VIAGENS QUE NÃO ESQUECEM SUEZ
OLIVEIRA GONÇALVES
Julgo que foi no ano de 2003, encontrávamo-nos nós em Santa Apolónia (actual cais dos paquetes) a fazer uma pequena reparação no navio que comandávamos, solicitou o armador que fossemos de urgência assumir o comando do Catumbela River, já que o comandante que lá estava solicitara substituição e abandonara o navio antes de iniciar o atravessamento do canal de Suez. Seguimos de avião Lisboa/Frankfurt/Cairo, cidade onde já não íamos há mais de 40 anos. A ideia que tínhamos do Cairo, era de milhares de pessoas a rezar nas ruas simultaneamente, longas avenidas com grandes carros americanos misturados com camelos, ladrões que procuravam vender colares e bugigangas sempre que o nosso táxi parava, e que se conseguissem meter as mãos dentro do táxi, arrancavam os colares e pulseiras das nossas mulheres. Recordávamos que no primeiro trajecto que fizemos do Suez ao Cairo (40 km?) ,não havia uma única casa construída, de vez em quando avistava-se uma coluna de fumo naquele deserto, de tanques de guerra em manobras, e nada mais. Para surpresa nossa, nesta altura quando
lá estivemos, a estrada que leva do Suez ao Cairo, tem casas de um lado e do outro sem interrupção. Tal como esperávamos o comandante do navio não tinha tabaco, nem nada para ofertar e achou melhor desembarcar do que meter-se numa alhada daquelas. Naquele tempo, quando andámos a comandar navios só com tripulações estrangeiras, tínhamos por hábito andar sempre pelo menos com mil euros na carteira, garantia de retorno a Lisboa. Infelizmente nesse tempo, quando qualquer coisa corria mal, era comum tripulações ficarem anos em ilhas no extremo oriente e noutros lugares exóticos, porque os armadores não repatriavam os tripulantes. Pouco depois de termos chegado a bordo, ainda antes de tomarmos conta da situação, fomos abordados pelo barco de pilotos. Vinham buscar a parte deles... Começámos a argumentar que donde vinham os não tínhamos nada a bordo, que o agente ainda não tinha mandado o shipshandler a bordo, nem sabíamos se viria... etc. Disseram eles então: isso de mandar vir agente e shipshandler é coisa demorada, sendo assim o navio já não vai neste comboio. De qualquer maneira o shipshandler vai-te cobrar onze dólares e meio por cada pacote de tabaco e nós podemos vender-te por nove cada pacote. Uns anos antes demos entrada em Cascais a um navio holandês, cujo comandante dava sinais de profunda depressão. Vinha do Egipto e contou-me ele que ao atravessar o canal do sul para o norte, fora mal interpretado pelo piloto que lhe dava entrada, e este ordenara a atracação do navio nos Grandes Lagos. O navio esteve lá parado vinte e oito dias e o armador teve de ir três vezes ao Egipto para o libertar. Assim sendo, encomendámos então cinquenta pacotes. Dez minutos depois estavam de volta. Cobraram por cinquenta pacotes, mas só
trouxeram quarenta e três, já tinham tirado a parte deles... e o navio então já seguiu no primeiro comboio. Em viagem os Pilotos do Canal fartavam-se de dizer que os portugueses costumavam ser muito generosos nas prendas. Mostravam claramente que não estavam contentes com o que levavam. Chegados a Port Said as reservas já não eram muitas. Mantivemo-nos esse mês por portos árabes, turcos e israelitas, e apesar de muito espremido os pacotes de tabaco foram desaparecendo. Cerca de um mês depois, saímos de Ashdod para Alexandria. Estávamos na mesma situação em que estava o navio quando chegámos ao Suez. Como não havia canal para atravessar achámos que aquilo ia ser mais fácil. À hora combinada aproximámo-nos para tomar Piloto, o Piloto subiu, mandei desembarcar para a lancha caixas de limonada, laranjada e cerveja, que era o que tínhamos a bordo, e procurei sensibilizar o Piloto que não tínhamos nada de melhor a bordo. Para minha surpresa, navegámos meia milha, aproxima-se novamente o barco de pilotos e sobe para bordo um novo Piloto, desembarcando o que estava a bordo. O novo Piloto que entrou a bordo não disse uma palavra. Pouco depois o barco de pilotos encostado ao nosso navio começou a apitar estridentemente e no canal dezasseis começou a dizer que a prenda a que se achavam com direito não era só para eles... era também para o Capitão do Porto, para o Director da Alfandega, para a Saúde... sei lá quantas coisas mencionou... E nós pensámos... perante isto vou queixar-me a quem? Subitamente uma ideia nos iluminou... disse ao Piloto que estava a bordo, nós vamos para dentro, o agente à chegada vos dará aquilo a que se acham com direito... JUL-AGO 2020 | BORDO LIVRE 158 | 5