Sumário APReSeNTAçãO DO LIVRO .................................................................................................... 5 APReSeNTAçãO DA SéRIe asM3M ....................................................................................... 7 MUSA ......................................................................................................................................... 11 *** ANOS 1990. *** ................................................................................................................... 13 *** 1993. DeZeMBRO. TeRçA. RAPAZ POBRe e SeM CORAçãO. *** .......................... 13 *** 1994. A NOVA ALUNA. ***................................................................................................ 14 *** 1994. SeTeMBRO. SeXTA. PLAYLIST. *** .................................................................... 17 *** 1994. SeTeMBRO. SeXTA. SéTIMO DIA. *** ................................................................ 23 *** 1994. SeTeMBRO. SeXTA. SONGBOOK. *** ............................................................... 26 *** SONGBOOK. #22. NOITeS De LUAR. *** ..................................................................... 28 *** 1994. SeTeMBRO. SeXTA. O DOG ALeMãO. *** ........................................................ 29 *** SONGBOOK. #24. eNTRe VOCêS e eU. *** ................................................................. 32 *** 1994. SeTeMBRO. SeXTA. SeM eSPUMA. *** ............................................................. 34 *** SONGBOOK. #19. X AS TAKING AS NO ONe. *** ...................................................... 35 *** 1994. SeTeMBRO. SáBADO. YeS. *** ........................................................................... 39 *** 1994. SeTeMBRO. SáBADO. A úLTIMA CeRVeJA. ***............................................... 43 *** 1994. SeTeMBRO. DOMINGO. O eSQUILO. *** .......................................................... 47 *** SONGBOOK. #29. QUeM MATOU A BeL? ***.............................................................. 55 *** 1994. SeTeMBRO. DOMINGO. PAR De OLHOS. *** .................................................. 57 *** 1994. OUTUBRO. BOQUIABeRTO *** ........................................................................... 60 *** ANOS 2000. *** ................................................................................................................... 60 *** 2004. SeTeMBRO. ANGéLICA ***................................................................................... 61 *** 2004. SeTeMBRO. CONVeRSAS NOTURNAS. *** ..................................................... 63 *** 2004. OUTUBRO. DUAS VISITAS.*** ............................................................................ 66 *** 2004. OUTUBRO. UMA VISITA. *** ................................................................................ 68 *** 2004. OUTUBRO. ATé Já. *** .......................................................................................... 70 *** 2004. DeZeMBRO. DOMINGO. LADeIRA ABAIXO. UMA PeRSPeCTIVA. ***........ 72
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*** 2004. DeZeMBRO. DOMINGO. RUIVãO ***.................................................................. 74 *** 2004. DeZeMBRO. DOMINGO. LADeIRA ABAIXO. OUTRA PeRSPeCTIVA. *** .. 78 *** 2004. DeZeMBRO. DOMINGO. RUIVãO. MeU eRRO. *** .......................................... 80 *** ePíLOGO ***........................................................................................................................ 82 SONGBOOK. ............................................................................................................................ 85 A1. VONTADe De SeR............................................................................................................ 86 A2. WHeN THe SUN COMeS OUT. ...................................................................................... 86 A3. VeRIFIeR. ........................................................................................................................... 86 A4. X FRee. ............................................................................................................................... 87 A5. (IT IS) UP TO YOU. .......................................................................................................... 88 A6. O ReLóGIO. ....................................................................................................................... 89 A7. I AM NOT IN THe USA. .................................................................................................... 90 A8. TODOS e NeNHUM. ......................................................................................................... 90 A9. LOST AND GONe (I AM NOT THe ONe). ..................................................................... 91 A10. PATRICINHA, SIM, MAS NãO COMO A MINHA. ..................................................... 91 A11. TRISTe MeLODIA. .......................................................................................................... 93 A12. RAI-BABA-LOU. .............................................................................................................. 93 A13. DeSORDeM GLOBAL. ................................................................................................... 94 A14. CADêNCIA DIVINA ......................................................................................................... 95 A15. BeYOND GIRL. ............................................................................................................... 95 A16. A FLOR e O PROFeTA. ................................................................................................. 96 A17. AQUI ACABA Lá. ............................................................................................................ 97 A18. RITUAL DO DéCIMO OITAVO ANDAR. ..................................................................... 97 A19. SHe'S AS TAKING AS NO ONe. .................................................................................. 98 A20. Só COM VOCê eU QUeRO FICAR. ............................................................................ 99 A21. I AM BACK (PRA Te OUVIR). ..................................................................................... 100 A22. NOITeS De LUAR. ........................................................................................................ 101 A23. WOULD Be ANGeL. ..................................................................................................... 102
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A24. eNTRe VOCêS e eU. ................................................................................................... 103 A25. THOUSANDS OF MILLIONS OF eYeS. ................................................................... 104 A26. FeAR THe RIPPeR. ...................................................................................................... 105 A27. eATeN HeART, MeTAL HeART. ................................................................................ 105 A28. O MUNDO De JeNAI. ................................................................................................... 106 A29. QUeM MATOU A BeL. ................................................................................................. 107 eSBOÇOS De DUAS VeRSõeS De STORYBOARD DO AUTOR COM eVeNTOS QUe OCORReM NO MeSMO MêS e IMeDIATAMeNTe ANTeS DOS QUe SãO NARRADOS eM SeTeMBRO De 2004 NeSTA eDIÇãO. ................................................ 108 Produção gaúcha. ...................................................................................................................... 145
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APReSeNTAçãO DO LIVRO Esta é uma obra de ficção e não tem qualquer compromisso com a realidade... as musas e os humanos com os quais se relacionam (ou confrontam) não existem. As situações apresentadas? Menos ainda... Não acredito nas musas ou em fantasmas... nestas que aqui apresento: elas mentem muito. Quanto aos fantasmas que as perseguem... esses são frutos da imaginação delas... Se é que serve como argumento em defesa destas musas, elas não mentem deliberadamente, conscientes de que estão faltando com a verdade, mas por que acreditam no que viram e ouviram... algumas nunca estudaram. Elas sabem que viveram os delírios dos humanos que invocam seus préstimos nos campos das artes e de alguma ciência de mesa de bar ou de cafeteria de universidade. Por vezes, até comprometem a verdade histórica... entretanto, não faltam com a verdade das próprias experiências de vida. Entre a verdade dos outros (ou a do mundo) e a verdade delas: optam por defender suas respectivas verdades. Por vezes, até entram em consenso umas com as outras... Umas acreditam que são tão velhas quanto o próprio mundo... no entanto, outras que não se creem tão antigas julgam-se (muito) mais sabidas... Eu as conheci nas ruas de Porto Alegre ainda no milênio passado... nas salas de aula de escolas públicas e privadas. Se bem que as musas que conheci nas escolas privadas não conversavam muito comigo... já as das escolas públicas, por vezes, dividiam comigo o lanche nos intervalos das aulas... Desenhei muitas delas... em especial as da universidade... Depois de um tempo morando em São Paulo, comecei a reconhecer algumas delas por lá... até que me trouxeram de volta à Porto Alegre e região metropolitana. E haja
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inspiração e ousadia para, depois de algumas décadas contemplando-as, expô-las aqui em textos que podem abalar nossas relações caso elas se reconheçam em uma ou outra genialidade que expuseram ao mundo dos mortais em caráter privado, ainda que fictício. Por questões especificamente voltadas ao entretenimento, as obras em questão utilizam elementos naturais e culturais deste universo como base para ambientar o universo das musas do terceiro milênio com uma certa consonância física, cronológica, geográfica e tecnológica. Entretanto, essas obras não têm compromisso com qualquer espécie de rigor quanto à precisão entre esses universos, por vezes até mesmo ausentes (rigor e precisão), justamente por envolverem um universo de ficção. Embora os personagens não existam, a natureza e a cultura do ambiente das musas do terceiro milênio fazem referências a elementos existentes. Por vezes, mencionam geografia e músicas que também existem em nosso mundo, de forma muito similar, contemplando elementos homófonos e homógrafos. Da mesma forma, mencionam obras e produtos provenientes da imaginação humana como objetos de uso cotidiano, reuniões corporativas e empresas que também existem em nosso universo. O norte desses personagens também fica situado na parte superior dos seus mapas e geralmente se orientam para o oriente rumo ao leste. Alguns estudam a vida toda, outros depositam dinheiro em bancos e alguns não viajam nas férias. Sentem fome e sede em ciclos contínuos, apresentam identidades distintas e estão sujeitos a processos de subjetivação. As geografias desses universos têm suas similaridades de relevo e, ainda assim, podem apresentar elementos com determinadas características não correspondentes (apesar de corresponderem de forma homógrafa e homófona). Por exemplo, a distância que separa os pampas gaúchos do Olimpo, ou mesmo dos
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infernos conhecidos, não corresponde aos cálculos efetuados por intermédio dos dados coletados por nossos satélites. APReSeNTAçãO DA SéRIe asM3M A série de livros “As Musas do Terceiro Milênio” não precisa ser lida em ordem. Não há uma ordem cronológica específica para consumo. Alguns dos contos foram escritos de forma simultânea, e nem todos os que começaram a ser redigidos primeiro foram concluídos antes dos demais. Na verdade, alguns nem foram concluídos ainda. A ideia é publicá-los na medida em que se apresentarem como concluídos. Os assuntos tratados não se encerram ali, no ponto final do conto. Eles demandam novos tratamentos conforme o tempo passa. Quando coloco um ponto final em determinado conto é para poder apresentá-lo, já que todos os contos se entrelaçam de alguma forma. Na verdade, parágrafos inteiros são suprimidos da versão original por não permitirem que o conto se encerre. A partir desses parágrafos, são introduzidas novas narrativas que precisam ser explicadas pelas musas. Esses parágrafos, a seu tempo, abrem outras narrativas que também precisam que as respectivas elucidações sejam expostas pelas mesmas musas que as trouxeram à luz por conta das necessidades de seus afilhados mortais. Embora nem sempre os mortais precisem necessariamente invocá-las para que elas os auxiliem. Como no caso de Eva, no volume 1 da série (As Musas Acham que...). Eva não precisava de ajuda desta vez. Novamente, a musa entrou na sala sem ser invocada. O que ela estaria buscando nessa visita que também sequer foi requisitada? Que preço cobraria de Eva por mais essa invasão repentina?
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Nesse pequeno conto em específico, a musa trata com Eva de termos como buscar, procurar, achar, pensar e saber... Os parágrafos que tratam dos verbos crer e acreditar foram prontamente removidos por causa dos desdobramentos que tornariam o conto muito extenso para o que nos propomos publicar a cada volume. Já o segundo conto da série aborda um livro que li há muito tempo e passou na frente dos demais na fila de publicações porque assisti o filme homônimo que encontrei no youtube em outubro de 2016. Optei por buscar uma versão impressa e encontrei duas. Quando as comparei, verifiquei que algumas traduções para o português foram atualizadas e que poderiam ser apresentadas no conto Do Desterro ao Caô... que já tratava de outra citação atribuída ao mesmo autor. O livro 1984 foi escrito por George Orwell e foi publicado em 1949. Nas páginas que antecedem o pequeno conto ilustrado do segundo volume de As Musas do Terceiro Milênio, apresento duas versões de tradução para a língua portuguesa de um pequeno trecho do livro 1984, entre as demais citações que inspiraram o conto ( musa, caô, desterro, Florianópolis, Hercílio Luz, Ondina e pólis ). A primeira tradução do referido trecho do livro 1984 foi publicada em 1978 pela Companhia Editora Nacional e a segunda em 2009 pela Companhia das Letras. Este trecho em específico se refere à prática de alteração deliberada de fatos históricos pelo partido que em 1984 estaria (se olharmos a partir de 1978) ou estava (se observarmos de 2009) no poder. Embora as diferenças entre as traduções publicadas nos anos de 1978 e de 2009 sejam mínimas, elas existem. Conforme podemos perceber em
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uma pequena parcela do parágrafo que é apresentado no pequeno conto: "Quem controla o passado," dizia o lema do Partido, "controla o futuro; quem controla o presente controla o passado." (versão de 1978). "Quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado", rezava o lema do Partido. (versão de 2009). Como os verbos "rezar" e "dizer" podem despertar interpretações de intensidades distintas dependendo do entendimento de cada leitor: deixamos que cada um desfrute de suas leituras e que nelas possam experimentar novas percepções de mundo, principalmente a partir de suas próprias experiências... Dessa forma, a musa loira do segundo conto brinca com as verdades que Idalberto julga conhecer e com a origem do termo caô enquanto drena as garrafas de cerveja do rapaz. No terceiro volume da série, a ruiva mais inconstante e fogona-roupa que Índio Bento Seguro já conheceu apresenta para ele a origem do termo mimimi em um debate que aborda cultura e tecnologia. Municiadas dos líquidos e fluídos de que necessitam, as musas deixam seus afilhados devidamente atarefados e partem para um último encontro antes de uma nova investida na tentativa de reverter os danos causados à humanidade com a evolução científica, antes que eles se perpetuem ainda às portas do terceiro milênio.
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CéSAR GONÇALVeS LARCeN
AS MUSAS DO TeRCeIRO MILêNIO
PLAYLIST para o QU4RTO VOLUMe.
1ª edição
Porto Alegre César Gonçalves Larcen 2019
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MUSA Musa, segundo o dicionário MICHAELIS. mu·sa sf 1 [usa-se também com inicial maiúscula] MIT Cada uma das nove deusas, filhas de Zeus e Mnemósine, que presidiam às ciências e às artes; camena. [Segundo uma versão primitiva, as musas eram habitantes das margens dos rios e das fontes, das montanhas e dos bosques e foram posteriormente alçadas desses ambientes bucólicos à condição de divindades inspiradoras das artes e das ciências. Eram em número de nove: Calíope (poesia épica), Clio (história), Euterpe (música), Melpômen (tragédia), Talia (comédia), Urânia (astronomia), Érato (poesia amorosa), Terpsícore (dança) e Polímnia (hinos).] 2 MIT Suposta divindade ou gênio que inspira a poesia. 3 Faculdade de fazer versos; estro, inspiração, sopro. 4 POR EXT Fonte de inspiração, geralmente uma mulher, que influencia um artista criador; tudo o que pode inspirar um poeta: "Matilde sentia orgulho do marido, ali, em pé, diante de poucos, expondo-se, apaixonado, como se estivesse de frente à sua musa inspiradora" (ER). 5 FIG Imaginação criadora; engenho poético; engenho, engenhosidade, talento. 6 A arte poética; o conjunto das obras em verso; a arte que se expressa por meio da palavra. ETIMOLOGIA gr moûsa. MICHAELIS, Dicionário. Musa. Editora Melhoramentos. Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=musa Acessado em: 21.mar.2017.
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PLAYLIST para o QU4RTO VOLUMe. COLeÇÃO AS MUSAS DO TeRCeIRO MILêNIO PLAYLIST para o QU4RTO VOLUMe. PRIMeIRA eDIÇãO. Primeira Edição e-Book Todos os direitos reservados 2019 145 páginas ISBN 978-85-915192-9-3
Capa e ilustrações: CéSAR GONÇALVeS LARCeN.
Editor: CéSAR GONÇALVeS LARCeN.
