na Esdi, em que uma turma de sessenta alunos foi convidada a, em pequenos grupos, desenvolver seus próprios dispositivos de conversação. Finalmente, como última atividade projetual, foi organizada uma exposição interativa no espaço da secretaria da Esdi, que levou a público as peças construídas coletivamente ao longo do projeto. Pensada de forma a provocar novas construções coletivas naquele espaço e criar novos debates a partir dos artefatos ali expostos, a exposição, no momento de conclusão do projeto, aposta em abrir radicalmente esse processo para dar continuidade aos diálogos iniciados. Este documento, em um primeiro momento, apresenta de forma breve as experiências e motivações que justificam a temática do projeto, desde a formação em design na Esdi, onde se abriram as portas para um novo entendimento da disciplina do design, à necessidade de engajamento político, principalmente no que se refere a questões de gênero. Articulo em seguida leituras e conceitos explorados na fase de pesquisa teórica que antecede a consolidação da proposta de projeto, aprofundando questões já tocadas nesta introdução e apresentando outras, que configuram, em conjunto, a fundamentação teórica para o desenvolvimento da pesquisa prática que compõe o projeto. Investigo, na seção de pesquisa teórica, princípios e noções de Design Anthropology apresentados principalmente por Gatt e Ingold (2013), passando pelo deslocamento do foco do projeto de design, de um lugar de projeção, de produção de um produto final, à atenção ao processo em si; à continuidade e à abertura desses processos; e ao entendimento do projeto e da pesquisa como práticas de correspondência. Abordo de forma crítica as práticas tradicionais do design participativo, recorrendo a novas linhas de pesquisa que se constituem de forma prática, através de construções coletivas, partindo da pesquisa de autorxs como Binder et al. (2011), Halse e Boff (2014), Brandt et al. (2011) e Olander (2014); exploro a noção de dispositivo de conversação, conceito construído na pesquisa desenvolvida por Anastassakis e Szaniecki (2016); e considero ainda abordagens do projeto de design com um viés explicitamente político e ativista, em que autorxs como Disalvo (2010; 2012) apontam práticas e métodos característicos do design como potenciais ferramenta de mapeamento de questões e transformação política, de onde traço a necessidade de trabalhar com questões de gênero como conteúdo temático do projeto.

Em seguida, fundamentada na pesquisa teórica, apresento a proposta consolidada do projeto, apontando os objetivos e parâmetros que foram as guias para o desenvolvimento das atividades de pesquisa. Relato então os encontros e dinâmicas que compuseram a plataforma de investigação das ferramentas e dispositivos


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propostos, apresentando também a parceria com a rede Agora Juntas, com que se construiu parte das atividades. Ao longo dessa seção, analiso de forma crítica essas atividades, considerando as especificidades, possibilidades e limitações do trabalho colaborativo, e buscando compreender essas implicações de um ponto de vista metodológico-processual, através da articulação de conceitos anteriormente explorados na pesquisa teórica com as atividades práticas desenvolvidas. Finalmente, discuto também a escolha de uma exposição interativa como última etapa da pesquisa prática dentro de um cronograma de projeto de graduação, representando, não um encerramento ou produto final, mas, pelo contrário, apostando, em um momento de tradicional conclusão, na reabertura do processo e criação de novos espaços a partir de artefatos criados coletivamente no decorrer do projeto, dando continuidade a esse processo de correspondência. Encerro o documento considerando, a partir das atividades desenvolvidas, o que significa trabalhar a pesquisa em design de forma prática e construtiva, em parceria, e quais os desafios e oportunidades que nascem por entre as linhas desse processo, destacando ainda possíveis desdobramentos. Refiro assim novas formas de investigação, repensando formatos tradicionais de pesquisa e a construção de conhecimento em design, propondo um viés mais político para a pesquisa e prática em design.


02.MOTIVAÇÃO


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Relato nesta seção

o percurso que culminou na escolha da temática e dos parâmetros metodológicos e processuais que fundamentam o desenvolvimento da pesquisa teórica e prática. Apresento aqui referências, projetos e experiências que, ao longo da minha formação em design na Esdi (e além), moldaram meu entendimento de design. Durante a minha trajetória como estudante do curso de graduação em design na Esdi, o Laboratório de Design e Antropologia (LaDA), junto ao qual trabalhei nos anos de 2013 a 2015, trouxe-me para perto de leituras que pensam o papel do designer como mediador, agente que promove cenários para o levantamento de questões e facilita trocas, que age por entre, desconstruindo a mais usual estrutura vertical entre designer e cliente, pesquisador e objeto – noções que aprofundarei na próxima seção. Tive então contato com a pesquisa da Professora Orientadora Zoy Anastassakis e da professora Barbara Szaniecki, participando de suas investigações transdisciplinares, que ultrapassavam os muros da universidade, explorando o design como ferramenta de investigação prática. Empregamos imagens e objetos como dispositivos de conversação, noção desenvolvida por Anastassakis e Szaniecki(2016) para mediar debates, facilitando trocas e trazendo à tona questões emergentes no espaço público.

Atividade proposta no seminário Entremeios, realizado em 2015 pelo LaDA: uma imagem base da praça tiradentes, vazia, convidava pessoas a reimaginarem o espaço.


O exercício de aproximar o design a outras disciplinas, trabalhando em parceria na investigação de vivências de pessoas diversas, levantando e mapeando coletivamente questões presentes em seu cotidiano, apontou novas formas possíveis de trabalhar o design como ferramenta de ativismo político. Passa então a ser possível usar das minhas ferramentas profissionais para abordar e debater questões que me são urgentes e que perpassam a vida de todxs – homens, mulheres e pessoas não binárias – na sociedade patriarcal em que vivemos. O desejo de trabalhar na confluência das temáticas já presentes, tanto na minha experiência como designer quanto em vivências cotidianas como mulher, com o potencial do design como ferramenta de ativismo político deu origem a uma série de encontros em que investigávamos questões de gênero presentes no cotidiano dxs participantes, utilizando métodos de design para mediar debates. Os encontros foram idealizados em parceria com diferentes designers e realizados em diferentes locais entre Brasil, Alemanha e Sri Lanka, contando com grupos mistos de participantes(compostos de homens e mulheres). Era proposto às pessoas participantes que, após uma breve apresentação das atividades e das pessoas envolvidas, caminhassem pelos arredores do local do encontro atentando a situações, objetos, imagens ou construções que remetessem a questões de gênero específicas. Novamente reunidxs, era distribuída uma folha de papel A3 com alguns campos a serem preenchidos (ver anexo 1): as impressões sobre a breve pesquisa de campo, as temáticas em que se enquadram as questões observadas e ideias e desejos referentes a essas observações. Era proposto ainda que fosse rápida e livremente esboçada uma solução, sem qualquer compromisso com a sua possibilidade de realização, que traduzisse essas e encaminhasse essas questões. Em seguida, xs participantes apresentavam suas propostas, provocando uma série de diálogos sobre as temáticas levantadas. O processo de imaginar soluções (por vezes divertidas e muitas vezes improváveis ou impossíveis) servia de gatilho para debater e compartilhar experiências em um grupo de pessoas diversas, que muitas vezes não eram próximas ou sequer se conheciam. Esses encontros proporcionaram espaços novos de discussão e trocas ricas, fazendo emergir questões a partir das vivências compartilhadas, tornando-as visíveis através do material usado, e criando redes. A partir desses encontros, e me nutrindo ainda da experiência junto ao LaDA, identifiquei como oportunidade de projeto explorar o potencial do design de tornar tangível o subjetivo e provocar diálogos através de imagens e objetos, promovendo trocas sobre questões de gênero e apontando uma prática mais política da disciplina. Pretendia ainda desenvolver o projeto de forma colaborativa, entendendo como essencial a participação ativa e contínua das outras pessoas envolvidas, deslocando-me do lugar exclusivo de designer-pesquisadora e me colocando também como cidadã e ativista.


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Um dos encontros, em Berlin. Junho de 2016.

Um dos encontros, em Colombo. Fevereiro de 2017.


03. PESQUISA TEÓRICA


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TRAJETÓRIA DA PESQUISA A soma das experimentações em projetos transdisciplinares, o uso de artefatos como mediadores e provocadores de debates, as vivências cotidianas como mulher e a vontade de criar espaços de troca para discutir essas experiências compõe de forma abrangente o campo de interesse do projeto. Essas experiências, relatadas na seção anterior, elicitaram os primeiros critérios que viriam a enquadrar a pesquisa teórica e, em um momento posterior, o desenvolvimento do projeto em si. Nesse momento ainda embrionário que precede o início da pesquisa teórica, conforme apresentado anteriormente, tinha já como prérequisitos fundamentais para o projeto: (i) explorar o potencial do design de tornar tangível a subjetividade; (ii) usar das ferramentas do design para provocar diálogos; (iii) trabalhar de forma colaborativa, buscando a participação ativa das partes envolvidas; e (iv) desenvolver as atividades do projeto a partir de um recorte temático de questões de gênero, aproximando o projeto de design de uma prática mais política e engajada. Nesta seção, descrevo inicialmente a primeira formalização dessas ideias, que delineou a área de interesse que seria explorada ao longo do projeto e indicou questões a serem investigadas, sendo o ponto de partida para a primeira fase de pesquisa teórica – momento de investigação em torno do tema e multiplicação de possibilidades. Sigo então para a etapa de pesquisa teórica, em que exploro conceitos fundamentais de design anthropology; práticas tanto tradicionais quanto críticas e inovadoras da área de design participativo, incluindo novas linhas de pesquisa em design que se entendem como práticas; a noção de dispositivos de conversação; e abordagens mais politicamente engajadas do design, passando pela concepção de design ativismo. A pesquisa teórica se estruturou em sub-etapas de expansão e síntese: a cada semana foram investigados diferentes temas através de leituras diversas, seguidas então por exercícios de síntese visual, que, por sua vez, apontavam novos caminhos para o desenvolvimento da pesquisa, e assim por diante.


Visando articular de forma mais fluida os conteúdos explorados nessa fase, opto por estruturá-la de forma a, em um primeiro momento, discutir as leituras e os conceitos que constituem a fundamentação teórica do projeto, introduzindo também projetos que são referência para os modos específicos de trabalhar que busco nessa investigação. Apresento, por último, as sínteses visuais elaboradas a partir das leituras, através das quais defino parâmetros e objetivos que apontam os caminhos para o desenvolvimento do projeto, encerrando a fase de pesquisa teórica e encaminhando a consolidação da proposta de projeto.


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SÍNTESE PRELIMINAR: TECENDO TEMÁTICAS A primeira visualização do projeto, até então um emaranhado de experiências, vontades e intenções pouco definidas, deu-se através de um exercício proposto em sala, na disciplina de orientação coletiva da pós-graduação da Esdi. A proposta consistiu em gerar um diagrama para o projeto segundo a estrutura de malha, conceito desenvolvido por Ingold na parte II do livro Being Alive (2011). A malha é contraposta à ideia de rede – que privilegia pontos e as conexões entre eles –, e é constituída por diversas linhas que em uma extremidade estão presas em outras linhas, e que, ao longo de sua extensão, se entrelaçam, vivas, crescem e se movimentam, relacionando-se entre si e nunca existindo isoladas de seus entornos. Com base nesse conceito, construí o diagrama que seria a primeira formalização do projeto, articulando vivências e interesses apresentados na seção anterior (motivação). Optei por realizar a malha utilizando materiais que possibilitassem o manuseio e rearranjo das linhas e seus conteúdos: assim como as linhas da malha de Ingold, as linhas da minha malha poderiam se movimentar e entrelaçar de formas variadas. Trabalhei as linhas por cima de folhas de papel, entendendo a área por elas demarcada como um recorte pequeno de temáticas mais amplas e complexas em que se insere o meu projeto.

Diagrama em formato de malha.


Pensei em quatro linhas de partida, fatos e ideias que seriam a base na qual as linhas do projeto se prendem em uma de suas extremidades: (i) as cidades, espaço-contexto onde se dão as vivências cotidianas, tanto minhas quanto das potenciais pessoas com quem colaboraria ao longo do projeto; (ii) o patriarcado, estrutura que concebe as desigualdades, opressões e estereótipos de gênero que permeiam todas as vidas nesse espaço-contexto; (iii) a vontade de trabalhar horizontalmente em parceria, junto às outras pessoas envolvidas em processos de co-criação, de forma a quebrar a estrutura hierárquica de pesquisadora - objeto de pesquisa; e (iv) a Esdi, escola de design e contexto específico onde se dá o projeto de conclusão de graduação, associada ao entendimento de que todo ato é político e o projeto de design não foge à regra. As duas primeiras linhas de partida proporcionam a tensão que é o foco temático do projeto. As terceira e quarta linhas citadas se entrelaçam, tratando da relação entre a designer e as outras partes envolvidas, da abordagem metodológica e da noção do design como ferramenta política. As linhas se desenvolveram a partir de um jogo de palavras, em que listei conceitos relacionados de forma geral aos quatro pontos de partida já identificados, e os distribuí em pequenos pedaços de papel ligados a linhas de barbante. Movendo as palavras ao longo dos fios e articulando-os de formas variadas, pude enxergar relações entre esses conceitos e ideias para então estruturá-las sobre as folhas de papel. A visualização dessas ideias e a forma com que se relacionam foi o pontapé inicial para a fase de pesquisa teórica. A partir daí, pude visualizar possíveis confluências e formas como as ideias se relacionam. Dispondo de uma visão mais concreta dessas possibilidades, estabeleci os primeiros parâmetros que guiariam os próximos passos do projeto: praticar o design de forma politicamente engajada e tratar de questões de gênero; trabalhar com grupos de mulheres e facilitar a troca de histórias e experiências; trabalhar de forma situada, considerando as especificidades de cada contexto; e tocar o projeto em parceria em uma estrutura não hierárquica, explorando processos de co-criação. Assim, foi possível traçar uma linha de partida para a pesquisa teórica, direcionando as primeiras investigações. Busquei então explorar métodos e processos coerentes com as preocupações projetuais aqui afirmadas e que abrissem caminhos para trabalhar a temática proposta de forma crítica e engajada.


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FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Exponho a seguir o conteúdo que é a base teórica que fundamenta o desenvolvimento prático do projeto, articulando noções trazidas por diversas leituras e ainda projetos que são referência por trabalharem de formas distintas segundo essas noções.

