A cidade como lugar educativo: contribuições do protagonismo e do olhar infantil

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INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DE SÃO PAULO/ SINGULARIDADES

CAMILA PINTO DE SOUZA SAWAIA

A CIDADE COMO LUGAR EDUCATIVO: CONTRIBUIÇÕES DO PROTAGONISMO E DO OLHAR INFANTIL

SÃO PAULO 2019


INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DE SÃO PAULO/ SINGULARIDADES

CAMILA PINTO DE SOUZA SAWAIA

A CIDADE COMO LUGAR EDUCATIVO: CONTRIBUIÇÕES DO PROTAGONISMO E DO OLHAR INFANTIL

Trabalho de Conclusão de Curso - TCC - apresentado ao Instituto Superior de Educação de São Paulo Singularidades – curso de Pedagogia – como requisito para obtenção do título de Pedagoga, sob orientação da Prof.ª Me. Tatiana Schunck.

SÃO PAULO 2019


Catalogação na Publicação Serviço de Biblioteca Instituto Superior de Educação de São Paulo – Singularidades

SAWAIA, Camila Pinto de Souza. S971c A cidade como lugar educativo: contribuições do protagonismo e do olhar infantil. / Camila Pinto de Souza Sawaia. -- São Paulo, 2019. 191f. Orientação: Prof.ª Me.Tatiana Schunck (Graduação em Pedagogia) Instituto Superior de Educação de São Paulo – Singularidades, Pedagogia, 2019. 1. Cidade-projeto educativo. 2. Protagonismo infantil.3. Cidadania. I. Schunck, Tatiana, orient. II. Título. CDD 307.76

Maria Ferreira Pereira – CRB/8: 8296


Para as crianças do CCA Elisa Maria, que muito me cativaram, me ensinaram ainda mais, e construíram junto.


Agradecimentos Agradeço essencialmente às crianças do CCA Elisa Maria, que me ensinaram um novo modo de olhar para a cidade, e, consequentemente, uma nova forma de me entender cidadã. Crianças que me ensinaram o que é um processo participativo, que me encantaram e cativaram a cada encontro, que compartilharam comigo os seus lugares e desejos, que me ensinaram o que é morar na periferia. Crianças que me ensinaram a ver de um novo modo o que é ser criança. Mas também agradeço à todas as crianças, que me mostram o viver com a liberdade de um pisar na lama e sorrir, com a alegria de dar um grande pulo de um degrau de 10cm. De viver com a simplicidade da descoberta de cada textura, de cada cor, de cada flor. Viver com a felicidade de se sujar de tinta, de aprender o que é a sombra. Viver com a concentração e dedicação ao transpor água de um copo ao outro. Viver em harmonia na brincadeira. Depois, não poderia deixar de agradecer ao Bruno, motor de todas as experiências e transformações vividas, que acreditou do começo ao fim no nosso projeto e construiu conosco. Educador que inspira e cativa as crianças, que ensina para a cidadania e que me motiva, fazendo-me acreditar ainda mais na educação. Quando crescer quero ser uma professora tão incrível quanto você! Agradeço à todas e à cada uma das integrantes do Co-Criança, que, além de terem possibilitado que eu vivenciasse pela primeira vez a intersecção das minhas áreas de estudo, se dedicaram tanto a criar um processo tão lindo. Que contribuíram com suas potências e ajudaram nas dificuldades, que se entregaram e fizeram. Obrigada, meninas, por compartilharem comigo esse sonho. Agradeço também à Tati, que acolheu todas as minhas palavras, acreditou em mim desde o começo, respondeu com a maior agilidade a todos os meus e-mails, me conduziu dentre todas as minhas ideias, que sempre me deu liberdade de levar meu trabalho e segue, ainda agora, me incentivando a continuar. Aos meus pais, que, desde o começo, apesar dos pesares, me apoiaram nessa loucura de fazer duas graduações. Que sempre estiveram mais que presentes, que me apoiaram, que queriam saber, que sempre apostaram em mim. Que me propiciaram, durante toda a vida, uma educação incrível e me permitiram seguir atrás do