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*** ANOS 1990. *** O primeiro capítulo, que se refere ao ano de 1993, foi publicado pela primeira vez na segunda edição do terceiro volume da série As Musas do Terceiro Milênio, em 2018. Os demais capítulos que narram os acontecimentos no ano de 1994 são inéditos e estão sendo publicados nesta edição de 2019. *** 1993. DeZeMBRO. TeRçA. RAPAZ POBRe e SeM CORAçãO. *** Uma letra de música rabiscada em uma folha de caderno, arrancada e esquecida dentro do violão que Ruivão segurava em suas mãos diante do corpo sem coração do guitarrista, podia ser uma evidência de que as musas visitavam um mesmo protegido. Entretanto, ainda que fosse possível, Ruivão achou difícil crer que as visitas pudessem ocorrer de forma simultânea, a considerar pelo pouco que sabia sobre a extrema competitividade entre elas. Apesar dos acordes rabiscados à lápis sobre a grafia displicentemente depositada à caneta na superfície da folha agora desamassada, lia-se perfeitamente: Eu ouço vozes. E são três. Mas quem são vocês? Que não entendem ou porque não querem ou porque não podem compreender, não quem sou eu, mas quem são vocês. Os anjos me disseram que eu não sei amar. Eu ouço vozes. E são três. Mas quem são vocês? Curiosamente, Ruivão estava lá na única vez que esta música foi executada em público. Ela veio precedida de um cover que começou assim em um bar de São Leopoldo:
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Todo mundo tem um amor na vida e por ele tudo é capaz (...) A garota que eu adoro, por quem tanto choro, não pode me ver (...) Mas seus pais não querem nossa união. Pensam que a pobreza é lixo e que rapaz pobre não tem coração. *** 1994. A NOVA ALUNA. *** Caim e Maria Izabel estavam no portão da casa dela quando os rapazes da banda vieram chamar. - Corre, Caim. Conseguimos a casa do tio do Pereba para ensaiarmos no final de semana. Arruma as coisas e vamos. - Hoje? Hoje não vai dar, não... prometi pra Iza que íamos passar o final de semana juntos. A louça da cozinha ainda tá na pia para lavar e depois teremos que buscar a prima dela na rodoviária... A Zora tá chegando de ônibus agora às 14 horas. - Cara, a casa do tio do Pereba tá vazia total... Vai lavando a louça com a Iza que nós pegamos a Zora. A mina é muito gata... Na volta da rodô, passamos aqui e pegamos vocês pra passarmos o findi ensaiando. Pega a tua guita... já deixamos a bateria e o baixo lá antes de almoçarmos no Cachorro do Bigode ali na galeria. Maria Izabel já era da turma do Caim na escola. Conheceram-se no início do ano letivo quando ela foi estudar na classe dele no Julinho. O rapaz, na primeira oportunidade de trabalho em grupos com cinco alunos, juntou os quatro integrantes da banda de rock e convidou a menina nova da turma para fazer parte do quinteto de estudantes. Iza só topou porque Aline, que sentava ao lado de Caim, insistiu com sua característica provocação:
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- Anda, garota... se quer: quer. Se não quer: dá o prefixo e sai do ar. Não temos o dia todo... Aline olhou para os rapazes e adicionou: - Argh... não sei o que vocês viram nessa patricinha... ela não vai se misturar com a gente, não... Esquece, Caim. A mina não tá na tua... Izabel retrucou: - Não, eu quero, sim, fazer o trabalho com vocês. Não sou nenhuma patricinha... Estou anotando nossos nomes aqui pro sôr, grupo 1... Maria Izabel, Aline, Caim e... qual o nome do Pereba? E o do Kennedy? Aline sorriu e disse: - Eu sabia que tu era uma das nossas... chega mais, Iza... anota aí: Pedro... Reis... Batista. - Esse é o Pereba ou o Kennedy? Todos riram. Iza não entendeu de pronto... Caim achou que a galera estava zoando demais e saiu em defesa de Iza: - Qualé, galera? Pega leve aí! Falou em um tom grave, entoando um ar revoltado e ainda assim em volume baixo para não despertar a ira do vingativo Doutor Maguary, o professor de matemática mais temido do sul do país. Voltando-se para Iza, escreveu “pereba” no caderno e, a cada sílaba que apontava com o indicador, falava pausadamente cada um dos nomes correspondes do Pereba. Izabel sorriu meio sem jeito, mas não ficou (muito) brava... afinal, também se divertiu com a sua própria distração. Os
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outros quatro já estavam se recompondo novamente quando Iza perguntou: - E o que escrevo no nome do Kennedy? Aline botou o dedo indicador dentro da boca, com a língua pra fora, simulando estar vomitando e Caim disse: - Tu, também, não te ajuda muito, não, né, mina? Pereba simulou duas lambidas no próprio punho e bateu com ele na própria testa, esmagando o sorvete invisível contra o crânio. Kennedy quase caiu da cadeira, segurando a barriga de tanto rir. A turma toda se agitou com a reação do grupo e o professor de matemática se virou no momento em que Kennedy finalmente caía da cadeira gargalhando. Tentando retomar o comando da classe, ele gritou visivelmente alterado e incomodado com a algazarra: - Senhor Winston Churchil Kennedy Santos, por favor, se recomponha. Você e todos os demais: silêncio. Prova surpresa, agora. Afastem as classes uns dos outros... Na saída, um integrante de cada grupo vai deixar na minha mesa uma folha com o nome dos componentes do grupo junto com a prova. O professor pegou um maço de folhas de ofício que passaram pelo mimeógrafo há pouco e as entregou para o Kennedy. - Toma, distribui estas provas para a turma. Uma folha para cada um. Ao pegar as folhas na mão, sentiu o forte cheiro de álcool, leu o cabeçalho e protestou:
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- Sôr. Isso é matéria nova e aqui não diz que é prova. Tá escrito: “exercício”... - Sim, eu sei ler, senhor Kennedy. Aliás, fui eu quem escreveu o documento que acaba de ser promovido para prova. E, devido a algazarra de vocês, considero esta aula dada e vocês aptos para a prova. A aula transcorreu silenciosa enquanto os alunos faziam o teste. Os alunos não protestaram. Lembravam sempre de uma estória do tempo dos pais deles. Uma turma inteira foi reprovada por esse mesmo professor em uma época longínqua na qual ele já aparentava ter a idade que tinha hoje. Alguns acreditam que ele já nasceu velho... Quando terminou a prova, Iza colocou a folha na mesa. Puxou a folha de caderno com o nome dos colegas e escreveu no final da lista: Kennedy. *** 1994. SeTeMBRO. SeXTA. PLAYLIST. *** Ruivão ficou com aquela canção pós-cover o tempo todo na cabeça e não descansou até finalmente conseguir pôr as mãos na Playlist da banda para aquela noite. Não foi fácil. Teve que conversar com quase todos os outros porteiros de casas noturnas e de casas de show com os quais trabalhou. Ele estava na casa noturna naquela noite, mas não conhecia a banda. Era um pessoal novo, primeiro show ao vivo de uns moleques de Porto Alegre. Ruivão lembrou em voz alta: - Os guris eram bons. Mas não puderam usar o nome da banda. Tocaram covers dos Doors no mini-show de abertura da noite para o show de algumas bandas que já tinham se firmado no cenário do
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rock no sul do país ainda na década de 1980. Quando o show acabou, voltaram ao palco para o bota-fora. A expectativa era de que tocassem músicas próprias e estavam bem felizes com a oportunidade. Mas estavam apenas ministrando o famoso bota-fora. Isso foi lá pelas quatro horas da manhã. Um show para meia dúzia de bebuns e dois casais que não tinham para onde ir e continuaram enroscados por ali. A expectativa é que eles colocassem o resto do pessoal para fora e Ruivão e os colegas não precisassem ser enérgicos na missão de convidar aquele pessoal a sair. Naquela noite em que voltaram ao palco em São Leopoldo, a banda deixou de lado as canções gringas dos Doors e largou, logo na retomada, uma versão death metal do sucesso sertanejo “Desculpe, mas eu vou chorar”. Ruivão pensou novamente e se perguntou “ou seria trash metal?”... De qualquer forma, começaram apenas com os vocais na primeira estrofe (“As luzes da cidade acesa clareando a foto sobre a mesa, e eu comigo aqui trancado nesse apartamento-oh-oooh...). Os instrumentos começaram a entrar um após o outro ao longo da segunda estrofe. E o gutural cavernoso do vocalista foi solto junto com a bateria logo após o verso “do meu pensamento-oh-oooh”, agora entoando ferozmente o já famoso e lendário refrão. Nem parecia a mesma banda que abriu o show, mas Ruivão achou que havia um certo padrão pouco perceptível. Com certeza não estava no estilo musical, talvez na ambientação... talvez... ou algo nas letras das músicas, na temática... Um pressentimento ruim, uma sensação, passou pela mente e percorreu o corpo de Ruivão naquela noite de dezembro. Oito ou nove meses depois e Ruivão ainda não sabe bem o que era aquele sentimento. Agora com a Playlist daquela noite nas mãos, tem a mesma sensação, entretanto,
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pressente algo mais. Repostas? Pistas? Ele prefere que sejam respostas. Os colegas de Ruivão levaram-no a contatar o organizador do show daquela noite. Eles se encontram em Canoas, no estacionamento da faculdade. Era difícil de contatá-lo e Ruivão ficou de tocaia, aguardando-o, encostado no Voyage do produtor musical. Quando ele chegou, Ruivão estava terminando de comer a coxinha. Contato visual mútuo e caras de poucos-amigos. O produtor passou pelo lado de Ruivão, que continuou “encostado de costas” na porta do carona, vindo da dianteira do carro em direção ao porta-malas. Não falou nada. Só encarou. E foi encarado de volta: olho no olho. Abriu o portamalas e literalmente jogou a valise dentro. Mas não sem antes retirar umas folhas grampeadas e uma agenda do tipo calendário de 1991. Fechou o porta-malas e foi abrir a porta do motorista. Quando entrou, Ruivão já estava confortavelmente sentado no banco do carona. Ele já tinha aberto a porta há algum tempo e vasculhado o porta-luvas, de onde pegou a fita cassete que jogou no painel, diante do produtor. Completou a ação lambendo a gordura dos dedos e avaliando: - É um lixo... O produtor pegou a fita com a mão direita e jogou-a no banco de trás. Ela saltou no estofado e caiu no assoalho traseiro do lado do carona. Ele ergueu uma das sobrancelhas e concordou: - Uma bosta... - Você não vai conseguir tocar isto aqui na Felusp...
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- Na Cento e Sete, você quer dizer... - Cento e Sete, Um. Um número... que falta de personalidade... esse nome não é nada pop, não dou cinco ou seis anos pra reverterem isso... O homem parecia que não estava para conversa. Fingiu que não escutou, acendeu um cigarro e, sem olhar para Ruivão, usou a mão direita para pegar as folhas de caderno grampeadas e passar para as mãos do carona: - Aqui está a Playlist que você pediu... agora, salta do carro que eu já não tenho mais ido pra São Leo. Estou com uma série de shows pra ajeitar em Porto Alegre... Quando a fumaça toma conta do ambiente, Ruivão abre a janela da porta do carona, folheia a Playlist e olha para a agenda nas mãos do motorista: - E essa agenda aí? O homem tenta enfiar a agenda no porta-luvas diante de Ruivão tentando evitar que ele a pegasse: - Não encosta! Não é nada... Ruivão coloca a mão direita dentro do porta-luvas impedindo que ele se feche e com a mão esquerda afasta a mão do produtor, enquanto que a pequena porta se escancara deixando a agenda a mostra. - É algo, sim... estava junto com a Playlist na sua maletinha de grife, não estava? O produtor dá mais uma tragada no cigarro enquanto observa Ruivão pegar a agenda e colocar a Playlist dentro dela. Ele responde com o cigarro entre os dedos:
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- É o livro com as letras de músicas dos guris... Eles deixaram comigo e ficaram de buscar. Mas perdi o telefone deles... Ruivão abre a agenda e na página em branco que é antecedida apenas pela capa lê em letras estilosas como em um grafite a palavra “SONGBOOK”, enquanto o produtor expira a fumaça da última tragada e o restante da frase: - Tinha um cartão aí dentro da agenda fixado com um clip. - E cadê os moleques? - Não sei, perdi o telefone e a banda desapareceu. Estou procurando-os por toda a região metropolitana e ninguém sabe, ninguém viu. Os garotos estavam recém iniciando mesmo... É como eu disse: ninguém sabe, viu ou mesmo os conhece no circuito da noite... Ruivão fechou a agenda com a Playlist lá dentro e abriu a porta do carro dizendo: - Bom, acho que é mais difícil de te encontrar... já faz mais de mês que venho aqui para te dar uma incerta... sabia que uma hora destas tu ias dar as caras com um carregamento de fitinhas demo pra atazanar o pessoal da rádio. - Me devolve a agenda, os teus colegas disseram que tu estavas atrás da Playlist. Levantando do banco e saindo pela porta, Ruivão retrucou: - Isso porque eu não sabia que havia um Songbook... Vamos fazer um trato... Ele fechou a porta e, mantendo-se do lado de fora, projetou meio corpo para dentro do automóvel pela janela:
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- Eu vou achar esses moleques pra ti e te devolvo a agenda com eles de brinde... Aí tu voltas a me chamar pra cuidar da portaria na noite pra ti... Tô precisando de uns trocados extras... Ruivão percebeu que o produtor ficou nervoso por algum motivo. Deu a volta por trás do carro e, enquanto se dirigia para a janela da porta do motorista, ouviu o homem falar com a voz já um tanto abafada: - Deixa os moleques pra lá... me devolve a agenda e estamos quites. Eu juro que volto a te chamar pra portaria dos meus shows... - Volta, nada! - Olha, é que você é muito cri-cri... - Os moleques eram menores de idade, né? Me tirou da jogada porque eu ia chiar quando descobrisse, não é? - Eles tocam bem... - Tava esperando eles crescerem um pouco mais, né? Antes de trazê-los para a vitrine... mas, primeiro, teve medo de que alguém menos escrupuloso os descobrisse; segundo, pediu as músicas deles para avaliar e não deu tempo para que eles as reproduzissem antes de entregarem-nas para ti; terceiro, arrumou uma abertura e fechamento de show para arrancar os originais dos moleques e segurar contigo. Talvez para contatá-los assim que eles concordarem que outra banda grave as músicas deles. Ou, talvez, até que eles mesmos possam frequentar a noite porque os pais deles preferem que os garotos estudem... quem será que mudou o nome da banda deles? Está colocando fantasias nos moleques para que pareçam mais velhos? Ou para que nenhum outro produtor consiga encontrá-los também? Naquela noite
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pareciam personagens de desenhos animado de tanta maquiagem que tinham no rosto... Ele olhou pro chão e não levantou mais os olhos enquanto falava: - Nossa, você tem tantas teorias para explicar: nada. Absolutamente: nada. Ache os moleques para mim se quiser... - Eu quero. *** 1994. SeTeMBRO. SeXTA. SéTIMO DIA. *** Caim e Iza já estavam há um bom tempo no portão aguardando os rapazes retornarem quando avistaram a kombi descendo a rua novamente. Zora desceu do veículo antes mesmo que Pereba terminasse de encostar o carro junto ao meio-fio. Assim que a prima encostou os pés no chão, Iza a abraçou num salto que as levou para dentro do automóvel. Iza caiu sentada novamente no interior da kombi sobre uma caixa de madeira com um certo desconforto. Assim que Iza se afastou um pouco, ainda beijando o rosto da prima, notou a caixa enquanto Zora puxava o objeto debaixo de si para os braços dela. Recuando para fora do veículo ela perguntou: - O que é isso? Um jogo de talheres? Zora riu e respondeu, abrindo a caixa que tinha depositado nas mãos da prima: - É um tabuleiro ouija, Bel.
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Admirando a peça em suas mãos, Maria Izabel voltou a perguntar: - E o que é isso? Pereba estava ajudando Caim a colocar a mochila e a guitarra no auto, mas não se conteve e entrou na conversa: - Puxa, Iza... é o jogo do copo, mulher... você não presta atenção no que rola nos corredores do Julinho, não? Caim intercedeu novamente em favor de Izabel: - Vê se deixa a minha namorada em paz, Pereba, e vê se me ajuda aqui com as caixas de som. Maria Izabel tomou a palavra com um tom um tanto irritado: - Mas para jogar o jogo do copo o pessoal usa, pasmem, um copo... e escrevem o alfabeto numa classe lá nos corredores da escola... Tomando o tabuleiro das mãos da prima e fechando-o para colocá-lo na bolsa, Zora a interrompe: - E eu não sei, garota? Esse aqui é importado... lindo, né? Apreensiva e com um sentimento ruim, Maria Izabel retrucou visivelmente preocupada: - Mas você vai deixar isso aqui em casa, não é? Para que iríamos precisar disto na casa do tio do Pereba? Os guris vão lá para ensaiar e nós podemos fazer os backing vocals para a Aline...
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Pereba deu por concluída a tarefa de carregar os bancos traseiros com os equipamentos e voltou para junto das garotas: - A gente não vai ensaiar direto o fim de semana inteiro, não... E não estou mais afins de jogar stop e baralho, não. Hoje à noite nós vamos bater um papinho com os mortos... Ele terminou a frase com uma risada fantasmagórica. Caim correu para abraçar Izabel e completou: - Que afuzel... vamos poder conversar com o professor Maguary e cobrar as notas que ele não entregou antes de ir pro Beleléu no outro final de semana... Izabel sentiu um arrepio percorrer pela espinha e seus ombros tremeram involuntariamente... Caim sentiu o vibrar do tronco da namorada em seus braços, beijou-a no ombro e disse: - Ih, qualé, amor? Tá com medinho? A garota se desvencilhou do abraço e deu dois passos adiante, esfregando as mãos nos próprios braços para espantar o repentino calafrio: - Não faz assim, Caim, que eu não gosto... Além do mais, a missa de sétimo dia dele é hoje... as turmas vão deixar as homenagens no cemitério antes de partir para a igreja... mais respeito com os mortos... e comigo... A prima dela defendeu Caim que se acomodava nos bancos do centro entre os conjuntos de bancos dianteiros e traseiros: - Pega leve, Bel. O Caim tá só tirando uma onda pra descontrair... pra que o climão? Não tá feliz de me ver?
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Maria Izabel se deixou puxar por Caim e se acomodou junto ao namorado. Ela ficou sentada entre ele e Zora, que a abraçou puxando-lhe os cabelos por sobre as duas. Fez de tal forma que a prima deixasse o pescoço esticado e totalmente a mostra para Caim que o observava com um certo ar distanciado. Zora seguiu assim por algum tempo, segurando o maxilar de Iza entre os dedos indicador e polegar, ao mesmo tempo em que passava os demais dedos por toda a extensão do pescoço dela. Pereba parou diante da porta lateral e se deteve por alguns segundos olhando para os ocupantes antes de fechar a porta por fora. Ao som da porta fechando, Maria Izabel assustou-se e, de sobressalto, parecia ter tirado todos de uma espécie de transe coletivo. Pereba deu a volta pela frente do veículo, abriu a porta dianteira do motorista, acomodou-se diante do volante e deu partida no carro. Assim que as rodas deram as primeiras voltas, cortou o silencio avisando: - Bom, vamos lá, então. Ainda temos que pegar a Aline e o Kennedy no caminho. *** 1994. SeTeMBRO. SeXTA. SONGBOOK. *** Ruivão entrou na biblioteca da faculdade e sentou-se com a agenda aberta diante de si em uma das últimas mesas a partir da porta de entrada. Abriu nas páginas que encerravam a Playlist em folhas de ofício grampeadas e dobradas ao meio. Desdobrou e na primeira página leu a palavra Playlist bem no centro da folha. Eram três páginas. A capa seguida de uma segunda página listando doze músicas dos Doors escritas a lápis por uma caligrafia aparentemente feminina. Nove estavam riscadas à caneta, provavelmente pelo produtor. Ao lado das três
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músicas restantes apareciam os números um, dois e três, na ordem em que foram executas na abertura do show da noite. Na terceira página, havia aproximadamente outras vinte músicas. Pareciam títulos de músicas, mas eram nomes que Ruivão não conhecia. Não as conhecia embora parecessem, de alguma forma, familiares. E nessa terceira página não havia músicas riscadas, apenas três numeradas no meio da lista e fora de ordem. O número um indicava “Noites de luar”. “Entre vocês e eu” estava com o número dois. E o número três destacava “She is as taking as no one”. Ruivão achou que a letra do produtor aparecia, no alto da segunda página, grafando em garranchos não lineares a palavra “abertura” e, no alto da terceira página, “encerrame”. Parecia não ter sido possível grafar as letras “nto” junto ao extremo da margem direita. Logo abaixo da lista escrita com caligrafia feminina, com as músicas grafadas de forma perfeitamente alinhada à esquerda, os números apareciam novamente. Agora, com os garranchos desalinhados e dispostos em ordem sequencial numérica, de cima para baixo, como se tivessem sido escritos sobre as coxas: “1 Vou chorar 2 Sem coração 3 Frenéticas”. Ruivão lembrou, pela enésima milésima vez, do encerramento do show daquela noite, ecoando na voz gutural: - Não ligue se eu não te ligar, faz parte daquela solidão.