Design Anthropology: de volta ao presente Design Anthropology é um campo acadêmico que se forma a partir da correspondência entre os campos do design e da antropologia, mesclando noções, ferramentas e metodologias desses campos para criar novas formas de construção de conhecimento, não apenas nos campos de design ou antropologia, mas fazendo emergir um terceiro campo transdisciplinar em que colaboram designers, antropólogos e cidadãos (Anastassakis; Szaniecki, 2016). O campo tem origem em diferentes formulações iniciadas por autorxs como Ingold (2011; 2013); George Marcus e Paul Rabinow (2008); Gunn, Otto e Smith (2013); Halse e Boff (2014); e se esforça em deslocar para a atenção ao presente, tanto a disciplina de antropologia, voltada para o passado, quanto a disciplina do design, apontada para o futuro. Gatt e Ingold (2013) sugerem que a antropologia, através de práticas tradicionalmente descritivas, encontra-se fundamentalmente desconectada dos acontecimentos e contextos específicos a que se refere – e, portanto, presa de forma estática ao passado. Em contraste, o design se preocupa tradicionalmente em prescrever de forma imperativa soluções finais e estáveis para um futuro supostamente melhor, trabalhando também de forma desconectada com o presente. Essa prática resulta com frequência na produção de coisas materiais ignorantes aos contextos sociais, econômicos e ecológicos a que se destinam (Anusas; Harkness, 2016). Propõe-se, frente a esse cenário, uma antropologia participativa, em que seja possível transformar o espaço do campo e da etnografia, de um espaço descritivo e estático em um espaço de construção coletiva de um futuro próximo (Olander, 2014), mantendo diálogos em tempo real com as pessoas envolvidas nesse processo. Trabalhando com esse objetivo a partir de métodos transdisciplinares, a pesquisa em Design Anthropology conta com a associação entre a observação participante, a abertura dos processos e a atenção ao contexto e suas especificidades com ferramentas e modos de pensar do design, facilitando a concepção de novas possibilidades, hipóteses e ideias (Halse; Boff, 2014). Dessa forma, traz também o design de volta ao presente, deslocando o foco tradicional do projeto


prescritivo, solucionador de problemas, a questões emergentes no agora. A necessidade de repensar de forma crítica as temporalidades vinculadas às duas disciplinas vem atrelada à noção de que a vida não existe deslocada dos contextos em que é vivida. Haraway (2016) traz a perspectiva de que toda vida é situada em seu meio ambiente, entrelaçando-se com outras vidas que compartilham desse ecossistema, parcialmente assimilando-se umas às outras, mantendo-se em constante movimento na forma de composições ecológicas de diferentes organismos. A autora nos lembra que os próprios seres humanos são compostos por milhares de organismos, com quem vivem em simbiose. Relaciono essas ideias às de Gatt e Ingold (2013), quando concebem a vida como processos essencialmente fluidos, onde tudo está em contínua construção, propondo a imagem de vidas tentaculares, em que seres vivos se entrelaçam uns aos outros através de linhas, formando uma malha que se estende em eterno movimento. Nessa perspectiva, o autor considera o design não somente como prática restrita a um exclusivo grupo de profissionais, mas como aspecto fundamental da vida humana. Nesse sentido, xs autores propõem trabalhar essas práticas na forma de correspondência com a vida, em que o design (profissionalizado) se assume como um processo também fluido e improvisatório, capaz de responder às questões emergentes nessa malha, sem a ambição de propor um fim ou uma solução permanente. Paul Klee (1961:105; tradução minha) evoca essa noção ao definir o desenho como “levar uma linha para passear: a linha que passeia não representa ou prefigura nada. Ela simplesmente persiste, traçando um caminho enquanto caminha”. Pensar o processo de design como fluido não significa, porém, ser simplesmente levado pela corrente. O processo se apresenta como movimento contínuo, mas se propõe, de forma crítica, a apontar e abrir determinados caminhos e não outros, tomando uma posição de inconformidade frente ao cenário atual, em que poderes dominantes mantêm um mundo insustentável de desigualdades e devastação (Gatt; Ingold, 2013).

Design Participativo: novas práticas para trabalhar junto O design participativo tem tradicionalmente como essência o objetivo de envolver diretamente aqueles a quem são destinadas novas tecnologias, sistemas e produtos, no desenvolvimento dos mesmos no processo de design. Sua origem é traçada nos anos 1970 na Escandinávia, quando projetos vinculados a novas tecnologias foram implementados principalmente no ambiente de trabalho. A inserção mais engajada de usuários e clientes no processo de design se mostrou produtiva, já que essas pessoas atuavam cotidianamente no contexto em que esses novos produtos e sistemas seriam instalados, e poderiam, então, oferecer insights valiosos. Por outro lado, demonstrando uma preocupação mais política, usuários estavam ganhando voz, tomando parte e se apropriando de um processo até então alienante (Lenskjold, 2011; Ehn, 2008).


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O envolvimento dessas pessoas no processo de design exigiu a criação de novas ferramentas e estratégias que possibilitassem a contribuição de indivíduos não profissionais do design e não familiarizados com as novas tecnologias em questão. O codesign dos produtos era viabilizado através do uso de modelos, protótipos, cenários e jogos, nivelando a linguagem entre designers e usuários, materializando essas futuras tecnologias em construção, e trazendo-as para mais perto dessas pessoas (Keshavarz & Mazé, 2013; Björgvinsson et al., 2010; Brandt, 2010). O crescimento do design participativo marca uma “virada social” (Keshavarz & Mazé, 2013) do design, em que se repensam os fundamentos da disciplina, principalmente, no que se refere à dinâmica entre sujeitos, processos e objetos. Ainda coerente aos princípios fundamentais de participação e inclusão do design participativo, mas considerando a necessidade de repensar seus processos diante da complexidade das dinâmicas social, econômica e ambiental, pesquisa e prática nessa área vêm se reinventando. Hoje, podemos considerar a participação em si como seu principal objetivo (Björgvinsson et al., 2010). Alinhadas também aos princípios de abertura, continuidade e correspondência trazidos pela Design Anthropology, essas novas práticas de pesquisa em design devolvem a pesquisadora ao lugar ao qual originalmente pertence: no meio das e junto às pessoas e aos objetos com que e com quem se trabalha, não mais deslocada desse contexto, rompendo com a hierarquia processual que estrutura a relação entre designer e usuário, pesquisadora e objeto de estudo. Nesse contexto, propõe-se uma nova forma de se fazer pesquisa em design por meio da prática, em que a construção de conhecimento se dá principalmente através da materialidade dos processos de design (Olander, 2014). A construção de produtos, sistemas, espaços, mídias, cenários e protótipos é usada como dispositivo facilitador de engajamento em um trabalho de pesquisa colaborativo, em que o foco não passa por propor soluções para um problema, mas recai sobre encontrar formas de estar junto à questão para melhor compreendê-la, enxergando-a de novas formas (Binder et al, 2011).

Pesquisa através da prática: materialização de processos Esses modos engajados e práticos de pesquisa permitem a construção de novas formas de diálogo e compreensão de questões emergentes e urgentes, mas ainda não formuladas de forma concreta – e que, por se manterem intangíveis, permanecem distantes e intocáveis para o(s) público(s) afetado(s), conforme argumenta DiSalvo (2009). O autor sugere uma abordagem do design em que o processo não parte da identificação de um problema seguida de uma solução prescritiva, insinuando também a ruptura da fórmula tradicional do projeto. Pelo contrário, seu papel principal seria a descoberta e a articulação de questões relevantes, conferindo-lhes visibilidade ao materializá-las através de ferramentas do design, e considerando


pessoas, eventos e coisas das quais fazem parte, sobre as quais têm influência ou que estão de alguma forma a elas conectadas (Lenskjold, 2011). O design, então, é capaz de criar condições para ação e mudança, agindo como ferramenta engajadora para desafiar forças dominantes e estabelecer novas formas de diálogo (Bjørgvinsson et al., 2010). Entendendo o processo de design como meio de evidenciar e evocar, ao invés de argumentar e concluir (Brandt et al, 2011), o uso de ferramentas e objetos de design na pesquisa prática tem por objetivo provocar diálogos e materializar o intangível, pensando novas formas para a construção de conhecimento. Esse uso contraria o papel tradicional do protótipo no processo de design, negando seu propósito como mero rascunho a ser aprimorado na direção de um produto final, apresentando esses artefatos como peças centrais desse processo, e cumprindo o papel de ferramenta facilitadora de participação (Halse et al, 2010; Gunn; Donovan, 2012). O objeto deixa de ser um protótipo para então cumprir o papel de provótipo (Lenskjold, 2011), objetos engajadores e provocadores de debates. Alinhado à noção de provótipo, Anastassakis e Szaniecki (2016) desenvolvem, em sua pesquisa junto ao LaDA, o conceito de dispositivos de conversação, que nomeia artefatos e peças gráficas experimentais que facilitam o engajamento e o diálogo em torno de determinada questão. Esses artefatos, usados para mediar conversações e provocar a imaginação, estão abertos a interpretações diversas e imprevisíveis dxs participantes, favorecendo a produção coletiva de significados (Anastassakis; Szaniecki, 2016).

Tangibilizar diálogos como forma de ativismo político Partindo da contextualização político-social que é fundamental para Design Anthropology, é de interesse deste projeto articular métodos e ferramentas do design participativo na forma de pesquisa prática, investigando processos colaborativos para criar novos formatos de diálogo de modo politicamente engajado. Dessa forma, articulo os princípios até agora apresentados e aproximo o projeto também à ideia de design ativismo, tendência do design que surge como forma de oposição à abordagem hegemônica neoliberal que vêm moldando a disciplina (Julier, 2013). Ao contrário de outras correntes que associam diretamente o design à política, como o design social, design para inovação social, design socialmente responsável e o que DiSalvo (2010) entende por “design para política” (design for politics, no original), o design ativismo tem um viés político intencional e disruptivo (Armstrong et al. 2014). Enquanto os primeiros têm como foco renovar e aprimorar mecanismos do sistema vigente através do design – operando, portanto, a partir de uma agenda neoliberal (Fuad-Luke, 2009) –, o design ativismo se mostra


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fundamentalmente revolucionário ao usar artefatos e processos de design para criar “espaços de contestação” (DiSalvo, 2010, tradução minha). Retomando os propósitos trazidos pela concepção de pesquisa prática, pode-se argumentar que os artefatos e dispositivos usados como provótipos (Lenskjold, 2011), assim como não buscam soluções finais para um problema, mas sim permanecer junto a uma questão, não procuram tampouco trabalhar com o consenso das partes envolvidas, antes pretendem provocar debates que abarcam e mediam tensões, discordâncias e diferentes interesses, desejos e necessidades. Nesse sentido, DiSalvo (2012) considera o design como potencial ferramenta de produção cultural agonística, promovendo dissenso e contestação, e conversando com a noção de democracia como inerentemente controversa – noção também característica dos princípios de Design Anthropology, que, frente à complexidade das questões sociopolíticas emergentes, propõe dialogar e criar colaborativamente, de forma orgânica, incorporando então diferenças e negando concordâncias uniformes ignorantes às especificidades do contexto em questão (Costard, 2017). Busquei, com apoio das ideias aqui apresentadas – a transdisciplinaridade e a ideia de processo aberto, continuidade e correspondência (Gatt; Ingold, 2013) características do Design Anthropology, os princípios fundamentais e tradicionais do Design Participativo, as novas ferramentas e metodologias sugeridas pela pesquisa através da prática (Olander, 2014; Koskinen et al., 2011; Halse; Boff, 2014; Brandt et al., 2011) e as preocupações políticas do Design Ativismo desenvolver o projeto de forma engajada com os contextos sócio políticos que habito. Mobilizei ferramentas do design para expandir momentos de presente (Gatt; Ingold, 2013; Anusas; Harkness, 2016), ao criar espaços de debate em que, utilizando dispositivos de conversação (Anastassakis, Szaniecki, 2016), provoquei discussões sobre questões de gênero entre as pessoas participantes. Em coerência com as teorizações apresentadas, o foco das dinâmicas de troca não foi projetar soluções para esses problemas, mas explorar questões emergentes entre os grupos envolvidos para melhor compreendê-las (Binder et al., 2011), em um esforço de criar públicos (DiSalvo, 2009) e estabelecer condições para ação e mudança (Bjørgvinsson et al., 2010). Nesses encontros, a construção de conhecimento se deu principalmente através da construção coletiva de artefatos, que cumpriu o papel de ferramenta engajadora (Olander, 2014; Halse et al., 2010; Gunn; Donovan, 2012). Assim, os espaços de diálogo criados durante o projeto não buscavam a resolução de conflitos em busca de consenso, mas, pelo contrário, provocar debates a partir do dissenso, incorporando tensões e discordâncias em favor de uma abordagem mais democrática das questões em pauta (DiSalvo, 2012). Passo agora a apontar referências e projetos que trabalham sob essas perspectivas, para, em seguida, concluir esta seção expondo as sínteses visuais construídas ao longo da pesquisa teórica, que operaram como ferramentas para a definição de parâmetros e objetivos do projeto, levando à consolidação da minha proposta.


REFERÊNCIAS Cartografias e mapeamento coletivo As duas leituras apresentadas a seguir foram referências interessantes por apresentarem projetos que utilizam ferramentas e métodos de design para mapear espaços, subjetividades e situações como forma de conferir visibilidade a questões sociais e grupos marginalizados. O primeiro, Atlas Ambulante, é um livro que reúne mapeamentos de trajetos cotidianos e experiências de vendedorxs ambulantes na cidade de Belo Horizonte. O mapeamento dessas pessoas apresenta um claro viés político ao criar registros cartográficos de práticas informais e marginalizadas, que não habitam os mapas oficiais. Atlas Ambulante oferece ainda mapas inconclusos, em constante construção, em que o foco é seu processo de criação, sem comprometimento com um resultado fechado e final.

Um dos mapas apresentados no livro Atlas Ambulante.


