Miguel e o Ornitorrinco

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Miguel e o

Ornitorrinco



Miguel e o

Ornitorrinco Pinturas, bico de pena, raspagens, cópias, mutilações, apropriações, roubo, associação, citação, sobreposição, construção, demonstração, acúmulos, emendas, rasgos, alinhavos, patchwork, escritas, poesia, etc.

Miguel Gontijo Outubro de 2012

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Idealização, Produção e Realização: Robson Soares Projeto Gráfico: Clara Gontijo Textos: Miguel Gontijo Fotografia: Júlio Hubner e Clara Gontijo Patrocínio: V&M do BRASIL

G641m Gontijo, Miguel. Miguel e o Ornitorrinco / Miguel Gontijo. – Belo Horizonte : Ed. do Autor, 2012. 60p. : il.

ISBN

1. Artes Plásticas 2. Pintura brasileira. 3. Pintura - Brasil - Séc. XXI. I. Título. CDD: 759.981 CDU: 75(81)

Esse livro é parte da exposição realizada no Museu Inimá de Paula, em Belo Horizonte. As obras expostas no museu pertencem aos colecionadores: José Alberto da Fonseca, Paulo da Terra Caldeira, Ricardo Pentagna Guimarães, Segismundo Marques Gontijo. Primavera de 2012.


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Depois de conviver alguns anos com Miguel Gontijo (prêmio Mário Pedrosa, 2010, dado pela ABCA - Associação Brasileira de Crítico de Arte), surpreendeu-me ver seus novos trabalhos. O artista nos apresenta um universo profundo e belo, que nos leva a refletir sobre cada obra, como também contemplar a perfeição técnica de seus quadros. Difícil imaginar como alguém consegue criar e mostrar em suas pinturas algo tão enigmático! Chego a perguntar se não são os personagens de suas obras que lhe ditam o que pintar. Parece! O artista tem desenvolvido uma pesquisa estética de grande renovação no âmbito da recepção múltipla de influências e códigos artísticos, o que revela uma criatividade renovada e uma preocupação de permanente atualização. Os resultados que a exposição vem patentear justifica plenamente esta iniciativa com o propósito de a transmitir a públicos diferenciados, sobretudo os mais jovens. Discursos artísticos e de pesquisa técnica de grande rigor apontam para uma vertente pedagógica, que também desejamos enfatizar nos projetos a que nos associamos. Acolher e contribuir para a divulgação de uma trajetória artística já consolidada e de largo reconhecimento público constitui uma enorme honra para mim. Congratulo com o envolvimento do parceiro institucional patrocinador desse evento, a V&M do Brasil, que proporcionou os meios para essa realização e, também, queremos manifestar o nosso agradecimento a todos que ajudaram a viabilizá-la. Robson Soares

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na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Lavoisier

“Kant e o Ornitorrinco” é o título de um livro de Umberto Eco, sobre semiótica. O que tenho eu a ver com Kant e com ornitorrincos e esse livro? Pensei e descobri que sou, há muito tempo, um cara indeciso. Mesmo agora não sei se estou tão seguro assim; portanto deixarei que Umberto Eco explique essa minha exposição: O que mostram esses quadros? Além do ornitorrinco mostram outras coisas que vemos todos os dias e das razões pelas quais distinguimos um elefante de um tatu. O que tem Miguel a ver com o ornitorrinco? Nada. E isto bastaria para justificar o título dessa exposição e a nossa incoerência totalizante. Nesses quadros explico (Miguel explica) por que o ornitorrinco não é horrível, mas prodigioso e providencial. Ele é um animal estranho, que parece concebido para desafiar qualquer classificação, quer científica que popular. É ele uma toupeira? um castor? um pato? um peixe? um pássaro? uma abelha? animal marinho ou terrestre? é o Superhomem, ou uma vítima da criptonita? Partindo de percepções sensíveis, como podemos colocar num mesmo animal um bico junto com patas espalmadas, pelos e uma calda de castor? Ou a ideia de castor com a ideia de um animal ovíparo? Como podemos ver um pássaro onde aparece um quadrúpede? Por sua aparição muito remota no desenvolvimento das espécies, digo que ele não é feito com pedaços de outros animais, mas que os outros animais é que são feitos dos seus pedaços. Kant nada sabia sobre o ornitorrinco, paciência! Posto que ele – o ornitorrinco - é um animal e não uma ilusão dos sentidos, nem uma criatura dos infernos, eu, Miguel, para resolver a minha crise de identidade, faço esses quadros, procurando saber de Kant, de Eco e, principalmente, de ornitorrincos. Miguel Gontijo 26\08\2012