que acredito. Que são duas pessoas maravilhosas e certamente tem uma participação gigantesca nessa produção. Obrigada à vocês dois, por me formarem o tempo todo e serem, agora, uma partezinha de mim. Aos meus irmãos, que sempre ouviram minhas histórias contadas da forma mais longa possível, que compartilharam inúmeros momentos, que reviram e me ajudaram a resumir o texto. Que são a melhor lembrança da minha infância, que, de todas as formas, estão sempre perto, e que formam a melhor trinca que existe! Ao Pedro, por toda paciência, ajuda, carinho e amor. Pessoinha que inspira, que sempre me motiva a continuar, que está sempre muito perto e soma de todas as formas possíveis e imagináveis. Que me apoiou quando parecia difícil, que me confortou no cansaço, mas que também proporcionou às melhores alegrias, os melhores abraços e os melhores sorrisos. Que compartilhou comigo grande parte do caminho percorrido para chegar aqui, que viveu muitas e ouviu sobre todas as experiências, que divide comigo as alegrias desse sonho que ainda continuará sendo sonhado. Juntos. Aos parças, ao tchola, à firma, ao bolichinho, às migatléticas, à hebraiquinha, ao gente, ao handebol, às educadoras, à lasanha. Enfim, à todos os meus amigos que me incentivaram ao longo de todo o curso. Que leram e opinaram em trechos dessa pesquisa, que esperavam toda sexta-feira até mais de 22:30 para que eu pudesse aparecer pós aula, que me propiciam os melhores rolês, as melhores risadas, as melhores conversas. Que acreditaram e acreditam em mim enquanto educadora. À todos aqueles que não consegui citar aqui, mas que nos deram possibilidades de levar nosso trabalho além. Àqueles que, de alguma forma, estiveram presentes ao longo desse ano e meio de pesquisa. Àqueles que se permitem sonhar com uma cidade para as crianças. Muito obrigada!


O sonho Ê meu e eu sonho que deve ter alamedas verdes a cidade dos meus amores e, quem dera, os moradores e o prefeito e os varredores fossem somente crianças Chico Buarque (1977)


RESUMO

O presente estudo tem como objetivo recuperar e ressignificar os espaços livres e o lugar e protagonismo da infância na cidade a partir do olhar das crianças habitantes do Jardim Elisa Maria, na Brasilândia, periferia de São Paulo. Assim, entendendo as ruas, praças e todos os espaços públicos urbanos como educativos, refletir sobre como a cidade, enquanto pedagogia, possibilita a aquisição de autonomia, da noção de cidadania e a apropriação da noção do direito à cidade. A fim de aprofundar o tema escolhido, busquei, em um primeiro momento, apresentar conceitualmente as ideias que permeiam a educação que se expande para além dos limites da escola, visando pensar a educação de forma mais abrangente e contínua e a possível visão e leitura da cidade como uma materialização da sociedade que a ocupa, entendendo a sua construção como histórica; bem como o entendimento da noção de direito à cidade. Propôs-se, então, uma pesquisa de abordagem qualitativa caracterizada enquanto pesquisa-ação, realizada em um CCA. Seu maior e mais potente instrumento foram oficinas de exploração do universo infantil partindo da visão e percepção das crianças sobre a cidade. Procurou-se entender e estimular os conhecimentos adquiridos e construídos por elas em suas vivências nos espaços públicos cotidianos.

Palavras-chave: cidade como projeto educativo; autonomia; cidadania; direito à cidade; protagonismo infantil; periferia


ABSTRACT This research aims to recover and re-signify free spaces as well as the child’s place and protagonism in the city. Within this perspective, the work was carried out through the eyes of the children who live in Jardim Elisa Maria, in Brasilândia, periphery of São Paulo. Thus, by understanding the streets, squares and all urban public spaces as educational sites, I intend to reflect on how the city, as a pedagogy, makes the acquisition of autonomy possible. Furthermore, the concept of citizenship and the notion of the right to the city are explored in this paper. In order to deepen the chosen theme, I tried to present - conceptually at a first moment - the ideas that permeate education beyond the school boundaries, seeking to think about education in a more comprehensive and continuous way; moreover, I raise the issue of the possible understanding of the city as a materialization of the society that occupies it, considering its construction as historical; as well as the comprehension of the notion of right to the city. this research is proposed as qualitative and characterized as an action research. It was carried out in a CCA, whose largest and most powerful instrument were workshops exploring the universe of children regarding the knowledge acquired and constructed by them in their daily experiences in public spaces from the perspective of children and their perception of the city.

Keywords: city as an educational project; autonomy; citizenship; right to the city; children’s protagonism; periphery


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 11 2. CAMPO CONCEITUAL ............................................................................................ 17 2.1 A educação para além da escola ............................................................ 18 2.1.1 Aprendizagem solidária .............................................................. 24 2.1.2 Autonomia .................................................................................. 25 2.2 Projetos com crianças e cidade ............................................................... 27 2.2.1 As Cidades Educadoras ............................................................. 28 2.2.1.1 A carta das Cidades Educadoras ................................. 28 2.2.1.2 A concepção de Cidades Educadoras ......................... 31 2.2.1.3 A experiência de Barcelona ......................................... 34 2.2.2 A Cidade das Crianças .............................................................. 36 2.2.3 As experiências no Brasil .......................................................... 42 2.3 Cidade periférica e suas infâncias ........................................................... 47 2.3.1 A infância enquanto categoria social ......................................... 48 2.4 A cidade como materialização da sociedade .......................................... 50 2.5 A noção do direito à cidade ..................................................................... 57 3. CAMPO DE PESQUISA ........................................................................................... 62 3.1 As oficinas – metodologia Co-Criança ..................................................... 65 3.2 Caracterização institucional ..................................................................... 70 3.2.1 A Brasilândia e o Jardim Elisa Maria ......................................... 70 3.2.2 O CCA Elisa Maria ..................................................................... 75 4. ANÁLISE DE DADOS ............................................................................................... 77 4.1 Com olhos de criança .............................................................................. 77 4.1.1 O que a criança viu: leitura dos espaços das infâncias urbanas 78 4.1.1.1 A relação com a cidade ................................................ 78 4.1.1.2 A cidade como espaço de brincar ................................ 85 4.1.1.3 A cidade como um devir ............................................... 90 4.1.1.4 A Relação com a comunidade ...................................... 95 4.1.1.5 A sensação de pertencimento ...................................... 97