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A segunda leitura, Manual de Mapeo Colectivo, desenvolvido pelo coletivo Iconoclasistas, reúne métodos utilizados pelo coletivo em oficinas de mapeamento coletivo. A leitura traz a noção da imagem como linguagem capaz de mediar a troca entre pessoas sem a necessidade de conhecimento ou habilidade específicos, e sugere o uso de ícones como facilitador e ponto de partida para a construção visual dos mapas.

Um dos mapas criados coletivamente, apresentado no livro Manual de Mapeo Colectivo.


Página do livro Manual de Mapeo Colectivo, em que ícones são sugeridos para abordar questões sociais.

O mapa, nas duas leituras, é abordado como ferramenta política, em que opera para criar espaços de fala e dar visibilidade a grupos e questões excluídos de registros oficiais, além de engajar as pessoas afetadas por determinada questão em debates sobre a mesma. As leituras foram inspiração para o desenvolvimento de algumas das atividades realizadas durante o projeto, além de gerar novas perguntas que ajudaram a guiar o processo de pesquisa teórica e apontar novas referências: como representar, através da imagem, histórias e experiências subjetivas? Como construir essas representações de forma coletiva? Como facilitar dinâmicas em que os métodos se relacionem com o tema e com os sujeitos participantes?


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Criação coletiva de imagem As dinâmicas apresentadas a seguir são referências de atividades de criação gráfica coletiva, incorporadas à pesquisa em resposta às perguntas levantadas pela leitura das primeiras referências apresentadas. A SUCO, publicação informal de que participei inúmeras vezes, é construída de forma horizontal e coletiva em um único encontro, de duração e colaboradorxs variáveis. Cada volume é elaborado em torno de um tema elegido previamente pelxs participantes. Imagens e fragmentos de texto, autorais ou não, que se relacionem com a temática escolhida, são trazidos ao encontro, servindo de material base para o desenvolvimento do restante. A SUCO não tem compromisso com resultados gráficos refinados e nem com a veracidade – ou sentido e coesão – do conteúdo textual. O valor da dinâmica encontra-se na experimentação livre da criação coletiva da revista.

Página da edição “memória” da revista SUCO.


Um dos encontros de criação da SUCO em andamento.

Imagem produzida para a edição “sopa” da revista SUCO.


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Em um contexto bastante distinto, a segunda referência de dinâmicas de criação coletiva é uma oficina facilitada pelo LaDA, na Esdi, em 2014. Foi proposto que xs participantes saíssem da escola e caminhassem pelos arredores, registrando livremente suas impressões. De volta à Esdi, era apresentado o que se observou, seguido de discussões. Xs participantes, então, elaboravam representações gráficas de suas impressões e das temáticas discutidas para, em seguida, construir coletivamente um painel de colagens, espécie de síntese visual colaborativa da dinâmica. As duas referências forneceram insumos para dinâmicas propostas em diferentes momentos do presente projeto, que tinham como foco da dinâmica a construção coletiva e dialógica de artefatos. A seguir, apresento as sínteses visuais realizadas durante a fase de pesquisa teórica, que auxiliaram na operacionalização dos insumos teóricos e das referências aqui apresentadas, de forma a guiar a pesquisa e definir os primeiros parâmetros que formulam a proposta do projeto.


SÍNTESES VISUAIS Como observado no início desta seção, a fase de pesquisa teórica não se limitou à leitura de autorxs que pesquisam e teorizam sobre as temáticas abordadas ao longo da fundamentação teórica – foram exploradas também referências na forma de projetos, teses e coletivos cujo trabalho pode ser articulado com as noções tratadas nessas leituras. No decorrer dessa etapa, a construção de sínteses visuais facilitou a articulação de pontos de interesse de referências e insumos teóricos com as intenç˜oes projetuais previamente estabelecidas (ver síntese preliminar, página 21). A partir das sínteses, pude estabelecer parâmetros e objetivos que consolidaram a proposta de projeto. Durante a fase de pesquisa teórica, as sínteses ajudaram ainda a guiar as investigações ao apontar novas leituras e referências, que colaborariam como insumos para trabalhar os objetivos e parâmetros definidos na síntese.

Diagrama em camadas: definições de objetivos e parâmetros A proposta da primeira síntese foi estruturar o projeto em camadas, identificando um núcleo principal e elementos que o envolvem. Feito logo após a síntese preliminar (ver página 21), o diagrama em camadas visou estruturar as ideias previamente levantadas de modo a definir o foco do projeto e formas práticas e objetivas de trabalhar essas temáticas. A síntese teve também como insumo projetos que trabalham com práticas de mapeamento, trazendo o mapear como ferramenta política (ver referências na página 28), assim como leituras que entendem o papel do design como articulador de questões, a saber: Koskinen et al. (2011); Lenskjold (2011); Halse; Boff (2014); Brandt et al. (2011); DiSalvo (2009); Bjørgvinsson et al. (2010). Ao identificar o núcleo do diagrama como “mulheres”, classifico o termo como tema e também como agente, entendendo que o projeto é colaborativo e não carrega uma relação sujeito pesquisador - objeto de pesquisa. Ainda dentro do núcleo, identifiquei como pontos de interesse as histórias, pluralidades e geografias dessas mulheres: quais as suas vivências, como se relacionam entre si e com o espaço onde se dão essas vivências e de que forma isso evidencia questões relativas a estereótipos, discriminação e opressão de gênero. Observe-se que a escolha inicial de trabalhar essas questões exclusivamente a partir de vivências de mulheres e renunciar a grupos mistos ou masculinos não significa que apenas o público feminino se interesse pela temática, muito menos que a problemática afete (de forma negativa) apenas essas pessoas.


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Entende-se que essas questões são estruturais e atingem a todxs, manifestando-se na forma de estereótipos de gênero, machismo e homofobia, entre outros; mas defendese também que criar espaços exclusivamente femininos de debate sobre questões de gênero é criar espaços seguros de fala e dar voz a grupos historicamente silenciados. As atividades do projeto serão a princípio desenvolvidas nessa configuração, mas abrem o debate a outros grupos nas etapas finais.

Diagrama em camadas: estruturando o projeto.


A camada que toca o núcleo, através da qual se tem acesso às histórias e vivências, representa dinâmicas coletivas a serem realizadas entre essas mulheres, no âmbito do projeto. As dinâmicas configuram os espaços que permitem as trocas, momento em que é possível acessar o núcleo do diagrama. Dessa forma, pretende-se trazer à tona questões, diferentes perspectivas e também divergências e tensões, usando as ferramentas do design para promover dissenso e contestação como práticas democráticas, assim como sugere DiSalvo (2012). Ainda de forma solta, começo a pensar possíveis atividades e métodos que podem ser usados como ferramenta para provocar essas trocas. A camada mais externa retrata a parte tangível e acessível do projeto: os registros desses espaços de troca, o mapeamento dessas histórias. Esses registros cumprem a função de materializar as questões e subjetividades levantadas durante as atividades e são construídos de forma coletiva através de ferramentas do design (Lenskjold, 2011). As possíveis visualizações geradas nessas dinâmicas não ambicionam a posição de produto ou protótipo, mas pretendem trabalhar como dispositivos de conversação para provocar engajamento, mediar diálogos e provocar potenciais desdobramentos. Em azul, entre as camadas, listei por fim preocupações e questões ainda em aberto que considero relevantes: a importância de o projeto ser construtivo para e construído por todas que dele participem; quais seriam os métodos mais adequados para facilitar as trocas; e, finalmente, como gerar e quais seriam os registros a serem criados. A organização visual do projeto em camadas permitiu a identificação de dois principais objetivos: (i) através de dinâmicas coletivas, facilitar a troca de histórias e vivências entre diferentes mulheres, trazendo à tona e mapeando questões, perspectivas, divergências e pontos de tensão; (ii) criar registros tangíveis dessas trocas, tornando as questões discutidas visíveis e provocando novos debates.

Sistematizando insumos, arquitetando dinâmicas A segunda síntese visual foi construída no intuito de explorar possíveis ferramentas para a elaboração das dinâmicas de troca, e teve como insumo leituras em torno do uso de métodos e processos de design, em especial aqueles centrados no uso da imagem (Frølunde, 2014; Portela, 2017), como ferramentas no desenvolvimento de projetos colaborativos. Buscava, com essas leituras, encontrar ferramentas características do design que pudessem ser usadas no desenvolvimento das dinâmicas coletivas pensadas na síntese anterior. As ferramentas deveriam mediar a troca de histórias que evocam questões de formas que propiciam a construção coletiva do conhecimento através do engajamento (DiSalvo, 2010). Registrando em post-its pontos de interesse dos insumos, essas informações foram redistribuídas sobre folhas de papel. Buscava visualizar diferentes ferramentas


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e métodos, além de possíveis formas de registrar e tornar visíveis as dinâmicas pensadas, considerando, ainda de forma solta, diferentes estruturas possíveis para a dinâmica.

Segunda síntese: explorando ferramentas e dinâmicas.

Ao navegar pela síntese, tracei conexões entre novas ideias e antigas experiências. Os exemplos de dinâmicas de criação coletiva utilizando imagens e objetos como ferramenta evocaram o processo de criação da SUCO, publicação já referida (ver página 31). A construção de paisagens proposta pelo coletivo Iconoclasistas (ver página 29) se assemelhou a dinâmicas desenvolvidas em oficinas que facilitei junto ao LaDA (ver página 33), colagens coletivas que sintetizam graficamente a análise de discussões e percepções acerca de um tema anteriormente investigado em campo.


Durante o processo de articulação dessas referências, considerando também os objetivos que havia determinado ainda no diagrama em camadas (ver página 35), destaquei pontos fundamentais que seriam a base para o desenho da primeira dinâmica e, no geral, para o desenvolvimento do projeto em si: (i) permitir que pessoas distintas dialoguem utilizando imagens e objetos como dispositivo facilitador de trocas, estabelecendo uma linguagem relativamente comum a todas; (ii) trazer à tona questões através dessas imagens e objetos, construindo artefatos visuais ao longo das discussões; (iii) promover a análise coletiva do encontro através desse material, construindo sínteses visuais subjetivas das trocas naquele espaço.


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ENCAMINHAMENTOS DA PESQUISA Ao longo desta seção apresentei a trajetória da pesquisa, dividida em etapas de leituras e síntese, e como essas moldaram o projeto. A primeira síntese considerava leituras que traziam práticas de mapeamento como forma de ativismo e que abrem caminho para o uso de ferramentas do design para a identificação de questões. Foi explicitada a escolha política de trabalhar inicialmente apenas com mulheres, de forma a criar espaços de fala sobre questões de gênero para esse grupo estruturalmente marginalizado. Foram também determinados os objetivos e a estrutura básica do projeto, que determinam um foco temático, as potenciais colaborações e as preocupações processuais e metodológicas: (i) através de dinâmicas coletivas, facilitar a troca de histórias e vivências entre diferentes mulheres, trazendo à tona e mapeando questões, perspectivas, divergências e pontos de tensão; (ii) criar registros tangíveis dessas trocas, tornando as questões discutidas visíveis e provocando novos debates. A segunda síntese considerou um grande leque de possíveis métodos e ferramentas para a realização de dinâmicas coletivas e o uso de imagens e objetos na mediação dessas atividades, visando fornecer insumos para a elaboração prática dos objetivos definidos na síntese anterior. Contribuiu, assim, para a estruturação dessas dinâmicas, de modo a determinar que esses encontros deveriam (i) permitir que pessoas distintas dialoguem utilizando imagens e objetos como dispositivo facilitador de trocas, estabelecendo uma linguagem comum a todas; (ii) trazer à tona questões através dessas imagens e objetos, construindo artefatos visuais ao longo das discussões; (iii) promover a análise coletiva do encontro através desse material, construindo sínteses visuais subjetivas das trocas naquele espaço. Nesse momento, é encerrada a primeira fase de pesquisa teórica, para dar início a uma nova etapa de experimentação e colocar em prática essas dinâmicas, até então pensadas somente em teoria. Apresentarei, a seguir, o projeto desenvolvido a partir das discussões até então elaboradas, em que busco desenvolver uma investigação processual e metodológica através de práticas politicamente engajadas, trabalhando em um processo colaborativo com foco temático em questões de gênero.


04.PROJETO


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CONSIDERAÇÕES INICIAIS Apresento, nesta seção, o projeto e as atividades que compõem a presente investigação, que se deram entre dezembro de 2017 e junho de 2018, recorrendo a noções estudadas na fundamentação teórica para analisar de forma crítica esses processos. A proposta de projeto opera como ponto de partida para o desenvolvimento das atividades da pesquisa prática. O processo, no entanto, é fundamentalmente participativo, envolve outras partes e, justamente por isso, não deixa de ser improvisatório e orgânico: ele influencia e, até certo nível, é influenciado pelo decorrer dos acontecimentos, em uma via de mão dupla que conta com perspectivas e interesses distintos (Olander, 2014). Nesse sentido, a proposta trabalha também como guia ou âncora, de forma a impedir a deriva excessiva do processo e a manter essas atividades produtivas, de acordo com os interesses da investigação (Brandt et al., 2011). O conjunto de atividades desenvolvidas ao longo do projeto compreende experimentos diversos, que, realizados em diferentes momentos, não necessariamente contaram com as mesmas parcerias e participantes, nem foram realizados no mesmo contexto local. Todos eles, porém, foram idealizados a serviço da pesquisa: usam da mesma fundamentação teórica e partem da mesma proposta; exploram diferentes ferramentas situadas em contextos distintos, mas objetivam, dentro da diversidade, investigar esses processos participativos que têm a construção colaborativa de artefatos como principal forma de construção de conhecimento (Koskinen et al., 2011). Essas atividades se deram em três momentos. Primeiro, foi organizado um encontro em que mulheres foram convidadas a trazer objetos e imagens que remetessem a experiências que as participantes associavam a questões de gênero. Essas imagens e objetos eram gatilhos para o debate acerca das questões em foco e, somando-se a desenhos, frases e esquemas que as participantes produziram ao longo da conversa, compuseram um painel construído coletivamente como síntese visual ao final do encontro, de forma a mapear as temáticas ali tratadas. O segundo momento incluiu uma série de quatro encontros realizados em parceria com a rede Agora Juntas, em um curso de formação popular feminista, contando com um grupo razoavelmente estável de 15 participantes mulheres. Nesse contexto, era preciso negociar com diferentes demandas das partes envolvidas, que limitaram e guiaram