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Olhou para a agenda que repousava na mesa a sua frente. Dobrou a Playlist ao meio novamente e a colocou no bolso interno do casaco, junto ao peito, e olhou para alguns dos plátanos ainda sem folhas do lado de fora enquanto que outros já estavam começando a brotar novamente. Tomou a agenda nas mãos e começou a folhear. Cada página tinha uma letra de música escrita, que eventualmente se prolongava pelas páginas seguintes. A grafia lembrava letras de forma, estilizadas, artisticamente produzidas. Pensou que devia levar um tempo significativo para serem redigidas... Sem muita dificuldade, encontrou o título “Noites de Luar” na página do dia primeiro de abril. Depois, começou a folhear de trás para frente e descobriu que no dia 25 de dezembro havia um índice com os nomes das músicas e a data referente as páginas onde seriam encontradas. Achou as outras duas músicas facilmente e falou para si mesmo: - Ora, ora! Mas que moleques organizados... *** SONGBOOK. #22. NOITeS De LUAR. *** Naquela noite, imediatamente após o vocalista vociferar “faz parte dessa solidão”, mantendo-se o ritmo na bateria: baixo e guitarra fizeram alguns floreios. Sem pausa instrumental, o vocalista retomou o gutural, dessa vez com a letra da música que está na agenda: 22. NOITES DE LUAR. (1) Ela sai à noite pra dançar//só pra ter o que contar//entre as aulas que não vai matar (2) Logo ela que me prometeu//que não iria mais//matar aulas para dançar (1)
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(3) Logo ela que se convenceu//que não queria mais//que não iria mais//matar (4) Ela sai em noites de luar//só pra ter o que (caçarcortar)//entre as aulas que não vai matar (5) Ela só queria mais//ela só queria mais Ruivão ouviu a canção inteira e as demais que a banda tocou. Meia dúzia de bêbados terminando suas garrafas, dois casais dançando alucinados, um garçom e Ruivão eram a plateia. Os demais funcionários da casa juntavam-se aos seguranças na portaria e nos caixas. Ruivão lembrou do filho, que tocava bateria em uma banda nos anos 1980. A letra da música tinha algo de familiar... Na sequência, a banda tinha tocado uma versão metaleira com a letra de uma das músicas de Leno e Lilian. A mesma letra que foi encontrada por Ruivão no violão do músico desafortunado e que dava sequência ao cover que a banda performou naquela noite. Ela batia com a letra da música cujo título constava como a segunda a ser apresentada na página de encerramento na Playlist. *** 1994. SeTeMBRO. SeXTA. O DOG ALeMãO. *** Ao longo do caminho até a casa de Aline, nenhum dos ocupantes da kombi falou uma palavra sequer. Ainda era cedo e o sol brincava sobre o rio Guaíba na preguiçosa tarde de inverno. Era sexta-feira e diversos grupos lagarteavam ao sol, bebendo o chimarrão, descascando e comendo bergamotas, enquanto outros andavam de skate ou bicicleta. O automóvel oficial da banda sempre chamava a atenção dos transeuntes ao passar pelas ruas com as cores e identificação da Mistery Machine. O pessoal da downtown da capital conhecia bem a Mistery Machine Band dali da cidade baixa. Mas desta vez, o grupo não externava a
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costumeira e contagiante alegria. Talvez porque apenas Freddie e Darlene estivessem com outra garota acompanhando Link ao volante. Não era comum ver a máquina sem Barbicha e Zelda... mas sem o dog alemão: era uma verdadeira afronta. Entretanto, os ocupantes pareciam saber porque estavam tão calados... com uma única exceção... o jogo estava por começar. O tio do Pereba concordou que era interessante a ideia de utilizar a referência dos desenhos animados para a banda. Entretanto, os orientou para que não utilizassem os nomes dos personagens da forma como eram grafados no original. Talvez pudessem manter o nome do cachorro e de um ou outro, mas não de todos. O tio do Pê já tinha passado por problemas com direitos autoais e não queria que eles passassem por aquilo também. Como o quinteto superava o número de personagens humanos do desenho, a formação da banda que contava com uma Zelda passou a contar com um Link, como nos games. Da cidade baixa para a casa de Aline, subiram a Azenha e passaram diante do cemitério no alto do morro. Havia uma multidão de pessoas entrando no cemitério em direção às capelas. O trio continuou em silencio, apenas observando o movimento enquanto a kombi deslizava não tão silenciosa quanto os seus passageiros. Aline morava em uma casa grande, próximo ao cemitério. No verão, a família reclamava do cheiro que costumava predominar no ar naquela época do ano. No inverno, não chegava a ser um problema. O silêncio no veículo foi substituído pelas buzinadas de Pereba, que não pretendia descer do carro. Quanto antes chegassem na casa do tio, melhor.
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Kennedy saiu da casa apressado e trazia o dog alemão pela coleira. Abriu a porta lateral e o fez entrar junto a Zora. Quando fechou a porta, o canzarrão não fez a costumeira festa para Caim e Maribel. Cheirou as mãos de Zora com desdém e deitou a cabeça no colo de Maria Izabel. E assim permaneceu o restante da viagem. Exceto naquele minuto quando passaram pelo cemitério novamente ao retornarem ladeira abaixo. Aline sentou na frente ao lado de Kennedy, que se posicionou no meio do banco dianteiro, ficando entre a cantora e Pereba. O silêncio que reinou no trajeto entre a casa de Caim e de Aline não se manifestou no percurso dali até a casa do tio do Pereba. Aline se ocupava de interagir com todos no veículo, sobre todos os assuntos que lhe vinham à mente. Quase não há barreiras entre o cérebro e a língua dessa mulher que fala o que quer, o que sente e o que der na telha. A afinadíssima vocalista da Mistery Machine Band é toda som: - Aí, não guento mais isso. Foi esse movimento todo desde a hora do almoço... Tentei sair com o Scooby e tive que voltar para casa... agora ele tá todo jururu... tá assim todo ajorjado, mas tentou morder meio mundo na calçada e tivemos que voltar. Depois disso, se enfiou na casinha e só conseguimos tirá-lo agora, logo depois que o Pê buzinou. Caim olhou para a rua, em direção ao cemitério, e comentou: - Quem diria que o velho ranzinza tinha tantos fãs... era a peste em pessoa... Iza não gostava quando Caim agia de forma tão insensível... não era raro, mas na maior parte do tempo ele era agradável e brincalhão. Levantou a cabeça, olhou para o namorado, suspirou e voltou a deitar a cabeça nos ombros de Zora.
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Ao passarem na rua, bem diante do portão que conduzia as pessoas à série de capelas onde os velórios eram realizados, Zora tornou a passar as unhas do polegar e do indicador direito pelo maxilar de Maria Izabel. Zora gritou de repente: - Diacho de cachorro, Caim, ele enlouqueceu. Segura ele que ele quer me morder... Caim segurou a coleira e puxou o dog alemão para si, posicionando-o entre ele e Izabel. Deixando Iza posicionada entre o cachorro e Zora. Aline ralhou com o cachorro lá do banco dianteiro e continuou falando sobre como era difícil compor suas músicas morando na mesma casa que Scooby. *** SONGBOOK. #24. eNTRe VOCêS e eU. *** Ruivão reconheceu a letra da música que ouviu na noite em que presenciou o show de encerramento. Era precisamente idêntica à letra grafada na Agenda. Abriu a carteira e pegou o papel que estava no violão do musico morto. Era quase idêntica à música que foi cantada no show: 24. ENTRE VOCES E EU. (1) Eu ouço vozes//e são três//Mas quem são vocês//que não entendem//por que não querem//ou por que não podem compreender//não quem sou eu//mas quem são vocês? (2) A esquizofrenia não é um estado de espírito,//mas uma constante e permanente//porta de comunicação//entre vocês e eu//... entre vocês e eu//...entre vocês e...eu (3) Mas quem foi que disse//que eu não sei amar?//Mas quem foi que disse//que eu não sei amar, meu amor?//Os
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anjos me disseram//Os anjos me disseram//que eu não sei amar//Os anjos me disseram//que eu não sei amar//E eu nem sei porque//eles usam tuas palavras, garota (1) (4) Os anjos me disseram//que eu não sei amar//Os anjos me disseram//que eu não sei amar//e eles usam tuas palavras//E eu nem sei por que//os anjos me disseram que eu não sei amar//que eu não sei amar//que eu "não sei amar" (5) Mas quem foi que um dia sequer//em toda sua vida sentou-se ao meu lado//e me ensinou//o que é o amor?//o que é o amor?//o que é o "amor"? (1) (6) Diabos! Ruivão pegou um dos clipes que estavam na mesa ao lado da sua e anexou com cuidado o papel do violão na página da música. Olhou para a janela novamente. O vento balançava as folhas nas árvores. Mas nesta época do ano elas se recusavam a cair. Em sua memória ouviu claramente o complemento da banda para a versão vociferada do sucesso de Lilian e Leno. O complemento que serviu de transição entre a letra original e a letra que agora se reproduzia por duas vezes grafada diante dele: nas páginas da agenda e no papel que adicionou. Até então, até onde sabia, a parte mais cruel cantada naquela noite estava registrada apenas dentro da sua mente e ele não conseguia esquecer: Os pais dela//não estavam pra brincadeira//eles arrancaram os olhos dela//os colocaram numa tigela//e a trancaram no porão A garota que eu adoro//Por quem tanto choro//Já não pode me ver
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Meu violão foi jogado pela janela//Ela sem os olhos dela//E eu aqui sem ela//Rapaz pobre e sem coração//jogado pela janela//longe dos olhos dela//Rapaz pobre e sem violão *** 1994. SeTeMBRO. SeXTA. SeM eSPUMA. *** A casa do tio do Pereba era relativamente grande, começava em um terreno de esquina no alto da rua e descia ao longo da rua lateral com três andares. As garagens no andar de cima eram grandes e uma delas já estava sendo preparada para o ensaio da Mistery Machine Band. A casa com os muros e as paredes externas alaranjadas e de grades verde-musgo nos balcões que se projetavam nas janelas dos andares superiores lembravam um cenário mexicano. Enquanto os rapazes organizavam os instrumentos e caixas de som sobre os tapetes no estúdio-garagem, Zora mostrava o tabuleiro para Aline. Mal podiam esperar para contatar os mortos. Todos, exceto Izabel. Ela permanecia calada, apreensiva, apenas observando os rumos dos acontecimentos e pensando em uma maneira de convencêlos a desistir da ideia. Entretanto, eles já pareciam definitivamente convencidos a seguir os planos dos integrantes da banda, como sempre. Antes de entrar na kombi, ela foi voto vencido, como sempre. Permanecia ao lado de Scooby, acarinhando-lhe o dorso e as orelhas. Ambos aparentavam um certo desânimo. Zora e Aline espalharam pelos cômodos adjacentes alguns recipientes nos quais queimavam algumas ervas. A queima produzia um certo aroma inebriante... um aroma que não combinava com a decoração da casa e que pareceu fazer com que a noite chegasse mais cedo do que o esperado.
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Pereba colocou uma música alta no toca-discos e cuidou para que os discos de vinil não parassem de tocar até que pegassem os instrumentos e começassem o ensaio. O som estava alto o suficiente para exigir que elevassem a voz se quisessem ser ouvidos. As garrafas de cerveja começaram a aparecer nas mãos da turma. Caim se encarregava de distribuir a bebida e garantir que os copos permanecessem cheios. Ao comando de Aline, Caim encheu o copo dela: - Vai, dimenor. Não me deixa com o copo pela metade, não. E vê se não enche meu copo de espuma, vacilão. Caim fez cara de quem não curtiu o comentário, mas já estava acostumado com a acidez das palavras da vocalista. Ainda assim, ensaiou iniciar um protesto: - Eu não sou vacilão! Estou aqui, não estou? - É, mas tu tava naquelas de não vir... Já fazia tempo que tínhamos conseguido a casa e o Kennedy já tinha topado. Foi difícil virmos com o cachorro pra cá. Já pensou? Ser um megassucesso antes de ter 18 anos, não é para qualquer um... Pereba e Aline já tinham 19 anos e talvez conseguissem deixar o segundo grau neste ano. Zora completou 18 no início do ano. Os demais ainda estavam na casa dos 17. Maria Izabel faria dezoito anos em breve. *** SONGBOOK. #19. X AS TAKING AS NO ONe. *** Os últimos raios de sol banhavam as copas dos plátanos lá fora. Os alunos dos cursos noturnos começavam a chegar
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na faculdade. Ônibus vindos do interior do Estado se acumulavam no estacionamento da universidade e os motoristas se aninhavam em seus bancos para cochilar durante as aulas. Quando as atividades escolares da sextafeira fossem encerradas, teriam ainda que pegar a estrada para retornarem aos respectivos municípios, levando os estudantes para as casas dos respectivos familiares, com os quais passariam o final de semana. Ruivão levantou e pediu ajuda para a moça da biblioteca. Precisava de um dicionário de inglês. Sabia um pouco, e muito desse pouco é resultado do que aprendeu lendo os encartes dos LPs dos Beatles, Yes, Doors e Deep Purple. Mas precisava ter certeza. Não sabia como era o inglês dos garotos da banda. Antes de abrir o dicionário, leu a música por alto. Conseguiu cantarolar alguma coisa. Lembrava da melodia. Lembrou e disse para si mesmo: - Os guris eram bons. Refletiu um pouco sobre o que tinha acabado de dizer e se obrigou a corrigir: - Os guris tocavam bem. E pior que tocavam, mesmo. Bendita a musa da música que os apadrinhava. Claro, se as composições eram deles, mesmo: compunham muito bem, também. 19. X AS TAKING AS NO ONE (1) Why are they yelling "The witch will come"//Why are they yelling "The witch will come"//She rides the night upon her broom//The night she rides to come soon//She rides the night upon her broom//The night she rides to come soon//To come soon upon her broom//To come soon upon her broom//To come soon upon her broom//To come soon upon her broom
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(2) The witch is coming through out the skies//The lady of night makes me fly so high//The witch is coming through out the skies//The lady of night makes me fly so high//By her side//Each witch is a witch//Each witch is a witch//Each witch is a witch//Each witch is a witch (3) Now I know that I'm alive//From all the witches one is mine//She's my desire, she's in my eyes//the girl of mine is by my side//When she walks my body screams//Need her body close to mine//Feel her blood through my veins//When she moves my mind rings//keep it ringing till she's mine//close to me inside my mind//close to me burning my soul (4) Pretty face on taking body//There's a place (where) she's on dance//there's a lake where I'm the frog//The king of dreams I'm on nightmare//I’m the frog of an old spell//I'm the frog in the nightmare//Asleep I felt - I'm by myself//Awake I am - she's in my brain (5) The frog is gone on nightmare//Here I am (and) she is there//Her body on fire - the girl was mine//How I loved her in ancient times//How I need her through out the skies (6) Sorry, sir, (but) they are blind//The girl they burnt, she was mine//As taking as no one, she is like//the whispering wind of a dark cold night//Warmed up by the fire of those who fear//this girl of mine Até que não demorou muito... Ruivão não tomou notas, mas leu toda a letra. Interpretou o X como um jeito de grafar “She`s”. Não foi intuição, lembrou em um breve flashback de uma garota ao microfone apresentando a música naquela noite com uma voz afinadamente rouca: - E agora, pra encerrar: She`s as taking as no one. Fechou a agenda e procurou novamente por “taking” no dicionário. Lembrou da garota. Ela não parecia ser da banda, mas esteve o tempo todo no palco. E se ele e o produtor estivessem procurando por uma banda composta apenas
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por rapazes quando deveriam considerar a possibilidade de a garota integrar o time? Olhou para o dicionário novamente e leu: - Cativante... atraente... agradável. Parece bom... deixe-me ver: ela é cativante como ninguém. Mas a música é sobre uma bruxa... Retomou a leitura: - Encantador. Uma bruxa pode ser encantadora... ou não? Encantos lembram... feitiços. Virou a página e leu o restante no topo da página seguinte: - Infeccioso. Contagioso. Ruivão sussurrou alguma blasfêmia qualquer e olhou pela janela uma última vez antes que a noite chegasse. Decidiu dar uma volta pelo campus. Ainda tinha muito o que esperar, pois voltaria para Porto Alegre apenas no ônibus das onze e meia junto com os alunos do turno da noite. Enquanto caminhava pelas instalações universitárias, optou por parar um pouco no saguão do prédio 11. Já tinha passado por ali, caminhando da frente do prédio em direção aos fundos. Tomou o curso à direita em direção ao lago que abrigava os patos, antes do prédio do curso de veterinária. Já tinha contornado o prédio pelo lado de fora pela segunda vez. Quando entrou novamente pela frente do saguão do imóvel desprovido de paredes ali no andar térreo, sentou-se em um banco e lembrou da garota no palco. De repente, começou a tomar notas mentais em voz alta: - “She’s as taking as no one”... Ela é, vejamos: uma bruxa cativante. Uma bruxa atraente. Agradável.
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Lembrou que os significados não paravam por aí no dicionário. E continuou, agora em um tom mais grave; melancólico: - Ela é uma bruxa encantadora. Que encanta? Ou que faz feitiços? Agora, sussurrando: - Um bruxa. Infecciosa. Contagiosa. *** 1994. SeTeMBRO. SáBADO. YeS. *** A fumaça de aroma adocicado cobria completamente o ar da casa e Aline brigava com todos na garagem. - Seus descoordenados, não conseguem manter o ritmo, não? Caim largou a guitarra na cadeira ao seu lado e foi buscar outra cerveja no freezer. Sabia que não ia adiantar discutir. Kennedy e Pereba se revezavam na bateria e no baixo para tentar agradar à estrela ao microfone. Embora a tarefa se revelasse cada vez menos possível ao longo do tempo, Kennedy não podia deixar de tentar: - Amor, você tá bebendo muito. Sua voz já não tá legal... vamos parar por hoje... já passa das duas da matina... Pereba apoiou o amigo: - É verdade, Aline. Acho que chega por hoje. Aline largou o microfone no pedestal e tomou a garrafa da mão de Caim. Começou a beber no gargalo e, quando
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parou, limpou os lábios com as costas da mão que estava livre. Olhou para os rapazes e disse: - Meus amores, depois desta noite, isso não vai mais fazer diferença... nem precisaremos mais ensaiar ou sequer cuidar da voz. Nossa carreira meteórica não poderá ser abalada por nada neste mundo. Nada neste mundo. Ela se jogou na cadeira de balanço e olhou para Zora: - Vamos lá? Já não tá na hora? Zora concordou e se levantou, deixando a prima sentada sozinha no sofá de dois lugares. Assim que Izabel se acomodou melhor ocupando as duas almofadas, Zora revisou um por um os recipientes nos quais as ervas queimavam. Pegou o tabuleiro e o colocou no chão. Colocou seis almofadas ao redor do tabuleiro, uma diante de cada recipiente. Sentou-se em uma delas e chamou os demais para que ocupassem as outras. Scooby, que dormia diante do sofá, encostado nos pés de Iza, acordou e levantou os olhos, sem mexer a cabeça. Olhou para ela e sentiram uma tristeza melancólica, um no olhar do outro. Izabel sentiu-se um tanto estranha e percebeu que todos estavam com os sentidos um tanto alterados. A começar pelo dog alemão, que era sempre tranquilo, mas nunca tão apático. Era como se ele também pressentisse que algo ruim estava para acontecer. Já eram quase três horas da manhã quando Aline conseguiu reunir todos ao redor do tabuleiro de Zora. Não foi muito difícil, bastou um comando com a voz rouca e todos estavam sentados no chão em suas respectivas almofadas. Os preparativos é que tomavam tempo. Já estavam tomando muito tempo. Meses de preparo e, finalmente, era chagada a hora.
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Ordenou que Pereba baixasse a música a um som quase imperceptível e que se preparasse para retomar a festa e o som alto assim que terminassem a sessão. - Que sessão? - O jogo, criatura. O jogo!!! Após uma breve iniciação protagonizada por Zora, todos colocaram as mãos na parte móvel que deslizava pelo tabuleiro, em busca das letras e do YES ou NO como resposta para suas perguntas. - Há alguém aqui? – perguntou Zora com os olhos fechados. Como se Aline já não soubesse. A peça móvel se deslocou em direção ao YES, para espanto de todos os que participavam daquela sessão pela primeira vez. Suas mãos acompanhando a seta que apontava o alfabeto, agora para responder a segunda pergunta de Zora: - Você é do bem? Aline e Zora reconheceram a manobra da seta, como das outras vezes. Começaram a soletrar quando a maioria esperava por um simples YES ou NO. Apreensivo, Pereba leu em voz alta a resposta apresentada, letra-após-letra, como se quisesse propor aos demais que desistissem daquele jogo: - Tanto quanto vocês? Estranhamente, Zora parecia ter reconhecido o suposto ente ali presente e ia fazer nova pergunta quando foi interrompida de pronto pela rouquíssima e impaciente Aline de feições visivelmente deformadas:
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- Sinal verde, então? Motocontínuo, Aline levantou apoiando-se nos ombros de Izabel e Kennedy, que sentavam ao seu lado. Ninguém mais conseguiu ver o resultado direito debaixo de suas mãos. Zora tirou a franja diante dos olhos e ficou fitando o tabuleiro. Maria Izabel acompanhou Aline com os olhos. A vocalista em único gesto continuado apontando para os rapazes e aqui e ali, distribui seus comandos sem uma única palavra. Pereba aumentou o volume do som, mais alto ainda do que quando tinham chegado na casa. Caim e Kennedy pegaram o cachorro e o levaram de arrasto para o jardim interno. Aline viu que Zora havia travado em transe, olhando perplexa para o tabuleiro. Ela repetia em voz baixa para si mesma com os olhos arregalados e com as palmas das mãos voltadas para cima diante do tabuleiro: - YES? YES... com é possível? YES? Fala sério! Aline percebeu que tinha que agir por conta. Pegou a adaga sinuosa da cintura de Zora e saiu apressada também em direção ao jardim. Izabel pressentiu que algo de muito errado estava acontecendo, levantou-se também e foi defender o dog alemão. Faria dezoito em breve, mas não chegaria a tempo de evitar o sangue que escorria do pescoço cortado. Aline observava a cena com um certo ar de satisfação. Sempre soube que o sucesso exigiria sacrifícios.
