Arsenal - Miguel Gontijo

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MIGUEL GONTIJO


Trancado em casa, escondido do vírus, resolvi abrir gavetas e jogar o lixo fora. (uma forma para adiar o fim do mundo.) É hora da grande fogueira, que há muito desejo fazer. Infinidades de estudos que produzi para realizar meus trabalhos. O primeiro papel que abri revelou um miguel desconhecido. Um outro miguel. Em vez de acender a grande fogueira, resolvi acarinhar esses esquecidos papéis. Alguns, estragados pelo tempo e pelo descaso, resolvi passá-los a limpo, já que o tempo me é farto. Mas logo percebi que precisaria de mais setenta anos para recolocar a casa em ordem. (um orgulho: produzi muito muito.) Esse livro é parte do que apurei. Desenhos, linhas puras, despretensiosos. Evitei datá-los. Apurar daria muito trabalho. Afinal, isso faz parte de um corpo único – minha vida – que agora se protege, pretendendo continuar por aqui. Os textos foram redigidos para consumo próprio, também ao longo de anos e que não passam de memórias fantasiosas. São as minhas 1001 noites, cuja serventia é o fazer, nunca uma chegada, seja lá onde for. O que é certo que desenhos e textos falam o mesmo idioma, tem o mesmo sotaque e trejeito. Se um redige com palavras, o outro redige com imagens. Eles não se ilustram entre si, porém ilustram a mim. Em um dos papéis que encontrei, está escrito:

No passado construí lápides para subir em cima, imitando púlpitos, a fim de perscrutar poemas; agora, no presente, à falta de outras bestas-feras, domo metáforas e aprendo grego só para criar harpias; o futuro está determinado com a minha ausência e se conforta sem palavras. Porém eu as inventarei para lembrar, que essas coisas que faço, devo fazê-las bem. Tão bem quanto sou capaz, com minúcia e paixão, tal como os escribas que iluminavam os códices. Nada além disso. Infelizmente nunca saberei se é excremento ou alimento.


MIGUEL GONTIJO

“Devorar o seu semelhante é um ato que provém da noção de imanência da capacidade do homem nos seus tecidos; de transferência dessa capacidade com a absorção deles.” Hans Staden



“Quanto mais filosoficamente clara a arte quiser ser, mais ela se degradará e retornará ao hieróglifo infantil; inversamente, quanto mais se afastar do ensino, mas se elevará à beleza pura e desinteressada.” Baudelaire


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Apresnetação Arsenal Antropofágico

Res Nullius 572 Achado Na cama que se nasce, morre Júlio Verne Aldebaran O Incriado Carne Crua Res derelicta Desenhos Canibais Devorados

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ARSENAL ANTROPOFÁGICO “O que seria de nós sem o auxílio do que não existe?” É com essa pergunta de Paul Valéry que quero estruturar esses meus escritos e imagens. Ou com a afirmação de Michael Malamed: “Antes de mais nada: tudo!” Existe um Miguel estranho que caminha nesses desenhos e escritos. Um Miguel avarento, sovina, que recusou jogar seu lixo fora e um Miguel perdulário, esbanjador de tempo, que gasta sua vida a procura do que não se encontra. Não sei qual dos Miguéis está certo. Sei que nenhum dos dois estão corretos para com a vida prática e objetiva que levamos. Pode ser que, quando ele guarda seu lixo e desperdiça seu tempo, imagina que está melhor definindo seu papel de artista. Porém age como se fosse o Joãozinho da história, marcando a volta da floresta com pedaços de pão e esquecendo da fome dos passarinhos que o persegue. Ou talvez esse Miguel viva a Síndrome de Peter Pan, se recusa a envelhecer e não perde a fé em encontrar a Ilha do Nunca. Estranho esses Miguéis, estranho esses papéis rascunhados. Deixando o autor de lado, vamos aos papéis e o que ele nos diz. ****

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A palavra ‘estranho’ dispensa adjetivos. Ele não é belo nem feio, não é ruim nem mau, não é sacro nem profano e, ao mesmo tempo, ele se funde a tudo isso. Pode ser natural ou espiritual; repugnante, horrendo, odioso e indecente. O fato é que ele sempre provoca o espanto. É um agente alterador dos estados de consciência. É o habitante de todos os espaços que ele pretende alterar e está intimamente ligado ao ‘novo’. o que é Novo? Quando procuramos um dicionário não encontramos asilo que nos satisfaça. Os conceitos andam em torno da morfologia da palavra, dizendo coisas do tipo: “que existe há pouco tempo”; ou: “que apareceu recentemente”. A melhor definição que encontro está na poesia e é uma metáfora que tenta explicar: “o novo é o ovo que perdeu a letra N”. ou: é um vento dentro de um conceito. Versos de Leminski nos diz: “Criar o novo é pôr o velho à prova, os que resistem ficam atuais, o resto: rua!” Prefiro explicar que o novo acaba sendo a liberdade de expressão, um embrião, que na sua essência possui toda uma história que o antecedeu. Ferreira Gullar nos ensinou que a arte existe porque esse mundo não nos basta. Portanto a arte é a construção de um mundo. E esse mundo que construímos e apresentamos ao espectador está sempre passível de estranheza. Vamos compondo-o a maneira do Dr. Frankenstein. Parte por partes. Quando Isaac Newton diz que se ele é grande é porque se encontra sobre os ombros de gigantes, talvez esclareça isso. Devemos nossos conhecimentos e nossa inspiração a uma linhagem de gênios criativos, que nos antecederam. O trabalho do Miguel, dentro e além do campo da Arte, foi influenciado por uma miríade de grandes homens. Se ao apresentar uma obra elas possuem uma aparência estranha é porque está contaminada de outros eus.

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Temo em dizer que o estranho é também irmão do preconceito e da ignorância. Antes de compreender julgamos, condenamos e temos medo. Nenhuma estranheza é gratuita. Pelo contrário, ela deriva e produz costumes e certezas que fazem todo sentido. Hoje, olhando em retrocessos, as bruxas queimando nas fogueiras; crianças abandonadas nas florestas quando os pais não tinham condições de alimentá-los; os campos de concentração nazistas; a antropofagia dos nossos índios e uma infinidade de estranhezas reais de um passado ameaçador, nos sentimos confortados com o nosso presente. Um dos elementos desconcertantes da estranheza é a contemporaneidade dos milênios que nos antecederam. A possibilidade de existir, atual e visível no presente, com algo que conta milhares e milhares de anos. Podemos observar isso em um quadro do Goya: “Saturno devorando o filho”, feito em 1819. A imagem ainda hoje nos provoca estranhamento e nos repele. O quadro nada mais é que o registro de milhares de séculos onde crianças foram oferecidas em sacrifícios, aos deuses. Se a estranheza reside nessa obra, em outras elas não afetaram o seu tempo, porém causa estranhezas em tempos posteriores. É o caso de Hieronymus Bosch. Precisou de 500 anos para que Jung o descobrisse esquecido nos porões dos museus da Europa. Só então sua obra passa a alterar o nosso estado de consciência. Quando as obras foram criadas (1460 – 1516) não passavam de uma crônica cotidiana, onde toda a cultura da época era povoada de espíritos. Um registro de costumes. Hoje Bosch nos apresenta um lado sombrio de um período da nossa história e é nesse lugar lúgubre e estranho que se explica o nosso fascínio sobre a sua obra. O estranho se torna mais evidente (e até ameaçador) quando ele se abriga no nosso lado espiritual. É uma estranheza solitária, subjetiva, mórbida. Didi-Huberman nos conta que quando o discípulo chega diante do túmulo do Senhor morto, constata a pedra deslocada e olha o interior, viu e creu. Ele acreditou 11


porque viu. Mas o que é que ele viu? Nada. E é esse nada é que reside a estranheza e que irá desencadear para sempre toda a dialética da crença. Nada ver para tudo crer. Na arte o Estranho encontra-se abrigo. E essa estranheza irradia a ponto do artista\autor viver com esse estigma de também ser um estranho. O artista passou a ser sinônimo de estranheza, de ser um outsider, de ser alguém que precisa de cuidados especiais. Talvez isso tenha lá suas razões, pois o artista está sempre a espera de que a rotina se quebre e, então, possa produzir algo que o surpreenda a si e ao espectador. O Surrealismo surgiu oficialmente, em Paris, em 1924, como movimento literário em apelo à emancipação da vida imaginativa e como experiência do inconsciente. Posteriormente, os pintores passaram a responder aos apelos de André Breton, o líder do movimento, para produzir arte contra as limitações arbitrárias impostas pela razão e pela ordem social. Todos eles estavam interessados em transformar o mundo e mudar a percepção intelectual da vida; para tanto usaram a metáfora poética fora do uso comum, fora da lógica e da inteligência crítica, recorrendo a métodos que revelassem os processos da criação primitiva e demonstrassem o poder de sedução do estranho, a perturbação de imagens convulsivas. Pinturas, esculturas, objetos, tudo era criado mais pela psicologia do que pela intenção estética. Os escritos de Freud (principalmente “O Estranho” escrito em 1919) lhe serviam de estímulo. Eram comprovações de que os processos usados se referiam à liberdade da arte promovida pela criação da realidade superior. Assim, os processos acidentais de pintura usados por eles passaram a revelar imagens surpreendentes, iconografias de estranha liberdade só possível nos sonhos. Anos após, McLuhan nos disse que o que criamos são simplesmente prolongamento de nossas limitações. Observando a ciência, ele deduz que a roda é um prolongamento do pé; a foto é um prolongamento do olho, a roupa da pele, a bomba atômica

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um prolongamento do soco. E a arte um prolongamento das emoções, dos desejos. O estranho na obra de Miguel (minha) não passa de uma extensão de seus medos e frustrações. Porém: desejos e emoções são abstratos. Como caminhar nestas cavernas obscuras do cérebro? Como transformar sensações? Onde estão nossos iguais num terreno tão sutil como este? Jung tenta explicar dizendo que na arte você diz: - Eu sei! sem querer o ônus da prova, pois não se pode explicar os símbolos além de uma certa profundidade. Depois disso temos que conviver segundo eles a fim de compreendê-los. Eles desviam do campo do conceitual e tornam ritmo do sangue. Miguel, apropriando de algumas palavras de um outro autor, (que ele nem lembra quem é e justifica-se com uma frase de Eduardo Viveiros: “A verdade está sempre com o outro e sempre no futuro”, ou: “O que é meu e o que não é meu me interessam. Freud já não explica tudo.” dito por Daniel Piza) disse-me certa vez: uma das minhas obsessões é o pintor Albert Durer. Dele eu quero o osso. O único artista que não me enfastia com o passar dos anos. Persigo-o como trato de um mal incurável, que toma conta de mim. Esporadicamente deixo-o aparecer no que faço, como se abrisse aspas em meus trabalhos. A maioria das vezes o afasto querendo meu próprio oxigênio. A vontade de compreendê-lo leva-me a forçar o seu segredo e a deduzir sua estranheza. Vivo a maneira dos psicopatas, uma vida dupla, uma existência paralela, tornando-me estranho para mim. A falsa repetição, a falsa cópia, a perseguir até a exaustão o destino que não foi me dado, mas que quero meu. Viver num espaço onde o falso faz às vezes da verdade, sem nexo causal, onde nem causa nem efeito persistem. No “outro” encontro meu próprio rasto.

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Quando se tenta aprofundar em um trabalho de um outro artista, pode-se encantar com uma geometria fácil, pois o sentido do conhecimento ali expresso, da apropriação de suas marcas, de seus rastos, não tem sentido algum. Simplesmente a cumplicidade absurda da submissão em busca de um êxito na esfera do estranho. A cega entrega ao desejo do “outro”. Submissão passional. Servidão de viver não mais meu próprio delírio, mas apenas a intercessão ritualística do “outro”. Este efeito de desdobramento é uma armadilha, um labirinto que conduz a um mesmo ponto, pela mesma ponte, cujo único encanto é assemelhar-se. Não há como encontrar-se sem reconhecer-se. Mas, neste mundo não há espelhos, há sombras. Não há pés, há rastos. Há de se cuidar para não se tornar um unicórnio: corpo de cavalo, cabeça de cabra, um único chifre, pois, neste terreno torna-se permitido oscilar entre as verdades da imaginação. Portanto, o resultado do meu trabalho é pura trapaça. Eles prometem, mas nunca vão cumprir nada, pois a Arte é por si só. Tem coerência interna própria. A validade de minhas telas só terá respaldo se cada vez que elas forem interrogadas, elas se alterarem, pois, em Arte, não é necessário saber onde é a porta de saída. O que produzo são espaços onde as imagens positivas se encontram com aquelas do “fundo”, negativas, para tornar-se um conjunto entre a esperança e o medo. Para que isso ocorra descobri que tenho que tirar da boa energia a luz que ilumina minhas profundezas. Isso significa conectar todos os circuitos da minha televisão pessoal. Meus trabalhos são como projetar meu próprio filme para mim e é feito buscando mais e mais sensações da vida. Sei que com a morte, fatalmente seremos esquecidos e para isto, (como se fosse consolo) já recebemos até a designação bíblica: sal da terra. Não creio na vida após a morte e não quero ser sal nenhum. Então, imagino criar documentos, no engano de querer me fazer eterno. Lanço garrafas ao mar. Registro tudo, para assim me registrar. Produzo como se fosse um servi14


çal de cartório. Torno-me escrivão toda vez que me proponho a criar. Associo coisas simples tentando balbuciar novos símbolos. Faço um diário, criando um ‘Gabinete de Curiosidades”, onde o absurdo, o grotesco, o casual e o abominável pretendem ludibriar o cotidiano. Tudo não passa de um grito de naufrago, um registro de bordo, que carrego enquanto viajo, aqui, pela vida. São anotações, documentos de toda a ordem e espécie. Aproprio-me de algo, fragmento-o e reestruturo-o permitindo que esse disfarce seja a própria realidade. Recorro aos grandes temas sociais, mas envolvendo as realidades descritas numa auréola de estranheza, crenças e rituais lendários, que bem podem estar na origem de uma nova mitologia visual. Pretende-se sempre que a imaginação seja a faculdade de formar imagens. Crio imagens canibalizadas numa tentativa reorganizadora e reconstrutora. Bachelard afirma que o estranho é a faculdade de deformar as imagens fornecidas pela percepção. É sobretudo a faculdade de libertar-nos das imagens primeiras, de mudar as imagens. Se não há mudança de imagens, união inesperada das imagens, não há imaginação. Para ele (Bachelard) se uma imagem presente não faz pensar numa imagem ausente, se uma imagem ocasional não determina uma prodigalidade de imagens aberrantes, uma explosão de imagens, não há estranhamento, não há imaginação. Pois o vocábulo fundamental que corresponde à imaginação não é imagem, mas imaginário. Comungo com a teoria de que a vida é cíclica. Estamos presos à lei do eterno retorno. O que é estranho hoje deixa de ser amanhã e vice versa. A cultura não é estanque e a beleza da arte é esse questionamento de valores, a proposta de novos caminhos e desvios. Arte é antes de tudo audácia, coragem para chutar o balde, profanar o status quo vigente. É a falta de regras, é transposição, é transgressão de limites. É destruir e construir o estranho, incessantemente.

