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parar pra conversar Jorge Romão, artista plástico oriundo do Painho

Jorge Romão, artista plástico oriundo do Painho

«Todos os sucessos da minha vida tiveram início aqui no Painho»

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Jorge Romão é um criador de arte que tem o Painho como «eterno local de pertença». Profissionalmente dedicado à reinserção social, é autodidata no seu trabalho artístico, profusamente elogiado. É ao Painho que agradece o ímpeto das artes, a que recentemente deitou mãos.

Fomos ao encontro de Jorge Romão, no final de setembro, por ocasião da vigência da sua mais recente exposição de pintura, «Fragmentos e Contrastes» (ver pág. 12), montada com esmero numa antiga mercearia que hoje dá lugar ao Espaço Sr. Serafim, no Painho. Isto, após ter passado pela Galeria Arte Graça, em Lis «O Painho está sempre presente na minha pintura, mesmo de forma subentendida» boa, onde já é um expositor habitual. «Inicialmente era para -me a espalhar e a misturar as cores, e vão aparecendo forser apenas uma exposição de pintura», conta o autor, exal- mas. Eu não sei como é que aquelas formas vêm, por isso tando o património que encontrou na antiga loja painhense, é que digo que isto é uma obra a dois», declara, aludindo à onde se inclui o importante espólio fotográfico do já falecido mística possibilidade de haver «uma mão de outrem» para Sr. Serafim. «Decidi, então, complementar a exposição com além de si próprio na execução dos quadros, sentindo que só uma homenagem merecida ao Sr. Serafim, recriando o am- entra na fase final das suas criações. biente da mercearia, na época, com objetos expostos que fa- «Na primeira exposição, houve alguém que me disse que eu ziam parte da loja, outros que fazem parte da minha coleção me inspirava num pintor muito famoso, o pintor mais caro particular, outros ainda que eu pedi emprestados a alguns deste momento, que é Gerhard Richard, uma pessoa que eu antiquários em Lisboa, e criámos este ambiente intimista», nem sequer conhecia», exclama, salvaguardando que não relata, enaltecendo o trabalho artesanal também ali expos- quer ser catalogado com correntes artísticas. «Tanto posso to, da autoria de Jaime Rodrigues, filho do homenageado. «O pintar um quadro a imitar azulejo como posso pintar o mais Painho ganhou este espaço, que é um equipamento cultural abstrato possível, ainda que, tendencialmente, o meu traço invulgar», realça. vá para árvores e paisagens do Painho. O Painho está sempre Jorge Romão ali reuniu duas exposições temáticas, uma das presente na minha pintura, mesmo que de forma subentenquais “Fragmentos”, pinturas em quadrículas inspiradas nos dida», salienta. azulejos de Lisboa, embora evocando a ruralidade do Painho. As coleções “Fragmentos” e “Contrastes” não se distanciam das A coleção esteve exposta, pela primeira vez, de dezembro de suas antecessoras – as exposições “Ímpetos”/”Retrospetiva” e 2019 a janeiro de 2020, no Campus de Justiça. «Depois, em “Ímpetos 2”, que passaram pelo Concelho entre 2018 e 2019. julho, convidaram-me para expor na Galeria Arte Graça, e eu, «Há sempre uma continuidade na minha pintura, desde que como não queria repetir a exposição “Fragmentos”, levei par- comecei a pintar, em 2018», diz. O que poderá variar prendete dela e fiz uma nova, a que chamei “Contrastes”», explica. -se com o desenvolvimento de novas técnicas. «Nunca fui Contando com os já vendidos, as duas coleções totalizam para nenhuma escola de pintura nem desenho; tenho deperto de 70 quadros. senvolvido as minhas técnicas, utilizando materiais que não Nesta segunda vez que Jorge expõe trabalho no Painho, passa pela cabeça de ninguém, desde escovas, pentes, guarvoltou a ter boa recetividade, como aliás já acontecera em danapos, tudo o que possam imaginar», nota. agosto, em Lisboa. «Já a primeira exposição que fiz, em 2018, Integra atualmente coleções privadas em vários países – Dutinha tido uma aceitação muito boa. Houve comentários que bai, Luxemburgo, França são alguns deles. «São pessoas do me deixaram incomodado e desassossegado… Houve um Painho ou de Lisboa que têm familiares no estrangeiro e goscrítico de arte que me disse que eu era, provavelmente, o Al- tam de enviar os quadros», aponta. mada Negreiros do séc. XXI. Aquilo deixou-me incomodado «A pintura começou por brincadeira; uma colega minha porque o Almada Negreiros é, para mim, o expoente máximo desafiou-me a fazer um quadro para o seu gabinete, eu fiz, da cultura portuguesa. Longe de mim estar a comparar-me gostaram e começaram a dizer-me que tinha de pintar mais. com ele», observa o pintor painhense. Ao fim de seis meses tinha 60 quadros e percebi que tinha «Eu começo a pintar e nunca sei para onde é que vou! Limito- material para expor. E o ritmo continua. Eu sou capaz de estar -me a lançar a tinta para as telas, depois utilizo espátulas de cinco, seis meses sem pintar, mas se em janeiro me disserem construção civil e de pintura, raramente uso pincéis. Limito- que precisam de quadros para expor em abril, eu até lá pinto