4.1.2 O que a criança viu: desejos de transformação ......................... 99 4.1.2.1 O poder de mudança .................................................... 99 4.1.2.2 O direito à cidade .........................................................102 4.1.2.3 As projeções para esses espaços .............................. 104 4.2 Estratégias educacionais: relações entre a pedagogia e a cidade ........ 109 4.2.1 Aquisição de autonomia ........................................................... 111 4.2.2 Noção de cidadania ................................................................. 114 4.2.3 Apropriação do direito à cidade ............................................... 117 4.2.4 Ouvir as crianças ..................................................................... 119 5. SÍNTESE E DESAFIOS .......................................................................................... 122 REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 127 APÊNDICE ................................................................................................................. 135 ANEXO ....................................................................................................................... 187


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INTRODUÇÃO Sendo aluna de Pedagogia, mas também cursando Arquitetura e Urbanismo, a cidade é um campo que me envolve, da mesma forma que são as crianças. Olhar para as possibilidades de relação das crianças com a cidade e pensar novas formas possíveis dessa relação foi algo que veio me envolvendo ao longo das duas graduações. Nesse sentido e a partir desse olhar, carregado de contribuições da educação e do urbanismo, pretendo, partindo da linha de pesquisa da cidade como sala de aula ampliada, pensar a cidade como um grande projeto educativo. Entendo a cidade como uma das maiores materializações da nossa sociedade. Apesar disso, não a percebo como um espaço que abrigue as crianças de modo que elas possam ter uma experiência completa que permita uma vivência urbana cidadã. No Brasil, as crianças que vivem na cidade passam 90% do seu tempo em lugares fechados (SKENAZY, 2009). Isto é, a cidade não me parece refletir uma sociedade preocupada com a infância. Enxergo a criança como um grupo social (QVORTRUP, 2015, 2014, 2011) e, portanto, acredito que elas devam ser vistas, entendidas e respeitadas enquanto cidadãs1. Porém, não é assim que são entendidas e nosso espaço urbano é a concretização disso. Elas, de modo geral, entram para dentro de casa e vão perdendo seus espaços nas ruas, que deixam de ser locais nos quais elas possam frequentar. Em 1973, brincavam na rua 75% das crianças, em 2006 esse número já havia caído para 15% (SKENAZY, 2009). A criança vai, cada vez mais, perdendo sua autonomia de movimento e, por consequência, seu direito à cidade. Ao sentir que faz parte da cidade, a criança também sente que faz parte da comunidade. Mas, para que isso aconteça, a cidade deve garantir oportunidades para isso, por meio, por exemplo, da mobilidade, de espaços de brincar, de ruas convidativas e instrutivas.

“O que faz um sujeito cidadão é o fato de ele ser capaz de criar ou modificar, em cooperação com outros, a ordem social na qual quer viver, cujas leis vai cumprir e proteger para dignidade de todos” (TORO, 2005, p. 52). 1


12 Conforme Cardoso (2015, s/p), diretora do Laboratório de Educação das Cidades Educadoras, o que aprendemos na infância diz muito sobre o cidadão que seremos. Se a criança tem direitos, ela irá respeitar os direitos. O futuro é a síntese das experiências que a criança pode ter. Temos que lembrar o tempo inteiro que, conectando a criança com o bairro, familiarizando-a com o espaço público, ela vai querer mudar o mundo do qual faz parte.