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O ornitorrinco tem em média cinquenta centímetros e pesa cerca de dois quilos. Seu corpo é chato e coberto de pelugem azulada por cima e róseo por baixo. Sem pescoço, com uma calda de castor e um esporão venenoso. Bico do pato Donald, sem pavilhões auditivos, quatro patas terminadas com cinco dedos espalmados em garras. Seu tempo de permanência debaixo d’água não dá para defini-lo como um peixe ou um anfíbio. A fêmea põe ovos e amamenta os filhotes, mesmo sem ter tetas. Os testículos dos machos são internos. O ornitorrinco vive isolado em locas, em um espaço territorial definido e em um continente misterioso.

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Miguel Gontijo mede um metro e setenta centímetros, pesa 62 quilos e não possui o bico do pato Donald. Em arte ele é autodidata e por isso conhece toda a solidão que isso significa. Permanece outsider pela vida afora e é fiel à ideologia udigrude da sua juventude. Seus pares tinham suas turmas, seus críticos e suas galerias. Ele, como artista, não se sentia aceito por eles. Teve que criar linhas próprias, abrir clareiras novas e observar para que lado daria um passo. A persistência em viver essa vida solitária gerou nele a valorização da luta e do rigor. Nunca acreditou em talento. Para ele criatividade é um protesto que se faz contra a realidade da natureza. Uma negação da nossa condição humana. Uma tentativa de esquecer a criatura patética que somos. Talvez tenha sido isso que o permitiu criar uma poética pessoal e uma temática deliberadamente autocentrada. Ao se propor uma tarefa descobre que o seu Deus tem mais falhas do que ele. E segue. Segue para lugar algum. Pois sabe que a realidade não tem a menor obrigação de ser interessante. Ele, sim!

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Se muitas são as imagens que coloco nesses quadros, muitíssimas são aquelas que não mostro, simplesmente porque não tenho ideia precisa a seu respeito.

Nunca acreditei que a realidade fosse esse mundo em que estou inserido. Creio que realidade nada mais é do que um mosaico de pequenas verdades. Não há uma geografia para que eu possa compreendê-la. Suas conjunções é que permitem que ela se apresente como um acontecimento. Aos nove ou doze anos, vi a empregada decepar a cabeça de uma galinha. E fiquei a observá-la descabeçada, caindo e andando pelo terreiro e apenas o barulho das asas que, com certeza, essa galinha não mais ouvia. Nesse momento desliguei a luz da realidade que me cercava. Desacreditei. Agora, escrevendo isso, sinto-me galinha a tropeçar nas verdades e palavras que me impuseram. Sob os meus pés alguém legendou: “Isso não é um cachimbo”.

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1+1 = outro Um mais um diferente de outro Conjunto de 30 peças - 32 x 45 cada - 2012 Bico de pena, acrílica/ óleo sobre pvc espandido

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Eu não mato uma galinha já Deus me mata. Então eu mato Deus com minha morte mas continuo não matando galinhas. De tudo na vida eu só sei que galinhas existem, Deus bica e eu cisco.