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É uma tendência do pensamento contemporâneo, dar nome aos bois, compartimentar tudo, decifrar e dar o caso por encerrado. Formalismo. Tudo sabe, tudo explica. Mas será que na arte isto funciona também? Há uma linha de pensamento que acredita que sim, e eles criam teses. Eu acho (ele acha) que não, pois em arte, basta você atingir algo novo para que ele se torne velho e você tem que partir para uma outra e mais ousada proposta. Nada se explica, nada é definitivo. E é o estranho a arma renovadora que nos impulsiona para seguirmos em frente. Leugim Ojitnog

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RES NULLIUS *

* Coisas de ninguém


Como são frágeis e perigosas as nossas memórias. Talvez seja a fugacidade do tempo prolongado. Minha mãe era uma mulher de poucas falas, raramente a ouvi cantar. (éramos um pouco parnasianos.) Não consigo entender porque, sempre que ouço a música “Whatever will be will be”, cantada pela Doris Day, sinto-me transportado para dentro do filme. Estou de robe de chambre vermelho, minha mãe preparando minha cama, saia rodada (coisa de pequeno príncipe). Vivo essa cena como se fosse um ator e ela é muito densa nessa minha memória de homem velho. Já culpei meu romantismo exacerbado, já culpei minha memória (ou a falta dela), já culpei minha mãe pela sua seriedade, já culpei a mídia da década, já culpei Hollywood, já culpei os cambaus. A música pergunta em sua letra: “se haverá arco-íris dia após dia”. _ Há! no cérebro. Cada vez com cores mais intensas e ... indefinidas. É triste! Já começo a crer que a culpa é do Hitchcock, um homem visionário que sabia demais, a ponto de subornar minha história pessoal.

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572 Ouvi a notícia que o trem havia descarrilado e sua cabeça capotou dos trilhos. Era apenas uma notícia na manhã. Fui vê-lo porque todos iam. Vendo-o, senti uma estranha comoção. Era como se deparasse com um animal pré-histórico recentemente morto. A sedução dessa imagem apossou-se de mim revelando uma profusão de eixos, êmbolos, parafusos, rodas, formas e cores imprevisíveis, que impregnaram os meus olhos virgens. Pessoas andavam em torno. Sons por todos os lugares. Sondavam como fazer esse animal reagir e tomar seu curso sobre os trilhos. À tarde chegaram os cavalos, bois e uma leva dos mais fortes homens para levantar o trem. Os músculos dos homens e animais retesados, pareciam capotar das carnes úmidas ao tentar colocar de pé esse monstro. Na paisagem: cheiro de óleo e suor, vôo de pássaros, latido de cão, terra lascada, galho de árvore, vento espalhado. Sons não eram palavras, mas facilmente traduzidos pelo ouvido. E a locomotiva continuava quieta, empacada, no seu leito de estranheza. Dentro de mim queria-a ali, daquela forma, sempre. Coisas do coração. Desde que nasci o trem passa resfolegando e apitando no seu eterno cotidiano sobre os trilhos e agora ele tomava conta de todo meu espírito, despertando desejos incontroláveis, brotados de não sei onde. Desejo deslocalizado. Todo meu corpo era estímulo, misturando apelos e desejos. Via a máquina por um ângulo, onde meus olhos jamais pensaram ver. Via todas as cenas por baixo e pelo avesso. A luz da manhã maquiava as fuligens negras. O brilho cortante do metal polido pelo mo23


vimento das rodas sobre os trilhos pretendia-me cegar. Cegar pelo excesso de ver. O olhar fugiu pelo interstício dos objetos e as palavras para denominar o que é belo, definharam. A cena sobrevive por si, guardada em mim. Nas noites de insônia, o barulho do trem noturno era uma forma de tortura. Era como se este som me encaminhasse a uma terra de ninguém. Ao limbo. O resfolegar do trem crescia lentamente e parecia formar um círculo em volta de minha casa, sendo minha cama o centro do mundo. Prestando atenção na monotonia dos sons, ficava a imaginar que o trem era um oásis de vida perambulando mundo a fora. Imaginava pessoas, criava personagens, assentava em um vagão imaginário e fazia fantásticas viagens onde era sempre o mocinho, o galã, o herói. A locomotiva apitava sempre no mesmo lugar. Soava como um aviso. Grave e constante rondando a noite. Todas as noites, ad infinitus, pensava. Foi assim que descobri que a terra era redonda. *** Meu tio identificava os números dos trens pelos seus apitos. Nunca errava. Faziam apostas dos seus prognósticos e sua lenda cresceu pelas redondezas. Era um homem travado, empertigado. Conhecia todos os horários dos trens e fazia questão de sempre resmungar os minutos de atraso, como se fosse o comissário responsável pela ordem pré estabelecida. Gostava de citar rotas dizendo o nome de infinitas cidades, como que se recitando estes nomes ele fugisse para um lugar só dele, longe dele. Além dos trens ele tinha obsessão por relógios, canetas e válvulas de descarga. Fez promessa, que no resto de sua vida, seria sempre o último personagem da fila da procissão do Senhor morto. E, com isto, tornou-se lenda. Todos os anos ficávamos contritos a ver o Cristo sob o pálio, a banda de música, Nossa Senhora das Dores de capa preta e apunhalada, Verônica a entoar no silêncio da noite, gente, gente, gente formando trilhos sobre a rua e no fim dos trilhos de gentes contritas, a uma certa distância, ele, solitário e cabisbaixo, competindo em sucesso com o 24


Cristo morto. Um ponto final naquele fio de gentes. O motivo da promessa era segredo. Talvez nem ele soubesse e a vida transcorreria deslizante, se um outro personagem não resolvesse a copiar sua promessa. Impasse. Nunca numa mesma procissão poderia ter dois últimos. Houve mal-estar, até princípio de briga, pois ninguém se atrevia a dar o primeiro passo de recuo. Dizem que o padre interferiu, não sei. Certo é que nos dois trilhos da procissão passaram a caminhar, em par, preocupados em se manterem alinhados, os dois últimos das filas. Tio nunca tirou o terno nem afrouxou a gravata. Jamais descarrilou e ficou com as rodas para o ar. Quando morreu ficou a citar o número 572. Era como se escutasse um trem. Olho congestionado e um esforço de atenção concentrado: 572, repetia, repetia. Nesta época os trens não existiam mais. O 572 era um reboque de carga, explicaram-me, depois *** Não sei se a cabeça capotada dos trilhos era a 572. Hoje, tentando precisar essas informações, percebo que o acidente com o trem representa quase nada para as pessoas que comigo o vivenciou. Se em minha cabeça isso é um universo de informações, noutras, esvaneceu. Minha história não é representativa de uma categoria, como em geral se faz nas amostragens ou nas entrevistas sociológicas. Digamos, são confissões de uma não-história. Tornei-me um estudioso de ausências, desenvolvendo uma solidariedade intelectual caprichosa e fantasiosa. Um personagem sem nome, nem lugar, nem sangue. Como nada em mim é preciso, foram necessários anos para que esta locomotiva se inventasse em mim, adquirindo força de se desenhar como membros provisórios e universal nesses escritos. Acredito que apeei de uma locomotiva (de número 572) e começo esta autobiografia 55 anos após meu nascimento, levando em consideração que não há outros paraísos a não ser os paraísos perdidos. Isto que escrevi não é meu. É do Borges, que de vez em quando, vinha tomar cachaça no alambique de meu pai e nos ensinar a pronunciar corretamente o espanhol e que muito me incentivou a redigir esse texto, que agora proponho. 25


*** Voltando a locomotiva capotada, nenhuma tentativa de juntas de bois/homens/cavalos surtiu efeito para endireitá-la. Ela estava plantada, exalando um forte cheiro de graxa, quando vi aproximar uma volumosa senhora. Seios enormes, bicos intumescidos, a cintura mínima sobre a largueza dos quadris, um suor doce e acre, as unhas dos pés pontudas e acintosamente pintadas de escarlate. Veio visitar a locomotiva, vestindo-se para o evento e expondo suas carnes, que humilhava meu sexo quase sem pelo, acoitado dentro das calças. Parou na paisagem, mãos na cintura, pernas levemente abertas, bunda na minha cara, a poucos centímetros, atrapalhando-me a visão do acidente. Não sei como começar a contar o que me aconteceu, só sei que foi inesperado e rápido. Num movimento gracioso com os quadris, sua mão encostou entre minhas pernas. Antes que pudesse esquivar a cena se repetiu. Ela havia tocado no meu único e mais íntimo segredo. Seu olhar ávido - azul talvez! - acenou-me acentuando ainda mais a minha timidez. Ela se afastou com um agradável aroma Cachimir Bouquet, provando que os extremos da realidade são feitos de ousadia e pó-de-arroz. Neste momento vi os primeiros sinais do trem readquirindo vida. Meneou, mas voltou para o seu leito de morte, enquanto a mulher amalgamava na paisagem, fundindo-se em um turbilhão de cores. Foi então que descobri que a sua mão ficou esquecida em minha calça, pregada a braguilha, costurada. Uma mãozinha em forma de luva, alva, cor de lua, contrastando com minha calça azul céu. (Juro!... a mãozinha era almofadada por dentro.) A outra mãozinha, gorda, cheia de furinhos nas juntas, foi embora com a dona acenando-me adeus. *** Na noite em que tentava despregar a mãozinha atada a minha calça, ouvi gritos a furar a madrugada. Pensei, em primeira hipótese, ser um brado de alegria de alguém avisando ter a

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locomotiva ressuscitada sobre seus trilhos. Em segunda hipótese, meu instinto deduziu que os gritos eram de terror. E eram. Nessa noite aconteceram duas cenas de suicídio. Uma aqui, nesta ponta dos trilhos, outra lá, na outra ponta, num lugar só da minha imaginação. A desta ponta dos trilhos, quem suicidou foi a dona da mãozinha. Tinha tentado várias vezes e finalmente conseguiu morrer por asfixia. Teve um desfecho singular. Enfiou o rosto numa bacia cheia de talco. (Hoje, quando toco os dedos na superfície acetinada do talco sinto que, a todo e qualquer momento, a vida está por um triz.) Morreu perfumada por dentro e abandonando comigo sua mãozinha almofadada. Enquanto ela se deliciava no desespero cheiroso de seu suicídio, lá na outra ponta dos trilhos, o presidente do país punha fim na sua vida com um tiro no peito. Pela manhã sua foto estava alardeada no jornal e em detalhe seu pijama listrado de azul e branco com um furo adornado de vermelho. _ Igual ao meu pijama! mostrei a foto ao meu pai. Ele nem olhou, pois estava preocupado com o rumo que o país pudesse tomar. _ Igual ao meu pijama! mostrei à minha mãe, indiferente dando corda no despertador. _ Igual ao meu pijama! mostrei à vó caduca, que olhando fixamente, apontou com seu dedo ossudo o furo ornado de vermelho e disse: _ Igual! Esta é uma história que tento remover da minha mente como apavorante e atroz, mas que não se cancelou e por isto ainda fermenta e se decompõe em algum cubículo da minha alma, e de onde escapa de noite para torturar-me e vem a soprar-me nos ouvidos algumas bem aventuranças. ***

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Devido ao acidente, estando os trilhos interrompidos, o trem de passageiros teve que fazer uma parada obrigatória na cidade. Ainda aparvalhado com a morte da gorda senhora, percebi as ruas serem invadidas, lentamente, por estranhos visitantes, aglomerando nas portas do hotel e nas cadeiras do único restaurante da cidade, que teve que permanecer aberto por toda noite, alterando sua rotina de monotonia. Pessoas silenciosas e sonolentas assentadas em grupo pelas mesas a olhar a rua mal iluminada. Da minha janela eu os observo. Em uma das mesas há um garoto com uma calça igual a minha. Camisa igual, sapato igual, cara igual ... percebo com pavor. Ele me fita e eu também. Até a mãozinha da gorda semimorta estava presa à sua braguilha. Imaginei primeiro ser pesadelo. Não sendo, então, não estava em frente a um espelho? Mexi o braço num aceno e percebi a imagem quieta. Era eu sem mim, do outro lado da rua e em sua mesa estava minha mãe, minha irmã e minha vó caduca. Só não estava meu pai. Com uma sensação de breve loucura, corri pela casa procurando pelos seus habitantes. Todos estavam ali, guardados como em caixas. Até meu pai, com seu gesto peculiar de ocultar na barba a mão que tinha um dedo decepado, (cuja ferida não cicatrizava e jorrava uma salmoura vermelha lhe sujando o colarinho) estava ali, ajeitando o baralho sobre a mesa, numa última tentativa de vencer a sorte nas cartas, antes de ir dormir. Chamei-os para ajudar-me a certificar minha sanidade. Todos vieram. Um a um, colando seu rosto na janela e observando seu par lá fora. Vó caduca apontou seu dedo nodoso desacreditando no que via, enquanto a outra vó - a lá de fora - contava ao seu neto a história de uma bruxa que come um mostro e um monstro que come um menino e um menino que come... (já nem me lembro o que ou quem o menino comia.) Era aquilo uma alucinação coletiva? Apenas meu pai não encontrou seu duplo. Ele percebeu logo e assim que o olhei, querendo que ele desvendasse o mistério, pousou sua mão com o seu dedo decepado sobre meu ombro, num gesto de aconchego, 28


impedindo-me de formular perguntas. Segurava o baralho que lhe fazia companhia a mesa e organizava calmamente as cartas entre os dedos, uma sobre as outras, sem arestas, quinas com quinas, apreciando a sedosidade do papel a deslizar sobre si mesmo. A vida é uma história breve e louca e a cada noite se acelera feito um furioso jogo de truco, jogado cada vez mais rápido por impetuosos jogadores. *** Embora, como já disse, não tenho certeza qual é o número do trem descarrilado, passarei a denominá-lo de 572, como homenagem ao meu tio. Mas sobre o aspecto fictício desta história, para que denominá-lo? Que todos os fatos aqui narrados são reais, eu lhes garanto. Mas nenhum deles tem um corpo definido. Imitar e recriar, rigor ou prazer, pertencer e possuir constituem peleja sem solução. A morte indecifrável reorganiza-se em vida, sem nomear e identificar nada. O 572 deslizou sobre os trilhos enquanto houve trilhos e trens e desliza, agora, da mesma forma nesta minha história. Pessoas descem nas plataformas e sorriem. Retomam seus lugares desconhecendo seu rosto no espelho do meu olhar. Vezes penso que a vida é livro e escrever é tão só copilar e ordenar e que os livros estão sempre se reescrevendo, sozinhos, amedrontados com a possibilidade de um ponto final. Meu pai era Juiz de Direito. Não era um juiz de dedo em riste, pois a vida já tinha lhe decepado o dedo. Chegou nessa comarca vindo em um trem. Já chegou com a barba e o colarinho sempre manchado da salmoura do seu dedo. Não teve tempo de ser um anônimo. Foi recebido com banda de música e fogos de artifício. Enquanto os fogos de artifícios explodiam na plataforma da estação, Hiroshima e Nagasaki também explodiam. Mas, isto é uma outra história. No extremo de uma das pontas dos trilhos fica a história de meu pai com seus parentes e na outra, Hiroshima e Nagasaki 29


e aqui, as nossas histórias costuradas nestes escritos. O dedo de papai é uma espécie de trilho que me liga a uma história que não conheço. Uma Hiroshima e Nagasaki particular. Casou-se logo com minha mãe. Fizeram amor e eu fui fecundado no ano em que descobriram os antigos “Manuscritos do Mar Morto”. Nas cavernas, assim que deram de cara com as cerâmicas que abrigavam os milenares documentos, meu pai teve seu orgasmo. Mas, só no ano seguinte, quando um tiro acertou Gandhi, eu chorei pela primeira vez, descavernando-me do útero de mamãe. Foi neste ano também que foi exposto publicamente a teoria do “Big Band”. Mas, isso todo mundo sabe. O que ninguém sabe é que nasci fadado a ser Menino Jesus. Nasci para salvar minha mãe do enfado da vida e transformar meu pai em Clark Gable e ela em Vivian Leigh. Não consegui. Minha mãe era canhota e eu também sou. (Hoje em dia não existem mais pessoas canhotas nem ruivas.) Minha vó e eu somos ruivos; mamãe e minha irmã, não são. Estranhos os caminhos da vida. Esta história não deveria ser escrita. Muito surreal, muito desconexa. Meu pai, em um acidente, perdeu seu dedo indicador da mão direita, que o impede de ter uma caligrafia legível. Eu, sem acidente nenhum, herdei esta falta do dedo, só que na mão esquerda. Nasci assim. Porém, você deve lembrar, sou canhoto, tal qual mamãe. Incomodo-me escrever histórias de maneira surreais. Vácuo sobre vácuo. Mas assim a vida me foi dada. Não é porque posso ler, escrever e fazer algumas contas, que mereço desvendar os segredos do universo. Paciência! (mas bem que queria!) Quando bebê, a primeira palavra que falei foi: - Isso. Apontava o dedo para as coisas e dizia: Isso. E as pessoas levavam-me até as coisas. _ Isso!... e ia.