40», afirma o artista. Foi em agosto de 2018 que expôs pela primeira vez na sua terra-natal. «Como a associação do Painho era grande, eu aproveitei para as pessoas conhecerem melhor a minha obra, e a reboque da exposição “Ímpetos” eu trouxe todos os quadros que já tinha. Na altura, consegui expor cá 70 telas; trouxe também todos os trabalhos que tenho feito desde 1985 – algumas colagens e gravuras, a que chamei “Retrospetiva”, e trouxe um dos projetos em que eu mais me envolvi, “A Caixa”», avança. «“A Caixa” foi um projeto que eu fiz em 2012 para assinalar a introdução da vigilância eletrónica na fiscalização de penas e medidas no panorama jurídico português. A primeira pulseira foi aplicada em janeiro de 2002 e houve um seminário para comemorar os 10 anos desse sistema. Nesse contexto, ofereci-me para fazer uma exposição comemorativa para estar presente no seminário. Falei com a empresa que fornecia este material de vigilância eletrónica, que me forneceu todo o material necessário. Isto porque em 2012 já estávamos com um equipamento mais moderno, mais eficaz», explica. «Portanto, aquilo que eu queria era o material obsoleto, que já não era utilizado», sustenta. «Ao longo dos 10 anos, houve uma série de histórias com as quais tive contacto, já que eu trabalhava no terreno, histórias muito interessantes que se passavam com os arguidos relativamente à vigilância eletrónica. Pegando nessas histórias, criei 10 caixas – são 10 anos, 10 caixas, 10 fragmentos de vida. Cada conjunto desses 10 tem uma caixa e uma pulseira, e retrata uma história real. Foram feitos com materiais reciclados, grande parte deles apanhados no lixo, nos bairros históricos de Lisboa, nomeadamente Alfama, Mouraria e Graça, que é onde eu resido», conta. “A Caixa” foi o primeiro projeto que mexeu mesmo comigo, a todos os níveis. Eu emagreci 10 quilos a fazer aquilo. Estive a trabalhar cerca de cinco meses – fins de semana, noites; não tive férias para o conseguir. É um projeto único, a nível mundial, porque nunca ninguém tinha pegado em peças com uma conotação tão negativa, transformando-as em peças de arte. Além disso, é irrepetível porque aquele equipamento já não existe; o que sobrou foi incinerado», explica. «Na altura, houve um congresso internacional sobre vigilância eletrónica, salvo erro na Holanda, pouco depois do seminário de cá, e a exposição foi divulgada em vídeo durante esse seminário internacional. E houve quem se mostrasse interessado em ficar com a coleção, nomeadamente o próprio fabricante, porque era algo inédito, e fizeram-me propostas aliciantes de valores muito elevados, mas, como era a minha primeira obra, eu estava tão ligado àquilo (eram quase as minhas filhas), nem me passaria nunca pela cabeça desfazer-me daquela coleção. Tanto que ela hoje mantém-se comigo; é uma coleção particular. Existe um projeto para, quando houver um museu judiciário, a vigilância eletrónica ser um núcleo desse museu. Eu, na altura, assinei uma espécie de carta de compromisso com o Estado português, através do Ministério da Justiça, de que esta coleção nunca sairia de Portugal sem primeiro haver uma declaração de interesse, ou não, por parte do Estado português. A coleção está disponível para ser mostrada, e tenho alguns projetos para voltar a expô-la», aponta. Para si, o Painho é, e será sempre, um eterno retorno. «O lugar onde nascemos ninguém nos tira. Eu tenho aqui uma frase exposta que diz: A vida pode tirar-nos tudo, as pessoas que amamos, as conquistas que fizemos ou os sonhos que nunca concretizámos, só não nos pode tirar o lugar onde nascemos; o meu é o