Marco Polo vê em Java, pela primeira vez um rinoceronte. Como sua cultura coloca à sua disposição a noção de unicórnio, precisamente como um quadrúpede com um chifre em cima do nariz, ele designa aquele animal como unicórnio. Sendo um cronista honesto relata que estes “unicórnios” são muito estranhos, visto que não são brancos e ágeis e têm pelos de búfalos e pés de elefantes, sendo, o chifre negro e desgracioso; a língua é espinhosa e a cabeça semelhante à de um javali. E diz: é uma besta muito feia de se ver. Não é, como se diz por aqui, que ele se deixe pegar por uma donzela. O que acontece é o contrário: ele massacra qualquer donzela que dele se aproxime. Marco Polo em vez de acrescentar um novo animal no conhecimento europeu, ele corrige a descrição vigente dos unicórnios que, se existem, são por certo como ele o viu.

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O Evangelho de São João nos conta que quando o discípulo chega diante do túmulo do Senhor morto, constata a pedra deslocada e olha o interior e et vidit, et creditit – viu e creu. Ele acreditou porque viu. Mas o que é que ele viu? Nada. E é esse nada, é esse vazio de corpo que irá desencadear para sempre toda a dialética da crença. Nada ver para tudo crer. (Didi-Huberman – O que vemos, o que nos olha)

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Um escravo índio foi enviado por seu dono a transportar um cesto de figos e uma carta. Ao longo do caminho comeu grande parte da carga, entregando o resto à pessoa a quem ele dirigida. O destinatário não encontrando a quantidade de figo correspondente ao que dizia a carta, acusou-o de havêlos comido, referindo-lhe que a carta dissera contra ele. O índio negou candidamente o fato, maldizendo o papel como testemunha falsa e mentirosa. Novamente enviado com igual carga e com uma carta, ele, novamente, devorou grande parte dos figos ao longo do caminho. Mas, antes de comê-los, para prevenir qualquer possível acusação, ele escondeu a carta debaixo de uma pedra, certo de que, se ela não o visse comer os figos jamais poderia relatar o que não vira. Novamente acusado do seu roubo, confessou seu crime, prometendo fidelidade em toda tarefa de que fosse incumbido e admirando, para sempre, a divindade do papel. (John Wilkins – 1641)


Eis aqui: precário, provisório, perecível, falível, transitório, transitivo, efêmero, fugaz, passageiro, impuro, imperfeito, impermanente, incerto, incompleto, inconstante, instável, variável, defectível. Eis aqui: um vivo! e apensar do tóxico, do indigesto, do câncer, do servo, da gargalhada, das fezes, do grito e do gozo... ... apesar dessas e outras... a alma dorme na terra, sonha na pedra e alimenta-se na carne. Pois quem experimenta o sangue não se alimenta mais de água.

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Quando vejo uma imagem eu a desafio. Ela reage Hรก embate e eu a devoro apropriando-me do estilo do meu adversรกrio. Mastigo-a rumino-a regurgito-a e assim, triturada, afirmo o meu estilo nos destroรงos que faรงo do outro.

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cão ladra noite e eu ver o que é. se sempre o é nada. não sei ue o cão Meu cão ladra na noite e eu vou ver o que é. Quase sempre não é nada. ente. Eu não sei o que o cão sente. Se me avisa do perigo, se sente solidão, ou se está com medo. me avisa Mas o cão sabe que basta latir para fazer um homem aparecer. perigo, e sente dão, ou se com medo. o cão sabe e basta tir para r um homem




Não sou nada humano! Estou a cata de superhomens e tropeçando em criptonitas. Meus por quês pertencem exclusivamente a mim. Para não me taxar de egoísta meus quês são todos seus.

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Sempre fui m铆ope. S贸 enxergo no sonho.

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Faço (fazemos) arte como se estivesse instalando celular em caixão.

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Faço quadros apenas para me ornamentar. Para suprir uma dor de eremita, preenchendo-me com minha própria presença. Faço uma caiação em toda página escrita e assino meu nome em toda página em branco; pelo instinto de sobrevivência todo o restante é imaginário.