A primeira experiência que me despertou enorme inquietação de intersecção entre minhas duas áreas de estudo foi por meio da participação em um projeto de Cultura e Extensão da FAU-USP. Intitulado “Co-Criança: projetando através do olhar da criança na periferia”, buscamos conciliar a sociologia da infância e a antropologia urbana. Ou seja, partimos da premissa de que crianças são sujeitos sociais plenos, dotados de capacidade de ação, participação e ressignificação (BORBA, 2005) e, portanto, têm desejos, opiniões e contribuições para o lugar que habitam, a fim de darmos visibilidade às experiências e vivências das crianças na periferia. O grupo trabalha buscando ressignificar os espaços livres do território da Brasilândia junto com as crianças da região, partindo da análise das dinâmicas relacionadas à criança no espaço da periferia (CO-CRIANÇA, 2017). Assim, em conjunto e em consonância com o projeto, parto de uma enorme vontade de entender a cidade como um grande projeto educativo que influencia na formação da criança enquanto cidadã. A cidade é concebida pela ação coletiva e, portanto, todos os cidadãos têm direito à voz e à vez na construção do espaço urbano. Apesar disso, para muitos permanece a ideia de que as crianças são sujeitos incapazes de opinar e participar da cidade como qualquer outro cidadão. Com a vivência na Brasilândia, fui percebendo que a discussão sobre planejamento urbano exclui a participação infantil bem como as instituições de educação excluem a cidade e, por isso, seria grande a necessidade de se abrir um canal de diálogo entre o arquiteto, urbanista, paisagista, o educador e a criança, de modo a construir coletivamente uma cidade mais acolhedora e amistosa. Para Freire (1992), citado por Aieta; Zuin (s/d, p. 200), "a cidade convertese em cidade educadora a partir da necessidade de educar, de aprender, de imaginar; sendo educadora, a cidade é, por sua vez, educada", posição da qual compartilho e a


13 qual busquei desenvolver ao longo do trabalho, procurando destacar o potencial intrínseco da cidade enquanto educadora. Assim, em função dessas inquietações, pretendia recuperar e ressignificar os espaços livres e o lugar e protagonismo da infância na cidade a partir do olhar das crianças habitantes do Jardim Elisa Maria, na Brasilândia, periferia de São Paulo. Assim, entendendo as ruas, praças e todos os espaços públicos urbanos como educativos, refletir sobre como a cidade, enquanto pedagogia, possibilita a aquisição de autonomia, da noção de cidadania e a apropriação da noção do direito à cidade. Isto é, pensar a cidade enquanto um projeto educativo, partindo de sua potência intrínseca de auxiliar na construção de um ser liberto e de direitos. Com base nos objetivos postos, elaborei as seguintes questões de pesquisa: •

Como as experiências das crianças na cidade podem ser uma estratégia educativa de formação de sujeitos?

Em que medida a situação urbana possibilita a sensação de pertencimento e aponta possibilidades de estratégias educacionais?

Como a cidade contribui no despertar das crianças para a importância de seu papel cidadão e de ser de direitos?

Como se dão as relações de aprendizagem entre a sala de aula e a cidade?

Partindo desses questionamentos, minha primeira hipótese é a de que as vivências na cidade durante a infância são essenciais para garantir a autonomia das crianças. Apropriando-me de Foucault (2014), o espaço construído pode ser usado como elemento ativo de condicionamento da criança para a construção de um adulto passivo, domesticado e disciplinado. E é o que muitas vezes acontece quando se começa a padronizar e limitar seu comportamento. Portanto, é essencial que as instituições de educação, formais ou não, expandam suas paredes para fora da sala de aula, ampliando as possibilidades. A cidade não é entendida como um lugar para as crianças, assim “o adulto pré-determina o que a criança pode e deve fazer naquele e com aquele espaço, não lhe


14 dando liberdade para construir o novo” (MAYUMI, 1985, p. 2-3). É preciso que a criança viva e reflita sobre suas experiências pessoais que, segundo Piaget (1973), é com essas que elas começam a perceber o outro e conseguem maior desenvolvimento moral. Se a cidade não permitir segurança, a criança não poderá desenvolver plenamente sua autonomia, fortalecendo o controle e a preocupação dos pais. Além disso, acredito que os percursos diários até a escola bem como as experiências em seu entorno são também uma primeira vivência na cidade e de pertencimento a ela. Pode ser rotina para a criança desde pequena percorrer as ruas e sentir as experiências que a cidade traz. Utilizar transportes públicos, entender a lógica de atravessar a rua, ver diferentes construções, perceber diferentes relações e manifestações étnicas, filosóficas, culturais e raciais. Essas experiências cotidianas garantirão o uso da cidade, mesmo que mínimo. Dentro desta ideia, há uma segunda hipótese quase empírica, de que a cidade não é pensada para e com as crianças e não é convidativa a elas. Em alguns locais e períodos, a cidade até pode ser um local convidativo para as crianças, no qual todas as brincadeiras acontecem na rua, por exemplo. Mas, de modo geral, não é essa a relação que se estabelece em São Paulo e nas grandes cidades. A cidade passou a ser vista como perigosa e local de passagem, e não de estar, refletindo na possível limitação da liberdade de movimento das crianças. Uma terceira hipótese, então, é a ideia de que, ao se apropriarem da cidade, as crianças podem se sentir mais pertencentes à ela. Dando mais voz às crianças, o que muitas vezes não é feito e, inclusive, reprimido, poderá ser possível resgatar seu protagonismo como agente e usuário do espaço urbano, bem como o entendimento da criança como cidadã que tem direitos e deveres. Apenas por meio de uma cidade mais democrática e inclusiva e de uma maior escuta da infância é que esse grupo social poderá de fato entender-se como cidadão e exercer sua cidadania. É preciso acreditar que esse grupo também tem potencial para transformar o modo como são construídas as cidades. Ao falar de construir e viver a cidade esbarro nas ideias, inicialmente propostas pelo arquiteto francês Lefebvre (1968), relacionadas ao direito à cidade. Isto é, o modo de fazer e de viver o meio urbano deve buscar devolver ao indivíduo uma