os diversos experimentos realizados nos encontros do curso. Foram mobilizadas ferramentas específicas que dialogavam com o objetivo de cada encontro, apoiando o processo participativo enquanto dispositivos de conversação. Dessa forma, as atividades buscaram atender aos interesses investigativos da pesquisa, sem perder de vista as exigências do curso e dialogando ainda com os interesses das participantes. Aproximado o fim da pesquisa, a investigação somava experimentos realizados em dois contextos distintos, mas semelhantes em sua estrutura – eu, designer, propusera espaços de troca junto a grupos de mulheres em que, em diálogos provocados por determinados materiais, construímos artefatos, por sua vez, capazes de provocar ainda outros debates dentro da temática em questão. Os últimos momentos da pesquisa prática, porém, em vez de visar o fechamento do projeto e apontar soluções de maneira conclusiva, foram estruturados com o objetivo de abrir ainda mais o processo para multiplicar as ferramentas e os espaços de debate até então construídos nos experimentos. O terceiro e último momento é marcado então pela necessidade de explorar o potencial dos artefatos construídos anteriormente de provocar ainda outros debates em um novo contexto, aspecto anteriormente observado, mas ainda não experimentado; pela busca de abrir os processos de co-criação das ferramentas investigativas; e por extrapolar os espaços de diálogo até então criados, levando o debate sobre questões de gênero a públicos compostos não só por mulheres. Para tal, duas atividades foram elaboradas: (i) uma oficina composta por três encontros realizados nas aulas da disciplina de Design e Antropologia do primeiro ano do curso de graduação em design na Esdi, em que um grupo em que, em média, sessenta estudantes desenvolveram seus próprios dispositivos de conversação para tratar de questões de gênero que considerassem relevantes; (ii) e uma exposição interativa, organizada no espaço da secretaria da Esdi, onde foram expostas ao público as peças construídas coletivamente ao longo de encontros nos diferentes momentos da pesquisa prática, e pensada de forma a provocar e possibilitar novas construções coletivas naquele espaço. É importante observar que o projeto foi desenvolvido dentro de prazos pré estabelecidos de modo a atender às exigências do curso de graduação, o que determina o momento de sua conclusão. A investigação, porém, não prevê o desenvolvimento de um produto final, tampouco sugere um processo conclusivo, que gera respostas ou argumentos autoritários (Brandt et al., 2011.) Conforme já exposto, os experimentos tocados neste projeto buscam investigar o uso das ferramentas e dinâmicas situadas em contextos específicos, em que o objetivo é compreender e analisar de forma crítica como se dão esses processos, não alcançar um resultado ideal. Desse modo, a investigação procura levantar questões e possibilidades, de forma a contribuir com novas formas participativas de construção de conhecimento e práticas investigativas emergentes na pesquisa em design. No decorrer das atividades, revelaram-se impasses e questões atreladas às


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especificidades dos processos participativos propostos – a sua abertura, os diferentes (e por vezes conflituosos) interesses em jogo, seu caráter experimental, o desafio de provocar engajamento e a própria proposta da pesquisa prática em design, campo emergente que não apresenta práticas fixas e predeterminadas (Olander, 2014). Esses fios soltos serão retomados adiante, na seção considerações finais, em que aprofundo essas questões ainda que sem buscar respostas definitivas, mas apostando em um processo de design que levantam novas perguntas em lugar de impor soluções (Lenskjold, 2011; Halse; Boff, 2016).


PROPOSTA A proposta do presente projeto consistiu em promover encontros para debater questões de gênero através da troca de histórias e vivências, explorando o conceito de dispositivos de conversação (Anastassakis; Szaniecki, 2016) e o potencial do design como ferramenta de tornar visíveis as subjetividades. O projeto propõe desenvolver uma investigação processual-metodológica na forma de pesquisa prática, em que a temática central é trabalhada em coletivo através de ferramentas e métodos característicos do design participativo e do codesign. Tinha como principais objetivos criar espaços de troca entre mulheres; construir coletivamente artefatos, registros gráficos tangíveis destas trocas que conferem visibilidade às questões e subjetividades trazidas àquele espaço; e, ao mesmo tempo, investigar esses processos como novas formas de construção coletiva de conhecimento através de práticas engajadas, por meio do design. Trabalhei esses objetivos através de encontros em que proponho atividades e reúno ferramentas para a construção coletiva e dialógica de artefatos. Essas ferramentas são insumos temáticos, imagens e objetos que, situados de forma específica em diferentes dinâmicas, provocam e facilitam diálogos entre as participantes em torno das questões em pauta. As ferramentas fornecidas pela designer, os insumos trazidos pelas participantes e os artefatos construídos coletivamente durante os encontros são dispositivos de conversação (Anastassakis, Szaniecki, 2016): não objetivam o status de protótipo ou produto e seu valor não se encontra no objeto em si, tampouco em sua aparência estética, mas sim em seu potencial de provocar debates, produzir engajamento e sugerir futuros desdobramentos. A seguir, relato as atividades desenvolvidas para atender a proposta aqui apresentada. Recorro às leituras exploradas na fundamentação teórica para conceituar e analisar esse processo de forma crítica, considerando questões e impasses que emergiram ao longo do processo.


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PRIMEIRO MOMENTO: EXPERIMENTO INICIAL O encontro relatado a seguir se deu em dezembro de 2017 e foi o movimento inicial que desencadeou o conjunto de experimentos que fazem parte da investigação aqui proposta. Como primeira atividade da pesquisa prática, ainda sem insumos providos por experimentos anteriores, sua elaboração se deu a partir da proposta e dos parâmetros por ela definidos. Não havia, até então, outras partes envolvidas, ou um contexto específico de estruturas pré definidas ao qual se adequar. As escolhas envolvidas no planejamento do encontro – temáticas, ferramentas, proposta, local, participantes – partiram então exclusivamente de mim, em um esforço de botar a teste procedimentos, abordagens e noções até então explorados apenas em teoria neste projeto. A primeira atividade, desde o seu planejamento e o convite às participantes até o desenrolar do encontro em si e seus resultados e decorrências, fornece insumos para análise do processo e contribui com os desdobramentos seguintes. Nesse sentido, como já observado por Olander (2014) e Brandt et al. (2011), um encontro alimenta e influencia os próximos, assim como aquilo que acontece no intervalo entre eles – o planejamento por parte da designer, as limitações impostas por contextos específicos e os interesses e as necessidades de outras partes envolvidas, além de outros possíveis fatores externos à pesquisa. Relato a seguir como se deu o primeiro encontro que, de acordo com parâmetros definidos ainda na fase de pesquisa teórica, deveria: (i) permitir que pessoas distintas dialoguem utilizando imagens e objetos como dispositivo facilitador de trocas; (ii) trazer à tona questões através dessas imagens e objetos, construindo artefatos visuais ao longo das discussões; e (iii) promover a análise coletiva do encontro através desse material, construindo sínteses visuais subjetivas das trocas naquele espaço. Para tal, a dinâmica foi arquitetada em dois momentos: (i) abertura de diálogos entre mulheres, tendo a imagem como dispositivo viabilizador de trocas; criação coletiva de material gráfico ao longo das discussões; (ii) análise coletiva do encontro através desse material, usado em seguida na construção de um painel coletivo que é a síntese visual das trocas que ocorreram durante a primeira etapa da dinâmica.


Planejamento e comunicação Entendi esse encontro como uma primeira experimentação das dinâmicas propostas. Nesse sentido, optei por chamar pessoas próximas ao mundo do design. Ainda que essa não fosse a configuração que entendia como fundamental para as atividades seguintes, percebi que essa poderia ser uma forma interessante de ao mesmo tempo construir, testar e iterar esse primeiro encontro junto a pessoas que têm alguma intimidade com o uso de imagem e objeto como tradutores de ideias. Toda a comunicação, incluindo a chamada e as definições de datas para o encontro, foi realizada através da plataforma Facebook, onde é possível alcançar grupos alvo específicos (como grupos de mulheres, grupos de pessoas que atuam em áreas do design, grupos de mulheres que atuam em áreas do design). As mulheres que, através da chamada, se interessaram em participar, foram adicionadas a um grupo fechado onde se deu o restante da comunicação. A data foi escolhida abertamente, segundo a disponibilidade da maioria das mulheres, e o local definido foi a Esdi, espaço de acesso público e de localização central na cidade. Convidar as pessoas através de plataformas virtuais contou com as vantagens acima mencionadas, mas evidenciou a dificuldade de engajar as participantes desde um momento anterior ao da atividade. Uma vez presentes no encontro, as mulheres participaram e demonstraram interesse na dinâmica, já que os debates atendiam a questões relevantes nas vidas dessas pessoas. Antes desse momento, porém, fica em aberto a questão: como convidar pessoas que não são próximas, mas que têm interesse nos debates em questão, a participarem do encontro, de forma a viabilizar as atividades?

imagens usadas na comunicação com as participantes. (1) breve descrição da proposta do encontro; (2) mensagem às participantes pedindo que tragam insumos de casa.


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Foi então proposto, ainda através do grupo, que as participantes pensassem em uma ou mais histórias que dialogassem com questões de gênero e as associassem a uma imagem, frase ou objeto, autoral ou não, e trouxessem esse material para o encontro. O objetivo da pequena tarefa de casa era engatilhar o início da discussão, como um aquecimento, para facilitar uma primeira rodada de histórias e fornecer insumos iniciais para o desenvolvimento da atividade.

Realização A dinâmica foi realizada na Esdi, pela tarde, em uma terça feira. O grupo participante foi composto por quatro mulheres. O encontro durou por volta de três horas, como mostra a seguinte estrutura: hora hora hora hora hora hora hora

00:00 00:30 01:00 01:30 02:00 02:30 03:00

chegada das participantes introdução à dinâmica rodada inicial continuação da discussão + produção de material análise coletiva do material + síntese visual análise coletiva do encontro encerramento

O início da atividade se deu por uma breve introdução à dinâmica, onde compartilhei as motivações, ideias e objetivos por trás da idealização do encontro. Nesse grupo bastante homogêneo no que diz respeito à formação profissional, em que as participantes compartilham da educação em design, ainda que com diferentes focos e atuando em áreas distintas, explanar as noções que fundamentam as atividades do projeto não representou um desafio. Como se tornará explícito ao longo dos próximos encontros, estabelecer esse terreno comum, em que todas as pessoas presentes estão a par das noções e dos interesses em jogo – alguns comuns a todas, alguns exclusivos de uma parte ou outra –, reduz a estranheza inicial causada pela proposta e facilita o decorrer das atividades. Procurando trabalhar de acordo com o entendimento de que os interesses investigativos metodológicos não devem apoderar-se das atividades colaborativas a ponto de desconectar a pesquisa dos interesses das partes envolvidas (Olander, 2014), as participantes seguiram compartilhando também os motivos que as levaram a participar da atividade, expondo as expectativas e os interesses em jogo. Esse momento deu continuação de forma orgânica às discussões e trocas previstas para a etapa seguinte. A tarefa de casa se mostrou relevante de acordo com seus objetivos, mas dado que pouco material foi trazido pronto, teve seu potencial reduzido. Aqui, mais uma vez, vem à tona o desafio de comunicar, convidar e engajar de fato as participantes em um momento anterior ao encontro. A partir dos pequenos fragmentos de poesia e imagens trazidos por duas das participantes, iniciou-se um breve debate que rapidamente


se desdobrou em outros tantos, acompanhados sempre da produção livre de registros visuais e textuais. Esses registros, ao mesmo tempo em que compilavam as temáticas discutidas, evocavam também novas questões e histórias, associadas diretamente a algo compartilhado anteriormente ou elicitadas por interpretações subjetivas daquelas imagens e fragmentos textuais. A discussão seguiu de forma fluida, sem necessidade de intervenções e mediações, durante cerca de uma hora e meia. Como coletivo, após esse intervalo de tempo, foi acordado que seria produtivo encerrar essa etapa e partir para uma análise do material que havíamos criado até então, conforme proposto. Na etapa de análise e síntese, percorremos novamente os assuntos e temas discutidos durante o encontro através dos registros produzidos coletivamente, relacionandoos e posicionando-os para montar um painel visual que resumisse a trajetória da dinâmica. O painel, artefato construído em diálogo, a partir de debates e insumos gráficos e textuais, mapeia questões e temáticas presentes nas vidas das participantes de forma a torná-las visíveis. Ao mesmo tempo, a peça incorpora interpretações plurais e, como provótipo (Lenskjold, 2011), abre também caminho para possíveis desdobramentos ao carregar o potencial de provocar a imaginação e expandir esses debates em novos contextos.


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Painel construĂ­do pelas participantes durante o encontro.


Avaliação e desdobramentos Antes de encerrar o encontro, discutimos, ainda em coletivo, as impressões sobre as atividades, sua estrutura, relevância e possíveis desdobramentos, entendendo o encontro como um espaço de investigação coletiva em que a análise e o conhecimento não são atividades restritas à pesquisadora (Olander, 2014). Nesse momento, foi levantado que o uso da imagem, tanto como ponto de partida quanto ao longo dos debates, mostrou-se relevante por tornar a atividade mais dinâmica e mais interessante do que uma roda de conversa tradicional, cumprindo a função de “quebra-gelo”, em um ambiente em que nem todas têm intimidade e pretende-se falar de questões delicadas. É visível nessa fala a função exercida pelo dispositivo de conversação, que age como objeto provocador e facilitador de debates. Foi apontado também que a produção do material gráfico ao longo da dinâmica se deu de forma natural em um grupo de participantes que têm intimidade com o uso da imagem, fazendo-se, possivelmente, necessárias outras ferramentas ou dinâmicas para trabalhar com outros grupos em outros contextos. O encontro se mostrou, além de um espaço de diálogo e construção coletiva, como um catalisador para a criação de parcerias para além de expectativa e do controle da pesquisadora. Duas participantes, a partir de uma discussão sobre consentimento, que emergiu de uma série de vivências trazidas por essas duas pessoas, organizaramse para produzir uma série de cartazes lambe-lambe abordando o tema. Isso significa que o encontro promoveu a colaboração para além daquela atividade; tornou questões visíveis de modo a formar públicos (DiSalvo, 2009); e provocou engajamento, estabelecendo condições para ação (Bjorguinsson et al., 2010). O primeiro encontro deu início à investigação e, a partir da análise desse processo, forneceu insumos e levantou novas questões para o desenvolvimento das atividades seguintes. Foi oportuno, para o segundo momento de atividades, buscar parcerias para desenvolver a pesquisa, já que a investigação se propõe a explorar processos participativos que podem então envolver colaborações mais duradouras. As atividades apresentadas a seguir foram elaboradas em colaboração com outra pesquisadora e uma rede feminista em encontros de um curso, em que a investigação se abre a um processo ainda não explorado na primeira atividade.