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Com o dedo sempre em riste fui nomeando coisas, produzindo meu paraíso terreal, até o dia em que, não sabendo onde apontar ao ouvir o apito do trem na curva, disse – isso, desnorteado, sem precisar das mãos. Neste dia, fui sozinho a este encontro do apito. E não mais voltei. *** A 572 de minha história era uma Maria Fumaça, pois tinha caldeira. Negra, plúmbea, pesada. Fui aproximando dela lentamente. Atraído. Seduzido. Na sua origem deve ter sido verde. Caldeira verde. Um pulmão a bufar fumaça quente, - fui tirando conclusão. Aproximava devagar, estudando possibilidades e quando mais aproximava mais o cheiro aferroava o nariz. Não era mais o cheiro da graxa. Era cheiro do inferno, uma mistura de fósforo e enxofre colhidos em forma de cera do nariz do demônio. Era e imagem moderna do dragão, das serpentes e dos monstros. Ali, ao toque dos meus dedos, era a Medusa, decapitada. (e era Golias e eu David sem bodoque?) Por certo, de tanto vê-la fumegar no cinema, apinhados de esquálidos judeus, fantasia e realidade se misturavam e, certo, já estive também embarcado num destes trens, em estepes geladas, num vagão fedido a merda e mijo, indo definitivamente para um lugar cinza e desconhecido. Agora, ali, dragão tombado, sabia que a qualquer momento ela iria readquirir vida e me levar junto, pensava, trapaceando-me. Sou posterior aos trens nazistas, não sou judeu, mas sou circuncidado. Talvez esteja aí a chave da mãozinha almofadada presa na braguilha a denunciar-me uma indefinida aliança secreta. Se em minha frente a 572 jazia inerte, atrás de mim o enterro da mulher de mãozinha almofadada passava despercebido. 31


Iria ser enterrada fora dos limites do cemitério, pois uma suicida não podia misturar-se com casta de almas mais nobres. Em vida essa senhora tocava acordeão com suas gordas mãozinhas. Assentada no alpendre, fim de tarde, tocava “O Crepúsculo dos Deuses”, de Wagner, até a exaustão. Menos as sextas feiras, quando lhe aparecia um diabo e puxava uma conversa venosa. Era um demônio jovem e bem apessoado. Fedido, claro! como convém a um bom diabo; mas que, em todas as banheiras da cidade, lavava suas entrepernas e perfumava-as com talco. Provavelmente este diabo seja o informante de tanta sabedoria que esta senhora possuía. Era a conselheira da redondeza. Dizem que certa feita o seu “diabo” lhe presenteou com uma cópia do “Grande Livro”, de São Cipriano, escrito com a pena molhada no sangue de um pombo-correio. Guardou o manuscrito envolvido em papel alumínio, para não perder o encanto. Alguns dias depois do seu enterro soube que ela deixou este livro para mim. Quem sabe encontraria ali a fórmula de despregar sua mãozinha costurada em minha braguilha? Não encontrei resposta. O que mais me atraiu no texto foi a passagem em que o autor ensina como adquirir poderes artísticos. O livro recomendava que se expusesse a lua dois olhos de leões, fresquinhos, arrancados a luz da lua crescente, banhado na urina de quem solicitava estes poderes. Mas isto é muito difícil, pois, por estas bandas não há leões. E eu nem sequer pude me testar artista. Tentando desprender a mãozinha da minha braguilha, senti o fedor que dela já começava a emanar. O mesmo fedor da cera do nariz do diabo, que exalava da 572. Ardido, ferroso. Porém, ocasionalmente, meu cérebro me trapaceia e acabo sentindo o perfume Cashmere Bouquet. *** 32


Depois que meus familiares foram dormir, cansados de verem suas imagens emancipadas nas mesas do bar em frente, ainda fiquei a janela, a observá-los. Numa mesa, só, abandonado no canto do bar, um homem, barba ruiva, branco amarelado, olho perdido, fumava seu cachimbo. Ele, achando-me através do vidro, põe-se também a me olhar. Ele não tinha uma orelha e estava sujo de tinta, o que denunciava a sua profissão. (Que aspecto teriam as coisas se não se tivesse apreendido a ver cavalos como cavalos, casa como casas, trens como trens? Vemos através das convenções. Através da ponta do dedo que, ao apontar, faz a boca exclamar: “isso...isso.” Agora, eu, através do vidro do meu quarto, aponto rostos nomeando-os.) O pintor, a cachimbar na mesa à frente, estava em eterna viagem à procura da cor. Era atraído pelo sol e pela paisagem em movimento. Por isto passou a morar nos trens e o mundo era um enfado nas noites ou em situações como esta, apeado em estações obrigatórias. Cumprimenta-me. Com certeza ele acreditava que a janela era uma moldura e eu um cromo, preso atrás do vidro. Eu, O astro principal do “Almagesto”, acabado de ser reescrito por Ptolomeu. _ Saúde! Li nos lábios do homem do cachimbo, levantando o copo em minha direção. Desviei os olhos, evitando intimidades. *** O dedo amputado de meu pai estava acondicionado dentro de um vidro de formol, sobre seu criado mudo, ao lado da cama, antes, muito antes da descoberta dos “Manuscritos do Mar Morto”. Cor amarelada, alguns fiapos de carne haviam se desprendido turvando o líquido. Meu pai dormia com o dedo no criado ao lado. Dedo crepitante, fedendo a morrinha e ornado com incensos 33


que minha mãe acendia. Era um troféu. Troféu do nada. _ Mindinho... Seu Vizinho... Pai de Todos... e fazendo cara de pasmo apressava-se para o Mata-Piolho, rindo e assim explicando a ausência do Fura-Bolo. Na noite em que nós nos assistimos assentados à mesa de um bar, papai foi dormir sem se despedir. Com certeza preocupado com a ausência de seu reflexo. Mas, conforme ele relatou, dormiu rápido e teve um sonho desesperador. Sonhou que seu dedo brotou. Só que não nasceu apenas o dedo que faltava. Sua mão floresceu em primavera. Vários dedos. Num gesto brusco para se despertar, esbarra no vidro de formol, que se alardeia no chão. Atraídos pelo som invadimos seu quarto e papai estava com o dedo no colo, acalentando-o como se fosse um bebê. O chão, molhado era sêmen, era lava. O quarto é invadido por feroz cheiro. Cheiro de cera colhida no nariz do demônio. A partir deste dia meu pai disse NÃO. Negou suas leis, a sociedade, a Deus, a moral, a natureza e o homem. Nega a si próprio e desaparece por trás de sua gigantesca negação. O que tem o dedo amputado de meu pai com a decapitada cabeça da 572? Tudo ou nada. Apenas trilhos além de mim. Um espaço onde meu desejo passa a me inventar em um outro corpo: o dele. ***

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O capotar do vidro de formol no quarto de papai me fez perder o sono A lua estava cheia no céu e podiam-se avistar as manchas que delineavam São Jorge e o dragão. Com as palmas das mãos coladas ao vidro da janela do meu quarto, não vi quando uma mulher se aproximou. Pela roupa era uma cigana. Fez sinais para que abrisse a janela e achei melhor ignorá-la. Ela insistiu. Talvez precisasse de informação. Ao abrir ela aproximou e segurando minha mão foi dizendo: _ Vi sua mão à distância e quis logo me certificar. Menino estranho! Em vez da linha da vida, tem uma série de linhas interrompidas. Como um riacho que encontra uma pedra e começa a correr de novo um metro mais à frente. A linha de alguém que deve morrer várias vezes. Recolhi a mão assustado. No susto, meu coração parou por segundos, renascendo em seguida colorido de adrenalina. E uma nova linha, como um cometa, traçou em minha mão uma nova rota. A cigana chamava-se Amparo e pertence a uma outra história. Encontraríamos, novamente, mais tarde, em minha vida. *** Meu pai me perguntou de quem era a mãozinha almofadada que começava a definhar, costurada em minha calça. _ Da suicida, pai. Não tem pra onde devolvê-la. _ Então, descosture-a, que eu me encarrego de enterrá-la junto ao corpo. _ Não consigo. Tentou ajudar-me, mas também não conseguiu separar o cerzido da trama do tecido. A solução encontrada foi passar a usar a calça pelo avesso. 35


E assim, per secula seculorum, eu e minha calça pelo avesso fomos muito e muito felizes. *** Iniciaram as manobras para colocar a 572 nos seus trilhos. Movimentos sincronizados, precisos. Máquina, animais e homens num balé de mesuras, contrapondo força e suavidade, sincronismo e até volúpia. O monstro se ajeitou sobre suas rodas sob ovação. A rotina é retomada, a ordem readquirida. Os passageiros dos trens interrompidos retomaram seu entusiasmo e assentaram em seus lugares, aguardando. Todos os olhares eram de adeuses. Os que ficavam e os que partiam procuravam as mais delicadas filigranas de cor para guardá-las de lembrança nos olhos. _ Saúde! Levantou o copo, o pintor assentado a janela do trem, na tarde amarela e escaldante do verão. A caldeira da 572 resfolegou e alguém gritou: Êiáaaaaaaaa Êmbolos, rodas, engates, soltaram metálicos gemidos de vida, iniciando a manobra para desobstruir a passagem. E os trens espreguiçavam-se nos seus trilhos. Foi então que vi, ao lado do pintor, a mulher de mãozinha almofadada, dando-me adeus. Se ela estava morta - juro! - como é que pode? Ela, empoada de Cashmere Bouquet, dando-me adeus. Para meu espanto, lá dentro estavam os duplos de mamãe, vó caduca, minha irmã, numa sucessão de adeuses. _ Adeus! gritou mamãe. _ Adeus! disse meu tio assim que o trem apitou. Perguntei-lhe se iam me escrever. Eu quis dizer cartas para mim, mas eles entenderam livros, por isso estou escrevendo. 36


_ Adeus! disse o velho Borges, colocando as mãos em concha na boca e dizendo: - Só o que morre é nosso, só é nosso o que perdemos. _ Adeus! disse a cigana. _ Adeus! apitou a 572. Silêncio. _ Você não acha feio um garoto a chorar na rua? Seja homem! Vamos para casa, disse meu pai pousando sua mão no meu ombro e me salvando da plataforma vazia. No trajeto para casa relatei a ele que queria partir. Ele disse o que sabia: - Não! Agora éramos só eu e ele e como ainda legislava na comarca e não tinha o Fura-Bolos, quem escreveria para ele suas sentenças? Eu. E deveria aprender a usar a mão direita - o que é o correto - já que de formas opostas nossos aleijões eram iguais. _ Quero ir! resmunguei. Silêncio. Quem jamais subiu em um trem, jamais viveu. Vegeta no plano. A terceira dimensão, a do sublime, lhe falta. Por serem os trens lugares quase sobrenaturais, quase teoria, estar neles são situações de limite. Um decifrar-se e não um resolver-se. _ Quero ir! Silêncio. À noite pai foi me visitar na cama. Tudo estava deserto. Ele só me olhou. Eu fingi que dormia. O mundo agora era uma tábua de bater bife. Carne sendo aberta conforme necessidades, alisando e espichando as reentrâncias da vida. Mundo estreito, comprido, liso. Céu, terra, mar, tudo uma só peça que aproxima, afasta, ajeita, contidos nessa tábua de bater bife. Nenhuma ida cancela a volta. Fingia 37


dormir com o meu pijama igual ao do presidente. Minha mãe passou-o carinhosamente para mim. Lembrei-me da procissão do Senhor Morto e prometi a Ele, se me levasse daqui, seria sempre o último da fila. Então, nos silêncios, Sr. Lewis Carroll aproximou-se: _ Agora está sonhando. Com quem sonha? Sabes? _ Não. _ Sonha contigo. E se deixasse de sonhar, o que seria de ti? _ Não sei. _ Desaparecias. És uma figura de um sonho e se despertar, tu te apagarás como uma vela.

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ACHADO “O Senhor me possuiu no princípio de suas obras, antes de suas obras mais antigas... antes de haver abismos eu nasci, antes de haver outeiros, eu nasci. Quando Ele preparou os céus, eu estava lá. Quando traçou a geografia sobre a face do abismo, quando firmou as nuvens na região etérea e quando fixou os limites do mar, eu já estava lá.” (Provérbios VIII 22-7) Não me pergunte como Guernica apareceu recostado na parede do nosso barco. Não cansava de vê-lo e, cada vez apaixonar-me mais e mais, daquele quadro pintado em preto, branco e tons cinzas. Imagens se integrando como um forte grito de choque e dor. Ficava assentado em sua frente, admirando o vigor e o movimento das figuras, extasiado, entorpecido e comovido. Alguns cabritos saltavam ao seu pé, enquanto uma pomba estúpida fazia de poleiro a trave superior do quadro. Em vão tentava espantá-la e ela circulava a sala e sem onde pousar, voltava para o mesmo local. Quando começou a chuva, Noé recolheu-se num canto e em vez de sentir-se vitorioso por ver efetivado sua profecia, estava triste, olho de medo e indecisão. Olhava vago para a tela em nossa frente, sem saber ao certo, se o quadro estava ali com um propósito específico, ou se, no desenrolar da história, caberá a ele uma utilidade ainda não definida. Na sua barba pude reparar uma ligeira dança de piolhos, compondo essa barca ecologicamente armada para a preservação as espécies.