15 capacidade de ação sobre a cidade, restituindo assim, uma habilidade de agir sobre o seu ambiente. Ao não serem ouvidas e não terem suas experiências urbanas garantidas, as crianças perdem muitas das vivências que a cidade pode proporcionar, perdendo também seu direito à cidade. Buscarei sustentar a ideia de que o direito à cidade está intrinsecamente ligado às possibilidades que a cidade proporciona para as crianças, as quais, muitas vezes, são mínimas ou não existentes para os agentes infantis. Assim, ao excluir as crianças, acredito que a cidade também transmite uma certa noção de cidadania, nesse caso, a não-cidadania. Assim, frente ao enfrentamento dos desafios urbanos, propus um olhar e entendimento da cidade enquanto um espaço educativo em suas múltiplas possibilidades. Dessa perspectiva educativa, a cidade pode ser pensada em duas dimensões: na sua dimensão de lugar pedagógico: “educar-se ou aprender na cidade seria o lema que descreve esta dimensão” (INSTITUTO SINGULARIDADES, 2017, p. 17); e na dimensão de si mesma como um objeto de conhecimento, um objetivo ou conteúdo de aprendizagem, isto é, seria preciso também aprender a própria cidade. “Quando aprendemos na e a cidade, aprendemos simultaneamente a conhecê-la e a usá-la” (INSTITUTO SINGULARIDADES, 2017, p. 17). Assim, procurei defender também como hipótese que ao olhar, escutar e viver a cidade como território educativo, será possível promover experiências pedagógicas ricas e multiculturais, que integrem cultura e educação, que promovam a diversidade, que discutam a sustentabilidade, a ética, que aprimorem o olhar sobre o entorno e as pessoas, que vislumbrem possibilidades de intervenção e de vida (INSTITUTO SINGULARIDADES, 2017, p. 17).

Portanto, a relação entre a educação e o urbanismo permite, além de transformar a cidade, transformar, também, como consequência, o modo de vida. Assim, suponho que a cidade é um espaço educador por excelência que pode educar de diversas formas dependendo de como for pensada e proposta. “A educação não ocorre somente nos limites da escola, mas em todos os cantos da comunidade” (CIDADES EDUCADORAS, s/d, s/p). Pressuponho que políticas, espaços, tempos e cidadãos são


16 educadores dentro de uma cidade. Ao excluir a entrada da criança nessa rede, também é essa a lição que a cidade está passando, de uma cidade que não é possível a ela. Se quisermos que as crianças sintam que são parte de uma comunidade, que pertencem à cidade, que têm direito à cidade, responsabilidade e conexões com outras pessoas, se quisermos que se sintam cidadãs engajadas, nós temos que garantir a oportunidade para elas sentirem essas conexões (GILL, 2016, s/p).

Vale reforçar que este projeto de pesquisa é parte de uma estrutura maior que já vem sendo desenvolvida: o projeto Co-Criança. Aqui, trabalharei especificamente com um recorte entendido em duas dimensões. Um recorte dentro de São Paulo, limitado ao bairro do Jardim Elisa Maria, pretendendo que a partir das questões colocadas e apontadas na escala dos bairros e dos espaços cotidianos, seja possível atingir aspectos mais amplos e temas comuns às crianças em suas relações com as cidades de modo geral. E um recorte teórico, que vai na linha de entender, partindo dos dois campos de conhecimento, a pedagogia e a arquitetura, o estabelecimento de uma nova relação com a cidade e como se dão essas relações de aprendizagem entre a sala de aula e a cidade, pensando como proporcionar a autonomia, a noção de cidadania e o direito à cidade para as crianças. É uma busca por recuperar seus espaços e protagonismo na cidade.