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cartazes lambe-lambe como desdobramento do encontro, independente da agenda da pesquisa: participantes produzem o cartaz em serigrafia.

cartazes lambe-lambe como desdobramento do encontro, independente da agenda da pesquisa: cartazes prontos, secando.


SEGUNDO MOMENTO: INVESTIGAÇÃO EM PARCERIA O segundo momento de atividades teve início a partir do convite de Bibiana Serpa, doutoranda do PPDEsdi (Programa de Pós-graduação em Design da Esdi) e pesquisadora do LaDA, para desenvolver uma parceria que interessava de formas diferentes às nossas duas pesquisas. A parceria contava com a elaboração de atividades junto a um curso de formação popular feminista, que se deu entre fevereiro e maio de 2018, idealizado pela instituição informal de educação Universidade Livre Feminista e aplicado pela rede Agora Juntas, da qual Bibiana faz parte. Enquanto o presente projeto é voltado para a investigação de ferramentas e métodos, a materialização de questões e a articulação coletiva de experiências, a pesquisa da doutoranda investiga processos educacionais e as potencialidades do design de trazer experiências como formas válidas de aprendizado, como princípio da educação popular. As duas pesquisas se mostram, de certa forma, complementares: enquanto a pesquisa da doutoranda viabiliza o espaço e as pessoas para que a investigação das ferramentas e dos processos de co-criação aconteça, meu projeto traz novas perspectivas para práticas educacionais ao propor novas formas de atuar nesse espaço. Entendo, ainda, que interessa à Esdi, como instituição de ensino, a vinculação de um projeto de graduação a uma pesquisa de doutorado, fortalecendo os laços de ensino, pesquisa e extensão, já que as atividades de parceria se realizaram com agentes externos à escola. A decisão de trabalhar em colaboração com a segunda pesquisadora e junto à rede diz respeito à preocupação do projeto em entender processos participativos que envolvem outras partes e outros interesses, em que as atividades da pesquisa servem também a outros propósitos práticos, aproximando a investigação de ambientes reais e menos controlados do que o espaço até então experimentado. Agir dentro do curso oferecia a possibilidade de experimentar ferramentas de design situadas em contextos com demandas específicas, e de propor outras formas colaborativas de construção de conhecimento em um espaço de educação popular. Como o curso previa ainda um ambiente politicamente engajado para trocas sobre diferentes tópicos do feminismo, os interesses temáticos da presente pesquisa prática, da pesquisa da doutoranda Bibiana, da rede Agora Juntas e das participantes do curso se encontram. Apesar de o trabalho em colaboração abarcar diferentes interesses e objetivos, os pontos em comum são essenciais para a continuidade das atividades,


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garantindo propósito e significado para a participação de todas. Sem o contexto temático, a pesquisa metodológica perderia o sentido, desconectando-se da realidade das pessoas que participam desse processo (Olander, 2014). Tocar as atividades da pesquisa dentro do curso se mostrou um processo radicalmente diferente do que se deu no desenrolar do primeiro momento de atividades. Algumas questões levantadas anteriormente não se mostraram relevantes no novo contexto, como a dificuldade de criar convites para o engajamento de potenciais participantes nas atividades propostas. Agora, as participantes estavam ligadas ao curso, e a aproximação da pesquisadora com esse grupo se dava nesse ambiente já propício à participação – ainda que, como será visto mais à frente, as atividades e ferramentas propostas nos encontros tenham causado alguma estranheza. Por outro lado, esse formato de pesquisa, em que a investigação é realizada dentro dessa parceria e a participação das pessoas envolvidas é ativa, é marcado justamente pela porosidade (Binder et al., 2011). Isso implica trabalhar de forma a incorporar perspectivas e interesses distintos por parte das participantes do curso, educadoras e pesquisadoras. Somado a isso, é preciso operar dentro das limitações impostas pela própria estrutura do curso, fatores que influenciam o processo investigativo (Brandt et al., 2011). As dinâmicas propostas exploram dispositivos de conversação (Anastassakis; Szaniecki, 2016) distintos em cada encontro, que são elaborados para atender não só aos objetivos da pesquisa, mas também para trabalhar em favor dos objetivos específicos do curso, de forma a considerar as demandas educativas estabelecidas pela Universidade Livre Feminista. É também interessante para a investigação pensar em ferramentas situadas em contextos específicos, levando em conta suas particularidades, pessoas envolvidas e a possibilidade de surgirem outros fatores imprevisíveis que influenciem os encontros (Olander, 2014). Apresento a seguir a formação popular feminista, ambiente em que foram desenvolvidas as atividades da parceria, de modo a contextualizar os encontros que se deram. Relato os quatro encontros realizados ao longo do curso de formação popular, em que aprofundo as questões levantadas até agora. Apresento os dispositivos de conversação (Anastassakis; Szaniecki, 2016) desenvolvidos durante a parceria, situando essas ferramentas e dinâmicas no contexto específico de cada encontro. Analiso esses eventos com base nas teorias que fundamentam a pesquisa prática e aponto ainda novas perguntas e impasses que emergiram durante esse processo.


Sobre a formação popular feminista A formação popular feminista foi idealizada pela Universidade Livre Feminista, uma instituição informal de educação, e foi proposta em diferentes regiões de todo o Brasil. No Rio de Janeiro, o curso foi aplicado pela rede Agora Juntas, coletiva feminista da qual a pesquisadora Bibiana Serpa faz parte e com a qual a pesquisa colabora nesse segundo momento de atividades. As integrantes da rede, além de se responsabilizarem por organizar os encontros – desde a comunicação prévia com as participantes e a escolha do local até garantir que as temáticas propostas pela ementa do curso fossem trabalhadas –, atuaram como educadoras. As atividades foram inicialmente desenvolvidas e propostas pelas pesquisadoras, mas, antes da realização dos encontros, foram sempre abertas às educadoras, que então participaram, ainda que de forma limitada, de sua co-criação. A designer e pesquisadora Bibiana, por cumprir também a função de educadora no espaço do curso, mediou grande parte dos acordos e da comunicação com as educadoras. Dessa forma, estabeleceu-se uma estrutura horizontal, em que diferentes desejos e demandas eram representadas e incorporadas às atividades. O curso se deu em formato semipresencial, em que parte das atividades propostas pela instituição era realizada em uma plataforma online. As atividades que dizem respeito à pesquisa, porém, foram todas desenvolvidas presencialmente em quatro encontros, que contaram com a participação de, em média, quinze mulheres por encontro. Cada encontro atendia a um calendário preestabelecido e deveria abordar temas específicos, exigindo por vezes leituras e outras atividades específicas com as quais as atividades da pesquisa dividiram tempo e espaço. O grupo, que se manteve majoritariamente o mesmo ao longo do curso, sendo composto por mulheres vindas de contextos diversos, quanto a classe, sexualidade, raça, território e idade. Essa diversidade implica em diferentes perspectivas e experiências em torno de diferentes questões abordadas no decorrer dos encontros – o que gera divergências e tensões interessantes para a pesquisa, já que as ferramentas e dinâmicas investigadas se propõem a incorporar diferenças e dialogar a partir do dissenso para gerar espaços de contestação (DiSalvo, 2010).


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Encontro #1

O primeiro encontro realizado teve como objetivo educativo a introdução e discussão acerca da história do feminismo. A temática foi previamente definida pela instituição idealizadora do curso, que previa ainda como atividade a apresentação de uma linha do tempo que incluísse fatos históricos globais e locais. Em contrapartida, considerando que não existe “a História” como série objetiva e estática de fatos, mas sim histórias situadas, e que fatos “históricos” e “pessoais” se entrelaçam de forma fluida, propus uma atividade em que as participantes construíssem visualmente a sua história por entre a “História”, entrelaçando as duas, borrando a distinção entre elas imposta, e evocando histórias pessoais. Foi produzida pelas educadoras uma linha do tempo que trazia o conteúdo exigido pelo curso, que viria a ser a base para a construção da peça proposta pela atividade. Essa primeira linha do tempo foi montada em papel kraft de 3 metros por 1 metro, concedendo maior espaço para a construção coletiva que se seguiria. Análoga à atividade realizada ainda no primeiro momento da pesquisa prática (ver página 45), convidamos as participantes a compartilhar histórias e experiências utilizando materiais gráficos, mas dessa vez com temática específica: que para elas de alguma forma marcasse o seu momento de alinhamento com a luta feminista. Os eventos compartilhados pelas participantes deveriam ser construídos e sinalizados na linha do tempo utilizando as ferramentas propostas: ícones em papel colorido, preparados por mim, que representavam diversos elementos como meios de transporte, casas, livros, pessoas etc. O uso de ícones foi considerado devido a uma das questões levantadas na atividade anteriormente apresentada: a produção de material gráfico que se propõe no encontro se deu naturalmente em um grupo que tem intimidade com o uso da imagem, mas outras ferramentas poderiam se fazer necessárias para trabalhar com grupos diversos em outros contextos. A escolha de ícones como essas ferramentas foi inspirada pelo trabalho do coletivo Iconoclasistas (2010) e objetivou provocar a troca de histórias por proporcionar pontos de partida concretos para esses diálogos, além de facilitar o engajamento de pessoas que não possuem intimidade com linguagens gráficas na construção visual das histórias. As participantes combinaram e modificaram os diversos elementos representados pelos ícones fornecidos, assim como também criaram e adaptaram novos ícones para contar suas histórias. Nessa dinâmica, o material provoca trocas e cumpre o papel de gatilho para evocar tópicos e histórias antes despercebidas (Iconoclasistas, 2010) – nesse sentido, o material funciona como dispositivo de conversação.


Participantes modificam Ă­cones para contar suas histĂłrias e as situam na linha do tempo.

Ă?cones propostos: diversos elementos a serem combinados


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A linha do tempo criada coletivamente e o grupo: educadoras, designers e participantes.

Usar a linha do tempo previamente construída pelas educadoras como base para a construção coletiva da peça final pelas participantes foi, por um lado, um limitador, já que pré-definiu os espaços disponíveis para intervenções e trouxe conteúdos fixos. Por outro lado, assim como os ícones, a base agiu também como facilitadora dessa dinâmica, fornecendo um ponto de partida para essas trocas, ao trazer insumos com os quais as participantes poderiam dialogar e associar suas próprias histórias. A peça final criada pelas participantes mapeou histórias e temáticas, situando-as no tempo,e gerando uma nova visualização das diferentes questões que transpassam a vida daquelas pessoas tão diversas. Já no primeiro encontro dentro da parceria, limitações e disputas de interesses vieram à tona no processo de elaboração e execução das atividades. A atividade aqui descrita, concebida visando atender aos interesses investigativos da pesquisa, foi estruturada de forma a satisfazer também as demandas das educadoras e do curso. A dinâmica coletiva dividiu o encontro com outras atividades obrigatórias de leitura e apresentação do conteúdo histórico previamente exposto na linha do tempo, que tomaram tempo e energia do grupo.


Também por conta das limitações de tempo e da concorrência com as atividades não diretamente relacionadas à pesquisa, considerando o contexto específico do curso e os interesses das educadoras e participantes, a proposta da atividade foi enunciada sem esclarecimentos quanto aos interesses metodológicos da pesquisa. Ao contrário do encontro realizado no primeiro momento do projeto, fora da parceria, em que foi possível esclarecer e compartilhar o foco da investigação, a proposta foi recebida pelas participantes do curso deslocada de seu contexto investigativo. Dessa forma, a atividade causou certa estranheza a princípio, havendo alguma dificuldade na compreensão da proposta, que foge de práticas tradicionais de ensino. No seu decorrer, porém, assim como nos encontros que se seguiram, as participantes se engajaram e se apropriaram das ferramentas oferecidas para construir junto os artefatos propostos. Esses impasses suscitam a pergunta: como podem as atividades participativas da pesquisa, forjadas de acordo com seus próprios interesses, coexistir com as atividades relevantes às outras partes envolvidas, de modo que todas sejam atendidas? Mais uma vez, fica evidente a importância de que alguns dos interesses em jogo sejam compartilhados por todas as partes e trabalhem no sentido de um objetivo comum – nesse caso, de dialogar e promover espaços de troca acerca de questões de gênero, a partir de uma perspectiva feminista. A temática e demandas do curso foram – e serão consistentemente ao longo dos próximos encontros – elementos fundamentais na construção da dinâmica, estabelecendo um recorte bem definido de trabalho e contextualizando as ferramentas elaboradas.


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Encontro #2

O segundo encontro exigiu das participantes a leitura prévia de dois textos, prevendo a discussão em grupo do conteúdo lido: um expunha marcos institucionais históricos, narrados sob a perspectiva de uma mulher branca acadêmica; o outro discutia a história de movimentos feminista narrado sob a perspectiva de uma mulher negra. Para tal, as educadoras sugeriram que as participantes se dividissem em dois grupos, em que cada grupo se responsabilizaria pela leitura de um dos textos e apresentaria seu conteúdo utilizando cartazes montados pelas participantes no encontro. Não interessa à presente investigação, porém, facilitar visualmente a apresentação do conteúdo de um texto. A pesquisa se interessa por experimentar ferramentas e dinâmicas de design para (i) acessar histórias, subjetividades, perspectivas; (ii) construir e experimentar cenários e projeções; (iii) mapear questões, problemas, situações; e (iv) para facilitar debates sobre questões presentes, mas intangíveis. De modo a cumprir com as demandas da formação, mas alinhando a atividade aos interesses da pesquisa, proponho que a apresentação do conteúdo do texto seja transformada em uma dinâmica de foto-elicitação. A ferramenta, junto a outros métodos de pesquisa que fazem uso da imagem, tem raízes diversas, mas foram amplamente promovidas pelos antropólogos Malcom e John Collier (1986; 1996) (Frølunde, 2014). O uso da imagem nesse processo se dá pela subjetividade a ela inerente, que traz um grande potencial de evocar memórias, questões e sentimentos (Hee Pedersen, 2008; Harper, 2002; Mitchell, 2008; Keats 2009 apud Frølunde, 2014). Para a dinâmica realizada no encontro, criei criadas 60 cartas em formato A6 contendo imagens cotidianas e abstratas. As imagens não pretendem tratar objetivamente das questões em pauta, mas evocar memórias, reflexões e provocar a imaginação. Essas imagens podem ser consideradas como o que olander (2014) chama de clipes etnográficos (tradução minha; no original, ethnographic clips). Não são documentações precisas ou descrições objetivas de situações ou questões complexas, são pensadas justamente para que as participantes se apropriem dessas peças, as interpretem e façam associações. Elas se propõem a evocar novas questões e saberes informais, implícitos (Olander, 2014) - que no encontro, em diálogo, são a chave para a construção coletiva de conhecimento, materializado no processo de construção dos artefatos (Binder et al., 2011). As participantes se apropriaram das imagens para expressar experiências e saberes a partir da linguagem material compartilhada criada por essa ferramenta (Olander, 2014; Binder et al., 2011).