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A barca tremeu descolando-se do chão. Estávamos soltos no mundo, à deriva dos ventos e correntezas. Ainda observamos gentes apressadas carregando víveres em diferentes tipos de barcos, construídos grosseiramente em virtude da necessidade. Relâmpagos, produzindo raios, era a única luz a se manifestar. Entre um estrondo e outro de trovões ouvimos um grito de pavor, intenso e doloroso. Corremos para a sala de onde saiu o som e deparamos com Noé, catatônico, olhando-nos. Pensamos que a barca não tinha dado certo e estávamos a pique e não ousamos perguntar nada. Parados à sua frente, sem saber como agir, apenas olhando nos olhos do nosso anfitrião. Seu semblante foi ganhando expressividade e transformando-se em um semblante de ódio. E ele cuspiu palavras: _ Seus idiotas! Idiotas! Coube a Pedro pedir melhores explicações. _ Vocês não estão vendo, seus néscios? Olhem para vocês, mentecaptos. _ Não, Noé! Não estamos entendendo não. Fale logo. _ Veja o que vocês fizeram: uma barca para a semeadura da terra e nenhuma mulher! Ajuntaram seu grupinho de 12 homens e vieram abrigar aqui, sem mulher. Estúpidos. Agora isso é apenas uma barca perdida sobre todas as águas do mundo, com doze homens atrelados entre si. Idiotas idiotas idiotas. Noé chorou convulso. O ar estava escuro por causa da chuva e gerava fogo pelos raios. Via-se Netuno, com seu tridente, no meio do turbilhão e Eólo rodeado com seus ventos, produzindo ondas imensas. Sons vertiginosos giram como torvelinhos, carregando água, galhos de árvores e homens pelo ar. Granizo, raios, lamentos, chegavam de fora do nosso barco. Escuridão. Ainda dava para ver grandes galhos dos imensos carvalhos, carregados de gentes, serem arrastados pela fúria da tempestade. Muito eram os barcos revirados em pedaços; pessoas se 44


esforçavam por salvar-se, atrelados aos destroços; enquanto outros, com atos desesperados, tiravam suas vidas jogando-se dos altos penhascos ou se esganando com as próprias mãos. Diante de tantas tragédias, deixamos a vida passar. Noé pode ter sido hábil em tudo, menos em calcular a provisão do estoque alimentar. Ou talvez tenha sido correto no cálculo, mas não contou que na falta do que fazer a fome aumenta. Teríamos que traçar uma nova estratégia para fazer durar os comestíveis. Estranho é que, assim que percebemos a escassez dos alimentos, nossa fome acentuou. Agora tínhamos era gula. E essa gula convergiu para o casal de cabritos, que também já passavam fome e começava a comer as beiras da Guernica. Assim, iniciamos o processo de auto devoramento do barco. Primeiro os cabritos, depois porcos, vacas, pacas, tatus, aves. Pedro passava o dia com o anzol jogado nas águas, porém até os peixes estavam afogados. E devoramos a coleção de sementes, que Noé ressemearia o mundo. Depois comemos o rinoceronte, a girafa, o leão, até chegar ao lagarto e a cobra, excluindo do mapa toda a fauna criada pela bondade de Deus. Sabíamos da tristeza de Noé em cada abate, mas ele próprio/, resoluto, sacrificava os animais. Talvez pensando em salvar o mais perfeito ser da natureza: NÓS. Tínhamos o cuidado, antes de cada abate, que Jonas desenhasse a vítima minuciosamente e Noé guardava o papel, criando um arquivo de seres que, por certo, tornariam lendas, ou obras de pura ficção. Algo encabulava o nosso capitão, mais que o extermínio das espécies. Ele passava o dia a observar João, com uma atenção demorada, franzindo os olhos, para melhor ver e ouvir esse dileto tripulante. João era nosso cozinheiro. O mais gentil, dócil e inteligente desse barco. Acatava ordens com prontidão e subserviência exagerada. Era o único que trabalhava rotineiramente. A cozinha funcionava em horário integral e mesmo assim, à noite, rezava infinitamente, ajoelhado, enquanto o sono nos abatia pela nossa falta do que fazer. Percebíamos os olhares de Noé ao seu tripulante favorito. Mas não conseguíamos de45


tectar o porque nem o quê. Quando lhe perguntamos o que lhe incomodava em João, ele restringiu a responder: _ Observe-o! Nada detectamos até o dia que Jonas lançou um gracejo sobre a unha do dedão dos pés do nosso cozinheiro. Eram grandes, pontiagudas, acintosas e vistosamente pintadas de vermelho. João recolheu o pé, tentando escondê-lo. Ruborizou-se e nós rimos. Era ali que estava a ponta do mistério. Precisaríamos seguir a pista e descobrir a verdade que só Noé sabia. Porém, não demorou para que o mistério se revelasse. Alvo de nossas atenções, à noite, a rezar, reparamos uma luz tênue que o iluminava. Luz azul, saída do nada, como um relâmpago que persistisse em não apagar. Lentamente percebemos seus quadris alargar, os seios tornarem-se proeminentes e duros, rijos e porosos bicos. O cabelo cobrirem delicadamente seu ombro arredondado e macio. João metamorfoseou-se em mulher. Seu sexo murchou entre as pernas transformando em uma gruta úmida e profunda. Saído do nada, apareceu um peignoir vermelho, que ele vestiu e, delicadamente, recolheu ao seu catre, adormecendo e esparzindo um hálito doce, que atraia a todos nós. João virou mulher. Nós não estranhamos a metamorfose. E ele (ela) passou a comer maçãs saídas de dentro do seu travesseio e a caminhar com seu peignoir vermelho pelo barco, embalando nossos sonhos, enquanto balançávamos sobre todas as águas do mundo. Quando sugeri que comêssemos a pomba que empesteava a Guernica, Noé mostrou-se aborrecido. Afinal aquela pomba era o vínculo que pretendia comunicar-se com o mundo externo, assim que fosse chegado a hora. Mas a hora, agora, era a fome e o único meio de saciá-la era comer o ser que sobrevoava sobre nossas cabeças. Sentámos em volta da mesa prontos para discutir o assunto. João, prático, lembrou que uma pomba não mataria a fome de ninguém. Nesse dia caçamos a última leva de ratos, que bem lavados e cozidos, nos foi servido com regalo e prazer. E, a partir de então, nós, os vermes, poucos insetos, a estúpida pomba, éramos o que restava do mundo.

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No período da Grande Fome a pomba desapareceu. Noé bramiu furioso e ameaçou enxotar-nos para as águas, agredindo-nos, aleatoriamente, com um cajado de bambu. Todos suspeitamos de todos. Fui eu que a comi, na primeira madrugada em que a fome não me permitia dormir. O período da Grande Fome foi caracterizado por fortes dores na barriga. Contorcemos enquanto esgravatávamos cantos e frestas do barco e devoramos tudo que passasse pelas nossas goelas. (Esse período pode também ser chamado de Período dos Gemidos.) Depois veio o Período do Silêncio. Até as águas ficaram calmas. Acabaram as dores. Agora era um estado de êxtase, de pasmo, de espera. Foi nesse período que Judas morreu. Era o mais frágil, sensível dessa barca de desesperados. Pensamos devorá-lo e vimos prazer em sua morte. Alguns de nós chegaram até a lamber o suor de seu rosto inerte, para sentir o gosto do sal. João recusou a destrinchá-lo. Se não fosse Noé, com uma súbita e imperiosa decisão, forçando-o prepará-lo para a nossa ansiada ceia, ele teria lançado o corpo nas águas. Para que não tivéssemos a impressão de que devorávamos um de nós, Noé cortou-lhe a cabeça, lançando-a fora. Assim ficou mais fácil e João pôs-se a desenvolver a sua doméstica tarefa de lavá-lo e esquartejá-lo. Comemos em silêncio, seguros de saber o que fazíamos. Pena que a carne era adocicada e insossa. A morte de judas acendeu-nos de alegria. Novas esperanças pareciam habitar em nossos corações, se não tivesse iniciado o Período da Calmaria. Os ventos cessaram, nenhum ruído, o mundo estava vazio. Noé levantou de madrugada e ficou examinando um horizonte que não existia. Caminhava lento sobre as tábuas dos nossos quartos. Fui ter com ele, porém não tínhamos o que falar. Ficamos olhando para o nada. O calor era intenso, abafado. João também chegou de mansinho, enxugando o pescoço com um farrapo de pano. Estranho! Observei-o: nós, rotos, sujos, esmolambados e apenas João mantinha-se íntegro, limpo e inteiro. Seu peignoir vermelho estava como se estivesse acabado de ser comprado: perfeito! Nunca amarrotou ou desgastou. Quis perguntar a Noé se isso era milagre. Desisti. João estava acima do milagre. E ele levan47


tou-se e pôs-se nua. Linda e desejável a caminhar pelo convés da barca. Apenas sua silhueta era divisa no pretume da noite. Movia com ritmo e a graça de um flamingo. Crescia em mim desejos inconfessáveis. Noé entrou novamente na barca e João assentou ao meu lado e ficamos sem saber o que dizer. Só tinha desejos e os desejos transformaram-se em angústia e indecisão. Escapavam dos seus seios um cheiro doce e sensual. Para que ocorresse algum idílio entre nós, sentia que faltava alguma coisa. Algo assim como lembrança de mãe, cheio de pó de arroz, gosto de mingau de fubá... Sua cara lembrava-me incesto e estava perdida num canto desconhecido da minha memória. Mesmo desejando-o qualquer aproximação seria insossa. Noé reapareceu envolto num imenso pano a nos pedir ajuda. Ele tinha despregado a Guernica do chassi e iria transformar a lona do quadro em uma vela para o barco. Era uma tentativa de atenuar a calmaria e fazer o barco a se locomover. Só então percebi a função desse quadro, nesse barco fedorento de bolor e suor. Furamos as laterais da tela e amarramos as cordas içando a pintura aos ares. No escuro da noite a vela gritava por socorro no meio das águas e a barca moveu lentamente rumando no breu. Felizes, abraçamo-nos. Percebi que minha mão estava descansada no peito rígido, volumoso e perfeito de João, reascendendo desejos. Sabíamos que faltava algo nessa tesão contida e medrosa. Noé pediu que descêssemos e fossemos dormir. Não sei qual a sua intenção. Obedecemos. Assentados nos nossos catres, um frente ao outro, reparei que João lembrava-me alguém, que não sabia quem. Ficamos olhando, acabrunhados, como dois adolescentes. Nossos colegas dormiam pesado. Desvencilhando da situação e querendo ver Guernica embandeirada nos céus, olhei pela escotilha. Ainda chove. Coloquei um disco – Singing in the Rain - a todo volume e cantei e dancei junto, alto, acordando a todos. e a barca caminhou soberba rumo a terra Então, descobri o que faltava: João era a cara de Doris Day e eu era Genne Kelly cantando sobre os Alpes suíços, tendo a letra do nosso canto traduzido no roda-pé das águas.

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I’m singin in the rain Just singin in the rain... __________________________ Tradução: What will be will be Now I have children of my… Ao aportarmos chegamos no paraíso terreal: região de eterna primavera, onde a vida brotava em perpétua pureza. Inocentes, a cada lugar conferimos um nome e a sucessão de nomes era também a crônica de uma gêneses, que se confundia com a nossa viagem. A cada visagem dávamos o nome do santo do dia. Deus tinha encarregado de preservar tudo: no meio do verde, gentios nus confundiam com animais em profusão. Antes de batizarmos esses gentios, batizamos a terra encontrada. Dessa forma o Brasil foi criado. Assim, apenas nomeando, tomamos posse dele como se fosse virgem. Let’s start at the very beginning A very good place to start When you read you begin with A-B-C When you sing you begin with do-re-mi

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NA CAMA QUE SE NASCE, MORRE Quando nasci meu personagem já estava pronto, atuando em seu palco. Um louco. Manso, inofensivo. Vivia da caridade da cidade. O que definia a sua loucura é que ele se recusava a trabalhar e a se banhar. Estava sempre fedido, ensebado. Tinha casa herdada dos pais. Não pedia e sempre aceitava o que lhe davam. Orgulhoso, altivo, empinado. Embora tivesse ficado órfão muito jovem, ele nunca se sentira abandonado, pois a cidade sempre ecoou diversas vezes em sua cabeça. A cidade foi mãe, pai, professor e amante A lenda dizia que foi estudado e que já foi professor. Mas isso era só lenda. O que se sabe é que a cidade fez dele um erudito. Desvendou todos os tratados que se escondem por detrás das caras feias dos seus moradores. Leu e decorou mil poemas inscritos no horizonte vasto. Com a alma sem máculas entendeu a linguagem das calçadas e passou a conhecer todos os caminhos secretos das fendas dos paralelepípedos e sabia ler charadas em esquinas enfileiradas. Aprendeu a ler o vento e era capaz de reconhecer a voz de cada estrela no céu. O planeta Vênus era seu amor e ele descobriu os sinais de seu amor correspondido nas pedras fora dos limites da cidade. Quando se formava uma multidão sabia como ninguém desaparecer escondendo no seu meio. Ele não almejava imensidões desimpedidas. A cidade era repleta de vozes a lhe dizer para nunca fazer concessões a ninguém, apenas servir às estrelas, à lua e às árvores. 53


Esse desapego do mundo teve início quando bateu à porta da casa paroquial e procurou obter informações sobre um missionário, cujo nome ignorava, mas cuja vida sabia de cor. Alterou a voz, aflito, dizendo ao padre, que esse missionário morreu em Jerusalém em 725 e precisava do nome dele urgente e se não soubesse que lhe indicasse fontes para obter a informação, que lhe atormentava. Não sabendo responder o padre fechou a porta, nervoso, mandando-o embora. Foi e nunca mais entrou na igreja. Desse dia em diante enfiou as mãos nos bolsos do paletó e raramente alguém via suas mãos de unhas longas e sujas. Conta-se que o padre o excomungou e que seus dedos mindinhos se transformaram em polegares, de modo que cada uma de suas mãos poderia ser esquerda ou direita. Hoje, acredito, que sua loucura era uma opção de vida. Abandonou os rigores sociais e submergiu na mais pura simplicidade. Acoitou-se na poesia quando percebeu que sua percepção de mundo estava abalada e corria o risco de desaparecer. Faz muito barulho quando o coração se fecha. Passou a decorar versos e a declamá-los como se fosse um antídoto, que o prendia e o que o fazia acreditar que esse era o mundo real. quando Ismália enlouqueceu, pôs-se na torre a sonhar, viu uma lua no céu e outra lua no mar. Pelo tom de sua voz percebíamos que seus poemas eram trágicos e ditos com gestos veementes, inflexões sinistras e ameaçadoras. (não entendia muito bem as palavras.) A rua era seu palco e eu seu dileto ouvinte. O que ele nunca soube era que o quê me prendia e paralisava, diante dele quando o ouvia, era uma espuma branca, nojenta, que aparecia misteriosamente no canto de sua boca e me hipnotizava. Uma vez ele me revelou que, em certas noites, viajava muito – e longe – e pela manhã, acordava cansado. (Sonho, com certeza!) Saía da cama mancando e só então, erguia os ombros, altivo, imponente, e saia a desfilar pelas ruas. Gostava de uma conversa, porém só falava se solicitado. Certa vez ensinou-me a recitar um salmo, que dizia ser de grande serventia para 54


encontrarmos coisas perdidas. Dizia-se conhecedor dos ventos, apenas lendo a cor das nuvens que estavam no céu. _ Vento só serve para trazer mal agouro. Fuja dele, esconda! ordenava-me. Conhecia todos os habitantes da cidade pelos nomes, mas não pronunciava nenhum. _ Falo pouco e cada vez falo menos. Em primeiro lugar porque me distraio e esqueço o assunto das conversas e em segundo lugar, porque as pessoas não esperam que eu lhes responda. Gostava de ouvi-lo dizer versos, imponente, olhando para cima. Não entendia o que dizia. Quando terminava, sempre me informava seriamente, olhando meus olhos: “livro conversa com livros.” Nesses tempos eu não sabia que era uma praga que ele lançava sobre mim. Descrito meu personagem o largarei por aqui para mergulhar em outra fonte. São várias as pontas dessa história, porém irei me reter em apenas algumas. Vamos lá: estávamos em aula quando ouvimos um barulho. Melhor explicando: não ouvimos, percebemos. Um som surdo, tenebroso. Toda sala ficou em silencio. A professora perdeu o rumo do que ensinava, andava de um lado para o outro e ninguém compreendia o que sentia. Hoje, imagino, não demorou muito para que alguém entrasse na sala e nos informasse que estávamos dispensados e fossemos diretos para casa. Reafirmava: _ não parem na rua! vá direto para suas casas. Diferente de todas as inquietas saídas da escola, dessa vez falávamos em cochicho. Já no meio do caminho ficamos sabendo que uma caldeira do alto forno havia explodido. Muita gente havia morrido. Em casa o assunto era a novidade. Queríamos saber quem morreu. E diziam: muitas! e só. No meio da tarde corpos desciam para a Santa Casa. Corpos mutilados, despedaçados. O padre organizava o caos que instaurou numa cidade onde a rotina era padrão. Pela minha rua 55


desciam os carros com os corpos. Subi no muro quando apontou um caminhão descendo lento e cerimonioso. Na carroceria o vento balançava a batina do gordo padre que equilibrava no meio de uma porção de lençóis cobrindo os corpos. O silencio doía mais que a imagem. Silencio que parece anunciar um terremoto na alma. Nesse momento a língua pertence à outra raça. Algumas pessoas peregrinavam nas janelas e o tempo deslizava devagar. De vez em quando ouvíamos um grito ao longe. Outro e outro e outro mais perto. Era a notícia chegando. E a cidade passa a comemorar a brava festa da morte. Nesse dia todos carregamos o peso dos nossos próprios cadáveres. Caixões começaram a aparecer. Alguns lacrados e as famílias em desespero pediam para ver o rosto do filho e as pessoas as continham. Ali não havia mais rostos. Agora só lhe restavam a imaginação. Na casa do meu vizinho havia um caixão fechado. Fui vê-lo. Dirigi devagar, com medo de ser percebido. Muita gente na porta. Entrei e vi o caixão fechado na sala. Quem enxergava não eram meus olhos. Era meu cérebro que via chumaços de carnes, como se estivessem expostos em açougue; e algo me dizia: Fuja! A dor dos outros tinha peso suficiente para me vergar e retirar meu ar. No caminho de casa, no chão, uma imagem me chamou atenção. Abaixei para pegá-la. Uma carta de baralho que nunca tinha visto. Nela estava desenhado uma figura de cabeça para baixo e um número em romano: XII. O Enforcado. Limpei-a e a carrego comigo até hoje. É bela e me pedia cuidados. No dia seguinte enterramos nossos mortos. Os cortejos se encontravam no cemitério e as pessoas não sabiam para quem chorar. Quando tudo parecia se acalmar, por volta das duas horas, outro som tomou conta da cidade. Outro cortejo se pronunciava, só que agora com banda de música uniformizada. Descendo pela rua era o Circo Garcia chegando à cidade. Foi a primeira vez que vi um elefante e sobre ele uma mulher seminua acenava para mim. Não demorou para as crianças saírem de casa e correr atrás do palhaço de sapatos de verniz, com a sola descolada parecendo rir e fazendo-nos esquecer nossas dores. Armado sobre o caminhão um balanço segurava um trapezista a balançar preso pelos pés. “O Enforcado!”, associei. 56