17 2 CAMPO CONCEITUAL Neste capítulo, apresentarei algumas ideias fundamentais para se pensar, a partir das perguntas apresentadas anteriormente, a cidade como um projeto educativo. A fim de aprofundar o tema escolhido como disparador desta pesquisa, trarei, em um primeiro momento as ideias que permeiam a educação que se expande para além dos limites da escola, buscando pensar a educação de forma mais abrangente e contínua, bem como trazer os conceitos de aprendizagem solidária e de autonomia. Em seguida, olharei para os projetos já realizados envolvendo crianças e cidades, começando pelo conceito de Cidades Educadoras e as discussões que já se desdobraram sobre ele, buscando exemplos de cidades que se propuseram a tal e o como essa questão se apresenta no Brasil e, especificamente em São Paulo. Outra proposta tratada nesse sentido é a da Cidade das Crianças, pensada por Tonucci, sobre a qual foram apresentados princípios e noções. Entendendo os projetos já existentes, é importante também pensar a situação das crianças na periferia, recorte de nossa pesquisa, uma vez dada a existência de diversas infâncias. Da mesma forma, é essencial olhar para a infância enquanto categoria social e a criança enquanto cidadã, questões as quais discutirei. Por fim, busquei entender a possível visão e leitura da cidade como uma materialização da sociedade que a ocupa, isto é, um reflexo da concepção cultural e moral de sua população, entendendo a sua construção como histórica; bem como o entendimento da noção de direito à cidade, conceito proposto inicialmente em 1968, mas ainda muito atual, envolvendo questões de pertencimento e intervenção na cidade. Para tal, me pautarei nas contribuições teóricas de autores como Harvey (2013), Lefebvre (1968), Mayumi (1989), Granell; Vila (2003), Tonucci (2015), Qvortrup (2015, 2014 e 2011), Freire (2016, 2017), Piaget (1973), Ariès (2006) e outros. Referenciando-me nessa bibliografia, pretendi chamar atenção para o fato de que a ideia de cidade enquanto um projeto educativo já vem sendo discutida desde os anos 90, com indicações de que seu plano deve, sim, ser educador. Além disso, perceber que essa ideia está diretamente relacionada ao direito à cidade, conceito preocupado também com o sentimento de pertencimento. Isto é, procurei mostrar que


18 esses conceitos supostamente distintos dialogam muito e se fazem, então, como grande base para minha pesquisa, que se propõe pensar estratégias pedagógicas a partir dessas relações. Busquei também mostrar a educação como um elemento estratégico para o progresso e a coesão social nas cidades, entrelaçando a educação, a arquitetura, e a infância, podendo reconhecer que o potencial imaginário de crianças e adolescentes pode transformar o modo como são construídas as cidades, bem como as cidades podem transformar esse potencial imaginário e a própria formação das crianças. Bastando vê-los como cidadãos desde cedo. Por fim, destacar que as cidades são ambientes ricos em interações, experiências e recursos e que, portanto, a ocupação da cidade e apropriação do espaço público se faz fundamental como estratégia pedagógica de formação de sujeitos cidadãos, uma vez que as crianças, em especial as periféricas, são excluídas de nossa sociedade e formam-se, assim, sem sentir-se pertencentes ao espaço, que deveria ser formador. 2.1 A Educação para além da escola É relevante e significativo o fato do espaço livre público nas cidades ser o espaço diário de vivência e convivência de todos. Dessa forma, ele se potencializa e afeta a todos devido às inúmeras relações sociais que possibilita. Assim, esses espaços na cidade nunca se caracterizam enquanto vazios, pois acabam sempre repletos de “significados, lembranças, objetos e pessoas, que atravessam o campo de nossa memória e dos nossos sentimentos, desperta tristezas e alegrias, prazeres e dores, tranquilidades e angústias” (VICENTE, 2018, p. 36). Conforme afirma Mayumi (1995), o espaço apresenta-se também, por ser onde se realizam as atividades e as relações sociais, um lugar de conhecimento de si e do outro e, portanto, fundamental para o desenvolvimento de cada um e de todos. Paulo Freire (2016, 2017), em consonância, acredita que a educação bancária, aquela em que o professor faz de seu aluno um depositário, fazendo com que a educação seja apenas um ato de depositar informações, é um instrumento de opressão e controle, expressando as características de uma sociedade também opressora. Para


19 ele, “ninguém educa ninguém, ninguém se educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 2017a, p. 95). Pensar a educação a partir da reflexão de Freire mostra que a questão social e as trocas que ela possibilita, bem como a mediação com e do mundo são fundamentais para os processos educativos, que se estabelecem com e a partir dessas relações. Assim, a cidade, enquanto facilitadora desses encontros em seus espaços, pode – e deve – ser entendida como meio de educação, desenvolvimento e construção social. Nesse sentido, podemos olhar para e buscar entender a educação informal, entendida como toda e qualquer experiência e ação educacional que acontece para além das escolas regulares, isto é, toda experiência educacional que acontece no decorrer de nossa vida, decorrente de processos espontâneos, naturais e socioculturais, desde os primeiros dias da nossa existência. Refere-se às aprendizagens que trazemos de casa, às experiências que vivenciamos nas ruas, no cotidiano de nossas atividades profissionais, no contato com outras pessoas, nas nossas leituras de livros, de jornais, de diversos escritos e obras literárias. Nas conversas informais que temos com as pessoas com as quais nos relacionamos, nas nossas atividades de lazer, de consumo etc [...] (PADILHA, 2007, p. 92).

Dessa forma, pensando a partir dessa noção, é bastante significativo o papel da cidade e de seus lugares de encontro para servirem à educação e como educação, como experiências que se constituem em seu caráter formativo. Segundo Gohn (1990), a educação não formal diz respeito, geralmente, às aprendizagens políticas dos direitos dos indivíduos como cidadãos, incentivando sua participação em processos decisórios e coletivos “por meio da aprendizagem de habilidades e/ou desenvolvimento de potencialidades”. (GOHN, 1990, p. 98-99). Essas afirmações são bastante relevantes para o âmbito dessa pesquisa, uma vez que o espaço observado será de educação não formal e, especialmente, porque a educação propiciada pela, na e com a cidade também não se enquadra nos moldes da educação formal, mas, nem por isso, deixa de ser importante, senão fundamental, visando a formação crítica destacada por Gohn.