Participantes selecionam imagens, associando-as ao conteĂşdo lido.

Grupos debatem as questĂľes trazidas pelo conjunto de imagens e palavras.


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Algumas das imagens utilizadas na dinâmica de foto elicitação.


No primeiro momento da dinâmica, cada grupo deveria escolher imagens que remetessem, não necessariamente de forma objetiva, ao conteúdo do texto que deveria ser discutido. As imagens deveriam então ser associadas a palavras-chave ou pequenas frases escolhidas pelas participantes de modo a representar as reflexões individuais e coletivas geradas a partir o texto. Nesse momento, um primeiro espaço de discussão é aberto pelo processo de escolha de imagens e tópicos, em que o debate sobre o significado das cartas em relação aos tópicos do texto é engatilhado pela subjetividade dessas associações. Concluída essa etapa, os grupos trocaram o conjunto de imagens e palavras entre si. Nesse segundo momento, cada grupo então recebe esse material sem ter acesso ao conteúdo objetivo que guiou a seleção das imagens e palavras. Aqui, o conjunto de imagens e palavras-chave tem o potencial de provocar debates não óbvios, fazendo emergir no grupo questões não necessariamente presentes nos textos, mas de alguma forma contida subjetivamente naquele material, e acessadas através dos mesmos. As imagens estimularam ideias e elicitaram histórias, metáforas, associações e memórias. Nesse momento, pude experimentar, ainda que de forma limitada, um aspecto deixado em aberto no primeiro momento da pesquisa prática: o potencial desdobramento desse artefato construído em diálogo que, como provótipo (Lenskjold, 2011), abre um novo espaço de debate e incita a construção de novos diálogos. Durante esse momento de debate, ainda em grupos, as participantes adicionaram novas palavras e frases que traziam os tópicos então levantados. O material, incluindo a primeira seleção de imagens e palavras do primeiro momento e as novas questões adicionadas após a troca, foi organizado pelos grupos sobre duas grandes folhas de papel. Agora juntas, seguindo uma dinâmica de correspondência e dando continuidade ao diálogo, as participantes continuam o debate, voltando ao conteúdo do texto e o associando às novas questões trazidas durante a atividade. A atividade gerou debates em torno tanto do conteúdo original, proveniente dos textos, como objetivava a programação do curso, mas abriu também novos espaços de discussão, expandindo esse debate para além do que sugeria a proposta original. Provocadas pelas imagens, questões baseadas em vivências das participantes vieram à tona, enriquecendo o diálogo e dando voz a essas mulheres. As questões elicitadas pelas imagens também tornaram evidentes as diferenças e tensões interpessoais que emergiram durante o processo de debate em torno das questões em pauta (Frølunde, 2014). Nesse sentido, as interpretações em torno das imagens são subjetivas e podem entrar em conflito ao longo do processo, de forma a gerar um processo agnóstico (DiSalvo, 2010).


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Grupos debatem as questĂľes trazidas pelo conjunto de imagens e palavras.

Participantes, pesquisadora e educadoras, ao final do encontro, com as peças.


Encontro #3

A ementa do curso previa como objetivo para o terceiro encontro identificar e discutir como se interseccionam as opressões de raça, gênero, sexualidade e classe através de uma atividade em que as participantes analisavam e classificavam perfis de mulheres segundo esses aspectos a partir de situações de opressão hipotéticas criadas pelas educadoras. Buscando incorporar o foco temático proposto para o encontro e manter alguns elementos da atividade esperada pelas idealizadoras do curso, pensamos uma nova dinâmica em formato de jogo que servisse ainda à investigação. A atividade pretendia explorar como as ferramentas de design poderiam ser usadas para provocar o engajamento e a apropriação dos resultados por parte das participantes (Brandt et al., 2011; Simonsen, Robertson, 2013). Para entender como o dispositivo em forma de jogo pode servir à investigação, nos aproximamos do conceito de coisas de design (design things, no original), recorrendo às raízes etimológicas da palavra coisa (thing) como assembléia para a negociação de conflitos e tomada coletiva de decisões (Binder et al., 2011). Essas ferramentas não são objetos fechados em si próprios, nos oferecendo apenas suas superfícies externas, mas coisas (things), que agregam e são abertas aos significados produzidos durante seu uso (Heidegger 1971:165-82). Entendemos que o jogo, como coisa de design e dispositivo de conversação, abre espaços de diálogo, agregando pessoas e mediando perspectivas divergentes através de uma linguagem compartilhada (Bjögvinsson et al., 2010; Koskinen, 2011). Nos dias que antecederam o encontro, foi anunciado pelas educadoras que a dinâmica contará com a participação de uma convidada, ativista pelos direitos da mulher negra, escritora e facilitadora de oficinas de escrita para mulheres. Visando incluí-la na atividade de forma que seus interesses também fossem atendidos, é solicitado pelas educadoras que a atividade converse com o trabalho da convidada. A dinâmica, que até então buscava fazer uso majoritário de materiais gráficos, visando também gerar visualizações das questões em pauta, tem seu foco parcialmente deslocado para a escrita de narrativas, de forma que a convidada faça parte da atividade também como facilitadora. A atividade é então repensada, buscando um ponto intermediário entre o experimento de design e a dinâmica de escrita. No encontro, foram dispostas sobre o chão cartas coloridas de médio formato, constituindo um tabuleiro em formato de grade. Cada linha do tabuleiro era formada por cartas da mesma cor, cada uma referente a diferentes esferas esferas da vida: “vida afetiva”, “na rua”, “lazer”, “no serviço público” e “no trabalho”. Foram também dispostas cartas que traziam diferentes perfis de mulheres, cada um com foto e nome da persona, listando informações sobre classe, sexualidade, identidade de gênero, raça, idade, religião e condição de deficiência.


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Foi proposto que as participantes, em grupos de quatro pessoas, construíssem narrativas para alguns dos perfis dentro de determinada esfera da vida, pensando em possíveis situações de opressão pelas quais aquelas personas poderiam passar. Cada situação foi escrita em uma das cartas coloridas que constituíam o tabuleiro, sem que indicasse a que perfil estava atrelada. As cartas, agora contendo as narrativas, foram posicionadas novamente no tabuleiro em sua posição original. A criação das narrativas a partir da análise dos diferentes perfis suscitou memórias e experiências das próprias participantes, que foram então a base para a elaboração das histórias. Esse momento da dinâmica evidenciou também similaridades e diferenças entre as próprias participantes, que se identificaram ou não com determinados perfis e se relacionavam ou não com as narrativas criadas Em um segundo momento, agora não mais divididas em grupos, as participantes sugeriram quais perfis poderiam viver determinado cenário, debatendo de que forma essas situações se apresentam na vida de diferentes mulheres. Cada situação podia e foi atribuída a diferentes perfis, de forma a construir a noção de que essas mulheres são todas permeadas por opressões cotidianas – algumas mais, outras menos, e como reforçado durante o debate, essas situações de opressão se materializam de diferentes formas a depender da raça, classe, sexualidade, identificação de gênero, religião, idade ou condição de deficiência. Durante a atividade, surgiram tensões devido à evidenciação das diferenças entre os perfis no que diz respeito a privilégios político-sociais e suscetibilidade à discriminação e situação de opressão. É interessante lembrar que as atividades não são plataformas que para resolução de conflitos, nem buscam consenso, mas pretendem lidar de forma construtiva com divergências já postas (Bjögvinsson et al., 2010) ao criar espaços de disputa e dissenso, desvelando relações de poder e as confrontando (DiSalvo, 2010). . Como um dos objetivos da dinâmica era gerar uma nova visualização da problemática em questão, foram criados marcadores para indicar quais perfis eram associados às narrativas. Cada vez que uma situação era relacionada a um perfil, o marcador era colocado sobre a carta-situação. Os marcadores possibilitariam a visualização das opressões que são experienciadas por um número maior de perfis e quais perfis estão mais suscetíveis a determinadas situações de opressão.


Em pequenos grupos, participantes debatem experiências e criam narrativas.

Perfis são atrelados às narrativas.


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Grupos debatem as questões trazidas pelo conjunto de imagens e palavras.

Ao longo do planejamento das atividades do terceiro encontro, as demandas trazidas pela ementa do curso e, posteriormente, pelas educadoras, além de imprevistos externos, se somaram e modificaram a dinâmica elaborada para atender à pesquisa. O local onde o encontro aconteceria não pôde nos receber e outro espaço foi providenciado de última hora, atrasando o início das atividades e reduzindo o tempo disponível. A convidada, a favor de quem as mudanças foram feitas, compareceu ao início do encontro, mas sequer participou das atividades programadas. Os marcadores usados na associação dos perfis às narrativas, que haviam sido originalmente pensados como elementos gráficos, foram produzidos em texto – sobrepondo-se às cartas que agora continham histórias narradas também em texto, todos os elementos do tabuleiro eram textuais, dificultando a visualização pretendida. A intenção, ao expor esses impasses, não é considerar que as atividades falharam por conta de fatores externos à pesquisa, ou que os resultados da dinâmica foram insatisfatórios e não servem à investigação. Pretendo, pelo contrário, validar essas experiências ao reforçar que a investigação pretende explorar processos participativos reais, envolvendo pessoas reais em contextos reais, fora do


laboratório. Quando idealizo as ferramentas e atividades, distante do momento da realização, que envolve outras partes, o processo é controlado, mas também estéril, e não reflete a realidade. Ao trazê-las para o coletivo, entram em cena uma multiplicidade de agentes, com quem jogo e negocio desejos, interesses e necessidades (Olander, 2014; Brandt et al., 2011;), além de fatores externos imprevisíveis, incontroláveis e inegociáveis. Essa tensão é também essencial para a continuidade das atividades e nos traz a imagem proposta por Haraway (2016) de um jogo de cama de gato (string figures, no original), em que, para a dinâmica fluir, a cada jogada novas mãos tomam o barbante, mudando a figura descrita pelas linhas, que precisam se manter tensionadas para que as próximas jogadas ocorram e novas figuras sejam formadas. O jogo só faz sentido se a figura posta em uma jogada for modificada na jogada seguinte, por outras mãos, e assim por diante, em um processo de contínua correspondência (Gatt; Ingold, 2013). As dinâmicas não são propostas para o coletivo no intuito de preservar sua forma original, ou obter um resultado específico. O foco de interesse cai sobre o processo em si, que parcialmente foge ao controle da pesquisadora, e pode ser considerado rico enquanto resultar em novos desdobramentos, apresentar impasses e gerar novas perguntas (Brandt et al., 2011).

Jogo de cama de gato: uma figura é posta por um jogador e modificada pelo próximo.


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Encontro #4 O quarto e último encontro da parceria pretendia discutir as possíveis formas de articulação da luta feminista e suas diferentes pautas, além de revisitar as temáticas abordadas ao longo do curso. O objetivo foi trabalhado através de uma dinâmica de jogo, dispositivo (Anastassakis; Szaniecki, 2016) criado por pesquisadorxs do LaDA, inicialmente situado no curso de extensão “Mapapraça-máquina: experimentos de design colaborativo no espaço público”, visando estimular o debate sobre conceitos teóricos, e posteriormente adaptado para servir a diferentes contextos. Aqui, a ferramenta foi apropriada pela investigação e situada no contexto do encontro, sofrendo ajustes para atender aos objetivos já mencionados. Foram preparadas peças hexagonais contendo frases, conceitos e imagens que surgiram em debates ou foram usadas em atividades no decorrer dos encontros. Cada carta apresentava bordas coloridas, de forma a marcar visualmente a que encontro pertencia. Cada participante recebeu cinco cartas, sendo que três continham texto, uma continha imagem e uma era branca, a ser preenchida antes do início do jogo por cada uma com algo que as tinha marcado durante a formação. O jogo se iniciou ao se colocar uma primeira carta no chão, como primeira provocação. A partir dela, cada participante, uma por vez, joga uma carta, posicionando-a de modo a associá-la a uma das cartas já dispostas no tabuleiro (não necessariamente a última jogada). A cada carta jogada, a participante deve justificar a sua escolha, comentando a conexão feita entre as cartas e alimentando o debate acerca das questões ali postas. O formato hexagonal das cartas permite que uma carta seja associada a outras seis, o que possibilita que uma carta seja ressignificada ao longo do jogo através de conexões diversas. As cartas que continham texto traziam conceitos previamente discutidos, mas também provocações abertas – como “ser feminista é...” – e palavras ou afirmações mais subjetivas, que, deslocadas de seu contexto original, davam margem a novas interpretações por parte das participantes. Durante o jogo, frases e imagens originalmente situadas em determinados encontros, com intenções e significados específicos àquele contexto, foram associadas a outras peças, originalmente pertencentes a outros contextos. Essas conexões inesperadas expandiram o debate e fizeram emergir questões ainda não postas. Nesse sentido, as participantes se apropriaram das ferramentas propostas para acessar e compartilhar perspectivas, histórias e saberes (Olander, 2014; Binder et al., 2011), em uma dinâmica que criou espaço para a produção coletiva de significados (Anastassakis; Szaniecki, 2016). Como as peças eram marcadas por código de cor, que indicavam em que encontro aquelas ideias originalmente surgiram e foram discutidas, ao final do jogo foi possível visualizar as novas conexões e significados traçadas pelas participantes. Dessa forma, a peça final é interessante não apenas do ponto de vista da investigação, mas trabalha também de acordo com o foco temático do encontro ao


tornar visível como questões e pautas feministas se relacionam, abrindo ainda espaço para novas possíveis articulações.

