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direito a cidade

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o edifício

o edifício

A ocupação Luísa Mahin traz, para o bairro do Comércio, não apenas moradia, mas um espaço de resistência e de enfrentamento às políticas de esvaziamento do centro antigo. Desafiando as maneiras convencionais de solucionar a demanda por moradia, os residentes apropriaram-se de um espaço inicialmente utilizado para fins institucionais, e transformaram-no em um edifício residencial, inventando novos arranjos e usos aos espaços existentes, reinserindo o prédio abandonado na dinâmica da cidade. O direito à moradia, é um direito garantido constitucionalmente. Na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 7º, inciso IV, ao estabelecer que o salário mínimo deveria ser suficiente para atender às necessidades primordiais dos trabalhadores rurais e urbanos , juntamente com seus dependentes, tem-se a expressão desse princípio (BRASIL, 1988). Contudo, ele só foi expressamente incluído no rol dos direitos sociais fundamentais através da emenda constitucional n. 26, em seu artigo 6 o . “ São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (BRASIL, 2000). A dimensão da moradia ganha ainda mais expressividade com a promulgação da Lei N o 10.257 - conhecida como Estatuto da Cidade - em 2001, agregando também outros elementos para a defesa da função social da propriedade, como é o caso expresso em seu Artigo 39, inserido no Capítulo III, nomeado Do Plano Diretor:

“A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2o desta Lei” (BRASIL, 2001).

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O referido artigo, N o 2 do Estatuto da Cidade, versa sobre os objetivos da política urbana quanto ao desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana. É interessante colocar que, nos incisos do artigo 2 da dita lei, é posta em questão a necessidade de prezar pelos interesses sociais no planejamento das cidades, visando corrigir eventuais prejuízos que o crescimento urbano tenha provocado. No entanto, esses direitos e orientações, embora reconhecidos e legalmente estabelecidos, não são amplamente cumpridos. No processo historicamente perverso e excludente de expansão da cidade de Salvador, as camadas de rendas mais baixas foram continuamente invisibilizados ou marginalizadas pela política urbana, que tratava de assegurar a fixação das populações mais pobres nas áreas mais distantes e menos infraestruturadas da cidade. Embora haja um significativo número de imóveis vazios e subutilizados, a prática da política urbana é a construção de novas e insuficientes unidades habitacionais, distantes do centro urbano e sem acesso à serviços e equipamentos indispensáveis para assegurar condições de vida digna. De acordo com Baltrusis e Mourad, no texto Política Habitacional e Locação Social em Salvador, de 2014, é possível comparar o déficit habitacional da cidade com o número de imóveis para uso habitacional vazios no espaço urbano.

“De acordo com dados do Ministério das Cidades, em 2011, o déficit habitacional em Salvador foi estimado em 114.524 unidades, o que correspondia a 13,3% do parque residencial da cidade. Já os domicílios vazios ou sem uso correspondiam a 12,5%. Grosso modo, poder-se-ia suprir a falta de moradias utilizando os imóveis vazios” (MINISTÉRIO DAS CIDADES apud BALTRUSIS, MOURAD, 2014).

Os moradores da Ocupação Luísa Mahin figuram nesses dados de déficit habitacional de Salvador, ao mesmo tempo em que executam de forma autônoma o atendimento e

cumprimento às suas demandas, uma vez que o poder público não cumpre com suas obrigações. Como já sabido e apontado, a política urbana executada pelo poder público, não tem assegurado uma qualidade de vida digna que alcance a todos os cidadãos. Ainda que os problemas, que justificam a existência de muitos dos instrumentos, sejam legítimos, os modos de operar as possíveis soluções, em geral, não apresentam respostas que democratizem o acesso ao direito à cidade, como comprovadamente observa-se no Plano de Requalificação do Centro Antigo de Salvador (Governo do Estado da Bahia, 2012); no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PMS, 2016); e no Programa Revitalizar (PMS, 2017). Em contrapartida, a ocupação, através da ação direta, vem construindo alternativas nas quais essa mesma parcela da população, que é marginalizada pelos planos oficiais, são postas em protagonismo.