20 Essa educação, que acontece nos variados espaços e tempos da vida social, traz uma aproximação que nos humaniza, porque vivemos e aprendemos sempre, de maneiras diferenciadas, em todos os espaços das cidades por onde passamos, onde nos criamos, crescemos e experienciamos, o que nos forma e cria nossas identidades enquanto sujeitos históricos (PADILHA, 2007). Se nós construímos os espaços sociais, pois nossa existência é histórica e cultural, como justificar a falta dos mesmos em nossas escolas? Assim, se apresenta a necessidade de uma abordagem educacional ampla, com ações concretas, combinadas e em rede, mas de forma que seu campo de abrangência não se limite aos muros das escolas. Conforme Freire, é como seres transformadores e criadores que os homens, em suas permanentes relações com a realidade, produzem, não somente os bens materiais, as coisas sensíveis, os objetos, mas também as instituições sociais, suas ideias e suas concepções (2017a, p. 92); é importante reenfatizar que o tema gerador não se encontra nos homens isolados da realidade, nem tampouco na realidade separada dos homens. Só pode ser compreendido nas relações homens-mundo (2017a, p. 98).

Portanto, essa relação com o mundo e, consequentemente, com a cidade, é fundamental para o desenvolvimento pessoal enquanto seres sociais bem como para uma formação completa, que entenda a preparação para a vida cidadã e não apenas para exames e provas que pouco medem. Essa relação e interação com a realidade na qual estamos inseridos também forma e educa a partir de múltiplas dimensões, complexidades e riquezas, uma vez que “a sua visão do mundo, que se manifesta nas várias formas de sua ação, reflete a sua situação no mundo, em que se constitui. A ação educativa e política não pode prescindir do conhecimento crítico dessa situação, sob pena de se fazer ‘bancária’” (FREIRE, 2017a, p. 87). E, ao mesmo tempo, ao terem consciência de sua atividade e do mundo em que estão, ao aturarem em função de finalidades que propõem e se propõem, ao terem o ponto de decisão da sua busca em si e em suas relações com o mundo, e com os outros, ao impregnarem o mundo de sua presença criadora através da transformação que realizam nele, na medida e que dele podem separar-se e separando-se, podem com ele ficar, os homens, ao contrário do animal, não somente vivem, mas existem (FREIRE, 2017a, p. 89).


21

Para além da educação informal, é também importante pensar na educação integral. Com educação integral, superando o que está previsto nos artigos 34 e 87 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) – Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que prevê a progressão ampliada da permanência do aluno na escola e o aumento dos turnos escolares de ensino fundamental para regimes de tempo integral –, entendemos que é a expansão das possibilidades de se educar, se formar e se desenvolver enquanto cidadão em contato integral com o mundo, também e inclusive, através da educação informal e, sobretudo, na cidade (VICENTE, 2018). Assim, uma educação que se diz integral2 e informal deve garantir e oferecer possibilidades para a ocorrência de processos educativos fora das escolas, formando também consciências políticas, o que vem aparecendo em retrocesso no cenário atual do país, a exemplo das propostas do projeto Escola sem partido3, que atinge e compromete diretamente os processos de formação de autonomia dentro da aprendizagem e da participação desses cidadãos nas discussões públicas de diversas instâncias. 2

A Educação Integral, enquanto concepção teórica, prevê a formação mais integrada possível do sujeito, isto é, a oferta de oportunidades de acesso às várias instâncias culturais da sociedade e a visão do ser humano como um ser composto por diversas camadas inter-relacionadas que dizem respeito não apenas à cognição, mas à emoção, subjetividade, desejos, inteligibilidade, sociabilidade, entre outras. O que se pretende com a educação integral é desenvolver os alunos de forma completa, em sua totalidade. Muito mais do que o tempo em sala de aula, a educação integral reorganiza espaços e conteúdos. A definição de um paradigma contemporâneo de educação integral entende que o território da educação escolar pode expandir-se para além dos muros da escola, alcançando seu entorno e a cidade em suas múltiplas possibilidades educativas. Vem-se buscando que ela seja um ideal presente nas legislações brasileiras e, assim, “propõe-se um desenho de Educação Integral que intensifique os processos de territorialização das políticas sociais, articuladas a partir dos espaços escolares, por meio do diálogo intragovernamental e com as comunidades locais, para a construção de uma prática pedagógica que afirme a educação como direito de todos e de cada um.” (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2009, p. 11). A Educação Integral exige mais do que compromissos: impõe também e principalmente projeto pedagógico, formação de seus agentes, infraestrutura e meios para sua implantação. Ela será o resultado dessas condições de partida e daquilo que for criado e construído em cada escola, em cada rede de ensino, com a participação dos educadores, educandos e das comunidades, que podem e devem contribuir para ampliar os tempos e os espaços de formação de nossas crianças, adolescentes e jovens na perspectiva de que o acesso à educação pública seja complementado pelos processos de permanência e aprendizagem. 3 Segundo informações presentes na página oficial do projeto, a Escola Sem Partido se diz ser “uma lei contra o abuso da liberdade de ensinar”, alegando doutrinação política e ideológica nas salas de aula, ofendendo a liberdade de consciência dos estudantes, o que instrumentaliza o sistema de ensino com o objetivo de desequilibrar o jogo político em favor de um dos competidores. No entanto, ao defender essa postura, o próprio projeto se contradiz, pois assume uma postura partidária de manutenção do status quo, colocando “a educação a serviço dos interesses do mercado [...] de uma escola sem pluralidade, sem liberdade, sem diversidade, sem inclusão, sem democracia, uma escola que segrega, que discrimina que reprime” (GADOTTI, 2016, p.153).


