COMPANHIA NACIONAL DE BAILADO
A ROUPA TAMBÉM TEM QUE DANÇAR — PAULA MARINHO, MESTRA DE GUARDA-ROUPA
A MINHA COMPANHIA
A PROVA, UMA CRÓNICA
A MINHA
FICHA TÉCNICA
OUTRAS DANÇAS
A Minha Companhia é um
Coordenação
Outra Danças é uma
COMPANHIA
EDITORIAL
novo projeto da Companhia
Pedro Mascarenhas
a temporada 19/20 que
Textos
sua equipa e desvendar
Marques
Nacional de Bailado para visa dar a conhecer a
os bastidores do Teatro
Susana Moreira
Camões, a casa da CNB.
Edição
Uma centena de
Maria Santos
colaboradores constitui
uma equipa de profissionais que produzem e contribuem
José Luís Costa Pedro Mascarenhas Fotografias
para a realização, tanto
Hugo David
todas as outras atividades
Design gráfico
dos espetáculos, como de inseridas na programação
Estúdio João Campos
aqui.
Impressão
da Companhia. Descubra-os
Greca Artes Gráficas Tiragem
2000 exemplares
coleção digital da CNB, que reúne diferentes
séries com testemunhos
sobre obras apresentadas
pela Companhia, criadores e bailarinos.
Lançada em 2018, Outras Danças é inspirada no título da obra Other
Dances (1976) de Jerome
Robins (1918–1998), sendo esta uma homenagem da CNB ao coreógrafo por ocasião do centenário do seu nascimento. SÉRIE 7
VESTIR A DANÇA Novembro 2019
Paula Marinho é a
mestra de guarda-roupa da Companhia Nacional de Bailado. É ela a
responsável pela equipa
que torna os desenhos dos figurinistas realidade. José António Tenente
é o figurinista de Le
Chef D’Orchestre. Nesta série falam sobre o seu trabalho, em conjunto e individualmente,
desvendando um pouco da arte de vestir a dança. Descubra Outras Danças na nossa página do Facebook.
As suas mãos já conhecem o corpo dos bailarinos. Os mais velhos, já os vestiu várias vezes. Os novos, começa a conhecê-los. Ela tem as suas medidas, tem-nos a todos num arquivo identitário invulgar: um inventário de pescoços, alguns muito altos, braços que descem e sobem constantemente, troncos sólidos, pernas que não acabam, pés elásticos. As mãos dela começaram a treinar-se por imitação. De pequenina. O que ela fazia com as mãos era o que via a mãe fazer.
Era a mãe que achava que ela tinha boas mãos, que seria um desperdício não as usar. Afinal, a mãe nunca tinha estado tão absorta nas suas tarefas que não reparasse no que a filha fazia para as bonecas. Mãos de trabalhadora: é assim que se costumam descrever mãos como as dela. De quem passa muito tempo a manusear instrumentos. De quem pega em enormes pedaços de tecido que não eram nada até serem uma coisa de vestir e dançar. De quem
Quando tudo está pronto, as suas mãos ficam temporariamente vazias. Na estreia, quando vê os bailarinos em palco vestindo o fruto do seu trabalho, as suas mãos mostram sinais de nervosismo. Fica à espera que a roupa resista àquele extra de empenho que os bailarinos põem em palco. Depois da estreia, as mãos recomeçam. Uns bailarinos gostam de uma maneira, alguns gostam de outra, e vou conseguindo perceber qual é o estilo de cada um. Trabalhar para um bailarino é muito diferente de fazer um figurino, por exemplo, para um cantor. Um cantor não tem que fazer os movimentos que um bailarino faz. Os bailarinos têm que fazer movimentos, têm que dançar, e a peça de roupa tem que dançar com eles. Não gosta de falar em abstrato. Prefere falar de coisas concretas. Pode dizer que foi costureira muitos anos enquanto a mãe era mestra, e que a mãe a tratava como outra costureira qualquer, exceto que com mais exigência, embora ela nunca se tivesse habituado a chamar-lhe outra coisa que não mãe. Pode dizer que hesitou em aceitar ser mestra quando a mãe se reformou. Que duvidou se seria capaz, mas a mãe teimava que ela conseguia. Pode confessar que nos primeiros tempos telefonava para a mãe a tirar dúvidas concretas, específicas, e ficavam a ter conversas de trabalho, e não de mãe e filha.
A PROVA, UMA CRÓNICA
Em casa, a mãe sentava-se à mesa da costura. A mãe cortava os moldes. A mãe cosia. Ela sentava-se no chão, cortava, cosia, fazia tudo igual com tecidos de outra escala e, depois, vestia as bonecas (talvez até as imaginasse a dançar). Desde pequena que se lembra de que a mãe, Adelaide Marinho, fazia guarda-roupa para bailarinos, para a Companhia Nacional de Bailado, mas já era adolescente quando a mãe começou a trabalhar no edifício da CNB, na Rua Victor Córdon, e ela a visitava de vez em quando.
pega em panelas grandes e pesadas para tingir roupas. De quem toca em algodão, musselina, organza, chiffon, seda, feltro, napa, couro, linho, tule, até saber a diferença de olhos fechados. De quem desenha muitas linhas em tecido e depois as corrige. De quem se pica e se deixa enfeitiçar.