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Caim e Kennedy no jardim interno seguravam o cachorro que tentava voltar para a garagem, latindo muito ao som do vinil que lhe abafava as súplicas. Maria Izabel sentia a visão turvar enquanto a de Aline se tornava cada vez mais vivida. O cachorro latia cada vez mais enquanto o sangue escorria lentamente para dentro do recipiente no qual uma das ervas continuava a queimar. Um corpo sem vida foi deixado no chão, até o amanhecer, do lado de fora da porta da garagem, diante do jardim interno. Scooby a muito custo foi levado para dentro da garagem e uivou por horas sem parar ao som de clássicos do rock colocados no toca-discos ininterruptamente por Pereba. Os demais tinham um ritual para concluir e passariam o sábado e o domingo ocupados em ocultar o crime que os levaria ao estrelato. *** 1994. SeTeMBRO. SáBADO. A úLTIMA CeRVeJA. *** Ruivão estava desconfortável. Chegou em casa depois da meia-noite. Embora tenha descido do ônibus universitário perto de casa, decidiu perambular pelo centro de Porto Alegre antes de chegar em casa. Precisava pegar algumas cervejas para ajudá-lo a digerir a noite na biblioteca. Passou em um dos inferninhos da avenida Júlio de Castilhos para pegá-las e encontrou alguns colegas de ofício mais chegados na portaria. Conversou um pouco, menos que o normal, pagou pelas oito latas geladas, preço de prateleira de supermercado, e tomou o rumo de casa.
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Quando entrou, ao fechar a porta do apartamento, jogou as chaves no sofá. Sentou-se ao lado delas e colocou as latas na mesinha de centro da sala. Abriu a primeira lata e bebeua em um só fôlego. Largou a lata deitada ao lado das demais, que permaneciam em pé. Mexeu no bolso interno do casaco junto ao peito e pegou a agenda. Já tinha lido boa parte dela no ônibus sob o protesto dos outros alunos que queriam dormir e solicitavam que ele desligasse as luzes sobre o seu acento. O desconforto de Ruivão não passava, trocava de posição no sofá e bebia outra lata de cerveja. Na verdade, a cada cerveja, ele só aumentava. Pegou uma caneta e umas folhas de papel que deixava sob o tampo da mesinha de centro de sua sala. Rabiscou no papel, era bom no desenho. Desenhou um coração estilizado, jogado no gramado ao lado de uma janela. Duas bolinhas em uma tigela. Não estava funcionando. A filha estava trabalhando no hospital e ele podia se preparar para receber a visita de uma velha conhecida. Ele bebeu todas as cervejas que conseguiu e adormeceu ali mesmo quando em seu último pensamento desperto, embora longe de ser sóbrio, percebeu que a visita não viria. Já fazia um bom tempo que ele não a convidava. Temia pela integridade física da filha. Percebeu que a noite seria solitária quando o relógio mostrou que já passava das três horas da manhã. Acordou por volta das dez horas da manhã com o sol no rosto. Uma dor de cabeça leve. Tinha certeza que não era por causa da cerveja, estava acostumado a beber. Lembrou que não tinha jantado e precisava comer algo. Decidiu logo por se levantar, mas reacomodou-se de imediato no sofá quando olhou para a mesa de centro. Sentiu o desconforto voltar quando derrubou todas as latas de cerveja no chão, não tinha dormido o suficiente, não tinha jantado e não tinha conseguido encontrar uma posição confortável no seu sofá preferido.
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Inclinou-se por sobre a mesinha e olhou o desenho-convite que produziu para o encontro que não aconteceu. Lembrou de ter procurado pelo coração do músico nos arredores da casa na qual tinham encontrado o seu corpo naquela terça-feira de dezembro de 1993, enquanto que a polícia buscava por pistas dentro do imóvel. Olhou por todas as janelas, do lado de dentro e de fora dos cômodos. E nada encontrou, além do papel que tinha caído de dentro do violão quando o policial o recolheu como evidência. Ele estava tão preocupado em ensacá-lo que não viu o papel cair do instrumento musical enquanto o girava para que entrasse no saco. Ruivão tinha juntado o papel do chão enquanto o policial se afastava e reconheceu a letra de música que tinha ouvido na noite da sexta-feira imediatamente anterior. Mas só agora, ao olhar o desenho na mesa, lembrou do cover musical que tinha precedido a música da banda “She`s as taking as no one” naquele palco. A garota da voz afinadamente rouca tinha apresentado a última música, mas a canção não tinha começado em inglês. A garota fazia parte da banda. Ela cantarolou à capela os versos conhecidos de outra música de grande sucesso nas rádios e programas de televisão Brasil afora. Cantarolou e deixou o palco. Mas Ruivão sabia que muitas vezes o problema não está no que se diz, mas naquilo que não é dito. Neste caso, importava o que não foi cantado... Olhou o desenho e ignorou o coração que desenhou jogado do lado de fora da janela. Ignorou os olhos na tigela. Ao fundo, dentro da casa, visto pelo lado de fora daquela janela: um boneco sentado no chão, encostado na parede e com um círculo vazado no peito, oco; como aqueles buracos que
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ficam em alguns personagens de desenho animado quando são atingidos por um tiro de canhão. Retirou as três folhas grampeadas da Playlist. E revisou a lista no pé da última página. A página do encerramento sem o “nto”. Estava ali: “1 Vou chorar 2 Sem coração 3 Frenéticas”. Ele repetiu para si mesmo, agora em voz alta: - Frenéticas. Coçou a testa e lembrou da música, da melodia. Com os dedos indicadores nas têmporas, cantarolou os versos da primeira estrofe da música que a garota tinha cantarolado à capela. Trabalhando na noite, sabia de cor toda a música. Não apenas os versos que todo mundo conhece. Mas, também, os versos que não são tão famosos. Não apenas o refrão... Cantou o resto da música e lembrou de parte do sonho que teve. Não estivera sozinho. Contou as cervejas no chão: - Cinco, seis... e sete. Contou de novo: - Seis e sete... Procurou debaixo do sofá. E não precisou procurar muito mais, a sala era pequena... Não estivera sozinho. Fez uma breve busca pela casa... agora para ver se estava sozinho e: nada. Estava sozinho. Mas não estivera sozinho. Esqueceu da fome; esqueceu do desconforto. Precisava ter certeza, como sempre. Ligou o rádio já sintonizado em 107.1
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Mhz. Pegou o telefone na estante, colocou na mesa de centro e sentou novamente no sofá. Tinha herdado a linha de telefone da avó e mantinha o número em seu nome desde então. Discou os números que sabia de cor. Aguardou um pouco e pediu: - Perigosa, das Frenéticas. Satisfeito, desligou o telefone e aguardou. No rádio, o locutor deu o serviço, falou das festas para o final de semana e a música começou. Ruivão apertou a tecla “Record” no tocafitas do rádio, cantou a primeira estrofe e ouviu atentamente as demais: “Eu tenho veneno No doce da boca Eu tenho um demônio Guardado no peito Eu tenho uma faca No brilho dos olhos Eu tenho uma louca Dentro de mim... Sei que eu sou Bonita e gostosa (...) Eu vou fazer Você ficar louco Muito louco Muito louco Dentro de mim Muito louco, louco” *** 1994. SeTeMBRO. DOMINGO. O eSQUILO. ***
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Aline estava limpando a garagem. Passava o esfregão no chão quando ouviu um motor de carro se aproximando. Conhecia bem o som do Voyage turbinado do tio do Pereba. Era todo turbinado e rebaixado como o do Alefester. Sentiu uma apreensão subir pelo corpo. Por um breve momento. Uma apreensão que passou logo. Decidida, agachou-se com destreza e largou o esfregão no chão como uma ninja. Saltou por sobre o cabo, sem soltá-lo de todo, ganhando a porta que levava ao pátio interno e correu para avisar os demais. Eles estavam atarefados dedicando atenção à bagunça que tinha sido transportada para o porão. Olhou para Kennedy que saia do porão com dois baldes de tinta repletos de terra, um em cada mão. Atrás dele vinha Pereba com uma picareta e uma pá, sujas de terra preta e nacos de barro, carregando-as como quem carrega um corpo nos braços. - Pê, teu tio tá chegando aí... Ele não ia voltar só no final da tarde? O rapaz largou as ferramentas no chão e esbravejou: - Já... Mas que pústula! Bosta! Tô indo lá... Kennedy terminou de virar o segundo balde de terra no jardim e segurou o amigo pelo pulso: - Volta aqui, bro. Deixa que a Aline dá uma atrasada no coroa enquanto tu me ajuda com o porão. Pereba soltou-se da mão do rapaz e começou a limpar o pulso sujo de terra, virando-se devagar para a garota, como se concordasse. Aline protestou:
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- O quê? O coroa não vai com a nossa cara, Kenne. Deixa o Pereba subir e dar um guento nele. Kennedy retrucou de pronto, empurrando o Pereba de volta para o porão enquanto gritava com Aline: - Volta lá pra cima, poxa! Precisamos dos músculos do cara aqui embaixo, ainda mais agora que vamos ter que acelerar. Ou tu vai arriscar quebrar as unhazinhas aqui na obra que tu aprontô para nós? Aline concordou e, sem dizer nada, subiu correndo as escadas na direção das garagens que ficam no andar da rua de cima. Quando entrou na garagem-estúdio pela porta interna encontrou o tio do Pereba entrando no cômodo pela porta externa. - Oi, tio do Pê! Tudo bem com o senhor? - Oi, Aline. Tudo bem comigo. - Ah, comigo também. O senhor voltou mais cedo? - Mais cedo do que quem? Eu moro aqui! Cadê o Pedro? Vocês não iam ensaiar aqui na sexta-feira? - O Pereba tá no porão. Começamos a ensaiar na sexta, mas ficamos compondo uma música nova até agora. O senhor vai gostar. Essa o senhor vai conseguir colocar a tocar na rádio? - Pedro! - Desculpa?
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- Pedro. O nome dele é Pedro. Ele está fazendo o que no porão? Por que não estão aqui compondo, então? Aline ficou um pouco sem jeito, mas por um breve momento. Como de costume. Pensou em responder à altura. Na altura que ela sempre quis responder para o produtor musical tio do Pereba, mas foi interrompida como todas as outras vezes anteriores em que pensou em fazê-lo desde que o conheceu. Pereba entrou pela porta e tomou a palavra: - Aline, o Kenne Dee quer te ver lá embaixo. Ele não sabe onde colocar os vasos que você trouxe para o jardim do tio. Assim que a garota começou a se mover para voltar para o porão, o rapaz juntou o esfregão do chão e começou a varrer a garagem enquanto retomava o diálogo, agora com o tio: - E aí, tio? Tudo tri? Bom te ver. Desculpa, aí, pela bagunça. A galera se superou na animação. Estamos ansiosos para o próximo show da Mistery Machine band com Freddy, Dafne... - Peraí, Pê. Segura a onda. Já disse que não é pra usarem os nomes dos personagens do cartoon. Não quero mais encrenca por causa de direitos autorais. - Relaxa aí, tio. Desculpa, aí, vai? Mas e aí? Quando vai ser o próximo show de Freddie, Darlene, Barbicha e Zelda? - Segura a onda, Pedrinho boy. Não sei se vai ter próximo show tão cedo. Quando é que todos vocês alcançam a maioridade? - Esse papo de novo, tio? - Sim, ou deixamos outra galera gravar o som de vocês primeiro. É assim com os sertanejos...
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- Ih, tio. A galera não vai curtir. Nesse momento, o dog alemão entra pela porta e se acomoda no tapete debaixo da bateria. - Quem não vai curtir? Vocês ou a Aline? Ela insiste em chamar esse cachorro de Scooby, porque não o chamam de Scooper ou algo assim? E porque ele está aqui dentro? Porque ele está aqui na minha casa? - Poxa, tio. A Aline não manda em nós, não. - Sei. - Olha, teve uma comoção no cemitério perto da baia dela e o cachorro tava ficando biruta no meio daquela agitação toda. Os pais dela não estavam em casa e não dava pra deixá-lo sozinho. Mas ele ficou no porão o tempo todo. O Kenne e a Aline estão lá arrumando tudo pro senhor antes de a gente ir embora. O rapaz terminou com o esfregão e se preparava para encontrar os outros integrantes da banda quando voltou o corpo em direção ao tio: - Ah, tio, e esse lance de direitos autorais. Se ficar muito parecido e as pessoas reconhecerem a intenção de parecer com o original: o senhor já tá encrencado. E, a propósito, já existe uma banda chamada Mistery Machine no Canadá. - É, mas o rabo é meu e eu escolho o quanto e como quero me encrencar. Aposto que no ano 2000 ninguém mais vai lembrar dessa Mistery Machine gringa no Brasil. Só vão ouvir falar de vocês e de mais ninguém no circuito nacional. E falando em vocês: eu não gosto dessa Aline... - Eu sei, tio.
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- O que o cachorro está fazendo aqui no estúdio? - Ele deve ter se soltado. Eles já estavam terminando no porão. Arrumamos o jardim pro senhor, mas já tá tudo limpo. Cavamos uns buracos pra enterrar umas arvorezinhas que a Aline trouxe para agradecer o seu empenho pela nossa banda. - Pela minha banda. - É, tio. Pela sua banda. Pereba já estava do lado de fora do estúdio, no pátio interno que dá acesso ao jardim. O tio vinha atrás dele e o alcançou, ficando embaixo do marco da porta. Olhou para uma mancha debaixo dos pés do rapaz e perguntou. - Que bosta é essa debaixo dos teus pés, Pedro? Isso é sangue. - Relaxa, tio. O Scooby deve ter matado um esquilo. - Olha aí, vocês ficam chamando esse cachorro de Scooby... - Eu sei, tio. O lance dos processos. Mas ele nem entra nos shows. E você sabe que ele é Scooby desde que nasceu. A Aline já tinha ele antes de conhecer o Kenne e a gente. - É, eu sei. Vê se limpa esse sangue da minha casa. Nem quero saber o que vocês fizeram. Aliás, quero, sim. Já temos outra composição nas mãos? A Aline disse que estavam compondo. - Temos, sim. Mas precisamos trabalhar na letra. - Uhn, sei. Vou tomar um banho. Quando eu voltar quero que tenham sumido.
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- Podemos voltar na semana que vem? - Vamos ver. Me tragam a letra e combinamos. O produtor musical pegou uma toalha que estava estendida para secar no pátio e entrou na casa pela porta principal. Quando voltou ao pátio para estender novamente a toalha após o banho, percebeu que a banda ainda estava na garagem-estúdio e foi em direção a eles. - O que foi? Perderam alguma coisa? Ainda estão todos aí? Onde está a Izabel? Aline se adiantou e respondeu pelos demais: - Não perdemos nada, não. Só queremos o Songbook para colocarmos mais uma música da “sua banda”. O tio ignorou a garota e se dirigiu ao sobrinho: - Ah, ela nos ouviu. Olha, não tenho a agenda de vocês aqui comigo. Devolvo assim que possível. Onde está o resto da banda? - É claro que ouvi. Não sou surda. É melhor devolver a agenda, mesmo. A banda é sua, mas as composições são minhas e o cachorro que deu origem ao nome dela também é meu. Vou levar a música que compus comigo e só mostraremos quando o Caim registrá-la em nosso Songbook. Aline agitava um papel na mão fechada em punho enquanto falava. O produtor insistiu, agora se dirigindo à garota: - Que seja! Mas, onde está o resto da banda? Já disse para ensaiarem com a backing vocal junto. Não gosto de surpresas no palco. Nem sei porque estou preocupado, nem
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sei se conseguirei arrumar um show tão cedo. E vê se tira esse vira-latas daqui... Deixem-no em casa da próxima vez... Aline ficou transtornada e foi tomar a coleira do cachorro das mãos do produtor. Puxou por fim a coleira da mão dele e tomou o cachorro no colo: - Seu grosso, dá aqui meu cachorro que vale muito mais do que essa backing vocal desajeitada que nos faz engolir. Ela e Caim já estão lá fora no carro. Saíram todos rua afora, deixando o homem em pé no estúdio. Na saída, Aline soltou Scooby no chão enquanto Kennedy pegava a coleira para conduzi-lo e bateu a porta com toda a força que seu ódio permitiu. O tio ficou para trás, encerrado no próprio estúdio quando, sem poder ser ouvido por causa do motor da kombi, gritou: - A música, eu quero a música. O homem percebeu que estava sozinho e sussurrou: - E quero ainda esta semana. Lembrava do sobrinho ter mencionado sobre um esquilo quando apontou para a mancha de sangue debaixo dos pés do rapaz, mas endereçou a indignação à figura da Aline quando pensou no assunto: - Sangue de esquilo é o carvalho, filha duma égua. E lembrou que: - Aquele cachorro não pega nem resfriado. E que:
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- A droga do esquilo mais próximo daqui deve estar agora entediado coçando o rabo no Zoológico de Sapucaia, filha da mãe. Acho que nem o parque da Redenção tem raio de esquilo, o que é que há? *** SONGBOOK. #29. QUeM MATOU A BeL? *** Sentou-se no sofá de dois lugares, ao lado do tapete no qual o cachorro tinha se deitado. Daquele ângulo percebeu que havia um papel no chão. Reconheceu o papel que Aline segurava quando foi retirar Scooby de suas mãos. Abriu o papel e leu. Procurou por um dos aparelhos de telefone que tinha distribuído por toda a propriedade. Escolheu o que ficava em cima do bar. Discou o número, nervoso. Enquanto aguardava a chamada se completar com o telefone entre a orelha e o ombro, serviu um copo de conhaque com uma dose de uísque. Nunca foi dado a esses detalhes. A chamada caiu. Largou o copo para discar novamente. Pegou a garrafa e tomou um gole no gargalo. A ligação completou: - Ruivão, tenho outra composição para adicionar ao Songbook. - Esteve com os moleques, não? - Como sabe? - Coloquei um papel com clip anexado à agenda e agora, em menos de dois dias, a página já está marcada quando retiro o papel para ler. - E daí? - Não tem nenhuma outra página marcada na agenda.