Plano de Requalificação do Centro Antigo de Salvador (Governo do Estado da Bahia, 2012)

O Plano de Requalificação do Centro Antigo de Salvador, apresenta, como um dos principais desafios, a transformação deste espaço urbano em uma zona com condições de habitabilidade, para fixação dos atuais moradores e atração de novos, reconhecendo a existência de 1400 imóveis fechados, em ruínas e lotes baldios, que não cumprem sua função social. Ao contrário do que em geral se argumenta sobre a inadequação quanto à presença de ocupações, como a Luísa Mahin, nas áreas centrais da cidade, a existência dessa alternativa de moradia dialoga diretamente com as preocupações expostas pelos próprios gestores públicos nesse mesmo documento. O Plano, assim como os residentes da Ocupação, reconhece a necessidade de promover o incentivo ao uso habitacional e institucional e do aprimoramento das ações e serviços de atenção à população vulnerável. No entanto, enquanto o Plano privilegia as classes mais abastadas, cuja renda seja superior a 5 salários mínimos, a Ocupação acolhe em seu edifício famílias sem teto, moradores de cômodos e cortiços, com renda inferior a um (1) salário mínimo. Embora o Plano reconheça a importância do desenvolvimento de programa de participação comunitária com essa mesma população (composta por cerca de 3 mil famílias moradoras em condições de vulnerabilidade no entorno), é a Luisa Mahin que abre suas portas para acolher em programações diversas e gratuitas os moradores do Comércio, através de parcerias que vêm desenvolvendo com Universidades, Organizações Não Governamentais, Movimentos Sociais e voluntários, que conjuntamente constroem uma importante agenda de atividades que auxiliam nos vínculos comunitários e afetivos mais sólidos entre todos os envolvidos. Se é prioridade para o Plano o repovoamento da área, a ocupação Luísa Mahin, com suas atividades, cumpre essa função ao atrair regularmente, moradores de distintos bairros da Região Metropolitana de Salvador, como os estudantes do curso pré-vestibular organizado em parceria com o coletivo NósK, que vem de São Cristóvão, Itinga, Cajazeiras, Pirajá, Capelinha, Uruguai, Boa Viagem, etc. Embora o plano preveja inserção de habitações de interesse social, fica evidente no próprio documento, para onde estão direcionadas as principais preocupações:

“O primeiro objetivo específico considera a importância de atrair para morar no centro, famílias com maior padrão de renda que possam dar outra dinâmica aos bairros centrais, a partir do maior consumo de bens e serviços. Este assunto será tratado no texto sobre novos investimentos imobiliários, a partir de modelo financeiro para produção de habitação, comércio e serviço para o mercado imobiliário” (GOVERNO DO ESTADO DA BAHIA, 2012, p.166, grifo nosso).

Nesse sentido, a ocupação, em sua proposta e modos de operar, apresenta-se como uma resposta muito mais democrática e revolucionária no que tange o acesso aos direitos legalmente instituídos de acesso à moradia digna e à cidade.

Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (Prefeitura Municipal de Salvador, 2016)

O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) é uma das recomendações do Estatuto da Cidade para cidades com mais de vinte mil habitantes, devendo direcionar seus instrumentos para a garantia do Direito à Cidade. Com reformulações a cada quatro anos, o último PDDU de Salvador foi aprovado no final do ano de 2016, sendo acompanhado de fortes críticas da sociedade civil e seus movimentos. Essa censura está relacionada com a ausência de políticas efetivas para assegurar os direitos das populações mais vuneráveis, constituindo em mais um instrumento das ações econômicos sobre os espaços urbanos. Ainda que se mostrasse referenciado aos direcionamentos indicados no Estatuto das Cidades, esse Plano não apresentou uma efetiva aplicabilidade dos seus instrumentos, se conformando em um conjunto de sugestões de práticas urbanísticas, mas que não se aprofundam nas necessidades reais das populações urbanas. Um dos princípios funamentais de documentações que versem sobre o direito à cidade é a função social da propriedade, mencionada no PDDU, mas sem indicações de instrumentos que consolidem sua efetivação. Esse dado pode ser comprovado no Artigo 10 da seção TÍTULO II - DOS PRINCÍPIOS, destacando-se o seguinte trecho:

“§2º A propriedade urbana cumpre a sua função social quando atende ao princípio do interesse público, expresso na função social da cidade, e obedece às diretrizes fundamentais do ordenamento da cidade, estabelecidas neste Plano Diretor, sendo utilizada para as atividades urbanas permitidas, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas” (SALVADOR, 2016).