Painho, para sempre. Tive a sorte de aqui nascer, passei aqui a infância; ia na carroça com o meu avô para a fazenda, o cheiro da terra entranhou-se-me; isso marca para sempre, modela a nossa forma de estar e de ver o mundo. Todos os sucessos da minha vida, eu sei que eles tiveram início aqui no Painho… Não foi nada fácil, o meu pai tinha uma loja e eu, a partir dos oito anos, estava atrás do balcão, contrariado. Eu detestava estar na mercearia ou na taberna a vender copos de vinho, mas teve de ser, e isso marcou-me. Mas hoje não queria ter outra infância. Tudo aquilo que eu faço anda sempre à volta do Painho. Eu acho que nunca consegui cortar o cordão umbilical com o Painho, e ainda bem, pelo menos tenho um lugar de pertença», salienta. O que conseguiu repescar dessas memórias foi reunido no livro “Quando os ciprestes davam laranjas”, editado em 2016 e apresentado também na Biblioteca Municipal (tal como a exposição “Impetos 2”). «Eu comecei a escrever uns textos pequenos, para oferecer pelo Natal aos meus familiares aqui do Painho. Era apenas centrado na família, só que todas as memórias se interligam, e aquilo começou a crescer e a ganhar uma forma quase de “crónicas de aldeia” que deu depois origem ao livro. É um conjunto de histórias e memórias da terra, no período de ‘60 a ‘70, ainda que aborde acontecimentos e factos de outras alturas. Aborda vivências minhas e também histórias que a minha mãe e a minha tia me iam contando», nota. Eu fui arrancado, contravontade, aqui do Painho, através do então Serviço Militar Obrigatório. Assentei praça num quartel do Lumiar, a 5 de janeiro de 1980. Hoje, reconheço que foi isso que me permitiu abrir horizontes e poder desenvolver e dar azo à minha imaginação, para transformar as minhas memórias em objetos para ler, para ver, como os que estão aqui expostos», constata. «A primeira edição do livro esgotou mas, quem o quiser, basta entrar em contacto com a Chiado Editora. «Eu nunca parei; tenho escrito alguns textos, contos soltos… O meu projeto era editar outro em 2018, só que entretanto aparece-me a pintura», diz. «O meu trabalho é extenuante e, além disso, em 2017 aumentou em muito o número de casos de penas e medidas abrangidos pela vigilância eletrónica, e a partir daí passei a ter o dobro do trabalho, refere. «A forma de me equilibrar foi o refúgio na arte. Aliás, a minha grande produção na pintura correspondeu a um aumento exponencial do meu trabalho», frisa. A sua vida artística deverá manter-se sem planos. «Nada do que fiz até hoje fazia parte do meu projeto de vida. Eu não tenho projetos para o futuro, as coisas vão-me acontecendo impetuosamente», realça. «Mas gostava de, um dia, criar aqui um espaço no Painho onde eu possa deixar as minhas memórias», acrescenta. «A arte dá-nos um bocadinho de imortalidade».

Jorge Manuel Lopes Romão nasceu no Painho, a 3 de janeiro de 1959, aldeia que o viu crescer até que o serviço o militar o levasse para Lisboa, cidade onde ainda reside, mais precisamente no histórico bairro da Graça. Formado em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa, trabalha no Ministério da Justiça há cerca de 30 anos, integrando a carreira de técnico superior de Reinserção Social na Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais. Atualmente, desenvolve funções de coordenador da equipa de vigilância eletrónica de Lisboa. No recente currículo artístico, conta com algumas exposições de pintura já concretizadas, uma mostra inédita de esculturas sobre vigilância eletrónica e um livro de memórias do Painho.

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