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- E daí, homem dos infernos? - E daí que você nunca colocou um cartão com o número de telefone dos moleques anexado com um clip em página alguma da agenda. - Olha, eu sei que pisei na bola contigo. E que essa não é a primeira vez... Pisei na bola e preciso de ajuda... quero dizer... e posso te ajudar também... estou com a letra da música aqui na minha mão. Vou levá-la para ti e a identificação dos moleques e... Olha, escuta: tô saindo agora. - Tá, bom. Seguinte, vem direto para cá e eu te ajudo. Tu me ajuda e eu te ajudo. - Tá! Negócio fechado! - Então, tá. Vem agora ou eu vou te buscar onde quer que estejas. Ruivão falou e desligou o aparelho. O produtor largou o telefone no gancho e tomou o copo que já estava servido em um só gole. Quando largou o copo, pegou novamente o papel que Aline deixou cair no tapete. Ajeitou o ângulo e releu a canção que os moleques fizeram naquele final de semana: 29. QUEM MATOU A BEL. (1) Ele renega a vida//a morte a cura e a ferida//o sangue do corte já não jorra mais//de suas veias imortais (2) O veneno de suas artérias cicatriza o talho//não é preciso mais zelar pelos mortais//muito antes pelo contrário (3) Contrária é a sua história//longe da luz que o gerou//torto e desprovido da graça do próprio pai (4) Assim se diz Caim//no banco dos réus//apontado por todos como um bandido cruel//vil assassino de pobre menina//doce criatura//linda Maribel
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(5) Caim matou a Bel//Caim matou a Bel//Caim não vai pro céu//pro céu mandou a Bel (6) Anjo do céu//menina linda Maribel//Anjo do céu//menina linda Maribel (7) Anjo do mal, Caim//nas trevas//é imortal//anjo do mal, Caim//das trevas e letal (8) Anjo do céu, menina//linda Maribel//Anjo do céu, menina// linda Maribel *** 1994. SeTeMBRO. DOMINGO. PAR De OLHOS. *** O produtor musical queria sair de casa antes do horário do almoço e terminar com aquela história o quanto antes. Colocou o papel no bolso do casaco e se dirigiu ao banheiro novamente. Quando voltou à sala diante da porta principal da casa, ouviu a porta externa da garagem-estúdio ser aberta e vociferou: - Mas que diabos... Quando passou pela porta principal e acessou o corredor de plantas que ligava a casa à garagem-estúdio, passando ao largo do pátio interno, pôde ver a porta interna do estúdio sendo aberta. Avistou o sobrinho saindo da garagem e ganhando o corredor em sua direção. Instintivamente, colocou a mão no bolso do casaco, tocando com a ponta dos dedos o papel que ali depositou dobrado ao meio. Com um tom de voz entre o preocupado e o nervoso perguntou: - O que foi, Pedro? Esqueceram de algo? Não ouvi o carro voltando. Avançando em direção ao tio, Pereba respondeu com a voz decidida: - Olha, tio. A gente tava conversando... e tá na cara que esquecemos de algo.
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O produtor parou perto da porta principal, fechou a mão no bolso e apertou em torno da folha de papel. - Não imagino sobre o que está falando... Quando ficaram distanciados por pouco menos de um passo um do outro, o produtor percebeu que Caim e Kennedy passavam pela porta e sentiu-se como se estivesse no primeiro filme da série Jurassic Park, revivendo a cena da cozinha diante da movimentação de três velociraptors. Caim se aproximou: - Como o clima ficou um pouco tenso quando saímos, esquecemos que temos um par de olhos para levar conosco. O tio respirou um pouco mais aliviado, retomou o fôlego e, tentando disfarçar o nervosismo, retrucou: - Ah, vocês estão falando daquele vidro com formol que aquela estudante de medicina de Santa Catarina deixou aqui antes do último show no fim do ano passado? Ele ainda está no meu porão? Eu já tinha pedido várias vezes pra vocês levarem aquilo embora... como ela vai se formar, afinal, se o trabalho dela continua aqui em casa? Como é mesmo o nome dela? Ela tinha o mesmo nome daquela mulher da televisão, a tal da Zora Yonara... Nervoso, começou a concatenar uma frase na outra, agora com as duas mãos enfiadas nos bolsos e sem fazer contato visual com os rapazes... Caim concordou imediatamente antes que ele continuasse vomitando as palavras indefinidamente: - Esse mesmo, vou lá buscar.
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Kennedy desceu as escadas logo atrás de Caim. Mas o homem continuou nervoso ao lado do sobrinho. - Isso, Kenne Dee. Vai lá com ele, rapaz, pegar o vidro com os olhos... quero dizer: com as mãos, eheh. Pereba colocou as mãos no ombro do tio, conduzindo-o para diante da porta, ambos de costas para o jardim, e agradeceu: - É isso aí, então, tio. Valeu pela casa, desculpa pela bagunça. Mas acho que agora já está tudo limpo. - Sim, está! Creio que sim. Quando Caim e Kennedy voltaram correndo, Pereba tentou sutilmente manter o homem de costas, mas ele se virou instintivamente para ver o que estava acontecendo quando se despediu: - Vão pela sombra! E percebeu que cada um portava um vidro com formol: - Ei, o que é isso no outro vidro? É um coração? Esse eu não tinha visto. Quando trouxeram o outro vidro? E por que ela não veio buscar antes? Os rapazes saíram porta afora sem dizer nada e Pereba tentou explicar: - Olha, conseguimos o outro vidro com o amigo dela na universidade em Porto Alegre e ela pediu que fôssemos buscá-lo. Ela tá vindo aí para passar uns dias em Porto Alegre e vai pegá-los na casa do Caim. Valeuzão. A gente se fala.
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O rapaz saiu correndo e assumiu o volante da kombi, quando já estavam todos acomodados dentro de veículo. O homem parou na calçada, ouviu a partida no motor e viu o carro sair em poucos instantes. Reconheceu todos os ocupantes: as duas garotas, os três rapazes e o Scooby. Até entendia que Aline não tivesse descido do carro, mas achou que ela era a única garota acompanhando os rapazes. Aproveitou que estava do lado de fora do terreno e fechou a porta da garagem com as chaves. Entrou no carro e dirigiu em direção ao centro de Porto Alegre. *** 1994. OUTUBRO. BOQUIABeRTO *** O espectro saiu voando pela sala e desapareceu. Caim assistiu à cena boquiaberto e, quando se recompôs do susto, exclamou: - Isso só pode ser coisa do demônio... *** ANOS 2000. *** Assim como o primeiro capítulo que se refere ao ano de 1993: Os capítulos que narram os acontecimentos no ano de 2004 não são inéditos e foram publicados originalmente na segunda edição do terceiro volume da série As Musas do Terceiro Milênio, em 2018. Sobre esse terceiro volume de asM3M: Os capítulos que se referem a setembro e outubro de 2004 constituem o prólogo daquela edição. Já os capítulos que se referem ao mês de dezembro de 2004, em conjunto com a
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cena de introdução para o ano de 2014, configuram-lhe o epílogo. Dessa forma, os eventos que antecedem o próximo capítulo ocorrem naquela mesma semana do mês de setembro de 2004 e são descritos nos contos publicados volumes 1, 2 e 3 de asM3M. Embora o terceiro volume tenha sido publicado nos anos de 2017 (primeira edição) e de 2018 (segunda edição, com prólogo e epílogo), os dois primeiros volumes foram publicados em um mesmo ano (2016). Outros eventos que ocorrem com os personagens nesta mesma semana de setembro de 2004 são apresentados nos esboços do Storyboard cujas imagens estão dispostas no final desta edição e que o autor produziu para conduzir o curso da narrativa que está sendo desenvolvida. *** 2004. SeTeMBRO. ANGéLICA *** Era uma loja pequena no centro de Canoas, dessas que vendem de tudo. Quando entraram na loja o atendente veio avisar que era hora do lanche, pedindo desculpas por estar sozinho e avisando que, se entrasse mais algum cliente no estabelecimento, ele teria de que se desdobrar para atender o casal e a filha de seis anos de idade. Righter acenou e informou que estavam apenas buscando por pilhas para colocar no brinquedo que a filha tinha ganho de aniversário. Iam fazer uma viagem à serra gaúcha e precisavam garantir que o brinquedo funcionasse ao longo do percurso de duas horas. Pelo menos durante a pequena viagem, lá poderiam dar um jeito de adquirir outras caso fossem necessárias.
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O vendedor ficou atendendo Righter enquanto mãe e filha vagavam entre as estantes da loja, quando a menina pediu à mãe que levassem uma boneca nova, de pano, daquelas que podem servir até mesmo como travesseiro, principalmente para se recostar no banco traseiro do carro. O pai pagou pelas pilhas e pela boneca e deixaram a loja para embarcar no carro. Seguiam pela estrada tranquilamente, quando a mãe perguntou para a menina como batizariam a nova boneca. Todas as bonecas da menina tinham nome e eram batizadas em conjunto por mãe e filha. Por vezes, passavam horas selecionando nomes, a partir de longas listas confeccionadas entre sorrisos e considerações pertinentes à personalidade e características dos potenciais homenageados. Pois a lista era confeccionada a partir dos nomes de coleguinhas da escola, professores, personagens de desenhos animados ou mesmo elementos inanimados que lembrassem a boneca ou boneco da vez. Mas desta vez foi diferente. Quando a mãe olhou pelo vão entre os bancos dianteiros em direção à criança que estava acomodada na cadeira fixada no meio do banco traseiro do veículo, aguardou a resposta e ouviu a menina singelamente retornar: - Ela se chama Angélica. A mãe perguntou: - Quem é Angélica? Acho que não conhecemos nenhuma Angélica... A do desenho animado que vimos no cinema? Mas ela é meio que malvada... - Não, Angélica como a moça da loja... ela disse que eu poderia levar a boneca se a chamássemos de Angélica.
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- Tudo bem, filha. Pode chamá-la de Angélica... Angélica lembra anjo: angelical. A mãe ficou pensando por algum tempo, quando um chamado cortou o silêncio como uma navalha cortando o ar e aqueles pensamentos. - Pai! - Sim, filha. - A Angélica pode entrar na nossa casa quando voltarmos do passeio? - Claro que pode, filha. Claro que pode... *** 2004. SeTeMBRO. CONVeRSAS NOTURNAS. *** Quando Righter acordou, não teve problemas para identificar a voz da filha de seis anos no meio da noite. Olhou no relógio da parede, eram três da manhã e a conversa no cômodo adjacente prosseguia em um tom animadíssimo. Estranhou de pronto a situação e, erguendo o tronco de sobressalto, sentou na cama. Levou a mão buscando o outro lado da cama e tateou o ombro da esposa que ainda dormia pesado. Ainda sentado, tentou calçar os chinelos que havia depositado, displicente, ao lado da cama. Sem obter sucesso por um breve momento na escuridão, optou logo por prosseguir levantando o corpo e deixando a cama descalço mesmo. O homem chegou à porta e olhou em direção ao quarto da filha sem mesmo entrar no corredor que separava os cômodos. Aguçou a audição e a conversa continuava em ritmo festivo, mas não conseguia perceber outra voz além da voz da filha. Avançou com passos acelerados. Um instante antes de entrar no quarto da pequena: a conversa cessou
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sobrenaturalmente. Foi como se ele tivesse sido previamente detectado: um intruso indesejável no perímetro de uma roda social que não o desejava por perto. Entrou no quarto enquanto simultaneamente acendia a luz de forma instintiva e percebeu a filha sentada com a Angélica no colo. - Filha, não conseguiu dormir? Tudo bem contigo? - Sim, papai. A menina respondeu sorridente e abraçou a boneca junto ao rosto. - Que conversa toda era aquela? - Eu estava conversando com a Angélica. Ela já viu o mundo todo... O pai olhou atento embaixo da cama, dentro do armário, atrás das cortinas... checou a janela diante dos olhos atentos da menina, sem deixar o quarto. Pediu à menina que dormisse porque ela tinha aula pela manhã e precisavam acordar cedo. Após verificar todas as janelas e portas dos demais cômodos do imóvel, voltou ao quarto do casal somente depois de ter aberto todos os armários e verificar todas as cortinas do apartamento. Righter não cerrou mais os olhos e ficou tentando lembrar da conversa da filha, qual era mesmo o assunto? De repente se percebeu ouvindo trechos inteiros da conversa, mas parecia um pouco mais adiantada. Combinavam um passeio com outros amigos cujos nomes não lhe eram familiares... Outros amigos? A filha perguntava sobre cada um deles à Angélica... como eram, o que gostavam de estudar e do que gostavam de brincar... em um estado pós-transe, Righter percebeu que aquela parte da conversa não tinha acontecido... estava acontecendo. Ergueu-se da cama,
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chamando a esposa que acordou... ao chegar no quarto ao lado ouviu a filha dizer: - Eu disse que ele ia voltar... você não conhece o papai. Righter acendeu a luz instintivamente como da primeira vez, entretanto a filha estava deitada, ainda sorridente. - Filha, tudo bem contigo? - Sim, papai! - Conversando com a Angélica novamente? - Sim... A mãe entra no quarto e o pai prossegue: - Pois diga para a Angélica que você precisa dormir porque é você que tem aula amanhã e que ela pode ficar em casa dormindo até mais tarde. Então: trate de dormir... - Mas eu avisei a Angélica... ela disse que não tem problema se eu não for para a aula porque a professora vai ensinar coisas que eu já sei... já a Angélica vai trazer outros amigos aqui para me ensinar coisas que eu não sei... - Bom, se você já avisou: ela está avisada. Vou levar a Angélica comigo, ela vai dormir no sofá da sala hoje... A esposa dá boa noite para a filha enquanto que o pai inspeciona novamente o quarto e as entradas da casa, terminando por deixar a boneca no sofá da sala. O silêncio volta a reinar no imóvel e os seres humanos dormem tranquilamente sem maiores incidentes ao longo da noite.
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Na manhã seguinte, o pai levou a filha para a escola logo após o café da manhã. Havia comentado com a mãe a respeito do grande negócio que fez para conseguirem dormir com tranquilidade ao transferir a boneca para o sofá. Já na hora do almoço, enquanto o pai trabalhava na cidade vizinha, mãe e filha chegavam em casa da escola para que pudessem fazer a refeição. A mãe vê que a criança está entretida com o aparelho de televisão da sala e a convida para que se dirijam à mesa da cozinha. Ao passar pelo sofá ela sugere: - Você não quer levar a Angélica para a cozinha? - Mas, ela já está lá... - Não está, não, querida. Seu pai a deixou aqui no sofá ontem à noite... A mãe entregou a boneca para a filha e seguiu em direção à cozinha para desligar a panela de pressão, sem poder ouvir a última frase da conversa que tiveram. - Não, mamãe... ela ficou a noite inteira ao meu lado para que eu não passasse a noite sozinha. A menina abraçou a boneca junto ao rosto novamente e sentou-se junto à mesa, aguardando pelo seu prato. *** 2004. OUTUBRO. DUAS VISITAS.*** As conversas noturnas continuaram a ocorrer, sempre muito animadas, mas agora havia um toque de recolher às nove horas da noite. Nesta noite de sábado a família visitava a casa dos avós. Os pais de Righter contavam sobre os acontecimentos da
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semana quando a neta, com a boneca no colo, pediu para voltar para casa. A vó retrucou: - Mas já... ainda é cedo, pequena. - Vovó, já são quase nove horas e não vou poder conversar com a Angélica depois desse horário. Righter intercedeu: - Mas, filha, você passou o dia todo com a boneca e não trocou uma palavra com ela... vai querer me dizer que vai conversar com a Angélica só depois que chegar em casa? - É que a Angélica fica muito brava com você quando não nos deixa conversar, papai... - Tudo bem, filha, você pode conversar com a Angélica por meia hora logo após que chegarmos em casa. A menina aceitou e ficou um pouco mais calma... Na hora de se despedirem a menina já estava dormindo. O pai a colocou ainda dormindo na cadeira afixada ao banco de trás e seguiram para casa. Ela acordou quando chegaram e a conversa animada durou por mais meia hora conforme o combinado. E tudo parecia bem. Nas noites seguintes também... o toque de recolher era respeitado e o silêncio estabelecido no lar para que a família pudesse descansar tranquilamente até a manhã seguinte. Era sábado novamente e passaram na casa da vó a caminho do shopping center. Nem chegaram a descer do carro. Os avós conversaram brevemente com os pais da menina que aguardava no banco de trás folheando um dicionário ilustrado destinado a crianças que estão sendo alfabetizadas. Quando iam partir, a avó pediu: - Aguardem um instante...
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Para a surpresa de Righter: a avó traz consigo a Angélica e entrega à criança que agradece pela janela da porta traseira do veículo. Com um sorriso, meio sem jeito, ele avisa: - Mãe, essa boneca ela já tem... - Não, filho... essa é a boneca dela que ficou aqui no outro sábado... ela saiu daqui dormindo e a esqueceu conosco... *** 2004. OUTUBRO. UMA VISITA. *** Righter mal conseguiu realizar as compras dos itens que foi buscar no shopping, comeram um lanche rápido e retornaram para casa... Saindo do carro em direção à porta do apartamento térreo, o pai perguntou: - Filha, com quem você tem conversado à noite? - Com a Angélica, ora... - Filha, a Angélica ficou na casa da vovó... com quem tem conversado à noite? - Com a Angélica, a moça da loja... que deu o nome à boneca. Righter estava começando a ficar nervoso... - Que moça da loja, filha? - A moça com o olho rosa... a que pediu pra gente colocar o nome dela na Angélica... - Ela tem os olhos cor-de-rosa? - Não, papai... um olho é rosa... o outro é azul...
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- Filha, a Angélica está onde? - A boneca? - Não, a boneca está na minha mão. Onde está a moça da loja? Ela está aqui em casa agora? - Não, papai, já faz tempo que ela só consegue vir à noite... depois da hora da janta... - E ela vem sozinha? Ela queria te apresentar uns amigos... nunca dê permissão para ninguém entrar aqui... - Ela sempre pede, mas eu nunca deixo... - Perfeito, continue assim. Mas como a Angélica entrou aqui? - Pela porta. - Não, quem a deixou entrar? - Você disse no carro que ela podia entrar quando voltássemos do passeio... Righter parou por um momento, pensando... e lembrou do dia em que compraram a boneca. - Sim, filha: tem razão. Mas, não deixe mais ninguém entrar aqui... - Tá bom, papai... mas a Angélica sempre fica brava quando eu não deixo e diz que pode fazer coisas ruins com o mundo... e com vocês... - E contigo, filha? Ela não fala nada sobre você?
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- Não, ela apenas fica rangendo os dentes e rugindo como o leão do zoológico... só que um leão de cabelo roxo... - Escuta, filha... se ela vier hoje depois do jantar para nos visitar: me avisa, tá? Fica junto do pai e da mãe na sala, tá bom. Não sai daqui... vamos passar o dia juntos hoje... - Tá bom, pai... A mãe ouviu tudo atentamente e não interferiu no rumo da conversa... parecia tudo muito estranho... Quando eram sete da noite, a mãe serviu o jantar e o pai perguntou: - A Angélica está aqui filha? Pegando uma fatia de torta fria a filha respondeu: - Não, pai... só nós... Perto das oito horas da noite a filha alertou: - Pai, a Angélica está aqui... - Filha, pede pra ela ir embora e não voltar mais, porque ela precisa procurar alguém que possa ajudá-la ou juntar-se aos amigos dela. O que ela gostar mais... A menina repetiu as palavras do pai e disse: *** 2004. OUTUBRO. ATé Já. *** - Pai, ela ficou muito brava... mas disse que vai embora... - Pra sempre?