A ROUPA TAMBÉM TEM QUE DANÇAR — PAULA MARINHO, MESTRA DE GUARDA-ROUPA
As suas mãos estão em cada pedaço de roupa que os bailarinos vestem. O figurinista sonha, mas são as mãos dela que realizam.
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A ROUPA TAMBÉM TEM QUE DANÇAR PAULA MARINHO, MESTRA DE GUARDA-ROUPA POR SUSANA MOREIRA MARQUES
Perguntem-lhe antes: Quantas horas é preciso para fazer um tutu e ficar com aquele aspeto de que ninguém tocou nele, que apareceu assim na natureza? Quantas horas, em média, passa uma costureira sentada? Quantos anos passam até os olhos se cansarem por terem que ser tão precisos? Quantas vezes é preciso fazer um molde até que pareça que não custa nada passar do desenho no papel para um objeto tridimensional? Que tecido parece ter sido feito para dançar? Que tecido nunca vai dançar por mais que se insista em trabalhá-lo? Tudo isto são respostas que ela sabe, porque as tem no corpo. Tinha jeitinho. Sobretudo para fazer aplicações e trabalhos minuciosos para os quais é preciso tempo, e, como às vezes estava sem fazer nada, e para uma costureira não estar a perder o seu tempo com aquilo, a minha mãe levava-me com ela para fazer essas coisinhas. No início, não liguei muito. Nunca tinha assistido a um bailado. Só tinha visto na televisão. Mas depois de estar em contacto com os criadores e os bailarinos e de ver ao vivo, é empolgante, mexe connosco. E era engraçado ver aquelas pequenas coisas que tinha feito em palco. Foi assim que comecei a ganhar outro gosto. Porque é diferente trabalhar para dança e trabalhar como costureira fora daqui. Estamos sempre a costurar, mas estamos sempre a fazer coisas novas. Nunca é igual. E aprendemos de uma peça para a outra. Ao fim deste tempo todo, cada peça é um desafio novo para mim.
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Está de pé no atelier. Agora, passa muito tempo de pé. O atelier é amplo e tem muitas máquinas de costura, tábuas de passar a ferro, uma grande mesa central sobre a qual as costureiras se debruçam para todo o tipo de tarefas minuciosas. A mesa dela fica à entrada, de modo a que ela possa ver todo o atelier e todas as pessoas que trabalham com ela no guarda-roupa. Em cima da mesa, tem os materiais do espetáculo que está a ser preparado: desenhos elegantes de José António Tenente, espalhados por várias folhas, porque os bailarinos são muitos; os primeiros moldes que fez a partir desses desenhos usando enormes folhas de papel vegetal; alguns modelos para serem provados, onde já se vislumbram como vão ficar, no final, os figurinos.
Essa é a única parte do trabalho que ela não consegue deixar dentro do atelier. É o que ela não pode abandonar em cima da mesa ou fechar
Nós gostamos sempre de ver o nosso trabalho bonito e bem feito, não é? Quando estou do lado de lá do palco, consigo ver se gosto da coreografia ou não, mas os meus olhos batem sempre no guarda-roupa. É gratificante ver o meu trabalho em palco mas, depois, não fico a pensar muito naquelas peças. Logo a seguir à estreia, parto para outra. É quase como os atores que têm que despir a personagem quando acabam uma peça. Olha para a sua mesa. Olha em volta para o atelier. Volta a olhar para a mesa. Ouve-se barulho das máquinas de costura, dos ferros de engomar, das tesouras, barulhos de telefones ou vozes nos gabinetes próximos. Às vezes, é interrompida, mas logo volta ao trabalho com o mesmo ar absorto. Parece ter sempre um ar pensativo, mesmo quando pega nos materiais à sua frente. O fazer também é uma forma de pensamento. As mãos continuam a trabalhar.
A PROVA, UMA CRÓNICA
O design de Tenente para Le Chef d’Orchestre, de Paulo Ribeiro, inspira-se no fato do maestro de uma orquestra e desconstrói-o. Como se o fato tivesse sido cortado ou rasgado e tivessem colado as partes do fato em sítios diferentes. Fazer peças destas é um quebra-cabeças mas, mesmo quando as roupas não têm conceitos tão fortes, são sempre um quebra-cabeças. Para os bailados clássicos, as roupas podem ser complexas, e um figurino pode ter que evocar um universo inteiro. São peças expressivas, que têm que ajudar a contar a história das personagens. Têm que ser belas, mas não se sobreporem à beleza da figura do bailarino.
numa gaveta até ao dia seguinte. Às vezes, a solução – um pequeno pormenor que faltava para perceber como é que um desenho podia passar efetivamente a ser uma roupa que se vista e que dance – aparece-lhe inesperadamente, em casa, a meio de uma tarefa banal. Ou quando está a dormir e acorda subitamente, a meio da noite, e tem a solução.