Nesse momento do meu relato, os fios da minha história encontram-se dentro de uma ampulheta. Estou lincando histórias, na tentativa de imaginar um futuro em que, sem final feliz e confortável, possa continuar confiante nessa terra tão incerta. Vamos lá. Não era habitual o louco encostar-se em alguém. Sempre à distância. Nesse dia, ele se aproximou de mim, batendo no meu ombro suavemente e me perguntando se achei uma carta de baralho na rua. Disse que sim e logo imaginei que deveria devolvê-la. Perguntei se era sua e ele não respondeu. Olhava o sol que começava a esconder. O desfile do circo já virava a rua e a cidade já tinha outro aspecto. Quando insinuei ir em casa para buscar a carta e devolvê-la, ele passou em minha frente, impedindo-me. Enfiou a mão no bolso do paletó ensebado e retirou outra carta, entregando-me, saiu dizendo coisas incompreensíveis. Essa carta não tinha número. Na base apenas o nome: O Louco. A carta estava suja, desbotada, e tinha um escrito grafado com uma letra redonda e nivelada, cobrindo a imagem: o ventre de todos os horizontes é de ouro, nas não guarda tesouros. Tempos depois é que fiquei sabendo que essas cartas eram de um baralho chamado Tarot. De todas as imagens desse jogo, a carta do Louco é a mais misteriosa, a mais fascinante e inquietante. É a única sem numeração se colocando, assim, fora do jogo. Está do lado de lá, que não é outra coisa senão o vazio. É a presença superada, o saber último. Uma carta que caminha na frente, com uma evidência solar, sobre terras virgens do conhecimento, além da cidade dos homens. Histórias começam pelo meio e até mesmo pelo final. O início é apenas uma nascente borbulhando das entranhas. Um chão, onde pisar. Se a história começa num encontro ela termina numa busca. Essa história não se define em si. Ao contrário: ela se recolhe como as imagens nas cartas do Tarot. Demorou muitos anos para que os fios dessa história se unissem, pois essa não é uma história factual. É uma história que só se compreende pelo todo. Guardei pela vida apenas duas cartas do tarô 57


que me valeram muito pouco, pois a carta que me revelaria uma verdade e que tenta fazer um desfecho aqui, não estava desenhada num papel. Veio nos cortejos dos enterros e no do circo: o arcano 10, a Roda da Fortuna. Ela é que diz que a cada momento é um novo começo. Nesse dia, estava armado pela cidade todas as cartas desse baralho. Bastaria querer ler. A arte de botar as cartas falha muitas vezes em estéreis e pequenas agonias. O cenário está sempre pronto a dizer alguma coisa e agora só nos falta decorar os nossos textos. Um grande teatro cru anda pelas ruas. Não dá para confiar em quem faz o ponto, ou melhor: sopra as falas, nessa peça de teatro, pois ele está sempre de porre. Nesse momento sou eu, de porre, que faço o ponto dessa dramaturgia e sei que, se tenho paixão, minha alma está fraca. Durante os cortejos desse dia estive por muito tempo ao lado do louco e não vi nenhuma emoção em seu semblante. A vida afirma-se naquilo que quer afirmar. Prazer e dor possuem o mesmo peso. Por guardar silêncios ninguém jamais foi pra forca. Solene, o louco apenas olhava. Encantou-se na sua poesia. no sonho que se perdeu banhou-se todo em luar No dia dos enterros reparei que ele andava pelas bordas das pedras, sem pisar nos intervalos delas. Hoje sou um menino cujo envelope se gastou. Fiquei velho, mas ainda caminho evitando os intervalos do chão e tenho prazer de cheirar pipocas, só para lembrar do sapato de verniz do palhaço, que sorri para mim, num fundo de trapezistas e de mágicos. Não sei como a vida o levou e espero que, pelo menos, as árvores e a lua o tenham compreendido. Sei que deixou comigo apenas uma carta de baralho e uma espuma branca, presa no canto da boca, que teima em não cair. estava perto do céu, estava longe do mar

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JÚLIO VERNE “o meu nascimento é uma história que outros me contaram. A minha morte é outra história, que nem sequer me podem contar.” Ortega Y Gasset

foi criança, foi árvores, chuvas, manhãs e aves a voar no movimento da sua respiração. Nada o impediu de ser feliz. Nesse momento o filho dorme, a manhã é fresca com muita luz e delinear a paisagem. Pensou na mulher que ainda dormia imaginando novas possibilidades de prazer. Tomou seu café bem quente, colorido de manteiga derretida, para amenizar a voz rouca e pensou que um dia, aquela manteiga irá parar em seu coração. Abre a porta do quartinho de despejo, _ que bagunça! riu e pensou em arrumá-lo. _ agora não! mesmo assim ajeitou a vassoura, levantou o rodo do chão e pegou a espingarda na parede. Tirou a poeira do cano, verificou que havia guardado com um cartucho. Levou-a na boca e puxou o gatilho. Ainda teve tempo de pensar: _ o tempo sou eu. Fim

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No exato momento em que se ouve o estampido eu acordei com o firme propósito de retirar o musgo agarrado às paredes externas da casa. Serviço há muito postergado, pois sempre gostei de vê-los crescer nas caras dos velhos casarões. São eles que mostram a vida com mais intensidade. Nesses locais os fantasmas são tão sólidos, que até posso vê-los tomando sol em suas varandas. Nessas paredes o lodo cria carne e se agarra a eternidade. Escreve mensagens avisando que parte da vida de alguém ainda está ali aprisionada e aguardando para ser contada. Como o musgo estava tomando toda a fachada da casa, era hora de agir. Ainda relutei e pensei que poderia simplesmente ficar na cama, olhando o céu pela fresta da janela, mas meu olhar agora é musgo. Poderia pensar coisas vãs, tolas, inúteis, mas meu intento agora é musgo. Poderia uma porção de coisas para evitar esse momento, mas agora o que me resta é a poesia que ainda não vivi. O que me resta são as cinzas do meu cigarro, e esse café quente, colorido com manteiga derretida, para aliviar o pigarro e não pensar que um dia essa manteiga agarrará no meu coração. Segurei a espátula e rumei para o meu dever. Foi então que vi o corpo caído no chão e pensei: _ o tempo sou eu. Procurei um pano limpo e comecei limpando seu braço, seu pescoço, seu rosto, com carinho e zelo de quem limpa uma criança. Esfreguei de leve o chão, franzi o olho e comecei a esfregar com força o entorno do corpo. Limpei um pouco mais longe, a um metro de distância, dois metros e em todas as direções do espaço. Só depois o abracei tão fortemente que não sobrou espaço para o sentimento algum. *** Um dia ele me disse que queria viver nas histórias de Júlio Verne. Ser um personagem saído de um dos romances que leu na juventude. Pretendia atravessar toda terra em um balão silencioso, poder sair do livro de Verne e embrenhar nas terras de Tolkien, convivendo com espíritos e duendes que habitam os recônditos do mundo. Sempre a procura de uma masmorra, onde estaria presa uma jovem, que lhe faria queixumes e pedi64


ria socorro e ele a libertaria das mãos de um malvado feiticeiro, saído de um conto de Grimm. Havia sempre uma rua estendida em sua frente para caminhar. Porém eram as esquinas que seus desejos mais se aguçavam. Viraria herói e encontraria tesouros enterrados e um dia voltaria para casa dos pais, abarrotado de ouro e pedras preciosas e diria: _ comprei um castelo com léguas e léguas de terras, casei com uma linda princesa e... Se você acredita que isso são itens de um conto de fadas, eu digo que não. Ele fez tudo isso e mais alguma coisa. Só que não foi em galerias subterrâneas. Foi de avião. Conviveu com todo tipo de fé e pôde até jurar convictamente que presenciou um espírito que soprava mensagens. Ficou milionário, vendendo e contrabandeando pedras preciosas e acabou se casando com uma jovem explorada pelos pais. Voltou para casa, rico, esposa de lado, espingarda no ombro e disse: _ o tempo sou eu! Viveu feliz até reencontrar a velha espingarda no quarto de despejo. *** Olhei o chão limpo ao redor do corpo. Limpei a espingarda já com o pano todo sujo de sangue e a repus na parede. Ele, limpo como estava, parecia dormir no chão. Nem a perfuração da bala desfez seu semblante. Foi o personagem que sonhou e agora parte como sonho. Viveu todos os protagonistas que quis e eu sou apenas Júlio Verne. Como não sonhei nada, só tenho que cumprir a eterna obrigação de raspar o musgo da casa. Sempre a espera de que o dia se supere de suas trevas. E é a vida, com seus braços calcinantes, que despe devagar meu esqueleto, fazendo em pedaços meu coração e mente, tornando-me escravo de histórias que não vivi. Fitando o corpo no chão, busco respostas, estudando-o minuciosamente. Morrer é vocação das imagens.

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ALDEBARAN para traçar um circo pode-se começar de qualquer ponto. Assim feito é só gritar: _ Respeitável público: o que sou, o que serei e poderei ser são formas de minha vontade. Criei um mundo ao meu desejo e semelhança para nele regalar, confortar e projetar-me. A minha imagem inserida nessa criação, é deus. (intão: sou deus!) Tudo que sei de mundo eu dei ordens para que surgisse do abismo do meu nada. Acontece que a ilusão que crio é tão perfeita que consegue enganar-me e, então, perco a noção dos limites do mundo que elegi, em relação ao mundo feito pelo meu próximo. (esse meu próximo é tão próximo que parece que já ouvi isso que acabei de narrar e fico sem saber se esses escritos são meus ou do vizinho ao lado.) _ Respeitáááável Público: se falo assim, parecendo um mestre de cerimônia de circo, é porque estou sempre debaixo de uma lona, quer para viver, quer para narrar essa história e, com certeza, para morrer. TOC TOC TOC O texto que segue é uma tentativa de colocar a casa em ordem. (ou: o circo em ordem; ou o caos em ordem; ou o círculo em ordem) 69


É um texto a respeito do que acho da vida e subliminarmente - e principalmente - do que não acho dela. Para escrevê-lo, encontro, de cara, todas aquelas provas para testar a minha inteligência e minha limitada agilidade poética e prática. Como sou persistente: sigo e persigo, acreditando-me poeta e escritor. Afinal, não será esse texto, assim como a vida, um sistema coerente de loucura? Uma delirante organização do nada? (daqui a pouco você mesmo deduzirá) Sigo. Mesmo sabendo que esses escritos são para colocar ordem no meu caos de mundo, eles também requerem o direito de enobrecer minha vida. Não sei se um dia essas palavras se tornarão pública, porém me resta e consola imaginá-las descobertas, publicadas e daqui a cinco séculos elas poderem desfrutar de todas as vantagens da glória. Por isso, sigo e espero matutando. Estarei sempre a esperar por alguma coisa e seguindo. **** Há quem admire Einstein, quem extasie diante de Velásquez, quem adore Guevara, quem colecione fotografias de James Dean e, até quem recite imensos versos de Camões. Já, eu, sou um adorador de estrelas. Meu mundo se resume nelas. Ou melhor: meu mundo se espalha nelas. Sou o personagem de Bilac, aquele que perdeu o senso. De todas as estrelas contidas no espaço, escolhi uma: Aldebaran. E lá fiz meu porto. É pra lá que estou, sempre que a vida se torna enfadonha, repetitiva, pegajosa e perigosa. (Não sei porque elegi Aldebaran como minha estrela especial, como também não sei porque nasci em Santo Antônio do Monte. Coisas assim simplesmente nascem. Ervas daninhas.) Só depois de muito dormitar nesse meu astro é que descobri que ele não é a maior estrela do universo. O tamanho dessa estrela não me impressiona, pois minha cabeça não sabe equacionar sua proporção, cujo raio é 44 vezes maior do que o tamanho do sol. ????????????????????????????? 70


E, nem tão pouco, o que é 65 anos-luz de distância da Terra? ????????????????????????????? O que me deixa intrigado é a utilidade (ou inutilidade?) desse gordo monstro girando no espaço. Esses assuntos abrem em minha cabeça interrogações, sem precisar de nenhuma formulação de perguntas. Fico horas absorto, fazendo-me Deus, de pé em meio ás luzes bruxuleantes, mergulhado até os joelhos em constelações, só pensando pelo prazer de pensar. **** Certa vez, enquanto o professor ensinava algo cacete de aprender e eu estava em plena viagem astral, um colega bateu no meu ombro e disse: _ Vou lhe pegar e lhe cobrir de porradas! Esse meu colega é grande, gordo e brigão. Todos o temem. Sou um dos poucos da turma que ainda não apanhou dele. Agora, sem motivo algum, chegou a minha vez. Com esse aviso ele buscou-me em Aldebaran roubando, assim, todo meu universo e deixando-me sem onde refugiar. Ajeito na cadeira ... fecho os olhos e espero o desfecho do soco. Faço devagar a contagem regressiva, sempre para trás... até zero... a fim de transformar o furacão dos acontecimentos vindouros em acordes. nove... oito... sete... **** O que posso lhes dizer o que sou, quando nem eu sei? Estou nessa vida simplesmente à espera. (no exato momento da origem desse escrito, estou à espera do soco!) 71


Agora, escrivão, às vezes canto velhas cantigas desse mundo, para lembrar-me de quando era jovem, à cata de uma memória que mora em mim. Sou um mesclado de memória e nevoeiro. Às vezes me desmancho como chuva em um poço, choro choro. Enquanto lacrimejo, vozes distantes me acalentam, falando em uma língua estrangeira, inteligível. Sou triste, velho e permaneço sempre em vigília. E esperando. Esperei sete abortos para me produzir pessoa e me fiz pessoa por encantamento. Explico: minha mãe teve sete filhos natimortos. Para que eu nascesse, ensinaram a ela tomar uma infusão de capim santo, açúcar e três crisálidas recém- capsuladas em um pé de manacá, durante três noites consecutivas. Nessas três noites, antes da beberagem, ela deveria saltar três vezes sobre a chama de uma fogueira dizendo: “Meus defuntinhos enterrados nessa terra santa, dê ao vivo o respiro e ao morto seu conforto.” É fato que mamãe bebeu o chá e acendeu a fogueira. Porém, assim que o fogo crepitou, entre um pulo e outro, ela descobriu que não eram seus olhos que contemplavam o mundo e sim o oposto. O mundo é que lhe via. Assim sendo, envergonhada de sua atitude ridícula, sentindo-se observada, desistiu de dar o terceiro pulo. Foi a falta desse pulo que me fez nascer morto para essa vida mundana. _ O mundo é que olha para dentro de nós! ensinou-me ela muitos anos depois. _ A luz que vejo de uma chama é apenas uma sensação de claridade. O que o fogo derrama sobre a terra são apenas ondas magnéticas e não temos meios de saber se são realmente luminosos. A luz que vejo está apenas dentro de mim. Nos nervos não flui luz, mas sim, uma corrente que irá produzir a sensação de claridade. 72