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- Acho que sim... nem deu tchau... virou e desapareceu. Righter sentiu-se aliviado, ainda que um pouco apreensivo... não sabia se seria uma solução permanente ou por quanto tempo ela iria durar. Righter pediu para que a filha dormisse junto da mãe no quarto do casal, enquanto passou a dormir no quarto do lado... nas primeiras noites a partir de então: mal dormia... depois, passou a dormir pesadamente, sempre vencido pelo cansaço. Passada uma semana, o pai, que diariamente perguntava para a filha se havia tido algum contato com a Angélica, sempre recebia uma resposta em negação. Por vezes, perguntava mais de uma vez ao longo do dia... A filha parou de dormir junto da mãe e o casal voltou a dormir no quarto grande. De volta ao pequeno quarto, a filha perguntou se podia dormir com uma boneca para não sentirse sozinha. O pai disse que sim. Ela prontamente pegou uma de suas bonecas Barbie e foi deitar. Na semana seguinte: sobressalto. No meio da noite, Righter acorda e ouve uma conversa animada no quarto da filha. Ele corre em direção ao quarto, no escuro, sem chinelos mesmo... já havia visto aquele filme antes... Ao entrar no quarto encontra a filha sentada, pôde ver ainda no escuro a Barbie nas mãos da menina... - Com quem está conversando, filha?, perguntou, temendo pela resposta. - Com a Barbie. Righter ficou aliviado... acendeu a luz.
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- O que vocês estavam conversando? - A gente tava combinando a festa de aniversário dela aqui em casa, vai ser na semana que vem. - Tudo bem, filha... com a Barbie pode conversar... Já faz tempo que estão conversando, filha? Está muito tarde... - Há algumas noites, papai. - Engraçado, só ouvi hoje... não tínhamos combinado que essas conversas tinham que terminar as nove da noite? - É que achamos que o senhor não estava mais bravo com a Angélica... ela acertou... disse que se eu a chamasse de Barbie você ia deixar ela me visitar e passar as noites aqui comigo e que poderíamos falar até mais tarde que você não iria se importar... *** 2004. DeZeMBRO. DOMINGO. LADeIRA ABAIXO. UMA PeRSPeCTIVA. *** Porto Alegre não era a mesma na última década do milênio passado... A brisa de verão passeava por entre as galerias do que hoje chamamos de Centro Histórico... O Guaíba cheirava a algas... era o que diziam os jornais... O vento raquítico jogava com o papel no chão, de um lado para o outro... Era domingo e o panfleto que rodopiava na boca de lobo dizia: "O FIM ESTÁ PRÓXIMO. Ele se aproxima com o tercêiro milenio."
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As pessoas passavam por ela na rua e a achavam bonita demais para estar circulando no centro às três da manhã, sozinha e no domingo... Olhavam para o corpo esguio andando apressado, descendo a Vigário... Os rapazes até pensaram em dizer uma gracinha ao vê-la aproximando-se por entre as colunas da Igreja... Os dois que estavam sentados em caixotes de vinho, levantaram-se... Projetaram-se em arco diante da trajetória da garota de cabelos roxos, quase fluorescentes. Ela continuava andando, cega, passos firmes, trote inalterado, punhos cerrados, dentes semicerrados, cega... os olhos dela... Repararam como era bonita, mas no centro, àquela hora... acharam que ela estava buscando confusão... e eles? O que buscavam? O cigarro improvisado passava de mão em mão... os risos, as risadas, de orelha à orelha... eram agora pequenos sorrisos, de meia-boca... Uma garrafa de vinho caiu no chão... não quebrou. Mas o resto de vinho saiu do pescoço pelo gargalo... e o cheiro de vinho quente espalhou-se pelo ar, abraçando as colunas. Agarrando-os pelo pescoço e jogando o resto de razão para longe daquela cena... não disseram gracinha alguma. Trocaram olhares... ela se aproximava, alheia aos movimentos dos primatas... As outras não se interessariam por instintos tão primitivos, mas ela... em um outro momento, talvez... sentiu-se como um leão preso no zoológico, impedido pelas grades de avançar nos visitantes.
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Conforme ela se aproximava, aérea, as luzes da rua permitiam que eles apreciassem melhor o quadro... as roupas eram boas... de marca... mas, as joias... Era cada cordão no pescoço, conectados à gargantilha que reluzia como se tivessem mil diamantes... bem, um tanto menos... Eles conseguiam fazer planejamentos de curtíssimo prazo... isso talvez pudesse ter atraído a atenção dela, em um outro momento, talvez... Vislumbraram num lampejo o que estava por vir... e que lampejo... ela é muito rápida, de baixa estatura, mas com saltos altos. E que saltos... Era como se ela deslizasse em um trote sobrenatural. Foi muito rápido, não disseram gracinha alguma. Grunhidos bestiais foram calados entre palavrões curtos proferidos a esmo com violência desmedida... O cheiro do vinho quente no ar... o cheiro do sangue... e das algas... era o que diziam os jornais... "O FIM ESTÁ PRÓXIMO. Ele se aproxima com o tercêiro milenio." Dizia o impresso em meia folha A5. O acento circunflexo na palavra errada.
*** 2004. DeZeMBRO. DOMINGO. RUIVãO *** E sobre o Ruivão? "Era agente penitenciário Charqueadas" diriam, se perguntassem.
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Afirmariam e colocariam a mão no fogo. Como ele lidava bem com os detentos. Tinha amigos. De verdade. Alguns o defendiam. Sério. Às ganhas. De outros detentos e de outros colegas. Alguns detentos diziam que tem agente boa gente e agente não tão gente boa. Em toda profissão tem, diziam eles. Quem assistiu aos filmes do Rambo sabe... sabe também que Rambo não existe... Mas o Ruivão nunca disse que era agente... não se sentia agente... mas gostava dos colegas. E dos amigos. Não era agente, mas estava sempre lá... fazendo serviços gerais... na enfermaria... na cozinha... nos feriados e nos finais de semana. O Ruivão não tinha família. Ninguém viu, ninguém sabia. Isso nas Charqueadas... Em Porto Alegre, tinha uma filha. O Ruivão é uma lenda... andava armado... lutava boxe... Mas era sensível, desenhava pra caramba... melhor que engenheiro, diziam os detentos. Melhor que engenheiro, desenhava à mão livre, com régua e compasso. Não tinha computador que fizesse o que Ruivão fazia naqueles idos dos noventa. Não tinha RAM, não tinha placa aceleradora de vídeo nem Solid Works. Era no braço e na tinta... Melhor que engenheiro, por que montava as engenhocas que projetava. Fazia as peças que cada engenhoca precisava. O torneiro não fazia, se negava. Ruivão pedia a oficina emprestada e torneava. Fazia motores e parafusos com porcas esquisitas...
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Já tinham chamado o Ruivão de McGuiver e de Rambo. Já tinham chamado o Ruivão na porrada. Para complementar a renda, Ruivão fazia bicos em casas noturnas como segurança, sempre na porta, bem na entrada. Tinha um sexto, um sétimo e até um oitavo sentido... a encrenca era ali mesmo, na entrada. No olho ele identificava o encrenqueiro. No olho. Olhava no olho. Olho no olho. Esse entra, esse entra e aquele também... - Tu, não! - Como é que é? - Tu não, fica aí... - Mas eu tô com eles... E o olho no olho. Uma mão no cotovelo, outra no pulso... - Guenta aí... - Eu só vim olhar as gatinhas... Olho no olho e cotovelo na coluna, firme e gentil... na medida do possível... O rapaz saca a arma com a mão livre. O Ruivão está nas costas dele com uma das pernas arqueadas entre as pernas dele. Ruivão curvado para a frente por sobre os ombros dele e ele com o queixo por sobre o próprio peito. A arma mal sai da cintura do hálito de cana, o cano apontado para o próprio umbigo. Mas Ruivão é uma lenda, de terno emprestado resolve no mata-leão.
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Ele deita o sujeito visivelmente embriagado gentilmente no chão. Os outros rapazes que entraram primeiro voltaram ao dar falta instantânea do amigo. Foi só o tempo de passar pela porta e dar meia volta. Os últimos batendo nos ombros dos primeiros... - Ei, o Boca não entrou. - O quê? - O Parado disse que o Boca não entrou... - Poxa! Eu disse pra ele não trazer a garrafa pra dentro. Volta... - O quê? Onde vocês vão? É pra voltar? - Pegaram o Boca... - Mataram o Boca... - O Boca vomitou no ferro... E o olho no olho... Quem tinha arma não sacou. Sacaram que a festa não ia mais ser ali... Olharam o cano no chão. O Ruivão fez que sim, com a cabeça... o Ruivão tem um sexto e tantos outros sentidos... Pegaram o ferro do chão, com cara de nojo... colocaram o cano no bolso do paletó do Boca, já meio que acordando, e sumiram Farrapos afora no Tempra. - Ruivão, eu nunca tinha visto isso... Aqui na portaria vai ser sempre assim?
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- Nem eu, meu jovem... nem eu... tanto cara apertado dentro de um carro só... nem cinto de segurança tem pra todo mundo...
*** 2004. DeZeMBRO. DOMINGO. LADeIRA ABAIXO. OUTRA PeRSPeCTIVA. *** "O FIM ESTÁ PRÓXIMO. Ele se aproxima com o tercêiro milenio." Dizia o impresso em meia folha A5. O acento circunflexo na palavra errada. Porto Alegre não era a mesma na última década do milênio passado e o vento raquítico do verão jogava com o papel no chão, de um lado para o outro... Era domingo e as pessoas passavam por ela na rua e a achavam bonita demais para estar circulando no centro às três da manhã, sozinha e no domingo... Olhavam para o corpo esguio andando apressado, descendo a Vigário... Os rapazes até pensaram em dizer uma gracinha ao vê-la aproximando-se por entre as colunas da Igreja... Projetaram-se em arco diante da trajetória da garota de cabelos roxos, quase fluorescentes. Ela continuava andando, cega, passos firmes, trote inalterado, punhos cerrados, dentes semicerrados, cega... os olhos dela... Repararam, de pronto, nos olhos dela... reluziam ao longe, completamente fluorescentes. Cegos para o mundo. Cegantes para o momento. Foco em seus propósitos.
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E que olhos eram aqueles... Um de cada cor... um era violeta... ambos neons... mas, e o outro olho? Que cor era aquela? Como era bonita, mas no centro, àquela hora... acharam que ela estava buscando confusão... e eles? O que buscavam? Os risos, as risadas, de orelha à orelha... Diante daqueles olhos, eram agora pequenos sorrisos, de meia-boca... E o cheiro de vinho quente espalhou-se pelo ar, abraçando as colunas. Ela passou entre eles, não se intimidou, curvou-se em direção à boca de lobo e catou o impresso. "O FIM ESTÁ PRÓXIMO." Um dos rapazes a pegou pelou braço e a puxou para si. Os demais a cercaram, o mais forte se abaixou e empunhou com uma das mãos o tornozelo dela... puxando-o para si... mas ela não se desequilibrou como esperavam... O que buscavam? Agarrando-os pelo pescoço e jogando o resto de vida para longe daqueles corpos... não disseram gracinha alguma. Trocaram olhares aterrorizados os primatas... As outras não se renderiam a instintos tão primitivos, mas ela... era chegado o momento, talvez... sentiu-se como um leão solto no zoológico, com os visitantes impedidos pelas grades de alcançarem refúgio. Conforme ela se aproximava deles, mais permitia que eles apreciassem melhor o quadro... as roupas eram rasgadas... marcas importadas... mas, os rasgos...
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Era cada rasgo no pescoço, as cabeças eram, uma a uma, desconectadas das respectivas gargantas que reluziam como se tivessem sido trespassadas por mil diamantes... bem, um tanto menos... Eles mal conseguiam fazer planejamentos de curtíssimo prazo... e isso talvez tivesse atraído a atenção dela, era chegado o momento, talvez... Ela vislumbrou num lampejo o que estava por vir... e que lampejo... ela é muito rápida, de baixa estatura, mas com saltos altos. E que saltos... Era como se ela deslizasse em um transe sobrenatural. Foi muito rápido, não disseram gracinha alguma. Grunhidos bestiais foram calados entre palavrões curtos proferidos a esmo com violência desmedida... O sangue se misturava com o pouco de vinho quente ladeira abaixo... O cheiro do vinho quente no ar... o cheiro do sangue... e das algas... era o que diziam os jornais... "O FIM ESTÁ PRÓXIMO. Ele se aproxima com o tercêiro milenio." Ela sorriu com o papel na mão... Agora ela estava, mesmo, próxima.
*** 2004. DeZeMBRO. DOMINGO. RUIVãO. MeU eRRO. *** Ruivão voltava para casa, a noite foi longa. Horas depois de ter colocado o Boca para dormir deixou a casa noturna. Voltava a pé... vinha da Farrapos e já estava subindo a Vigário. Avistou seu Leoti da banca de frutas e perguntou:
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- Que confusão é essa? O carro do Instituto Médico Legal era pouco... os sacos também. - Não escapou ninguém... a molecada tudo de garganta cortada... até os pivetes do bueiro... As cabeças caídas, soltas no chão, apreciaram os próprios corpos sem elas pela primeira e última vez. - Quantos eram? - Ninguém sabe... ninguém viu... tava passando agora pra ir pra banca e olha só... chamei os homens... - Arrumaram o orelhão? - Depois que tu mexeu, não estragou mais... nem o pessoal da telefônica mete a mão... nem pra pegar as fichinhas... - Mas tem que deixar eles catarem as fichas... - Deixa comigo que eu que sei... - Ahã... depois eu converso contigo. Em uma poça de sangue, Ruivão vê um dos impressos que a filha fez... alguns outros rodopiavam em redemoinhos de vento aqui e acolá... - Ruivão, esse não é um daqueles panfletos que tu imprimiu praquelas maluquetes esotéricas... - Mais respeito, Leoti. As moças são gente fina, estudam pra caramba e tão planejando um evento bem legal.
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- Tu fala assim porque tá tirando uns trocos trabalhando pra elas... tudo doida. - Deixa quieto, que tu que não presta, vivente... não vale o que come... Ruivão come um pedaço de bolo que a filha fez e deixou na mesa, troca de roupa para dormir e olha da janela o carro do Instituto que já está de volta novamente pra levar mais uns corpos com ele... - Mas que mundo mais virado... Antes de conseguir deitar, teve que tirar de cima da cama mais duas caixas de impressos que a filha passou a noite imprimindo na máquina de serigrafia que ele mesmo desenhou e produziu. Peça a peça. Dependendo do tipo do desenho, a máquina permitia que fossem produzidas impressões com até cinco cores de uma vez só, antes de colocar o papel com a tinta para secar. Conseguiam produzir muito mais em menor intervalo de tempo. Não precisavam esperar cada cor de tinta secar para imprimir uma nova cor no mesmo papel. Ele pegou um dos papéis na mão e percebeu o grave erro que havia cometido.
*** ePíLOGO *** - Vem, Andrade, me ajuda aqui. Temos que colocar estas fitas no sistema. - Ei, isso aqui é uma fita cassete... Peraí que vou ali buscar o toca-fitas.
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- Tá, mas vem logo... pode ser que essas fitas se decomponham de vez se demorarmos mais alguns segundos: elas foram gravadas ao longo dos anos 1990. - Pera lá! Essas são as fitas do Ruivão? - São. Corre lá! Já estou logando no sistema e entrando com os dados prévios pra inserção dos registros de áudio... - Não acredito! Você finalmente conseguiu contatar o cara... - Eu não disse isso. Temos as fitas. E por hora: basta! - Olha só: se você não quer me contar, então não conta. Mas vai chegar uma hora em que vai ter que explicar a procedência destas entradas no sistema... - Anda, vai logo! Arruma, aí, o equipamento, ô. Cada coisa a seu tempo, mala-sem-alça. Eu, hein? - Cara, eu não acredito! Ele ficou mais de oito anos na prisão para arrancar as melodias do Caim, uma a uma, para completar a Playlist que teve origem no Songbook. - Anda, Andrade! Menos trololó e mais ação! Linda Yamadabi serviu uma xícara de café já sabendo que a noite seria longa. A primeira de uma igualmente longa série de noites sucessivas. Olhou para o compenetrado Andrade buscando as músicas. Elas estavam ali, entre as diversas gravações de toda sorte que Ruivão gerava na expectativa de que nenhuma informação fosse perdida e pudesse auxiliar em sua busca. Repousou a mão no ombro de Andrade em um toque breve, como se quisesse acelerar o processo de alguma forma, tomou um gole de café e resmungou:
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- Só espero que ele consiga encontrar o filho... mesmo. Em qualquer circunstância. E que possa ter algum descanso na vida... Muito aconteceu entre 1994 e 2014... Ruivão ainda tem muito o que explicar para Linda Yamadabi sobre o seu relacionamento com as musas. Ele também tem que contribuir no esclarecimento sobre o que aconteceu com alguns cadáveres. Com os quais teve contato: o cadáver do músico sem coração e aquele que descansa no jardim da casa do tio do Pereba. Com os que não teve contato, como o do Professor Maguary. Linda Yamadabi foi vista em 2019 saindo do carro que solicitou pelo aplicativo e entrando no Park Shopping. Atravessou os corredores, atravessou a rua e andou em direção ao parque Getúlio Vargas. Olhou na bolsa e percebeu que tinha perdido a pasta que trazia consigo com um documento impresso. Pensou que tinha sido um erro andar com ele por aí assim: impresso. Não tinha mais o que entregar. Deu mei-volta e voltou para o shopping. Quando atravessou a Avenida Farroupilha, que separa o shopping do parque, percebeu que estava sendo seguida e correu para o interior do estabelecimento. Os homens que a perseguiam tentaram apressar o passo quando a sinaleira fechou para os automóveis. Um deles tentou correr e teve o corpo atingido por um dos carros cujo motorista não percebeu que a sinaleira tinha fechado. Ele estava digitando no celular para tentar contatar a passageira quando sentiu o choque do corpo do homem no capô. Não foi nada de grave e o homem continuou correndo em direção à entrada do shopping.
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Nesse momento atenderam à chamada e ele comunicou ao operador da empresa de aplicativo: - A passageira que deixei no shopping esqueceu uma pasta no banco traseiro do meu veículo. Sim, na primeira página está escrito, espera um pouco: “SONGBOOK”. SONGBOOK. Código de Registro: SONGBOOK. Chave de Acesso: SONGBOOK. Usuário: LindaY@****************. Nome de Guerra: YAMADABI. Histórico: Entrada 1 de 6. SET.2014. Upload de 28 áudios gravados com a voz de Ruivão durante o período em que esteve em contato com Caim no presídio de Charqueadas. Entrada 2 de 6. SET.2014. Análise do áudio A22. Entrada 3 de 6. OUT.2014. Análise do áudio A24. Entrada 4 de 6. OUT.2014. Análise do áudio A19. Entrada 5 de 6. DEZ.2014. Upload do áudio A29 gravado com a voz de Ruivão. Entrada 6 de 6. JAN.2015. Áudios deletados.