Participante comenta a sua jogada.

No decorrer da atividade, pesquisadoras e participantes escutam a fala de uma jogadora.


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Participante posiciona sua peça no tabuleiro, associando-a com peças anteriormente dispostas.

Evolução do jogo: peças referentes a encontros distintos são associadas, criando novos significados.


Considerações sobre o trabalho em parceria

As atividades realizadas nos encontros da formação popular feminista, em parceria com a Universidade Livre Feminista e a rede Agora Juntas, da qual faz parte a também designer e pesquisadora Bibiana Serpa, foram desenvolvidas em ambientes explicitamente políticos e ativistas. Nesse contexto, investigamos possíveis formas de colaborar com a construção de espaços engajados de debate e contestação, utilizando os conhecimentos e ferramentas profissionais do design (Anastassakis; Szaniecki, 2016). As dinâmicas propostas não buscavam alcançar soluções ou verdades absolutas (Brandt et al., 2011), mas provocar o debate e mediar a coexistência de diferentes perspectivas, muitas vezes divergentes, tangibilizando essas questões e tensões. Buscamos trabalhar a partir da diferença em espaços de disputa, experimentando uma democracia agonística plural (DiSalvo, 2010), alinhada à proposta do Design Ativismo de disrupção com o modelo neoliberal (Markussen, 2013). Os dispositivos de conversação (Anastassakis; Szaniecki, 2016) elaborados ao longo da formação estabelecem a base para a construção de uma linguagem compartilhada (Olander, 2014; Binder et al., 2011) e favorecem a troca de saberes não acadêmicos, criando um espaço de diálogo horizontal. Desse modo, os processos aqui experimentados pretendem ser fundamentalmente inclusivos e democráticos (Gatt; Ingold, 2013). Um grande desafio desse tipo de processo, onde a designer não é contratada para prestar um serviço, mas se coloca propositivamente em um espaço para conduzir uma investigação de e por meio do design, é entender e trabalhar com os múltiplos fatores ali presentes. É preciso deslocar o foco do momento de intenção, onde são idealizadas ferramentas e dinâmicas, para o momento em que são trazidas ao coletivo e por ele apropriadas de formas imprevisíveis (Ingold, 2015). Nesse sentido, é oportuno trazer as ideias de Gatt e Ingold (2013) a respeito do design como conjunto de práticas improvisatórias, que exigem flexibilidade e antecipação. Devese olhar atentamente para o futuro e enxergar os caminhos a serem percorridos, mas não projetar esse futuro a partir do presente, estabelecendo um ponto final fixo. Ao invés de predeterminar o processo em detalhes, a designer busca abrir caminhos e adaptar-se às situações e suas demandas específicas. A presente investigação não se pretende, então, a seguir à risca as propostas idealizadas anteriormente aos encontros, nem a alcançar resultados predeterminados – busca, em contraste, atentar à complexidade dessas situações, que abarcam diferentes agentes, interesses e fatores que tecem os processos da pesquisa colaborativa.


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Dentro da parceria, foi possível ainda experimentar os encontros da formação de forma próxima à concepção de Olander (2014) de codesign labs, em que as atividades da pesquisa prática ocorrem como uma rede de eventos, nunca isoladas, facilitados pela pesquisadora mas nunca por ela totalmente controlados, contrastando com práticas mais tradicionais do design participativo em que a atuação de outras partes interessadas se limita a eventos pontuais, como oficinas e testes. A investigação buscou, através da parceria, engajar ativamente todas as partes interessadas nos processos de pesquisa em uma série de encontros – diferenciando-se então do primeiro momento de atividades da pesquisa, em que apenas um encontro foi realizado e a colaboração não se desdobrou em processos de codesign mais estáveis e duradouros (Anastassakis; Szaniecki, 2016). Ainda assim, o envolvimento das educadoras e participantes no processo de codesign das ferramentas e atividades é limitado, e as dinâmicas, que buscam suscitar questões e debates inesperados, continuam até certo ponto condicionados por insumos elaborados e fornecidos pela designer. O momento seguinte da pesquisa busca abrir os processos de co-criação das ferramentas investigativas ao propor a uma turma de sessenta alunos que desenvolvam seus próprios dispositivos de conversação e organizar uma exposição interativa que levou a público as peças criadas nos encontros anteriores. Pretendo, com as atividades que seguiram, contribuir também com investigações que repensam os limites dos processos participativos da pesquisa por meio do design (Brandt; Binder; Sanders, 2013).


TERCEIRO MOMENTO: CONCLUSÃO EXPANSÃO Nas atividades relatadas até agora, dispositivos de conversação foram usados na criação de espaços de diálogo em duas situações distintas: primeiro, em um único encontro de mulheres, livre de demandas externas, em que as participantes eram todas próximas da área de design; e segundo, dentro de uma série de experimentos em parceria com uma rede feminista, da qual outra designer e pesquisadora faz parte, em encontros de um curso de formação feminista para mulheres diversas, idealizado por uma instituição de educação informal. Apesar das grandes diferenças contextuais, os dois momentos contaram com estruturas similares, em que a(s) pesquisadora(s) propõe(m) espaços de troca junto a grupos exclusivamente femininos, onde construímos artefatos por meio de diálogos provocados por determinados materiais. O momento seguinte de atividades se aproxima da etapa de conclusão do projeto, como definido pelo cronograma previsto pela coordenação do projeto de conclusão da graduação da Esdi. Frente a esse cenário, busco, através de duas atividades: abrir os processos de co-criação das ferramentas investigativas; extrapolar os espaços de diálogo até então criados, levando o debate sobre questões de gênero a públicos compostos não só por mulheres; e explorar o potencial dos artefatos construídos anteriormente de provocar ainda outros debates em um novo contexto. Pretendo, com as últimas atividades da pesquisa, não concluir o projeto de forma a apontar soluções ou apresentar um produto final, mas sim de forma a abrir ainda mais o processo para multiplicar as ferramentas e os espaços de debate até então construídos, dando continuidade aos processos de correspondência iniciados e levantando novas perguntas. Esses objetivos foram trabalhados em duas atividades, relatadas a seguir.


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Experimentando desdobramentos em sala de aula As atividades relatadas a seguir foram desenvolvidas em maio de 2018, em três encontros realizados semanalmente, durante as aulas da disciplina de Design e Antropologia do primeiro ano do curso de graduação em design da Esdi. Cada encontro teve duas horas de duração e contou com, em média, sessenta estudantes de gêneros diversos. Aqui, busquei dar continuidade à investigação ao abrir os processos de co-criação, convidando xs jovens designers a criarem seus próprios dispositivos de conversação. Anteriormente ao primeiro encontro, foi pedido aos alunos que lessem um texto, escrito pelas pesquisadoras, que relatava os experimentos realizados em parceria durante o curso de formação feminista. O intuito era aproximar previamente os alunos da pesquisa, introduzindo tanto a discussão sobre gênero quanto às práticas investigativas em questão, de forma a criar um ponto de partida para as atividades. Em sala, foram retomadas as questões trazidas pelo texto, sendo discutidas noções de Design Anthropology e Design Participativo, além do conceito de dispositivos de conversação e de práticas politicamente engajadas de design. Foram ainda apresentados cases/outros projetos de modo a formar um pequeno repertório de dinâmicas e ferramentas diversas usadas como dispositivos de conversação em diferentes contextos específicos, complementando assim a leitura prévia e a conversa em sala. Propusemos então uma dinâmica já experimentada no primeiro momento de atividades da pesquisa prática, mas agora adaptada a outro contexto. Xs estudantes se dividiram em grupos de oito pessoas e, ao ar livre, sentaram-se ao redor de uma folha de papel kraft de grande formato. Cada um trouxe de casa objetos, imagens e fragmentos de textos, que remetessem a questões de gênero presentes em suas vidas, conforme solicitado anteriormente ao encontro. Deu-se então início à dinâmica, em que xs estudantes apresentaram o que trouxeram, justificando ao grupo a escolha e compartilhando as histórias associadas àquilo. As apresentações foram o gatilho para discussões derivadas, que duraram cerca de uma hora e abordaram diversos temas, que foram livremente registrados sobre o papel durante o debate. Diferente da primeira vez em que foi experimentada, no início do projeto, agora a dinâmica tinha como propósito o levantamento e mapeamento de questões para um desdobramento específico: servir de inspiração e base temática para que xs estudantes desenvolvessem seus próprios dispositivos de conversação.


Em grupos, estudantes debatem experiências e as registram sobre papel.

Através de objetos, grupo mapeia questões de gênero.


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Encerrando o primeiro encontro, foi pedido que cada grupo dividissem em dois grupos menores e, munidos da peça recém construída, elegessem uma temática para ser trabalhada através dos dispositivos. Para a semana seguinte, cada grupo deveria trazer um parágrafo descritivo apontando o formato do dispositivo (por exemplo, atividade de mapeamento, jogo, cartaz interativo…), a temática abordada e o objetivo (por exemplo, mediação de diálogos a partir de perspectivas divergentes, geração coletiva de visualizações de questões para tangibilizá-las, dinâmicas de imaginação coletiva para construção de alternativas possíveis…), além dos materiais necessários para prototipar esses dispositivos. É interessante notar que, desde a atividade realizada no primeiro encontro com xs estudantes, houve uma certa resistência ou desconforto com o tema. Contrastando com os momentos anteriores da pesquisa, em que a temática era o interesse comum entre as pessoas envolvidas no processo, a temática de gênero foi trazida à sala de aula de forma imperativa. Ainda que todos tenham participado da atividade de forma engajada, nos foi questionado mais de uma vez se as propostas de seus dispositivos teriam que, necessariamente, ter relação com temáticas de gênero, já que não enxergavam a relação clara entre as duas. Tratar dessas temáticas é de interesse do projeto e se torna ainda mais importante nesse contexto, em que, dentro de um curso de design, apontamos possíveis práticas mais politicamente engajadas da disciplina. No segundo encontro, as duas horas disponíveis foram utilizadas para a construção dos dispositivos. A maior parte dos grupos trouxe propostas de dispositivos em formato de jogo, fato a princípio curioso, dado que entre as referências oferecidas no primeiro encontro abrangiam diversos formatos (jogos, inclusive). Entendemos que não é trivial trabalhar os conceitos propostos, especialmente ao considerar que aquele foi o primeiro contato dxs estudantes com as teorias e práticas trazidas pela presente pesquisa – nesse sentido, jogo é um formato mais palatável para xs jovens designers. Ao fim do encontro, os grupos haviam prototipado seus dispositivos, tendo recebido comentários e provocações por parte das pesquisadoras ao longo desse processo. No terceiro encontro, os grupos se revezaram para testar os dispositivos entre si. Nos dois primeiros momentos, a pesquisa focou constantemente em ferramentas e dinâmicas desenvolvidas pela(s) própria(s) pesquisadora(s). Essas ferramentas, mesmo que retomadas pelxs participantes das dinâmicas de formas inesperadas e produtivas, condicionam até certo ponto essas atividades, já que partem inicialmente de uma mesma perspectiva. Ao abrir o processo de co-criação dessas ferramentas investigativas para uma turma de sessenta estudantes, passamos a acompanhar uma incontrolável variedade de possibilidades. Nesse contexto, as pesquisadoras puderam acompanhar os processos de construção e a posterior aplicação de uma diversidade de dispositivos de conversação por jovens designers que não possuem intimidade com essas teorias e práticas. A estranheza da proposta é um potente catalisador do imprevisível e improvável contido nos resultados da atividade, idealizada pelas pesquisadoras mas que foge ao seu controle (Olander, 2014).


As atividades realizadas com a turma de primeiro ano podem ser entendidas também como um provótipo (Lenskjold, 2011) em si: ao propor que construam dispositivos de conversação para tratar de temáticas que não são frequentemente tratadas naquele contexto, pretendo abrir novas conversas. Para desenvolverem os dispositivos, os grupos precisaram levantar e discutir questões de gênero, além de realizar pesquisas sobre a temática, buscando também referências em jogos e experiências próprias. Os artefatos desenvolvidos nas aulas foram, após o fim dos encontros, encaminhados para uma exposição interativa, onde esses debates são expandidos ao corresponderem com públicos ainda mais diversos, envolvendo novas perspectivas.

Participante posiciona sua peça no tabuleiro, associando-a com peças anteriormente dispostas.


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Estudantes experimentam seus dispositivos no terceiro encontro.

Estudantes experimentam seus dispositivos no terceiro encontro.


Exposição interativa Como última atividade da pesquisa prática, foi organizada, em maio de 2018, ainda com apoio da doutoranda Bibiana, uma exposição interativa no espaço da secretaria da Esdi, por onde circulam uma variedade de estudantes, professorxs, funcionárixs e ocasionais visitantes. Apesar de se dar no momento de conclusão do projeto, a exposição não pretende fechar, sintetizar ou concluir – aposta, pelo contrário, em abrir radicalmente esse processo, convidando o público a construir junto esse espaço, correspondendo através dos artefatos e materiais ali colocados. Os artefatos dialógicos trazidos pela exposição foram desenvolvidos em processos de construção de conhecimento colaborativo, em que, através das ferramentas propostas, criou-se espaços de diálogo. Nesse sentido, os artefatos são pistas tangíveis dos processos de correspondência que se deram durante os encontros. Agora, ao invés de apontarem apenas para o momento passado quando foram construídos, participam ainda na continuidade dos processos de correspondência que se seguem (Gatt; Ingold, 2013). A escolha pelo formato de exposição interativa se deu justamente pela necessidade de explorar o potencial desses artefatos até então construídos de provocar ainda outros diálogos, aspecto percebido ainda no primeiro momento de atividades da pesquisa prática, mas até então não experimentado. Não pretendo repetir essas dinâmicas ou usar essas ferramentas da mesma forma, mas recontextualizá-las, de forma que, operando como provótipos (Lenskjold, 2011), provoquem ainda outros debates, estendidos a outros públicos e onde o interesse e engajamento com essas questões não é necessariamente compartilhado por todxs. Foram expostos os artefatos desenvolvidos ao longo do projeto, acompanhados de pequenos parágrafos que os situavam em seu contexto original: o primeiro mapeamento coletivo de questões e temáticas, as peças construídas nos encontros do curso de formação e os dispositivos desenvolvidos com a turma de primeiro ano. Dispersos pela exposição, pequenas frases e parágrafos tratavam do projeto em si, sua proposta e métodos, além de trazer questões levantadas durante o processo. O espaço da exposição foi pensado de forma a provocar e possibilitar novas construções coletivas a partir de e em diálogo com peças ali expostas. As superfícies usadas como expositores foram coberta por papel pardo e foram disponibilizados materiais como canetas hidrográficas, post-its e barbantes. Foram também distribuídos pela exposição provocações e convites que convidavam as pessoas que por ali passassem a intervir, dialogar, associar temas, fazer conexões, compartilhar histórias, questionar e compartilhar novos materiais.