(eu, que agora virei pintor, nunca esqueci. E aprendi que estou preso e amarrado dentro dos cinco sentidos que a natureza me presenteou.) Foi nesse dia de clarividência, bem antes de eu nascer, que mamãe acertou com os arcanos do tarô. Aprendeu a ler cartas e linhas da mão e para me divertir, fazia malabarismos com laranjas, sem nunca conseguir equilibrá-las no ar. É de sua constituição fazer desaparecer e aparecer coisas, chegando a comprar cartola e capa e se autodenominar Mandraka, rindo não sei se de seu talento mágico, ou de sua mágica desorganização. Emoldurou seu herói – Mandrake – (um desenho de Lee Falk em tamanho natural) e o entronou na parede da nossa sala. E é esse o único ponto fixo e estável de nossa casa, onde tudo muda e tudo se perde num passe de mágica. Essas palavras que escrevo são apenas para justificar o tipo de cérebro com que fui contemplado: desorganizado, introspectivo e desconexo. Minha casa, minha mãe, eu e meu pai somos um caos. Meu pai trabalha em um laboratório, onde um desavisado, pode morrer de mil modos, dependendo de onde tropece, ou corte o dedo. Para se ter uma ideia, certa vez ele comentou com mamãe, que sempre que ia produzir um novo invento, perdia a fórmula, fazendo-o eternamente medíocre. Está sempre atrasado quinze minutos, ou a um minuto que antecede a uma grande descoberta (ou um terrível cataclisma). E minha mãe replica, consolando-o: _ ... e eu?! que nunca sei onde estou!... Aí me situo. Filho único, assentado em um banco escolar, querendo fugir para Aldebaran, segundos antes de levar um soco de um colega troglodita. 73


**** Senhoooooras e senhores! enquanto espero esse soco é como se a fita do filme de minha vida tivesse rompido e a projeção na tela ter se petrificado. Sou um John Wayne caindo do cavalo e preso no ar. A imagem fixou-se no punho do meu agressor pouco antes do soco ser desferido. Claquete! Tempo para que eu vá para Aldebaran! Procuro no meu cérebro um rastro para a fuga, mas só encontro informações, como essas, que não servem para nada: a) Aldebaran é uma estrela tipo espectral K5III e que na Grécia era conhecida como “tocha” ou “facho”. (pra que lembrar disto, agora? Isso não me serve para nada! ) (coisa alguma livrará da minha sina de ganhar um soco!) Minha cabeça continua a procurar uma rota de fuga e começa a pensar nos streghes, b) ou bruxos, que reúnem à noite para adorar Aldebaran e assim adquirirem o poder do magnetismo do olhar e impregnar as pessoas. ??????? (quem sabe eu tenho esse dom, e posso usá-lo agora, olhando bem dentro dos olhos do meu futuro agressor e assim intimidá-lo?) As pessoas sempre elogiam meu olhar! É claro, quase amarelo, brilhantes e de grande formato. ! Devo ser um menino bonito! Pelo menos minha mãe acha, pois ela está sempre besuntando meus cabelos com brilhantina Glostora para que eu fique parecido com o Tab Hunter. Mas, minha mãe é volúvel! Não posso confiar nela. Outras vezes diz que estou parecido com o Neil Sedaka. Só sei que cheguei a ser Rodolf Valentino pela manhã, Sal Mineo ao entardecer e acabei dormindo James Dean. Com quem será que pareço agora? 74


(com esse olhar medroso e revirado, com certeza: Pablito Calvo) Deverei intimidar meu agressor com o meu olhar? Devo abrir meus belos olhos, fixá-los fortes dentro dos deles, produzir um sorriso enigmático e desafiador, suspirar altivo, forte e, então poder ver o punho do meu agressor se desviar e ganhar como prêmio uma palmadinha solidária no ombro? E ter o prazer de ouvi-lo dizer: _ OK, você venceu! Ou nada disso? Devo é enfiar a mão no meu estojo escolar, retirar meu canivete com cabo de madrepérola e sete lâminas, tesoura, abre latas e saca-rolhas e enfiar na barriga desse fedaputa? (Não!... a lâmina não! o saca-rolha. Dói mais! ) Sou um menino quieto como todos aqueles que estão sempre a esperar alguma coisa. Gosto do silencio e sei que ele é sagrado. Sei também que é nele que o diabo se manifesta. Instintivamente procurei com a mão o meu estojo. Claquete. **** Meu futuro agressor chama-se Almagesto. Nome estranho para um garoto balofo, burro e pobre. Não posso imaginar como sua mãe achou esse nome. Embora pertencendo a uma classe social inferior ele sempre se manifestou como o centro de todos nós, que o tememos. (com certeza é a influência do seu nome.) Na minha cidade os pobres são tidos como ‘bichinhos de estimação’. Todos os sábados, rabinhos abanando, eles aparecem com um sorriso agradecido a buscar sua ração. Alguns chegam a dizer, orgulhosos, voz melosa, cabeça revirada para a direita: _ Sou pobre, porém criado do Sr. Otaviano.

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O Sr. Otaviano é o mais rico da cidade e ele elegeu o maior número de fiéis ‘animais de estimação’. A família do Almagesto pertence à casa do Sr. Otaviano. Sente-se, por isso, privilegiado. **** Aldebaran está relacionada no catálogo de estrela do Almagesto. (claro: no livro de Ptolomeu!) Aldebaran pertence à constelação de touro. É a maior estrela dessa constelação e é a estrela que brilha no olho esquerdo do touro. Para os cabalistas essa estrela é associada à letra inicial do alfabeto hebraico – Aleph – e, portanto, é a primeira carta do tarô. Eu sou do signo de touro. Talvez, por isso, essa minha fixação por Aldebaran. Certa vez li, que pessoas desse signo têm uma natureza animal, instintiva e de rica sensorialidade. Não entendi bem isso, mas entendi que pessoas de touro gostam de cheirar, provar, apalpar, ver e escutar. É! ... ... acho que eu e toda a humanidade, não?. e assim vou descobrindo o mundo. Tenho outra forma de conhecer o mundo que é associar as pessoas aos seus pertences. Por exemplo: a) a cartola de mágico á minha mãe; b) o vaporizador de asma á minha avó; c) o perfume “Madeira do Oriente” á minha tia; d) a revista “O Cruzeiro” ao meu pai; e) a mão branca de giz á chata da professora que não para de falar; f) o riso do meu avô á sua dentadura. Coisas simples. Explico melhor: veja de quem eu estou falando: - uma garota que usa um capuz vermelho, tem cestinha presa nos braços e... Sabe de quem falei? Essas características, fora da sua partitura original, sempre será Chapeuzinho Vermelho, seja lá onde as encontrar. 76


Associo Almagesto a um embornal puído e nojento. Por isso meu medo do soco. E se suas unhas sujas e compridas ferissem meu rosto e eu morresse de tétano? A proporção de sua babenta mão em relação a minha cara poderia provocar um grande estrago, levando em consideração o pequeno tamanho da minha cabeça. Parto então a fazer analogias ao meteoro que extinguiu os dinossauros, diante da dimensão da Terra. O que esse soco extinguiria em mim? A dignidade eu tenho certeza! Não posso precisar o motivo que me leva a essa surra. Almagesto tem essa índole de troglodita e o que despertou nele esse ódio por mim pode ser o meu ‘Uniforme Oficial’ do Batman, que acabei de ganhar e todos os amigos estão a invejar. É um uniforme maior do que eu, cuja máscara é difícil de equilibrá-la no rosto, pois a minha visão fica sempre fora da orbita dos buracos furados para os olhos. (isso quando não me embaraço nas barras da capa.) Com certeza esse uniforme seria o número certo do manequim do Almagesto e eu o presentearia, com prazer, para livrar-me do soco. Isso é apenas suposição. O que tenho certeza nessa história é a minha fixação em Aldebaran. Aldebaran é a minha “área de lazer”. E essa minha fixação tem dia e hora para iniciar: - três de novembro de 1957, quando a União Soviética mandou a cadela Laika para o espaço, no Sputnik II. Tinha quase oito anos e, num domingo, nem muito suave, nem muito ácido, nem muito quente nem muito frio, pela manhã, fui assistir a missa com minha mãe. O padre, um alemão fugido da guerra, em seu sermão alerta a todos, que o fim do mundo está próximo e que estamos brincando com o poder de Deus. E, aos berros, com seu sotaque cheio de erres, diz furioso que Deus irá pegar esse foguete que estamos enviando para o espaço e atirá-lo, tal qual uma flecha, de volta sobre a terra. E ele, rasgará em fogo todo nosso planeta, nos eliminando para sempre. 77

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Ouvi aquilo com pavor. Voltei para casa agarrado a mão de mamãe e passei todo o dia andando atrás dela, pois, queria companhia para morrer. Devo tê-la importunado muito com minha presença, a ponto dela dizer: _ Vá brincar, menino! Pare de andar atrás de mim. Triste sina a minha! Além de estar próximo da morte, estava sendo escorraçado pela minha mãe. Eu, que só queria morrer junto!... Procurando um sinal no céu, que anunciasse o fim, percebo ao lado da lua uma luz piscando. Sim! era o fim. Meu coração disparou e eu busquei ajuda em minha vó. Ela colocou os óculos, olhou, franziu a testa e simplesmente falou: _ É uma estrela. _ Mas como, vó?... se agora é dia! Nem me lembro o que ela falou, mas sei que ela me abandonou com o meu pavor. Também não sei quanto tempo durou esse medo. Com certeza, até ele cair na monotonia, ou imaginar que a distância dele seria tão grande, que daria tempo de envelhecer e morrer antes do choque fatal. Só lembro, que nessa noite, na solidão do meu quarto, para amenizar meu medo e a minha insônia, fui povoando-o de personagens reais e inventados, sentando-os à borda de minha cama para falarem comigo e me contarem suas experiências... todos, chegando lá de longe, devagarzinho... moldando, assim, a minha própria mitologia. Vivendo entre histórias verdadeiras e inventadas, catapultei-me fora da terra, estiquei meus braços entorpecidos e respirei fundo, para ficar eternamente em outros mundos. A buscar respostas para sanar minhas indagações comecei a desvendar o céu. E, tal qual meu pai, estou sempre a quinze minutos que antecedem a uma grande chegada. 78

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Creio que, quando tiver visitado quinhentos mundos e tiver oitenta anos, vou perdê-los numa fração de segundos. E ficarei com meus oitenta anos, solitário, biologicamente imperfeito, frustrado e sem saber nada de nadica. **** ...enfiei a mão no meu estojo e segurei firme meu canivete com cabo de madrepérola. Evitei qualquer pensamento que pudesse me deter. Abandonei Aldebaran e cruzei o limiar frio que é me aportar de volta a terra. Destravei o saca-rolha e lembrei-me de Jeff Chandler a descer do cavalo e disparar num silencio absoluto dos filmes do cinema mudo e os índios caírem no chão aos montes, sem que se ouvisse um gemido sequer. Almagesto não passa de um pobre suarento e burro! Em escala cósmica ele nem existe e agora não passa de um fruto do meu pensamento a me atormentar. Um espinho. Antes de tomar qualquer atitude fiz um pacto com as andorinhas, que vi passar voando pela janela. Explico: minha vó conta que as andorinhas têm grande prestígio com Deus, pois foram elas que retiraram os espinhos da coroa do Cristo. Então pedi a esses pássaros que retirasse esse espinho que Almagesto cravou e que atormenta meus pensamentos. Porém o que senti é que elas me humilharam ainda mais, cagando em minha carteira, num voo rasante, teatral, barulhento, por toda sala. Foi então que desferi o primeiro golpe acertando-o bem na barriga. Senti a espiral do saca-rolha entrar, rasgando suas banhas e um líquido pegajoso molhar minha mão. Olhei procurando sangue, mas não o vi. Queria-o! Sei que ele escorre mais fortemente no pescoço e desembainhando o canivete de sua barriga cravei-o bem na sua jugular. O sangue jorrou shiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii 79


forte. Esguichou longe, pulsando no ritmo do coração e sujando toda a sala e os colegas. Almagesto tinha sangue demais e meu braço se tornou radiante com o brilho úmido do vermelho. Enquanto ele se estrebuchava no chão, levantei meu canivete exibindo a todos o meu troféu. _ AiiiiÔ!!!!! soltei meu grito de guerra. .... Urra! Urra! Urra! todos gritaram em coro. É claro que isso não aconteceu! Eu não feri Almagesto. ... minto. Aconteceu, sim! (vou... volto... escrevo em zigue-zag, chuleando e caseando, quinem a vida) Aconteceu, sim! porém com outro garoto, que tem os mesmos olhos meus, o meu nome, usa cabelos revoltos ao vento e mora em Aldebaran. Um garoto cujos pais vivem momentos de intensa organização. Casinha arrumadinha, comidinha na mesa, mamãe de penteado e papai de terno e gravata e que, à noite se estendem na cama muito corretamente, tal qual a caneta e a lapiseira John Faber nos sulcos de seu estojo. Lá, em Aldebaran, também tem um Almagesto. Raquítico, rabugento e com os cabelos melecados de brilhantina. Este, sim, está agora debatendo numa poça de sangue. Por lá as coisas tranquilas é que são trágicas. Por isso todos aplaudem e pedem bis. Eu, o de cá, não feri Almagesto. Eu, o de cá, nesse momento em que acabo de me desejar um assassino, sou o único criminoso que jamais abandonará o local do crime e ficará eternamente velando um túmulo vazio.

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Eu, o de cá, quero muito mudar para Aldebaran e fundir-me ao meu espelho, que é o menino de lá. Eu, o de cá, sei de uma história de um escritor famoso que disse que os historiadores, que dizem só verdades, evocam meros fantasmas, enquanto os romancistas criam gentes de carne e osso. Eu, o de cá, li a história desse romancista e quis muito ser um dos quatro mosquiteiros do rei, porém só consegui uma espada de madeira de ponta rombuda. Já o Eu de lá, matou D’Artagnan, assumiu sua identidade e nunca levou a sério essa coisa de “um por todos e todos por um” Pra dizer a verdade, conheço o Eu de lá melhor do que conheço a história do meu pai. Quantos episódios da vida dele me são desconhecidos! quantos pensamentos meu pai nunca me revelou, quantas vezes ele ocultou suas dores, seus dilemas, suas fraquezas? Já o meu Eu de lá revela-me todos os aspectos de sua natureza. O que o Eu de cá faz é encostar o ouvido numa concha e ficar ouvindo, não o ruído do mar, mas os leves passos de Fred Astaire e Ginger Rogers dançando Cheek to cheek, per secula seculorum, até que anoiteça para sempre ou que minha mãe, com sua capa do Mandrake faça um gesto mágico e **** Tente entender essas duas histórias que vou contar agora: 1- uma vez, cismando junto às estrelas, meu pai disse: “em escala cósmica, somente o fantástico tem a possibilidade de ser verdadeiro.” Mas, quem disse isso não foi ele. Foi Teilhard de Chardin. Fantástico, Não? 2- Veja também: li num jornal que Adolf Hitler matou-se e seu corpo foi queimado em um bunker em Berlim. Li também que a Chapeuzinho Vermelho foi comida por um lobo. Fantástico, não?

