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Japão-Liberdade
from claro! Invisível
by Claro! USP
Quem visita o bairro da Liberdade pode jurar que o lugar nasceu com a imigração asiática no Brasil. Até mesmo a estação de metrô — cujo nome ganhou o prefixo “Japão” em 2018 — reafirma a influência nipônica na região, que recebeu um número expressivo de imigrantes japoneses entre os anos de 1912 e 1932. Ao decorrer dos anos, a região passou a ser ocupada também por chineses e coreanos.
O que nem todos sabem, é que antes de se tornar um pedaço da Ásia em São Paulo, a Liberdade foi o primeiro bairro habitado por pessoas negras na cidade. O passado se ocultou diante das luminárias japonesas e dos letreiros em ideogramas e pouco da memória do local restou.
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Mas, no coração da Liberdade, um beco escondido entre os karaokês da rua da Glória e o comércio da Galvão Bueno, acaba em uma pequena igreja, que ainda guarda marcas do passado. O local parece ter parado no tempo e quase passa despercebido entre a agitação do turismo. Ali, segue em pé uma das construções mais antigas do bairro: a Capela de Nossa Senhora dos Aflitos.
Curiosos e visitantes são recebidos com simpatia pelas voluntárias da União dos Amigos da Capela dos Aflitos (Uamca), coletivo que mantém o local em funcionamento. Num breve passeio, Renata, uma das voluntárias, explica que a capela foi o que restou do Cemitério dos Aflitos, primeiro cemitério público da cidade e principal destino dos excluídos: pessoas negras e indígenas escravizadas, pobres e indigentes condenados à forca entre os séculos 18 e 19. claro!
Na praça que carrega o nome do bairro, onde acontecem as tradicionais feirinhas aos finais de semana, ficava o Largo da Forca, palco das execuções até 1870. Foi lá que, sob gritos de “Liberdade!”, Francisco José das Chagas, o Chaguinhas, soldado negro condenado à morte por liderar a Revolta Nativista de Santos em 1821, que exigia o pagamento de salários atrasados aos militares, foi morto a pauladas, após duas tentativas falhas de enforcamento. Pouco contada, a história deu origem ao nome do bairro.
Chaguinhas não foi canonizado, mas virou Santo Popular e a Capela dos Aflitos, seu templo. No espaço do velário, zelado por Dona Alda, além das preces católicas, são deixadas oferendas de religiões de matriz africana. Celebrações muçulmanas, evangélicas, xamânicas, kardecistas e indígenas também são realizadas. “Aqui era um cemitério. São crenças diferentes, mas a gente deixa que façam”, explica a voluntária, que frequenta o local há 50 anos e já ouviu inúmeros milagres, segundo ela, realizados pelo Santo.
Ainda que a capela seja quase invisível na Liberdade, quem cuida do local não mede esforços para manter a memória histórica do local viva. Neste ano, o espaço passará por obras de revitalização, junto à construção do Memorial dos Aflitos, um espaço museológico que tem previsão para ser entregue em 2025.
DIAGRAMAÇÃO: Beatriz Sardinha


por José Vieira e Rebeca Fonseca

Durante a infância, o cotidiano de Anne Mota era limitado pela expectativa de como ela deveria agir. A atriz não era livre para brincar com o que queria ou vestir as roupas que achava bonitas. Aos 12 anos, a artista assistiu a um documentário no YouTube e conseguiu dar nome à forma como se sentia: ela é uma mulher trans. Apesar de 4 milhões de brasileiros se identificarem como transgêneros ou não-binários, eles são invisibilizados em obras audiovisuais. De 2017 a 2019, nenhum personagem trans foi incluído em filmes lançados pelos principais estúdios de Hollywood.
A discriminação ainda se estende para a seleção do elenco. Produtoras praticam o transfake, quando artistas cisgênero interpretam personagens trans. A violência dessa técnica se assemelha a do blackface, na qual atores brancos escurecem a pele para encenarem pessoas pretas. Nas ocasiões em que intérpretes trans são contratados, é comum que se exija deles falar exclusivamente sobre a transgeneridade. Tenca Silva, atriz de 30 anos, acredita que os papéis destinados a esse grupo não devem se limitar ao gênero.
O problema também está por trás das câmeras, já que os sets de filmagens não são receptivos. Nos bastidores, intérpretes trans realizam um tipo de jornada dupla. Além da atuação, eles precisam ensinar a equipe a lidar com grupos sub-representados, como já aconteceu com a Tenca.

A organização binária da sociedade e a heteronormatividade explicam o apagamento. Para Mario Camelo, pesquisador de Comunicação da Universidade Federal de Goiás, o audiovisual reforça o padrão social de excluir o que diverge dos gêneros masculino e feminino e da heterossexualidade.
Hoje, há tentativas de reverter padrões de invisibilidade. Em 2016, o projeto teatral Julieta Capuleto adaptou a peça Romeu e Julieta, de William Shakespeare, com protagonismo trans. A iniciativa, realizada por alunos da Universidade Anhembi Morumbi, foi dirigida por Vicente Gosciola, docente acadêmico desde 1989.

Até então, narrativas de gênero não faziam parte de sua linha de pesquisa. O emergir de discussões relacionadas ao tema fez Gosciola se debruçar sobre a literatura LGBTQ+.

O debate encontra eco no cinema independente, para onde os artistas recorrem pela ausência de representatividade na esfera audiovisual hegemônica. Anne teve sua estreia artística em Alice Júnior (2020), aos 22 anos. Apesar de ter ganhado prêmios por sua atuação no longa, a atriz se sente abandonada pelo audiovisual com a falta de oportunidades.
Anne e Tenca defendem que espaços para além da atuação também devem ser ocupados, como a direção e a produção de elenco. “Valorizar o nosso trabalho, nossa vida, nossa existência. Assim, conseguimos pensar sobre o que vivemos em comum”, diz Tenca.