Listando *** 29 *** Arquivos de texto *** em anexo:
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A1. VONTADe De SeR. (1) Vontade de ser, vontade de ter//Vontade de ser e ter//alguém que abra os olhos e veja, que abra os olhos e enxergue, alguém em quem você possa confiar, a quem você possa amar (2) Vontade de sair voando até não poder mais, cair em tentação de ficar só, na vontade de ter...//Linda menina, dos cachos dourados, estou indo aí só pra te buscar//me tira o sono, invade meus sonhos, não quero acordar (3) No fim do arco-íris, há um pote de ouro que imita o brilho do teu olhar A2. WHeN THe SUN COMeS OUT. (1) I donna wanna talk//I donna wanna talk tonight//Just wanna talk about//my feelings when//the Sun comes out! (2) Let me see you shine//Let me see you shine tonight//Come...to...light...my pride//Come...a...round...ton...ight (3) Come around tonight//And make me feel twi...light//is...the...only...thing...I know//that can take...you...from me (4) Now let the morning keeps//going...on...and...on//bringin`to me your light//Making me feel...your beat///(Main kind)...me...feel...alive! (1) A3. VeRIFIeR. (1) Hey, girl!//Look around!//Can`t you see?//That shinning light//shinning on me//Found myself//inside your soul//Don`t you know?
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(2) Too many years//have passed me by//A long waste//for a short life//I`ve once had you//girl, by my side//Sweet thoughts//of just a night (3) You`ve always been//inside my mind//since the day//you`ve burnt my soul//with the light//of you eyes (4) From the ashes//of my life//I have built yours (5) We`ve been one//one at all//two lost souls//into just a life//for just a night (6) Early at down//back to yourself//you left me alone//The movie on TV//I call it trash//You`d asked a cab//I called it so//To your place//you`d took me then//Into the darkness//you have ran//Not a kiss//Neither a sight (7) Out of my eyes//you went so//Disappeared behind//the iron gate//You`ve became one//like you had always been//You became one//like you`ll ever be//You`ve killed this one I`d once called me A4. X FRee. (1) A morte nunca entra por aquela porta//Aquela porta que você espreita//Aquela porta cuja maçaneta//você atentamente espera//um dia//ver girar//Uma noite, de repente,//talvez,//por aquela porta ela vai entrar (2) Pois, por detrás da porta//Você sabe onde ela está//Pois, por detrás daquela porta//Você sabe que ela você vai encontrar//Pois, por detrás da porta//Você sabe//Ela não jaz, morta//Ela anda tão viva//Tão lúcida//Negra ou alva//Altiva e viva (3) Naquele instante em que você para//Para por parar//Para de pensar//Para, então, de a morte espreitar//Para de respirar//Aquela porta não se abriu (4) E se abriu você não viu//Se abriu and so//Ela se fechou//Se abriu and so//So there you go//She came on you//Now it`s done//Ela se fechou//And now it`s done//Now, babe//You`re gone (5) Vamos folhear o livro//Vamos reler a nossa história//Mais uma vez//De novo//E então?//Então outra vez
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(6) Contemos até dez//Qualquer cifra//Qualquer valor//Uma quantidade tal//Qual//O que se passa//por tua cabeça//O que passou//Passou//Esqueça//Não me passou pela cabeça//Esqueça//Tudo o que disse//Esqueça//Eu tava triste//Esqueça//Eu já te disse://Esqueça! (7) I should know//You`d know//One day you would//I should know//Let me try//I know I can//Let me tell you why//I´ll never say goodbye//We`ll be okay//I want you to stay//Sit here//And hear//what I`ve got to say//Stay//At least one more day (9) Love me twice//Once more//Want you for//you know//for evermore//I`ll sing our song//for everlong (10) Never mind//I`ll be alone//You left me here//Here I`ll stay//Here you`ll//find me//If you want//One day//Here you`ll find me//If you need me//Here, I mean, to be//To wait and see//You walking out//Expecting you to turn around//Turning your way back//That way I love//And say to me//Baby, I`m gonna stay//We`ll be okay//Baby, I`m gonna stay//Say we are okay (11) A porta que você fechou//Ela jamais se abriu//A porta que você fechou//Jamais se ouviu//Alguém dizer//Eu retornei//I broke on through//to the other side//The door you went through//I came from//The door you went through//Killed no one//Killed this one//I ever called me//Killed this one//I meant to be//Killed this one//you will never//again in your life (12) Pesa muito//te libertar//But you`d never follow me//To set you free//Killed this one you`d killed//one day//To be free//Killed this one who once before//Had set you free. A5. (IT IS) UP TO YOU. (1) Makin` noises`round the places//make me feel happy inside//Going out to take a walk//half past midnight//Does it mean somethin`brother?//Does it worth a life?//a whole existence//not too much//for a meaning time//At least things happen//No matter (if) we don`t know why//Something better`s coming over//It feels like it is our night
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(2) Take me out of here//Take me out of sight//Take my breath away//Make me hold you tight//Hold my life//inside your soul//Hold my hand//inside of yours (3) Make me insane//Paint it black//Get me crazy//Drive me mad (4) Gimme a chance//Gimme a light//Send me back//to myself (5) Make me strong//Make me try//To be myself//At least tonight A6. O ReLóGIO. (1) O relógio na estante//Não para sequer um só instante//O relógio na estante//Ritmo alucinante//A toda hora, (a) todo instante//O relógio na estante//Paranoia alucinante (2) O relógio na estante//relógio alucinante//O relógio instigante (3) Jamais eu vi//tamanha paranoia//Um momento//petrificante//Como achas que eu estou?//Meianoite já soou//Tá na hora, é agora//Vou me`mbora, eu tô fora (4)Eu não aguento este tormento//Não sei se tento, eu não me aguento//Vou me`mbora, tá na hora,//é agora, eu tô fora! (5) O relógio na estante//Muito tempo é bastante//Se você não me quer//Então me diga que não quer//Não me deixa esperando//Tanto tempo: eu tô mofando//O sofá já tá esquentando//Não aguento, eu me mando//Tá na hora, meu amor//Vou me`mbora, meu amor//Eu tô fora, é agora (6) O relógio na estante//Não para sequer um só instante//O relógio na estante//Ritmo alucinante//Eu já vi isso antes//O relógio me avisou//Tanto tempo já passou//Quem te espera como estou?//Tanto tempo, já pensou?//Tanto tempo se passou//Como posso te esquecer?//O relógio na estante//me mostra o tempo que passou (7) O relógio na estante//foi o relógio que lembrou//Todo o tempo que escoou//Você se foi, não percebi//Por isso ainda estou aqui//Tanto tempo e eu nem bebi//Acho que já enlouqueci!!!
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(8) É meia noite//e eu aqui//Mas tá na hora, é agora//Vou me`mbora//Eu tô fora... A7. I AM NOT IN THe USA. (1) You don`t know what they`ve gotta say - I am not in the USA//You don`t know what they`ve gotta say - I am not in the USA//You don`t know what they`ve gotta say - I am not in the USA (2) Leave me alone, I am not the one, burnin`side, about to die//Living alone, that was the day, I was ready, so I am today (3) I am not in the USA, I don`t know what they`ve gotta say//I`ve got no illusion, ya know what I mean//Got no understandin`. You`re insane - That`s why I`m out of scene//Got no understandin`. You`re insane - That`s why I`m out of scene (4) The world spines too fast my friend you go so crazy you scream//Upside down sliced in two, two of you goin`all aroun`//One knows the meanin`(and) the other goes down A8. TODOS e NeNHUM. (1) Somos muitos e somos um, somos todos e talvez nenhum//Somos quase todos, "todos" é comum, comum como tantos somos é nenhum (2) Alguém já disse que se assim somos, assim vivemos e assim morremos//Quase todos disso sabem, mas ninguém ao certo sabe o que ao certo aqui nos cabe//Neste mundo nós vivemos, nesta casa nós nascemos, nesta casa construímos o mundo que conhecemos//Quem se conhece desconhece que neste mundo construímos a casa onde nascemos//Pensamentos ostentamos, estandartes escondemos, pensamentos que se concebem e que se extinguem e que conhecemos//Neste mundo em que nascemos e de certo desconhecemos
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(3) Palavras confusas e sem sentido de serem o que sentimos//Pensamentos que só fluem em palavras que conhecemos//Em palavras que construímos, nesta casa nos escondemos//Dentro daquilo que pensamos ser aquilo que escolhemos//Conhecendo, neste mundo, todos e ninguém//Todos e ninguém//Todos//e//ninguém A9. LOST AND GONe (I AM NOT THe ONe). (1) If you think//the first is the best//What do you think//about the rest?//If you do just what you please//How do you call//all this desease?//You've got no fear//inside your mind//What you've got//is nothing lost (2) The world is changing, baby//you don't mind, you do your way//you go so far//People pass you by on the street//they do it all the time//you don't mind, you walk your way//you go so far (3) The words I tell you, girl//You hear them not, you walk away//The tears you saw me cry//I don't mind, they`re now dry - yeah (2) A10. PATRICINHA, SIM, MAS NãO COMO A MINHA. (1) (Você a chama Patricinha)//(Patricinha não tá na minha)//(Patricinha, dá um sorriso)//(Patricinha na pracinha//da Encol e tá sozinha)//(Patricinha como a minha)//Cuidado, cara! (2) Cê tá de bode, cara?//(Eu tô na fossa mesmo, meu)//Por que cê tá de cara?//(Aquela vaca me (correu))//Aquela mina da pracinha?//(Essa mesmo)//A que mora no Moinhos?//(Pra cê vê)//(Poxa), chapa, eu te avisei//Você parece que não sei//Como é mesmo o nome dela?//(É Patricinha)//Ela se chama Patricinha?//Patricinha não é galinha//É projeto de perua//Meu irmão, não está na tua//Essa gatinha, (a) Patricinha//não tá na tua e não tá na minha//Fica contigo e
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te descarta//A toda hora troca a carta//Ama as amigas//Mas faz intrigas//E entre brigas junta as amigas//(Pra quê?)//Saem pro shopping//a tarde toda, todos os dias//(E eu com a vida?)//Aí é que tá//tu não tá lá//Só tem "boyzinho"//de bonézinho//roupa de grife//esse patife//tá no jogo da Patricinha//que não é dele,//não é tua//e não é minha//ela é//das Patricinhas//São todas iguais,//é sempre a mesma coisa (3) Te liga, cara://"Essa mina é uma roubada//Ela se liga é no cursinho//no professor que é `boyzinho`" (3) Taí o bizu:/"Ela tá na do Magal//e diz que não,//mas é "gasosa"//e pra (carvalho)" (4)Toca pra praia, liga o som//liga pra mãe do celular//("Mãe, eu tô na Malu...")//De celu(lar) na cintura//No celu(lar) ela se "pindura"//Liga pras amigas//(e) diz que tá em Camboriú//e que o Magal é tri-legal (5) Te liga, cara://"ela te usa e joga fora."//Se você não vai pra Camboriú//ela dorme mesmo na Malu. (6) Procura ela (e) ela disfarça//(e) diz que já passou?//(Poxa), chapa, só você não percebeu//que cê dançou (7) Mas, cê não é o único//pode tê certeza//Assim como você//tem mais dez sem sobremesa (8) Ela é cockteaser//na verdade é um freezer//ela é cockteaser (9) Ela não qué nada//nada, nada com você//Ela não qué nada//nada, nada com você//Ela não qué nada//e não dá nada pra você (10) Ela tá no teu colo//agarrada com você//a tua língua tá na boca dela//a língua dela é que passeia em você//Mas, quando a mão cê passa nela//Passa nela pra cê vê//Ela fica (louca), fica (louca) com você//Te chama de animal filha da (louca)//Experimenta só você (11) Ela se faz o tempo todo//todo o tempo com você//Ela fica danada, fica danada com você//Essa mina é "fazida", coisa de TV//Essa mina é "fazida"//(E) eu já prefiro acontecê//com as mina(s) que dão banda pra você//O que (me) importa é a gata não "se fazê"//A gata que eu quero é
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"swing-sangue-bom"//Fica contigo como cê é//Não te ensina como sê//Gata-da-lata, "mina-sangue-bom"//Não é o carro, não é o lugar//É o cara ("Vem, vamo(s) dançá!)//Ela se embola e até namora//Não é gata//(é) coca-cola, big-mac (e) chiclé-bola//Essa gata é que é a coisa (9) A11. TRISTe MeLODIA. (1) A balada triste tem melodia//A balada triste tem melodia//A balada triste tem melodia (2) Abalada ela saiu de casa ao meio-dia//Não estava mais em casa e ainda era dia//Não disse aonde ia nem porque corria//Abalada ela saiu de casa ainda era dia. (3) Juntou suas memórias e os livros que ela lia//Juntou suas histórias e doces melodias//Juntou-se ao seu eu e ao tudo que sentia//Desapareceu entre as ruas que só ela conhecia//Correndo entre as pedras do prédio em que subia//Desapareceu entre as paredes mais sombrias//Subindo viu o céu de onde ela caia (4) Em suas mãos caiu o anjo que descia//Cuja voz sumiu, já não mais se ouvia//O grito estarrecido de um anjo que sumia//nas mãos de uma garota que saiu de casa um dia//em busca da balada triste, pura melodia//Acudiu o anjo que depois aprisionou//Guardou o anjo em seu peito até o resto dos seus dias (5) A harpa angelical, do seu coração se ouvia//a balada triste, pura melodia//A balada triste do anjo que caira//nas mãos da garota que saiu de casa um dia, sozinha em busca, em busca da magia//Uma balada triste, pura melodia A12. RAI-BABA-LOU. (1) Ôhmenas//Phibhious//Kowemous//Kekomehas//We do not need,//you know, another painfull day
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(2) Ok, tudo bem, se é assim que lhe convém//Ok, tudo bem, gata, eu digo: amem//Ok, tudo bem, eu sei que fui além//Meu bem, o que é que tem? É só você e mais ninguém (3) Aquilo que cê viu, não é o que você pensa//Aquilo que cê viu, alguém botou em sua cabeça//Aquela que cê viu, não é a Maitê Proença//Você sabe quem foi Shakespeare e que eu tô na peça (4) Eu não sou Romeu, nem ela é Julieta//O que que tem a ver? Se você não sabe, não se meta//Se o beijo rola, meu bem, é pela arte//Se rolá o (resto), é que sou artista (5) Você sabe: Tarcísio e Glória, Rai-baba-lou//Tarcísio e Glória, Rai-baba-lou//Rai-baba-lou//Rai-baba-lou (6) Michael e Douglas, Sharon e Stone//Este instinto é que é selvagem//O que eu fiz, não era eu//Você sabe: era dublagem... A13. DeSORDeM GLOBAL. (1) Não há acesso a palavras inacessíveis//Não há progresso sem processos admissíveis//Não há motor que se sustente sem combustível disponível//Não há escola sem professor, não há colheita sem ter quem plante//ou talvez onde plantar, cai um povo, então, por terra//pois terra há, não há lugar que se conceda a quem plantar.//Olho a volta, tudo o que vejo é ensejo//Não nos jornais (2) Sarajevo//Tudo é guerra, é na Sérvia, são os croatas, caiu o muro//de Berlim, faz tanto tempo, nem tanto assim//O grande pai que a todos acolhe ainda insiste em policiar//Polícia do mundo, uni-vos Estados, somos irmãos, somos cristãos//Impor ao mundo sua política democrática, enquanto imposta//religião é a salvação//espera um pouco, ainda não//Doutrinados por comunistas, capitalistas e idealistas//Quem tem razão?//Ideologia é com Cazuza ou com o Renato da legião//Se somos livres, olha aí, o que acontece?//Essa desordem é o caos?//A economia não ajuda, foi despedido e tá na rua, taí a (droga) a reconhecer//A culpa é tua, se quer saber//Sem disciplina a
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governar, taí o caos a se instalar//Eu quero a farda, me dá a granada, eu vou pr'Angola, quero lutar//Olha a Etiópia, não se fala tanto quanto já se falou//Será que a fome tá resolvida e no Golfo a paz reinou? (3) Aí pergunto a quem souber, responda então, quero saber://quem quer causar a ordem? Quem quer manter o caos? A14. CADêNCIA DIVINA (1) Morena//tua boca é o mel//meu desejo e céu//Teus lábios, meu amor, eu beijo sem pudor//Morena de sol és o meu ritual//Cadencia divina em corpo escultural//que me inflama em tal dança sensual//Amor casual, eterno e sem igual (2) Morena//Se a tenho é por que eu te quero//E se te quero é por que te amo//E se te amo eu sou todo teu//Te entrego corpo e alma//Na cama não peço calma//Vem me amar por que quero te ter (3) Vem minha morena que te quero assim, sempre perto de mim, bem juntinho assim, vem (pra) cá, amor... A15. BeYOND GIRL. (1) Your lips on mine//is such a thing I wish in desire//I want you, girl, please to be mine (2) The place//of the gone//is nowhere//and the faith//is the maketh//of the great//No (regress/regrets)//I don't pass//through the grass//where the glass//make a mess//I'm alive//and I fight//with no knife//and I find//at any side//of my life//any fire//anything//to burn aside//my ill mind//It's blind//and besides//I'm the priest//of a time (3) Any kind//or sort of sight//not to blame//just to save//I'm the same//on a flame//just to trade//my own soul//with the one//I call sir//But it's done//I'll burn//and so my soul//and so my bones//and so my wings//I've got no name//just a
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number//a long one//not the one//'cause number one//is so much//I know - for me//(it) is so much//for I am free//(it) is so much//for me - I know//just say good bye//I've gotta go. A16. A FLOR e O PROFeTA. (1) You know I'll never say//I'll never say it again//The game is over friend//The old one has come//He's been so far away//But now he's back - you see//But now he's there - I say//In the rain he sings//Layed on black wings//As the wild breeze rings//Bringing down the things (2) O ídolo caiu//(e) então ela ouviu//O ídolo descendo ao fundo//O ídolo de pedra//não resistiu a queda//Rachou, quebrou, partiu//em pedaços mil//No abismo sumiu//Desapareceu, partiu//(e) então ela ouviu//O ídolo desceu ao fundo (3) Então ela entrou em cena//A flor saiu de seu sono profundo//Saiu do coma e caiu no mundo//Ela caiu e viu um podre vagabundo//Deitado em seu sórdido ninho imundo//Sorrindo ele disse "Aqui acaba o sonho"//E acabou a frase rindo, pobre moribundo (4) A flor rompia do útero da realidade//rumo ao ventre da insanidade//que inunda a mente de um ser profano//As rosas choram ao longo da cama//E as lágrimas rasgam o lençol//que cobre o dorso ferido//de uma flor agora acordada//com os olhos semicerrados e o rosto marcado//por uma nova era de eterna primavera//Depois do inverno doentio//De olhos injetados, pobre moribundo//Diante de nova hera onde a dele se encerra//Sorrindo ele disse: "Aqui acaba o sonho" (5) Acabou a frase rindo e se arrastando//Sentimentos vãos causam dor//De dor morreu mais um profeta//E acabou-se o mundo pro ídolo no fundo//de um abismo em plena primavera.