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Conclusão: tudo isso são verdades, assim como essas quatro primeiras notas escritas por Beethoven na Quinta Sinfonia:

Não tem como provar que o Mickey Mouse não é namorado da Minnie; nem que meu pai não tenha dito em primeira mão o que Teilhard escreveu como verdade; nem que Almagesto não seja um livro de Ptolomeu e um nome próprio de alguém que habita na face dessa terra. Fantástico, não? **** Fantástico será intimidar meu futuro agressor com o meu olhar magnético. ... então abri os olhos mirando profundamente dentro dos seus ................................................................................................... meneei a cabeça lentamente .................................................... e produzi meu sorriso enigmático desafiador e superior. ........ enchi os pulmões de ar........................................................ e pude perceber o soco se desfazer lentamente a minha frente. Fui eu que lhe dei uma palmadinha no ombro, quando ele virou e me abandonou com meu soberbo magnetismo. É bem provável que me torne o ator principal de minha rua a partir d’agora. Minha lenda correrá rapidamente por toda a escola, toda a cidade e, se aperfeiçoar esse meu poder de encantamento, poderei aportar, até, em Aldebaran. Sim! esse é o caminho. Foi nesse momento que a campainha soa, avisando o horário para a merenda. Quando chego ao pátio da escola vi Almagesto encostado num pilar. Ainda pude vê-lo caminhar pesado e cambaleante em minha direção. Não disse nada e desfere o seu prometido soco. Ele apenas o adiou. 82


Claquete: última cena Dei por mim rodeado de professores. Parecia que a escola tinha convocado todo seu corpo docente e eles me observavam constrangidos e parvos. Tentei me levantar e sair dessa “cena do crime”. Não me permitiram segurando no meu olho uma bolsa de gelo. Já disse aí que sou do signo de touro e que Aldebaram é a estrela que marca o olho esquerdo desse animal em seu mapa celeste. Pois bem, Almagesto acertou justamente o meu olho esquerdo, deixando-me por muitos dias, como se fosse parte de um tratado astrológico. O roxo do meu olho é uma marca indefinível e ambígua que separa o meu Eu de cá do meu Eu de lá e que comunica entre ambos não me permitindo que fale em “dignidade ontológica” em face de um mundo “objetivo”. Claquete. **** Senhoras e senhores: essa é uma história cuja única serventia é sair marcando o chão com pedrinhas para não me enganar no caminho do regresso. Como a única seriedade que concebo é aquela que permite todas as fantasias, minhas pedrinhas são astros, que derramo sobre esse meu chão, nessa noite de poças d’águas que não reflete nada, nem rostos, nem gestos, nada a não ser o peso da minha presença. RespeitÁÁvel público! aqui esse pretenso artista se despede, debaixo dessa rota lona do circo, que é minha vida. lona esburacada, cheia de furos onde o dia, com o reflexo do sol, se faz céu estrelado e a noite é só o oco do mundo. estou saindo de cena sobre meu pangaré que não passa de dois palhaços embutidos em um pano, de andar trôpego, desacertados e vou sumindo ao longe desse picadeiro, que mede nada mais do que uns 12 metros de raio, até desaparecer num curvado de céu, sempre seguindo a trilha que aponta para Aldebaram. ... de vez em quando paro para redesenhar de carvão meus lindos bigodes pretos e marcar o chão com mais uma pedrinha. 83


Aqui acaba a história que pretendi escrever. Desaba a lona, soltam-se os leões, galopam os cavalos, _ FOGO NO PICADEIRO! Chamusca meus bigodes, queima o livro de Ptolomeu, a fumaça atinge Aldebaran, meu pai desarrolha uma nova invenção para salvar o mundo, minha mãe grita a palavra mágica e ... eu viro artista. Acabei fazendo um círculo, começando a traçá-lo, elegendo um ponto ao acaso, e já estou pronto para iniciar novos e novos círculos, que se emendarão em paralelas. A nossa tradição exige que acrescente uma moral para fazer essa narrativa pedagogicamente aproveitável. Porém não tenho moral nenhuma para oferecer. Meu mundo é impermeável a todos os valores. The end. Sobe os créditos, aumenta a música

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O INCRIADO ‘o incriado não está vindo, nem indo, nem parado’ Buda Desiludidos, tristes, o poeta, o músico e o pintor resolveram cavar um buraco fundo nessa extensa planície estéril, a procura de suas verdades. Qual seu papel no mundo? Antes já haviam escalado encostas e visto lá do alto, suas minúsculas cidades. Conheceram as sinuosas curvas do mundo e lançaram nas altitudes dispostos, não apenas a ver o tudo de cima, mas a experimentar um universo próprio. Flutuaram no espaço, assombrando-se como se fossem parte da paisagem. Descobriram-se capazes de projetar sombras e lançaram raios e trovões. Trombetearam vigorosamente como galos ao amanhecer, do alto dos seus poleiros e sentiram-se únicos e solitários. Viram uma terra plana, onde Narciso masturbava, até seu esperma virar uma meta. Depois a viram redonda e Maomé indo à montanha sem decidir com quantos litros de silicone o desejo seria saciado. Assim perceberam que na terra não se disputa. Tem elegância até quando vira uma filha da puta. E acabaram se descobrindo no mesmo ponto de partida. (afinal a terra é redonda! ... e não souberam qual seu papel nesse círculo) À procura de suas verdades, enfurnaram-se em bares, embebedaram, drogaram, sempre em busca de uma gargalhada solidária. Porém só ouviam piadas adormecidas. Apagadas todas 87


as luzes só enxergavam pensamentos. Diante dos olhos apenas o papel em branco de invioláveis lonjuras e inapreensíveis imagens. Para alcançar seus objetivos acreditaram que deviam se colocar no cruzamento de duas eternidades, o passado e o futuro. (... ?? mas isso é exatamente o momento presente!) Desencantados resolveram, cada um por si, recolher para trocar suas penas. Desejavam estar plenos, sem obscuridades. Mas não conseguiram. A vida impõe segredos que são indissociáveis de sua própria natureza, e os obrigam a colocar em suas portas cartazes que dizem: Entrada Proibida ou, Cuidado com o Cachorro Só então o poeta das palavras passa a crer que todo papel, nessa vida, lhe é útil desde que sirva para limpar o cu; Por sua vez o músico crê que todo papel é útil se faz ruído ao rasgá-lo; E o pintor acredita na sua serventia desde que esteja lambuzado das merdas do poeta. Como última tentativa fundiram-se em um só personagem \ e viram \viu\....... que não passavam\passam...... andam\ anda pela casa como um andarilho por um perímetro sacrificial. É mudo a violência das carcaças dos objetos expostos e o fedor ululante por todo o recinto. O ar se esgota em podridão. A casa é uma memória repleta de martírios. Mora num espaço de resignação como se fosse um imigrante ilegal cuja bandeira tremula em ventos clandestinos. Vive mergulhado nas memórias, que não são nada mais que um buquê de rosas abandonado sobre seu túmulo. Flores secas, fita desbotada e um cheiro nada agradável. Quando morrer sabe que vai também ficar cheirando mal. E só quando o fedor desaparecer é que descobrirá que não irá além de uma memória saturada de odores variados e fúteis. Vive sem querer saber que o nada é o que o definirá e o fedor é o que o perfumará. 88


Ele não passa de um vasculhador mascarado em roupagem de colecionador. Um connaisseur de monstruosidades em telas, de lancinantes esculturas e livros vulgares em luxuosas encadernações. As paredes de sua casa prendem naturezas mortas amareladas, atrozes paisagens virginais, madonas craqueladas, imitações de tapetes marroquinos borrifados com toda sorte de ácaros. E passa horas limpando suas tranqueiras. Nesse espaço há uma devassidão maior que o seu pensamento, porém tudo é sagrado. Existe enquanto nada mais existe. É um altar erguido a si mesmo. Seu nariz é sensível a cheiros e embriaga sua memória com recordações infindáveis. Extasia com a catinga trazida pelo querosene que lava os móveis para afastar os cupins; com o óleo que esfregava nas portas e fixa seu cabelo; com o alho fritando, e com os porcos chafurdando na lama do quintal. Mesmo com todo esse arsenal de cheiros, sente-se incomodado por não sentir o cheiro da sua própria merda. Por mais que queira tirar dali um perfume, não consegue. O mais próximo que seu cérebro substituiu esse cheiro é do seu paninho úmido a esfregar sobre as coisas da casa, limpando-a. Esfrega delicadamente o pano somente na beira de suas coisas. Pano cinzento e imundo. Esfrega-o à beira das cadeiras, da escrivaninha, das janelas, das portas, das molduras e nos pés das estátuas. De vez em quando enxuga a ponta do nariz, aspirando-o. Sua coleção é o seu eu estendido, aprisionado no avesso de sua própria constituição. Nesse caos de coisas, sua presença é tão discreta quanto uma ausência. Vive em contradição supersticiosa que se anulava uma à outras. Uma eterna enfermidade, como se estivesse gerando uma gravidez monstruosa. Não sonha e nem vive à mercê dos pesadelos. Prefere versejar excessos. Frasear em latim para sua plateia particular de ouvidos vulgares. Enfim: é só e amarfanhado, transgredindo seus temores através de acúmulos de coisas. Um medo o apavora: morrer e encontrar-se num estado onde não existe nem terra, nem água, nem sol, nem lua, nem calor, nem ar, nem a percepção, nem o infinito. Seu medo é dar de cara com o incriado. Tem 54 anos e nunca teve uma mulher, mas também não desejou. Sorriso amarelo preso na cara, pouca fala, mãos excessivamente brancas, 89


acorda em manhãs sempre iguais. Caminha entre estreitos corredores, pensa: - qual o papel desse mundo? Nem zumbido ouviu. Seu quarto está repleto de coisas. Na casa não há espaço para uma mesa posta. Espremida em um canto da mesa, uma fruta envelhecida tinge a travessa branca. De frente ao espelho seus olhos não procuraram seu rosto e, sim, as imagens que refletiam por detrás dele. Fixa o olhar em um quadro, que representa uma figura, que não mais sabe identificá-la. Deixa a visão se perder nas cores do quadro até que a figura anuvia do seu fundo, sumindo. Descobre que assim, de olhos hirtos, sem piscar, a vista se cansa, turva e as imagens desaparecem como por encanto. É preciso piscar sempre para que as coisas mantenham em seus lugares. Procura seu rosto no espelho. Acena para si, aproxima a cara até sentir o frio do vidro. Só lhe resta lembrar, em sua infância, um padre dizendo que, quando os discípulos de Jesus chegam diante do túmulo do Senhor morto, viram a pedra deslocada e olharam para o seu interior, nada vendo. Nesse vazio, onde nada se vê, fantasmas fazem suas festas. Guarda monstros nas entranhas do peito, para que ele o devore, lentamente, de dentro para fora, até se tornar um personagem de dentes arreganhados, deitado em sua tumba. Está sempre a pedir perdão a não sei quem, com um grito entalado nas ventas, que não sai porque não sabe se é cedo ou tarde demais para emiti-lo. Vive em estado de horror, que não incomoda nem vira notícia. Não indaga nada, pois resposta são netas das perguntas. Caminha devagar pelos becos estreitos da casa entulhada e pisa em algo que lhe transmite uma sensação agradável. É o esmagar das bostas, que amaina e desliza macio a proteger os seus passos. De olhos fechados pensa em voltar a sanidade do barulho e da balbúrdia. Não o encontra. Roda a sola do pé, lentamente, no macio da merda e sente prazer. Troca os passos temendo escorregar. Sorri para o seu reflexo no brilho da xícara. Assoa o nariz no seu pano úmido. Qual o seu papel no mundo? tenta interrogar. Mas já sabe que, o que será seu, já está abrigado dentro dessas paredes.

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CARNE CRUA Essa história foi retirada das quinquilharias que nascem fortuitamente no meu cérebro, resultado de encontros, vida, casos e de leituras. São representativas de um tempo que passei a desejar a liberdade e da minha observação de mundo, sem esboço nem roteiro preconcebido. Quando não era menino nem homem, isso é: pouco antes da barba se pronunciar em minha cara, queriam-me padre. (e eu – nunca! - jamais me propus a isso!) Meu pai é órfão e nunca conheceu sua mãe. Para ele ela era uma santa que foi morar no céu e iria encontrá-la quando morresse. Ele gostava de ouvir cantar: “... no céu, no céu com minha mãe estarei...” eu não queria morrer e nem estar na “santa glória um dia” e me recusava pronunciar qualquer palavra desse canto. A Virgem santa era uma ceifadora que roubou de mim uma avó, poderia levar meu pai a qualquer hora e, de quebra, também me arrebanhar. Nesse tempo eu acreditava em Deus e o paraíso era o quintal da minha outra vó, que ainda estava viva e que em vez de contar histórias de Joãozinho e Maria, não perdia oportunidade de relatar casos de Jesus, Maria, pobreza, manjedoura e burrinhos. 95


No fundo, no fundo, ela me queria Francisco. (... aquele, dos três pastorzinhos, que deram de cara com a santa em cima de uma árvore) Antes de mais nada, devo relatar, que sempre existiu em meu quarto, bem em frente a minha cama, uma estampa representando a cena do aparecimento da virgem para esses três garotos. Esse quadro parecia me informar que, a qualquer hora, eu poderia dar de cara com a virgem Maria. Se os pastorzinhos tiveram esse privilégio por serem bons, eu que não queria vê-la, precisava tornar-me mau. Quanto mais examinava esse quadro, procurando possíveis sinais, mais achava feio aquela santa trepada em cima de um arbusto. (essa ‘feiura’ virou arma que carrego comigo até hoje.) **** O quintal de minha vó era o paraíso. Sombrio, úmido e cabia todo o universo das minhas necessidades, até que dei de cara com um arbusto que parecia ter saído do santo quadro. Ele sempre esteve ali, porém nesse momento ele havia aparecido por mágica. Era um aviso! A qualquer momento a santa se acavalaria sobre ele e só me restaria ajoelhar e depois me trancar num seminário. Perdi, assim, meu paraíso, não mais querendo desfrutá-lo. Meu medo era solitário. Não havia com quem compartilhá-lo. Fiquei cabisbaixo e mudo. (... quando deus explodiu o mundo o silencio era o assunto...) **** Assim que os pelos arquitetaram sua invasão em minha cara, passei a ser vários: § - um - explorador de sonhos; § - e outro: - um rapaz razoável e ridículo, nascido do meu condicionamento social. Segundo a astróloga Aleugim Ojitnog, Miguel significa ‘aquele que é parecido com Deus’. Tem uma personalidade diplomática, inteligente, intuitivo. Outros atributos comuns entre as 96


pessoas chamadas de Miguel são a pontualidade, a estabilidade e a responsabilidade. Muitas vezes, homens com esse nome são vistos como muito conservadores, discretos, sensatos e fiéis. Ela não menciona defeitos. Porém eu fiz um levantamento: Michelangelo Buonaroti, escultor, poeta, onanista; Michelangelo Caravaggio, pintor, bicha, assassino; Miguel de Cervantes, escritor, manco de Lepanto, caloteiro; Miguel de Unamomo professor, filosofo, dedo duro; Michelangelo Antonioni, cineasta burguês, falso marxista; Miguel Aceves Mejias, ator e cantor brega Michel Jackson, pederasta, bailarino Miguel, arcanjo, inadaptado com seus iguais, puxa saco de patrão; Miguel Strogoff, personagem de Júlio Verne; Miguel Gontijo, extrato diluído de todos os outros aí acima. Assim sendo resolvi escrever essas confissões. Partindo do meu medo da santa (e de sua forma antiestética de se exibir ao mundo), fui levado a pensar em outras criaturas mais palatáveis, amenas, fluidas, com asas e flutuantes como nuvens e pássaros, para enganar meus pensamentos. ... ANJOS! _ Não! eles também pertencem a casta celeste, que ficam aqui a nos vigiar, dedo-duro e olheiros de Deus. Por simples analogia às asas dos anjos, preferi pensar em aves. A primeira que me veio à cabeça foi a pomba. Execrei o pensamento rapidamente, tendo em vista sua íntima e inexplicável ligação com o Divino Espírito Santo. Perus! pensei ouvindo o som deles vindo do quintal e refutando o pensamento ao vê-los sacrificados nas noites de natal. Estava no meio do caminho entre a realidade e o sonho, vivendo num entremundo, com coisas que se digladiavam entre a submissão e a dependência. Pensar gerava sacrifício e passei a viver um lado muito negativo, pois, ser negativo passou a ser um indubitável critério de qualidade de vida. Vivia num mundo que se apresentava duro e inquietante. O único escape desses pensamentos, desse controle de minha consciência, 97


era o caminho para baixo, aquele que leva às zonas sombrias da alma. Saída para o alto era perigoso. Anjinhos e coisas do gênero não têm nenhuma ligação com o meu projeto de vida. Fiquei um cara assim, assado, nem lá nem cá, meia boca, a apagar pistas visíveis e inseminar metáforas na vida, tendo necessidade genética de ser do contra, de ser escorregadio quinem quiabo, de ser o que não sou e do que sou, de rastejar em subsolos, ler com os olhos analfabetos teses em Braille, de ser um número primo, de distender, expandir, de esconder e de perder. Para que me tornasse uma imagem seminal, ainda precisava fazer coisas, tais como: * beber cicuta em taça de cristal * cortar a orelha * ser enforcado com echarpe de seda * cravar um punhal nas costas de meu pai * incendiar Roma e tocar harpa * negar tudo a cada canto do galo * matar o Minotauro e trepar com uma sereia em mênstruo * etc etc amém. **** Como já deve ter percebido, gosto muito de digressões! sou obrigado continuamente a voltar atrás para preencher o grande vazio que há diante de mim. Sim: um grande buraco branco e perturbador! **** Segundos antes do apontar da barba, como não achava alento em santidades, achei por bem procurar consolo nas putas. Porém era enxotado quinem cão vadio, quando exibia meu aspecto novo e franzino, nas imediações da zona de prostituição. Fiquei longe do céu e do inferno, tornando-me um habitante do limbo, (dizem que quando um bebê morre sem batizar vai para esse lugar, portanto deve ser enterrado com os olhos bem abertos para que ele próprio consiga encontrar a porta do céu).