A ROUPA TAMBÉM TEM QUE DANÇAR — PAULA MARINHO, MESTRA DE GUARDA-ROUPA
É preciso ter jeito para fazer a costura, mas, principalmente, é preciso gostar.
A PROVA, UMA CRÓNICA POR SUSANA MOREIRA MARQUES
Não sei se aquela bailarina que se vê ao espelho enquanto prova a roupa se sente outra vez como uma principiante, prestes a entrar no seu primeiro espetáculo, ou se até se sente como uma criança, a experimentar as suas primeiras roupas de ballet. Aquele bailarino, cabelo curto, sorriso, olhos tímidos, corpo magro mas musculado, moreno, apressado, despe, veste, comenta, despe, veste, corre para outro ensaio, naqueles segundos em que tem sobre a pele o fato preto que José António Tenente desenhou para ele, talvez se sinta outro, subitamente. Talvez goste de quem vê ao espelho. Talvez não. A outra bailarina, enquanto a mestra corrige a gola branca no pescoço, ela muito quieta para não ser picada por alfinetes, talvez esteja já a imaginar-se no palco. Ou talvez não. Talvez esteja a pensar num movimento que ainda não conseguiu fazer como queria. Ou talvez aproveite aqueles cinco minutos de prova para pensar noutras coisas, lembrar-se de alguém, fazer planos para o que vai fazer mais tarde, com um namorado ou uma namorada ou amigos. Eles já provaram tantas roupas, fizeram tantos espetáculos diferentes. Talvez já nem se lembrem de todos os maillots colados ao corpo, das calças justas, das roupas largas, dos tutus clássicos, das roupas sofisticadas, elaboradas, e outras tão simples, leves, com que dançaram. Algures, num armazém, numa caixa, estão roupas com as medidas exatas dos seus corpos. Talvez essa ideia de que os bailarinos voltam a ser meninos entusiasmados com um brinquedo novo seja uma ideia romântica de quem está de fora. Talvez só quem está de fora deste mundo precise
de assistir à prova de guardaroupa, apreciar os primeiros fatos, para começar a “ver” o espetáculo. Antes da prova, assisti a ensaios de Le Chef d’Orchestre, assisti ao Paulo Ribeiro a dar indicações aos bailarinos, a coreografia desenrolou-se perante os meus olhos. Mas é aqui, num pequeno gabinete, de um dos andares do Teatro Camões, fechado - sei que o rio está atrás de mim mas não o vejo -, um gabinete sem nada de especial, que começ a “ver” o espetáculo. Que ele começa a ser real para mim. O figurino é talvez o primeiro dos “adereços”, o primeiro “cenário”. O primeiro gesto da transformação é este: o vestir. Consigo já perceber como é que aqueles fatos combinam entre si. Todos partem da mesma ideia de desconstrução do fato de maestro, todos têm em si a marca do desenho de Tenente, claramente, mas todos são diferentes. Cada um fica bem àquele bailarino e só àquele, e isso deve querer dizer alguma coisa. Não falo de “caber”. Porque estes fatos não cabem, como roupas que se vestem na loja e, se não cabem, pede-se outro número. Estes fatos “assentam” nos bailarinos. A roupa tem que ser uma segunda pele porque só assim podem dançar. Falo da roupa corresponder ao que eles são ou ao que vão ser em palco. A sua personalidade não se apaga nos fatos. Pelo contrário. Talvez seja como uma armadura. Os proteja. Ou talvez seja uma roupa tão aderente ao que são que seja como estarem nus, admitam expôr-se inteiramente. Sai um bailarino. Espera-se um pouco. Sai-se do gabinete de provas.
7 A ROUPA TAMBÉM TEM QUE DANÇAR — PAULA MARINHO, MESTRA DE GUARDA-ROUPA
Ela sobe os braços e baixa-os. Está um pouco justo para poder fazer movimentos largos. A mestra, Paula Marinho, faz novas marcações. José António Tenente dá um passo atrás, olha. Corrige um bolso falso, que ficará melhor um centímetro para o lado.
A bailarina tira o fato que a Paula Marinho guarda imediatamente. Veste-se. Sai. O figurinista sai. A mestra sai e entra no seu atelier ali ao lado. O corredor fica vazio, exceto pelo charriot comprido, encostado à parede, com os fatos já praticamente prontos pendurados, uns atrás dos outros, em fila, como soldados à espera de ordem para entrar em acção. Lisboa, Teatro Camões Novembro 2019
A PROVA, UMA CRÓNICA
Volta-se a entrar. Chegou mais uma bailarina, apressada, veio a correr do ensaio. Tem pouco tempo. Tira a roupa. Veste o fato. Um casaco de maestro que já não o é. Restos do que foi uma camisa branca. O dela é um fato sem pernas. “Há sapatos?”, pergunta. Ainda não se sabe. Talvez sejam só meias.
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T.01-E.02-NOV.2019