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A17. AQUI ACABA Lá. (1) Aqui é só o começo//Aqui acaba lá//Aqui é que eu padeço//Aqui acaba lá//Será que eu mereço?//Deus não tava lá//Às vezes eu esqueço//Nem sei como voltá//A vida não tem preço//Um dia eu volto lá//Aqui eu não pereço//Aqui acaba lá (2) Meu povo não tem almoço//Eu sei, não tem jantar//Do osso ou do caroço//Provem o seu manjar//At least I do something//I play my own guitar//I've got so many reasons//I wanna be a star//I feed so many dreams//um dia eu chego lá//Eu alimento os meus sonhos//Sem ter por que sonhar (3) Meu bem, faço (o) que posso//Não custa eu tentar//Meu povo é um colosso//Não come e vai sambar//O carnaval inteiro//A massa vai pular//Se entrega por inteiro//À dança popular//Um dia eu mudo o mundo//Um dia eu vou mandar//A vida muda tanto//Acho que vou lutar A18. RITUAL DO DéCIMO OITAVO ANDAR. (1) O homem que saiu de casa para nunca mais voltar disse vou buscar um cigarro, Maria, estou logo ali no bar (2) Ao cair da noite, no cair do corpo//Ao cair dali do andar 18//Tanto que se falou, tanto que se avisou//O ônibus que atrasou, mais se apressou//nada se desfez daquilo que se fez (3) "Daquiali" se vai, mais um que já voou//Voou e se atrasou daquele andar 18//Se foram tantos que nem sei//E olha que avisei, e olha que falei//Sei que me atrasei, dali eu não cai//Daquele andar afoito, afoito do 18//Caiu as 10 pras 8 do andar 18 (4) Morto ao chegar//Chegar daquele andar//Morto por parar//Só no chão parou, do chão não se passou//Não sei por que pulou, só sei que`le pirou//Pirou por que ouviu, ouviu e até sentiu//Sentiu não ter sentido//pra viver não tem sentido//se preso for mantido
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(5) Não se fala o que sente//não se fala de repente//não se fala atordoado//e se correr pro outro lado//o coitado tá ferrado//foi o inimigo quem falou (6) Querem sua cabeça//morto ou ferido, um mártir removido//Pulou por ter caído nas garras do Sistema//Sistema já falido (7) Ouviu estarrecido: "Em Brasília, 19 horas..."//Ficou comovido: "Ele fugiu-oh..."//Mais um estampido//bala zunindo no ouvido//Pulou atordoado, foi pro lado errado//Com o rádio ligado, a TV ligada//Ninguém ouviu nada//Caiu em disparada com o cair da alvorada//Foi encerrada sua jornada//Foi mais um que se calou//que no serviço não chegou (8) Tantas vezes ali subi//e nunca dali cai//Não sei, não percebi//Olhei, voltei (e) desci//Mais uma foto pro jornal//Este é o fim do ritual//mas amanhã//tem outra foto igual//mas amanhã//tem outra foto igual//tudo e` sempre igual... (9) O homem que queria subir na vida, sabia que pelas escadas tem uma saída//Portas corta-fogo cortam o caminho//Pular no espaço para não morrer sozinho (10) Pare de se arriscar//Nos dias em que não vale a pena//Morrer para não matar (11) O homem que saiu de casa para nunca mais voltar disse vou buscar um cigarro, Maria, estou logo ali no bar A19. SHe'S AS TAKING AS NO ONe. (1) Why are they yelling "The witch will come"//Why are they yelling "The witch will come"//She rides the night upon her broom//The night she rides to come soon//She rides trhe night upon her broom//The night she rides to come soon//To come soon upon her broom//To come soon upon her broom//To come soon upon her broom//To come soon upon her broom (2) The witch is coming through out the skies//The lady of night makes me fly so high//The witch is coming through out the skies//The lady of night makes me fly so high//By her
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side//Each witch is a witch//Each witch is a witch//Each witch is a witch//Each witch is a witch (3) Now I know that I'm alive//From all the witches one is mine//She's my desire, she's in my eyes//the girl of mine is by my side//When she walks my body screams//Need her body close to mine//Feel her blood though my veins//When she moves my mind rings//keep it ringing till she's mine//close to me inside my mind//close to me burning my soul (4) Pretty face on taking body//There's a place (where) she's on dance//there's a lake where I'm the frog//The king of dreams I'm on nightmare//I'm the frog of an old spell//I'm the frog in the nightmare//Asleep I felt - I'm by myself//Awake I am - she's in my brain (5) The frog is gone on nightmare//Here I am (and) she is there//Her body on fire - the girl was mine//How I loved her in ancient times//How I need her through out the skies (6) Sorry, sir, (but) they are blind//The girl they burnt, she was mine//As taking as no one, she is like//the whispering wind of a dark cold night//Warmed up by the fire of those who fear//this girl of mine A20. Só COM VOCê eU QUeRO FICAR. (1) Eu não quero nem saber//Não é você quem vai dizer//O que eu devo ou não fazer//Meu bem, apaga a luz//(que) a luz não me seduz//A noite eu ligo o som//Nem sei se isso é bom//Não sei mais o que eu quero//Só sei o que eu não quero//Faço o que eu gosto//Meu Deus, faço o que posso//A lua já vai alta//Me sinto um astronauta//Sozinho no universo//Meritíssimo, protesto! (2) Você é tudo que eu peço//Só com você quero ficar//Só//É tudo o que eu peço//Só com você//Eu quero estar (3) Garota, vê se volta//Eu sinto tanto a sua falta//Sozinho no universo//Não passo de um inseto//No espaço me projeto//Poeira ou dejeto//É tudo tão deserto//Garota me
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proteja//Entrego numa bandeja//Minha cabeça em tua mesa//E com você por perto//Levanto voo até sem teto (4) Não me importa o que aconteça//Quer (eu) queira ou mereça//Ou ainda que eu pereça//E antes que eu esqueça//Não posso ser modesto//Eu amo e não detesto//Garota, em suas mãos//Sou homem objeto//Não importa que eu pereça//Faça e aconteça (5) De ti me vem a luz//que cega e reluz//Em meus olhos azuis//A chuva cai lá fora//Tira o capuz//Teu corpo tá molhado//Me tira dessa cruz//Vem aqui pra dentro//Deixa que eu te esquento//Meu bem, é só você//Você que me seduz//Meu bem, é só' você//Você eu quero ter//Meu bem, é só você (6) Dentro do teu ser//Pra sempre eu vou estar//a partir deste momento//até o sol raiar//Até daqui a pouco//pra sempre eu vou estar//Aqui eu vou ficar//Em ti eu me encontrei//Aqui é o meu lugar (7) Se você voltou//Este é o seu lugar//Pra mim você voltou//Veio me salvar (6) A21. I AM BACK (PRA Te OUVIR). (1) I used to love//love you so//Come on, girl//Yes, I know//What you'll do//What I've done//I said one day//I would and I did//One day I would//find you so//I am here//Don't let me go//I'(woul)d be gone//You've went away//Now I am here//Don't let me go//I'(ha)d been gone//But not again (2) Now I am here//Please, let me stay//It's been too much//I want to explaim//I've got my reason//It ain't no game//to take this end//I'll start it again//I feel I am//the same I used to be (3) At first sight//we were in love//At that time//I was in love//with you and then//I don't know why//Neither how//my freedom was gone//Vanished away//as (well it was) my brain//What I felt//was (nothing more than) sore and pain (4) If I hurt you//Sorry I can't//deny or even//understand//how free I was//When I had you//How free I am//under your
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chains//(without you) I was a slave//of myself//Deadly lost//ill and insane//Forgive me so//Please, understand//Need your mercy//Need your kiss//your lips on mine//touch me like//you used to do//'cause now I know//how I love you (5) Eu não quero te ouvir//Eu não quero me iludir//Não me pergunte aonde vou//Por que nem eu (mesmo) sei//Só quero sair (daqui)//Por que sei que quando eu voltar//Você vai estar aqui//Eu sei que aqui//você vai estar//E é só por isso que eu vou voltar (6) Voltar pra te ouvir//Voltar a me iludir//Fingir que (eu) não perdi//quem mais amava por partir//Por sair daqui//Sair sem te ouvir//Parte de mim partiu//Parte de mim ficou//A parte que eu perdi//Eu achei aqui//Aqui eu vou estar//Teu olhar no meu olhar//Se não me faz ficar//Sempre me faz voltar//Se quando não te ouvi//Tivesse (eu) fitado o teu olhar (7) Daqui nunca parti//Todo o tempo estive aqui//Me encontrei no teu olhar//E se você deixar//(Meu bem)//Quero ficar (4) A22. NOITeS De LUAR. (1) Ela sai à noite pra dançar//só pra ter o que contar//entre as aulas que não vai matar (2) Logo ela que me prometeu//que não iria mais//matar aulas para dançar (1) (3) Logo ela que se convenceu//que não queria mais//que não iria mais//matar (4) Ela sai em noites de luar//só pra ter o que caçar//entre as aulas que não vai matar (5) Ela só queria mais//ela só queria mais
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A23. WOULD Be ANGeL. (1) Won't be no church//Won't be no pray//Won't be no life//Won't be no faith//Thoughts through my brain//Mind out in rain//I've got no fear//Neither feel (no/the) pain (2) I now can fly//I left the chain//I've got no eyes//There's no need on them//There's no more light//No more sun to shine//Not a single thing//But this kind of wind (3) Feels like I am the one//I mean the only one//or such a thing//the remaining one//I ain't no deaf//But I hear no voice//Just that metal noise//of my moving wing//(striking) against the wind (4) I've got no lips//I speak no word//I feel no heat//I feel no touch//or kind of such (5) No more lamb//No more lord //Won't be no love//Won't be no waste//Won't be no lust//Won't be no taste//Won't be no buts//Won't be no lure (6) O anjo do apocalipse vai comemorar a queda no altar//com sua espada ele vai rasgar a terra, o céu e o mar//O anjo decidiu e contra o amo investiu//o ódio do qual ele se nutriu//as almas das quais ele se apossou//a inveja que dele se acercou (7) Contra o amo e senhor//esse anjo conspirou//soube o que fazer//e decidiu por prevalecer//a tudo que existe//a sua (própria) onisciência decidirá//pelo que deve ou não//existir então (8) Mensagens expressas//no céu impresso//na nau central//da velha catedral//Os anjos vêm e vão//alados ou não//ao redor dessa prisão//Deus com o Seu dedo toca//o dedo do homem Adão//Na capela há tantas velas acesas//e não são em vão (9) O vento uiva//na janela da capela//e apaga a vela//Linda donzela//acende os sonhos//que ostentas//olha a lua enquanto venta//olha o céu que a sustenta//desenhada toda de prata//por sobre toda virgem mata (10) Seus desejos//nesta fonte de prazeres//são dos meus os mais ardentes//tão profanos e tão insanos//tantas vidas//e
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tantos anos de desejos//linda donzela//alucinações e um barco a vela//o meu corpo por teu queima//por teu corpo o meu clama//torno tua minha alma//torno minha tua chama (11) Ilusão e desespero//não há controle//não é segredo//A terra dorme e não acorda//O sol se põe e não retorna//O amo cai e não levanta//Ergo a espada em teu nome//Por ti luto, virgem donzela//Meu filho é teu e é o rei//Não há o que possa nos deter//Derramo sangue pra te ter//Esta escrito e não sei ler//Já foi previsto//Aconteça//o que acontecer//Somos um//e vamos ser//linda donzela//o mesmo ser (1) A24. eNTRe VOCêS e eU. (1) Eu ouço vozes//e são três. //Mas quem são vocês//que não entendem//(ou) por que não querem//ou por que não podem compreender//não quem sou eu//mas quem são vocês? (2) A esquizofrenia não é um estado de espírito, //mas uma constante e permanente//porta de comunicação//entre vocês e eu//... entre vocês e eu//...entre vocês e...eu (3) Mas quem foi que disse//que eu não sei amar?//Mas quem foi que disse//que eu não sei amar, meu amor?//Os anjos me disseram//Os anjos me disseram//que eu não sei amar//Os anjos me disseram//que eu não sei amar//E eu nem sei porque//eles usam tuas palavras, garota (1) (4) Os anjos me disseram//que eu não sei amar//Os anjos me disseram//que eu não sei amar//e eles usam tuas palavras//E eu nem sei por que//os anjos me disseram que eu não sei amar//que eu não sei amar//que eu "não sei amar" (5) Mas quem foi que um dia sequer//em toda sua vida sentou-se ao meu lado//e me ensinou//o que é o amor?//o que é o amor?//o que é o "amor"? (1) (6) Diabos!
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A25. THOUSANDS OF MILLIONS OF eYeS. (1) Thousand of millions of eyes//thousand of millions of eyes//they're hungry and angry and wild//thousand of millions of eyes (2) Se não há vida sem amor//o que fazemos aqui, então?//Diga, princesa,//o que é que há no ar//que respiramos//além do ódio e do rancor//que nos rodeia o ser e o não ter? (3) O que é que há além do mar//do porto que há muito está no escuro//onde as águas tangem o nada? (4) Não há naus neste lugar//não há por onde navegar//o que há muito (tempo) deixou de ser//o farol que ilumina o despertar//de um (gigante) guerreiro em noite sem luar (5) Imerso na imensa vastidão//de trevas eternas o sinal//brilha como a morte//de um dantesco ser//de um "pulsar" (6) A lua reflete o triste guincho//da criatura milenar//a besta inerte//sob o lençol de águas turvas//deste mar de sangue doce e fugaz//das entranhas do amor (7) Um vulto estranho na porta do bar//me perguntou "você não vai entrar?"//Um vulto estranho na porta do bar//me convidou "Você não vai entrar?"//Um vulto estranho na porta do bar//me adiantou "Você vai gostar!" (8) Até o mundo dorme//nesta paz infernal//me diz qual é o mal//que há neste lugar//que espreita a nossa alma//com 15 mil milhões de olhos//a vasculhar nossas almas//frente, verso, intra e extramolecular//me diz qual é o mal//que há neste lugar//tão baixo astral//onde as prostitutas são tão feias//e o pobre incauto ainda bebe da cerveja alheia//Me diz qual é o mal//desta paz tão infernal (1) (9) Olhei para a cara do demônio//e ri//"Feio" ele disse "é você"//Olhei para a cara do beholder//e ri//"Feio" ele disse "é você" (8)(9)(7)(9)(7)(9)(1)(1)(1...)
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A26. FeAR THe RIPPeR. (1) I wanna make you feel the pain you made me feel today//I can make you cry dear day and night//I`m gonna rip the color out of your eyes//I`m gonna rip the smile out of you lips//I`m gonna take the breath out of your lungs//I`m gonna rip the life out of your soul (2) You had killed me first you can`t deny//Without you I`ve lost the reason of my life// I wanna make you feel the pain you made me feel today //I can make you cry dear day and night A27. eATeN HeART, MeTAL HeART. (1) One day a worm will eat your brain up//One day a worm will eat your heart up//No more brain, never had a heart//Oh eaten brain, oh eaten heart (2) Feelings out, feelings in//Just the way I`ve never seen Feelings out, feelings in//I`m just what I`ve ever been//What I feel, what I felt//The feelings in my heart always melt (3) Melting out, melting out//That melting feeling I`ve ever felt//What I felt, what I feel, colder than steel (4) Metal, heavy, iron heart//Poison, in my veins//drives me insane//Say, ain`t it okay?//Say, what you see on me//Say, ain`t I okay?//Stay, safely away (5) You can`t know her//She`s got no name//She`s so unsensible//She`s got no feelings//She once had me//I`ve loved her so//I`ve once loved her//I used to do//But now she`s gone//Look at what I`ve done//To my lonely self//I used to love her//more than I had loved myself//But now she`s gone//And so I am (6) Metal, heavy, Iron heart, And now she`s gone//And she is//Poison//In my veins//The metal melting into ashes//I feel the heat from the burning flesh//I feel the heat (7) Metal//Melting//Into boiling melting thing//Iron heart//Icy love//I can`t pretend that she is dead//She`s got no
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name//She`s got no feelings//She once had me//But now she`s gone//And so I am//But we`re not free (8) Metal//In my veins//Say, ain`t it okay?//In the mirror//It is not me//The one who smiles//No face to see//Say, ain`t I okay? (9) Oh, I don`t know//How could I know?//How could she go?//How could she do//what she had done?//How could she do//what she`ll ever do?//The same old lies//The same old fool//The same old life//I still love you (10)Metal, heavy, poison in my veins A28. O MUNDO De JeNAI. (1) Mulheres (ninfas) lindas,//na floresta, dançam em torno do caldeirão. (2) Dançam nuas nesta festa, sexo drogas e rock n`roll. (3) Hoje as bruxas voam baixo//e dão rasantes perto do chão. (4) O homem que queria subir na vida, sabia que pelas escadas tem uma saída//Portas corta-fogo cortam o caminho//Pular no espaço para não morrer sozinho (5) Não se fala o que sente//não se fala de repente//não se fala atordoado//e se correr pro outro lado//o coitado tá ferrado//foi o inimigo quem falou (6) Já tá tudo armado//o canhão já tá apontado//as tropas tão na rua//tudo pronto, sim, senhor (7) Hippies de pés descalços//não sabem de Jenai//O povo da favela//Revistas e jornais//não sabem de Jenai//Nos cursos de história,//políticos profissionais//não sabem de Jenai//Nem mesmo os influencers de mídias digitais// (8) Assim morreu Jenai//tal qual morreu seu pai//com tiros de soldado(s)//e de policiais (9) A casa já caiu//Também caiu Jenai//Pedindo por clemência//Se escondam nas montanhas//Mas não nos currais//Currais eleitorais//Políticos de carreira//Não nos currais
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(10) Com a garganta calada//O homem calado//Apanha//Sem poder gritar//Os tiros calam fundo//Palavras calam mais (11) O homem que saiu de casa para nunca mais voltar disse vou buscar um cigarro, Maria, estou logo ali no bar A29. QUeM MATOU A BeL. (1) Ele renega a vida//a morte a cura e a ferida//o sangue do corte já não jorra mais//de suas veias imortais (2) O veneno de suas artérias cicatriza o talho//não é preciso mais zelar pelos mortais//muito antes pelo contrário (3) Contrária é a sua história//longe da luz que o gerou//torto e desprovido da graça do próprio pai (4) Assim se diz Caim//no banco dos réus//apontado por todos como um bandido cruel//vil assassino de pobre menina//doce criatura//linda Maribel (5) Caim matou a Bel//Caim matou a Bel//Caim não vai pro céu//pro céu mandou a Bel (6) Anjo do céu//menina linda Maribel//Anjo do céu//menina linda Maribel (7) Anjo do mal, Caim//nas trevas//é imortal//anjo do mal, Caim//das trevas e letal (8) Anjo do céu, menina//linda Maribel//Anjo do céu, menina// linda Maribel
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eSBOÇOS De DUAS VeRSõeS De STORYBOARD DO AUTOR COM eVeNTOS QUe OCORReM NO MeSMO MêS e IMeDIATAMeNTe ANTeS DOS QUe SãO NARRADOS eM SeTeMBRO De 2004 NeSTA eDIÇãO.
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