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Fazemos parte de um jogo. Somos peça de uma engrenagem montada aleatoriamente. Panela de experimentos. Nada leva a lugar algum. Apenas à uma sensação difusa entre o prazer e o desconforto. Não adianta a aspirina, nem a cachaça do boteco. Também não adianta puxar o gatilho! (Se assim fizermos estamos simplesmente fazendo valer o protocolo de um ritual que, de antemão, nos está reservado.) Viver é inevitável. Pintar é inevitável. Amar é segurar o revólver na boca. Arte é para esquecer

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Na infância pratiquei com fervor a adoração ao tigre. (...) Apreciava as vastas enciclopédias e os livros de história natural pelo esplendor de seus tigres. A infância passou, caducaram os tigres e a paixão por eles, mas eles ainda permanecem em meus sonhos. Costumo então a pensar: este é um sonho, uma pura diversão de minha vontade e, já que tenho um poder ilimitado, vou produzir um tigre. J.L.Borges




...as pinturas que seguem são norteadas pelo mesma ética do Dr. Frankestein. Ou, pelo mesmo princípio que levou a natureza a construir o ornitorrinco. Tanto o monstro ficcional de Mary Shelley como o real ornitorrinco a intenção é a construção de uma poética do fragmento, contrária a tirania da perfeição e das certezas científicas. MatutANDO...” os deuses criam-nos muitas surpresas e é no inesperado que ele abre um caminho.”... quem soprou isso foi Eurípedes.

As três graças (I e II) Acrílica/óleo s/tela - 163 x 94 cm - 2012


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O grito Acr铆lica/贸leo s/tela - 130 x 130 cm 2012



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Brinquedo proibido Acrílica e óleo s\MDF 1,37 diâmetro - 2011


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Ritual de acasalamento Acrílica e óleo s\MDF 1,37 diâmetro - 2011



Mortal Combate Acrílica e óleo s\MDF ø1,37 - 2003 Made in China Acrílica e óleo s\MDF 1,37 diâmetro - 2010


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Cavalo de Tr贸ia Acr铆lica e 贸leo s\MDF 1,37 di芒metro - 2010



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O Inferno sou eu Acr铆lica e 贸leo s\tela 1,60 X 1,60m - 2011


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Xip贸fago Acr铆lica e 贸leo s\tela 0,50 X 0,50 cm - 2011


Manto Vermelho Acr铆lica/贸leo s/mdf - 50 x 50 cm - 2006

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Clube do Mickey (I e II) Acr铆lica e 贸leo s\tela 0,53 X 0,56 cm - 2011

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“Esperais um epílogo do que vos disse até agora? Estou lendo isso em vossas fisionomias. Mas sois verdadeiramente tolos se imaginais que eu tenha podido reter de memória toda essa mistura de palavras que vos impingi. Em lugar de um epílogo, quero oferecer-vos duas sentenças. A primeira, antiguíssima, é essa: eu jamais desejaria beber com um homem que se lembrasse de tudo. E a segunda, nova é a seguinte: odeio o ouvinte de memória fiel demais. E, por isso, seja são, aplauda, viva, beba, oh celebérrimos iniciados nos mistérios da loucura!” (Erasmo de Roterdam – 1509)

O orgasmo de Santa Tereza D’Ávila (I e II) Acrílica/óleo s/tela - 2011

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Ornitorrinco

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A ética da arte O olhar não é bastante para compreender a expressão das obras de Miguel Gontijo. Ele não é apenas um artista plástico; é um pensador que apresenta suas reflexões traduzidas em uma estética inédita no cenário da arte em nosso país. Cada um de seus quadros sugere uma visão crítica, ideológica, distanciada do maniqueísmo entre o belo e o feio, entre o bem e o mal, o que traduz a herança de sua formação de filósofo e historiador. Cabe ao espectador se aproximar desses jornais atemporais impressos em seus quadros. Eles oferecem propostas de aprofundamento e discussão como desafios à sensibilidade e ao conhecimento. Ou então, para usar a liberdade de discordar e renegar. José Alberto da Fonseca


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