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Montagem da exposição.

Montagem da exposição.


Peรงas expostas.

Peรงas expostas.


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Painel introdutório, no início da exposição.


Alguns dos materiais disponĂ­veis.


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Estudantes do primeiro ano montam seus dispositivos no espaço da exposição.

Alguns dos dispositivos da turma de primeiro ano.


Um dos dispositivos da turma de primeiro ano.


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Algumas das provocaçþes.


A exposição é também uma aposta política. Ela pode assemelhar-se a um produto, mas não é de interesse da presente pesquisa expor imagens e objetos a serem contemplados, tampouco narrar linear e expositivamente um processo conclusivo de design. Nesse sentido, reflete o processo da pesquisa, em que investigação proposta não prevê possíveis produtos finais. A exposição também não tem forma final: as peças e os diálogos ali dispostos encontram-se em contínua construção coletiva e estão abertos a intervenções e contribuições, de forma a manter aqueles debates vivos. É um esforço para abrir a caixa preta dos processos de design, saindo do lugar onde essas práticas constituem desenhar formas fechadas e alienadoras, e explorar processos de correspondência que convidam e reúnem. Ao criar novos espaços de debate dentro da Esdi, a exposição se mostra politicamente engajada dentro desse novo contexto específico, operando também como plataforma para discussão e materialização de questões já em pauta dentro da escola, que se relacionam com a temática proposta. Vem emergindo, com mais força nos primeiros meses de 2018, entre a comunidade da Esdi, uma inquietação acerca de múltiplos episódios de discriminação por parte de professores. Diversas denúncias foram feitas por estudantes através da plataforma virtual Facebook, no intuito de explanar a questão. Essas denúncias foram impressas e, de forma a anonimizar xs autorxs, levadas ao espaço físico da exposição, fornecendo um novo ponto de partida para esse diálogo. Os debates gerados nesse e através desse espaço foram então levados novamente para o espaço virtual, onde agiu como provocação e convite para o retorno ao debate dentro do espaço da escola. Trazer o debate em torno dessas questões emergentes, materializando-as no espaço físico da Esdi, pode ter o potencial de formar e engajar públicos (DiSalvo, 2010) e estabelecer condições de mudança (Bjørgvinsson et al., 2010), impulsionando a comunidade a agir. Entendo aqui que o design não muda o mundo, mas faz parte desse mundo em mudança (Ingold, 2012) e, portanto, pode contribuir com suas ferramentas de forma politicamente engajada (Anastassakis; Szaniecki, 2016) para abrir e apontar possíveis caminhos mais democráticos. A exposição ocupou o espaço da secretaria por três semanas. Nesse intervalo de tempo, observei que as pessoas, ao passarem pelo espaço, de fato se engajavam em debates sobre questões ali presentes ou questões suscitadas por aqueles materiais. Esses debates, porém, não necessariamente se manifestavam sempre materialmente dentro da exposição – dessa forma, nem tanto diálogo era estabelecido com os artefatos. As peças agiam, muitas vezes, como ponto de partida e engatilhavam conversas, mas não recebiam retornos palpáveis de modo a modificar o espaço e acrescentar novas perspectivas, potencialmente trazendo novos pontos de partida. A investigação encontra, nessa situação, mais um desafio: como construir o convite à participação, de forma a engajar as pessoas na contrução coletiva desses diálogos? A experiência de trazer para o espaço físico da exposição debates já iniciados pela comunidade em espaços virtuais foi interessante, pois buscava dialogar com questões já presentes entre aquelas pessoas. Entender quais ferramentas e técnicas são mais eficientes em determinados contextos, porém, continua sendo um grande desafio da pesquisa por meio do design. Nesse sentido, a presente investigação pretende


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contribuir para um melhor entendimento dessas ferramentas e suas aplicações em processos participativos de design (Brandt et al. 2011). Os processos propostos pelo presente projeto fizeram emergir impasses e questões relacionadas a sua abertura e caráter experimental; os interesses diversos em jogo; o desafio de criar convites que provoquem engajamento; e a própria participação e seus limites. Encerro agora esta seção para, a seguir, aprofundar discussão em torno das questões aqui levantadas.

Intervenções: novos debates iniciados pelo público a partir da linha do tempo.


Jogo de palavras magnético convida público a jogar.

Um dos resultados do jogo ao longo da exposição.


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Intervenções: novos debates iniciados pelo público a partir da linha do tempo.

Intervenções: novos debates iniciados pelo público a partir da linha do tempo.


Intervençþes: novos debates iniciados pelo público a partir da linha do tempo.


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Denúncia feita por estudante da Esdi, deslocada da plataforma virtual para o espaço físico da exposição, já com novas contribuições.


Desdobramentos da primeira denúncia: novos relatos são adicionados à exposição.


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Mais comentários são deslocados da plataforma virtual para o espaço da exposição, alimentando o diálogo.

Desdobramentos: provocações são adicionadas pelo público.


Desdobramentos: novos relatos são adicionados à exposição.


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Visão mais ampla da materialização de debates atuais na escola junto às peças expostas.


05. CONSIDERAÇÕES FINAIS


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Com o objetivo de criar espaços

de debate sobre questões de gênero, em que a construção coletiva de artefatos é, ao mesmo tempo, o dispositivo provocador de diálogos e o registro material(izador) dessas trocas, desenvolvi uma série de encontros em diferentes contextos, em que propus atividades e reuni ferramentas que cumpriram o papel de dispositivos de conversação. Ao mesmo tempo, o projeto trazia o interesse investigativo de explorar esses processos como novas formas de construção coletiva de conhecimento através de práticas engajadas do design. Ao longo desse processo, diversas questões foram levantadas em momentos diversos – algumas, específicas a certos contextos, e outras, inerentes às práticas participativas de design. Para finalizar este relatório, busco, a seguir, refletir sinteticamente sobre essas questões e impasses, ponderando desafios e oportunidades. Transpassando todas as atividades da pesquisa prática, e relevante em todo processo participativo, a disputa de interesses é uma questão que se fez constantemente presente. Como negociar os espaços colaborativos de forma a atender aos múltiplos interesses em jogo? Ao envolver outras partes nos processos de criação, a designer traz para o mesmo ambiente uma variedade de agentes e, com elxs, suas demandas e desejos. Os interesses metodológicos da pesquisa muitas vezes não são compartilhados, e a malha de intenções, demandas e expectativas pode ser complexa – isso fica claro ao olharmos para as atividades desenvolvidas em parceria no curso de formação popular. Nesse contexto, tanto eu, quanto a pesquisadora parceira, buscávamos experimentar diferentes dispositivos de conversação para explorar processos participativos de pesquisa em design através da prática. Dividindo o espaço desses encontros, as educadoras – entre elas, a segunda pesquisadora, complexificando as relações dentro da parceria – buscavam cumprir com a ementa do curso, desenvolvida por ainda uma terceira parte, idealizadora do curso. As participantes, ainda, visavam concluir a formação, envolvendo-se ao mesmo tempo nos encontros presenciais e nas plataformas virtuais, sendo a segunda alheia às atividades da pesquisa. Nessa situação, fica evidente a necessidade de que se estabeleçam interesses e objetivos em comum, através dos quais é possível trabalhar essa outra diversidade de demandas (Olander, 2014). Nos encontros da formação, assim como no que fora realizado no primeiro momento da pesquisa, é fácil identificar a vontade de debater questões de gênero como esse lugar médio, onde as atividades realizadas cumprem diferentes funções para as diferentes partes ali reunidas: as pesquisadoras puderam experimentar uma diversidade de ferramentas situadas em contextos específicos, acompanhando de perto os processos participativos; as educadoras puderam trabalhar os objetivos propostos pela ementa do curso; as participantes, de forma engajada, tomaram parte na construção


dos encontros. Em contraste, ao analisarmos os encontros realizados com xs estudantes de primeiro ano na Esdi, o foco muda. A temática de gênero deixa de ser o elemento unificador e, em um ambiente de educação em design, os métodos e ferramentas da disciplina passam a ser o interesse principal em jogo. Ainda assim, como apontado ao longo deste relatório, tensões e impasses surgem dessa complexidade de interesses, sendo necessário constantemente disputar e negociar os espaços comuns. Já na primeira atividade da pesquisa, mostrou-se desafiadora a artesania do convite à participação. Naquela situação, uma vez presentes no encontro, as participantes imediatamente se engajaram na atividade, construindo ativamente os diálogos e artefato propostos. Previamente ao encontro, porém, agregar as pessoas que já haviam manifestado interesse na atividade representou um desafio: de um grupo relativamente grande, apenas quatro mulheres de fato compareceram. Já na última atividade, em um contexto bastante distinto, também há dificuldade de engajar as pessoas na construção coletiva do espaço da exposição. Não era preciso, então, mobilizar um grupo de pessoas a reunir-se em um encontro. A exposição pretendia convidar as pessoas que já habitavam aquele espaço a corresponder com os artefatos e materiais ali colocados, provocando debates sobre questões de gênero. Os debates eram de fato provocados entre as pessoas que visitavam o espaço, mas muitas vezes as questões e perspectivas levantadas não eram retornadas à exposição de forma a modificar o espaço, não acrescentando a elas novas perspectivas nem estabelecendo um diálogo mais duradouro. A pesquisa, a partir dessas experiências, levanta mais perguntas: como construir o convite à participação, antes mesmo da atividade tomar lugar? Quais as ferramentas capazes de engajar as pessoas a experimentar novas formas de diálogo? E em que contextos? Em grande parte dos experimentos realizados, a(s) pesquisadora(s) desenvolveu/ desenvolveram ferramentas e propôs/propuseram atividades para um grupo. Ainda que as ferramentas tenham sido de fato apropriadas pelas participantes das dinâmicas, interpretando-as de formas distintas e usando-as para expressar subjetividades, restam efeitos indutivos causados pelas perspectivas da(s) pesquisadora(s), embutidas nessas propostas. Essa foi a chave para o desenvolvimento das atividades do terceiro momento da pesquisa prática, em que o processo de co-criação foi aberto a sessenta estudantes, em busca de uma diversidade imprevisível que fugisse ao controle da proposta inicial (Olander, 2014). Nessas atividades, a investigação buscou explorar possibilidades que atendessem às perguntas: quais os limites da participação efetiva nos processos de co-criação (Binder, 2015)? Como evitar que as perspectivas das pesquisadoras, embutidas nas ferramentas, condicionem os debates? O projeto, desde o princípio, não teve a intenção de apontar para o futuro, mas sim de expandir momentos de presente (Gatt; Ingold, 2013; Anusas; Harkness, 2016) para criar espaços de troca e provocar diálogos sobre questões emergentes em determinados contextos. Buscava, assim, contribuir com ferramentas e métodos participativos do design de forma politicamente engajada, para que, a partir do


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presente, fossem abertos possíveis caminhos para um futuro mais democrático. Durante a exposição interativa realizada na Esdi, experimentei trazer o debate em torno de questões já presentes naquela comunidade, materializando-as no espaço da escola. Provocar esses diálogos dentro do contexto em que aquelas questões surgem e entre as pessoas a quem afetam pode ter o potencial de estabelecer condições de mudança (Bjørgvinsson et al., 2010), mas a falta de encaminhamentos práticos das atividades ainda é uma questão a ser pensada. Como potencializar os encontros de forma a gerar desdobramentos? É possível usar o espaço de trocas ali construído como base para ação? É necessário ainda lembrar que essas questões e impasses são inerentes aos processos participativos, de forma que estar junto a eles é também tarefa importante da presente investigação. Esses processos, que não são totalmente controlados pela pesquisadora, podem ser considerados ricos à pesquisa enquanto deixam novas pistas, fazem emergir novos impasses e geram novas perguntas (Brandt et al., 2011). O projeto propõe um processo investigativo aberto e improvisatório, em que busca seguir essas pistas para, nas atividades seguintes, experimentar ainda novas ferramentas e métodos, correspondendo às especificidades de cada contexto. Desse modo, o projeto se baseia em práticas do design que fazem perguntas ao invés de prescrever soluções (Lenskjold, 2011), deslocando o foco do resultado ao processo, do futuro ao presente. As possíveis ferramentas e métodos a serem exploradas são virtualmente infinitas, e entender como aplicá-las exige maiores investigações (Simonsen; Robertson, 2013). Busco, com a presente pesquisa, colaborar para um melhor entendimento dos processos participativos de design, experimentando e contribuindo com as metodologias emergentes no campo novo e vibrante da pesquisa em design (Brandt et al., 2011), e propondo um viés mais político para a pesquisa e prática nessa disciplina.


06. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


103

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07.ANEXOS


My Ideas

What are your ideas and desires?

What were your highlights?

My Impressions

Author:

0%

100%

100%

0%

100%

100%

100%

100%

Others:__________________________ __________________________________

0%

If the world is designed for right handed people, is the world also designed for a male white cis supremacy?

0%

Social Media

0%

Transgender/ Transexuals

How would you name your concept?

Sketch your idea in a product and/or service concept

Gender Politics

0%

Drag queens & kings

Sketch

Name

100%

100%

Conservative culture & gender

0%

Violence & Gender

0%

How would you rate the topics observed?

ANEXO 1 107



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