Neste parágrafo, percebe-se a citação do príncipio de função social da propriedade, porém seria necessário que ele viesse acompanhado de diretrizes mínimas para sua efetivação, garantindo, além do direito à moradia, o direito à infraestrutura urbana, equipamentos públicos, mobilidade urbana, equidade socioterritorial. É sabido que a Ocupação Luísa Mahin, ao apropriar do edifício, que se encontrava abandonado, contribui para o cumprimento da função social do imóvel, ainda que esse papel devesse ser desempenhado pelo governo.

Programa Revitalizar (Prefeitura Municipal de Salvador, 2017)

Em mensagem de alcance público, endereçada ao presidente da Câmara Municipal de Salvador, o prefeito do referido município torna pública suas intenções com o Projeto de Lei nº 302/16, em que institui o Programa de Incentivo à Restauração e Recuperação de Imóveis do Centro Antigo de Salvador – PROGRAMA REVITALIZAR. Já na mensagem de apresentação do documento, que se segue, a referida autoridade expõe sua preocupação com o repovoamento da região, fato quem tem sido reforçado pela Ocupação Luísa Mahin desde sua chegada ao bairro do Comércio:

“Ademais, consoante a moderna concepção das cidades compactas, busca-se estimular o uso misto das edificações: por um lado, em relação aos imóveis residenciais,

residenciais, permite-se sua transformação em multidomiciliar, bem como sua destinação coletiva, para hospedagem turística ou residência estudantil, facultando-se ainda o uso do pavimento térreo para comércio ou serviço; por outro, em relação aos imóveis não residenciais, passasse a admitir o uso uni ou multidomiciliar nos pavimentos superiores, desde que ocupado integralmente o pavimento térreo com comércio ou serviço, visando o repovoamento da região, com incremento da função habitacional no Centro mediante a oferta de habitação para as diversas faixas de renda” (Mensagem nº 20/16, extraída da plataforma digital da Câmara Municipal de Salvador. Disponível em: http://www.- cms.ba.gov.br/upload/Mens._20_PLE_302_20161216105745406902.pdf. Acesso dia 10/05/2017).

Mesmo no Programa Revitalizar, em que são concedidos incentivos fiscais a proprietários para que reformem suas propriedades, o uso misto de comércio e serviço já é incentivado:

“Para beneficiar-se dos incentivos desta Lei o imóvel não residencial deve ter pelo menos o seu pavimento térreo integralmente ocupado por serviços e atividades comerciais, admitido o uso residencial, uni ou multidomiciliar, nos pavimentos superiores.” (SALVADOR, 2017).

Este arranjo de usos proposto pelo Programa é o mesmo arranjo elaborado pela Ocupação Luísa Mahin que abriga em seu 1º pavimento a Escola de Formação Carlos Marighela - gratuita, destinada a jovens e adultos de todas as idades, vindos de diversos locais da cidade - e no térreo – que ainda está sendo preparado - um espaço para comercialização da produção a ser realizada pela cooperativa social (em processo de construção) que, aliada à escola de formação, possibilitará a geração de renda através desse arranjo produtivo solidário. A ocupação do edifício dessa forma, está contribuindo diretamente com a dinamização econômica e dos usos do Comércio e do Centro Antigo de Salvador. Além disso, o Programa respalda-se no Estatuto da Cidade (já exposto anteriormente), para evocar a obrigatoriedade da utilização dos imóveis, tombados ou não, inseridos dentro da poligonal de preservação:

“Observado o disposto no Art. 182, § 4º da Constituição Federal, será exigida a obrigação de edificar ou utilizar os imóveis localizados na poligonal a que se refere o §1º do art. 1º, desta Lei que, nos termos da Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho de 2001 – ESTATUTO DA CIDADE, arts. 5º a 8º e da legislação urbanística do Município, sejam mantidos não edificados, subutilizados ou não utilizados” (SALVADOR, 2017).

Sabe-se que a Ocupação Luísa Mahin cumpre diretamente tal designação.

Referências: BRASIL. Lei n.º 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. SALVADOR. Lei Nº 9.069/2016 de 30/06/2016 – Dispõe sobre o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano do Município de Salvador – PDDU 2016 e dá outras providências. SALVADOR. Lei Nº 9.215/2017 de 19/05/2017 – Institui o Programa de Incentivo à Restauração e Recuperação de Imóveis do Centro Antigo de Salvador - PROGRAMA REVITALIZAR, e dá outras providencias.

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