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Repetindo: Fiquei longe do céu e do inferno, tornando-me um habitante do limbo, ate encontrar minhas amigas: Mary Ann Nichol, Annie Chapmam, Elizabeth Strid, Catherine Eddowes, Mary Jane Kelly. Com esses nomes você pode até achar que são atrizes de cinema. _ Não são não! Tornamos inseparáveis, confidentes, e elas, pouco a pouco, foram me contando suas aventuras pelos bordéis europeus e me fazendo homem. Às vezes ficava o dia todo entre elas, sentindo o cheiro de seu pó de arroz, ouvindo suas risadas e seus casos pecaminosos e sedutores, fazendo-me esquecer do futuro, que minha família armava para mim. Esquecia até de reparar a santa estampa que ficava em frente a minha cama e passava dias e dias sem percebê-la. É melhor explicar quem são elas: são as vítimas do Jack Estripador. No dia em que meu pai leu uma reportagem na revista “O Cruzeiro” sobre Jack, o Estripador e comentou o artigo na mesa de jantar, desisti da comida e fui ler o que dizia o artigo. Aquelas mulheres sem órgãos eram por demais fascinantes. O texto era uma análise sensacionalista dos crimes e descrevia pormenores da extirpação acrescentando fatos e detalhes inverídicos. Esse momento seguiu-se de um violento abalo, uma avalanche em intensidade e extensão. Todos os limites da moral e da natureza, de idade e sexo, do dia e noite, foram rompidos. O cérebro celebrou suas orgias e eu passei a travar com essas mulheres longos e longos diálogos. Não pense que elas me ensinaram apenas putarias, ou que a loucura em mim se apossou! Foram elas que me disseram que Jack era um fazedor de santas. (Um instrumento de Deus para enviar aos céus corpos purificados pelo martírio.) Provaram-me que todo carrasco é um fazedor de santos e relatavam, com detalhes, toda sorte de provações que tiveram de 99


sofrer para chegar a glória de Deus. Mary Jane, das cinco, foi a mais torturada e seu corpo foi quase todo esvaziado de seus órgãos. Era a minha preferida! (e, com certeza, a mais santa.) Até seu coração foi arrancado. Certa vez, ela retirou a blusa e me fez penetrar o dedo em seu peito vazio. (ora ora!... eu são tomé!... caravaggiando) e foi com o dedo nesse buraco vazio que descobri que: divino é continuidade do humano; e diabólico é a evolução do humano. Senti um arrepio em pensar isso e ver que o diabo é o princípio transformador e Deus o princípio conservador. Se não abandonasse essas ideias rapidamente me tornaria um adorador do diabo. cruzcredo! Agora, ao escrever isso, lembro uma frase de um tal de R.P.Warren (que nunca li nada dele a não ser isso), que diz que devemos fazer o Bem a partir do Mal, pois não há nada que se possa fazer depois disso. Retirei meu dedo do buraco do peito de Mary Jane e senti que ele estava gelado como um picolé. **** (Explicação necessária: para que minha história tenha uma lógica, tenho que contar sobre a minha fixação por caixas de brinquedos. Sempre as preferi em detrimento aos brinquedos que nelas continham. Os corpos sem órgãos dessas sedutoras mulheres são similares a essas caixas e aos brinquedos que ganhava. Quando via um novo brinquedo vinha em mim um grande ardor e interesse e imediatamente buscava uma ferramenta para o desmontar. Enquanto houvesse peça eu ia desmembrando, decompondo, analisando. No final não me restava nada. Nem sequer aprendia coisa alguma a respeito do meu desmonte. Só um vazio rodeado de peças que não mais sabia recompô-las e vozes repressivas e furiosas de familiares, que eu evitava prestar atenção no conteúdo das palavras ditas. Nada!... e ficava horas a olhar a caixa, as peças, como se apenas isso me bastasse: adorá-las!) **** 100


... conversa vai conversa vem... com essas minhas amigas... até que, um dia: _ eureka!... acabei por descobrir uma prova irrefutável da não existência de Deus. Afinei minha teoria com minhas interlocutoras. Era uma prova complexa, porém facilmente assimilada, sem nenhuma necessidade de mediações filosóficas. Por diversas vezes reexaminei minha tese de frente pra trás, de trás pra frente, antes de apresentá-la ao público (que era minha família, claro!) com segurança e eloquência. Era uma prova perfeita. Deus não existe! Serei o primeiro no mundo a provar. (imaginei, de quebra, o desmonte dos seminários... Ufa!...) Aguardei a noite - hora em que a família se reunia - para deslumbrá-los com minha genial descoberta. Porém, já no meio da tarde percebi que havia esquecido a exata formulação de uma das passagens da minha teoria. Comecei a ficar nervoso e procurei Mary Ann para que me reconectasse as minhas provas. _ Ah! sim!... era isso! reencontrei meu pensamento ...mas logo em seguida me dei conta de ter perdido outras três evidências importantes. Precisava de todos os argumentos exatos e concisos e sentia que um a um se misturavam, desapareciam e quanto mais aprofundava minha conversa com minhas amigas, mais dava conta de que a prova da não existência de Deus perdia suas firmes e admiráveis comprovações. Alguns fatos já nem mais sabia se pertenciam a ideia original! Como um relâmpago, achava a ponta da meada que, imediatamente, se retorcia e desfazia. O cérebro virou um pisca pisca, um lusco fusco, um treme treme. Era como se estivesse desmontando um brinquedo e peça por peça rolavam e sumiam sobre o assoalho da grande caixa, que era o meu quarto. Ao ver meus argumentos esvaindo percebo também que minhas amigas, uma a uma, empalidecem, desesperam e são tragadas numa quina do quarto, que se abre como um redemoinho. Acredito que a serventia dessas mulheres em minha vida era apenas para formatar essa inefável pro101


va e, agora, já não havia mais sentido sua existência por aqui. Diante da evidência do nada, elas e muitas outras coisas que habitam em meu quarto, escoavam, em um ponto que resolvi batizar de “Zona de Ausências”. Eu, que sempre habitei nesse quarto, que o atravessei inúmeras vezes, só agora percebo que tudo é estranho nesse ambiente. Menos a ausência. Bem acima dessa “Zona de Ausência” está o quadro da virgem com os três pastorzinhos e, olhando para ele, deduzo que ausência nada tem com vazio. Vivo nesse espaço apenas para formular inúmeras e contrastantes perguntas sobre a ausência e, de viés, contentar com o sentimento de vazio. Como um ralo a escoar água, a “Zona de Ausência” foi sugando tudo que por ali habitava. _ Adeus! ouvi Mary Ann dizer acenando, seguido de outros quatros gritos de adeus! que rodopiavam juntos com chinelos velhos, soldadinhos de chumbo, queridos livros do Monteiro Lobato, meu trem de ferro vindo das estranjas, bicicletas, carrinho de rolimã, papéis, lápis e uma infinidade de perguntas cujas respostas eu já havia desistido delas há tempo. As coisas agiam como se vivessem no conto da Alice caindo no país das maravilhas. Ou era Doroty rumando a Oz? Só eu é que não ia. porque eu era Oz e Oz era Alice e Alice era Judy Garland e Judy era Lúcia e Lucia era Jacinta e Jacinta era Francisco e Francisco era o Chapeleiro Maluco e o Chapeleiro era Jonny Depp, Jonny era Jack, através do ralo do esgoto... rumando sugados rumando rumando ?????? Meu quarto ficou asséptico. Restou-me uma cama, uma cadeira e uma mesinha vazia. Por cima da cama a virgem parecia me acenar presa no vidro do quadro. 102


Só então percebo que sou o quinto elemento desse quadro: a virgem, Lúcia, Jacinta, Francisco e EU. Somos cinco, assim como as cinco vítimas do Jack, que não se conheceram em vida e só se uniram através de suas histórias de morte, pelas mãos de seu assassino. Só então me vejo um pastorzinho fuleiro, teimando em não querer me ajoelhar, mas já personagem incrustado na estampa da virgem santa, preso dentro do vidro do quadro, querendo provar a minha inexistência divina. Somos cinco nesse quadro, nesse quarto, vivendo no país das maravilhas e seduzidos por Oz. São cinco as vítimas martirizadas, unidas por Jack, protegidas pelo vidro da História. (...que me protege, que nos protege.) Jack, assim como minha vó, são anjos, a construir as sete camadas do universo. (... só conheço duas camadas do universo: a minha com os pastores e a de Jack com suas vítimas. Preciso de tempo para conhecer as outras cinco). Por enquanto, ainda tenho uma vida a cumprir, que é a imitação de outra e mais outras, de gentes que deduzo felizes. Tenho uma vida que veio maquiada de berço e uma estrada repleta de armadilhas e obstáculos escondidos, onde vou trilhando e descobrindo que eu mesmo sou os entraves. E estou sempre continuando a continuar. ... e estou sempre forçando o vidro do quadro que nunca cederá. Não quero pensar que minha vida seja esse conto que escrevo, sem pé, sem trama nem herói, feito e preso em vidro e desolação, advindo de um murmúrio febril e digressões constantes, como um delírio de uma febre. _ NÃO! Pretendia escrever minha história audaciosa e (poderia até ser munchauseana) percebo, agora, que ela acontece num espaço pouco generalizado, com uma superposição de diversos espaços newtonianos e nunca tratei do tempo com seu devido valor. Não tenho conhecimentos matemáticos suficientes para traduzi-la em termos claros e objetivos, mas gostaria que alguém o fizesse por mim. Quero crer, que alguma coisa muito esplendida e solene, ainda me venha acontecer. 103


(viver é correr atrás da cenoura amarrada em frente do burro. É gostar da luz do fim do túnel sem nunca chegar a ela.) **** Quando o primeiro pelo explodiu a pele do meu rosto e a “Zona de Ausências” transformou minha vida numa caixa vazia, saí a esmo, sem destino, até dar de cara no paraíso terrestre da minha vó, diante do arbusto que tanto temia. ... e ele não passava de um pé de mexerica! brinquei com meus pensamentos e quase sorri quando vi em cima dele a santa, resplandecida, lívida, parecendo cansada da jornada que a levou até chegar ali. Recusei ajoelhar, pois isso me faria copiar a pose do quadro e a encarei, deixando a imagem acostumar na minha retina e aquietar meu coração. O sol atrapalhava minha visão e não dava para saber ao certo se sobre o arbusto estava a Virgem ou Mary Ann ou era a minha vó a apanhar mexericas. Com a respiração menos acelerada pude perceber que toda árvore brilhava e os galhos mais pareciam agulhas, lanças, setas e que explodiram espalhando farpas por todos os lados. Uma delas explodiu bem em minha direção. Senti os olhos riscados e antes de gritar de dor lembrei-me de minha vó dizendo: _ quando um bebê morre sem batizar ele vai para o limbo e deve ser enterrado com os olhos bem abertos para que ele próprio consiga encontrar a porta do céu. Obs: Para que essa história tenha um desfecho compreensível, devo informar, que desde sempre, uso óculos. Mais de nove graus de miopia. Só consigo ver de perto. Melhor ainda: por dentro.

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RES DERELICTA *

* Coisa abandonada


Fumo. Penso. Não existo. Imagino. Memória é onde se abrigam os mortos que se recusam a decompor. É onde pensamentos desembarcam com mordaças e onde excomungo alumbramentos impregnados de uma realidade intransponível. É como se recebêssemos vidas reutilizáveis, acondicionadas em cadernos recapados. Na memória vê-se melhor nuvens que pessoas. É um olhar para o céu de cabeça baixa e, de cabeça baixa, arrotamos dias perdidos. Fumo. Penso. Não existo. Sobre a mesa guimbas de cigarros aguardam novas bocas.

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CANIBAIS DEVORADOS Ou: posfรก(cio)


O gato é a alma do antigo Egito. É herdeiro de sinistros segredos da velha África. É irmão da esfinge e consegue recitar o que ela já esqueceu, praticando, quando entra no cio e grita sobre os telhados, o meu nome: miguel miguel miguel... No dia em que esses miados perfuraram meus tímpanos, descobri que era cego e que agia como se fosse apenas ouvinte e que sempre ouvi o que também era para se ver. Então interroguei ao gato o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Ele se chamava Oswald de Andrade. (contou-me Jair Raso, um médico que fura cérebros para retirar gatos, como se fossem coelhos de cartolas.) Comi suas Carnes Cruas. Só como carne de primeira. Se a carne é de segunda acabo regurgitando.

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Textos: Miguel Gontijo Design: Clara Gontijo © Copyright 2020, Miguel Gontijo

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Gontijo, Miguel Angelo Arsenal Miguel Gontijo / [ilustrações Miguel Gontijo]. -- Belo Horizonte : Ed. do Autor, 2020. ISBN 978-65-00-04040-1 1. Artes 2. Artistas plásticos 3. Desenhos 4. Gontijo, Miguel, 1949- I. Título. 20-37482

Índices para catálogo sistemático: 1. Artistas plásticos 730 Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964

CDD-730


Miguel Gontijo e formado em História e Pós, graduado em Artes e Contemporaneidade. Possui obra em várias entidades públicas no Brasil e exterior. Premiado em diversos salões oficiais; recebeu, em 2010, o Prêmio “Mario Pedrosa” (artista de linguagem contemporânea), da Associação Brasileira dos Críticos de Arte, ABCA. Foi destaque do Ano, no setor Artes Plásticas, em colunas especializadas, em 1977, 1978, 2000 e 2010. Em 2004 publica o livro “Profanas Escrituras” Em 2009 é lançado o livro “Pintura Contaminada” Em 2010 é exibido nas TVs culturais europeias o documentário “Brazil for Beginners”. Uma conversa do artista com o artista belga multimídia Michael Borremans. Em 2012 é lançado no Museu Inimá o livro e a exposição “Miguel e o Ornitorrinco”. Em 2019 lança o livro “Axis Mundi” Possui vários textos e artigos editados em catálogos, revistas, livros e jornais

miguelgontijo@hotmail.com miguelgontjio.blogspot.com



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