22 A escola tem um papel muito importante na formação das crianças, não apenas enquanto instituição educacional, mas também como local de troca entre os pares e com os adultos. Porém, não se pode negar a importância da cidade na aprendizagem e na experiência humana desde os primeiros anos de vida, onde a brincadeira assume um papel muito importante. Ainda antes de iniciar a escola, as bases sobre as quais serão constituídos os conhecimentos posteriores já foram constituídas. São nos primeiros meses e anos que se constitui o maior desenvolvimento das crianças. (TONUCCI, 2015). Esse fenômeno pode ser atribuído ao brincar, uma das grandes potencialidades da infância. Ao brincar, a criança, através da cultura de pares, trabalha com a reprodução interpretativa, apropriando-se de questões do mundo adulto, internalizando a cultura, as representações culturais, firmando sua autoimagem, desenvolvendo sua independência, trabalhando a simbolização e resolução de conflitos, entre outras conquistas. Se apresenta como um espaço de elaboração e criação, favorável ao desenvolvimento psíquico da criança e da significação de diversos campos. Essas brincadeiras, antigamente, se davam nos espaços públicos das cidades, sob maior autonomia e liberdade infantil, o que já não ocorre mais, sob a alegação de insegurança nas ruas. Hoje, as brincadeiras são sempre supervisionadas e controladas por adultos, impossibilitando processos de exploração, descoberta, surpresas e riscos. Os riscos evitados não se limitam apenas aos riscos físicos, mas também aos sociais e emocionais, o que pode gerar problemas para o desenvolvimento da autonomia das crianças, pois elas não se veem capazes de fazer enfrentamentos, exporem suas ideias e o que sentem (TONUCCI, 2015). Da mesma forma, o brincar acaba limitado a espaços restritos: a escola e as casas. Não me parece interessante substituir a complexidade do mundo real pelo controle das escolas4, limitando as trocas, encontros e desafios. Segundo Lima (1995, p.183), a “apropriação do espaço pela criança se faz pelo jogo, pela brincadeira, pela simulação e pela encenação que ela inventa e vive, e

4

É importante ressaltar que não quero retirar a importância da educação formal, que se faz fundamental. Mas, sim, dizer que o complemento com a educação informal é fundamental e que é possível expandir os muros da escola, permitindo a cidade também como uma sala de aula ampliada.


23 que através deles vai desenvolvendo o seu conhecimento sobre o mundo concreto, a realidade social e seus papéis”. Diante disso, o convívio com a cidade torna-se um elemento de grande importância, possibilitando o desenvolvimento da vida pública e o contato com as construções políticas, sociais e culturais que se dão nos espaços urbanos e na sociedade em que elas estão inseridas, estabelecendo, assim, relações e aprendizados informais que se somam e se complementam à educação formal, construindo-se em um único aprendizado. Portanto, nessa perspectiva de busca por maior autonomia e apropriação dos espaços urbanos, pode-se dizer, então, que a educação e o aprendizado devem ser vistos como constantes ao longo da vida, não estão apenas circunscritos dentro das escolas, podendo ocorrer também em todas as experiências vivenciadas na cidade. Essa pessoa capaz se desenvolve nos espaços de socialização, lugares ou instâncias onde adquirimos e transformamos o nosso pensar, sentir e atuar em relação a nós mesmos, aos outros e à coletividade; onde se concebem e se modificam os valores e os sentidos da vida. (...) Entendese por espaços de socialização: a família, a rua, os grupos de amigos, a escola, a universidade, as organizações comunitárias e de bairro, as organizações intermediárias, o trabalho, as empresas, as igrejas, os partidos, os movimentos sociais e os meios de comunicação. Nesses ambientes se educa, ou se deseduca, o novo cidadão; criam-se as formas de pensar, sentir e atuar (TORO, 2005, p. 54).

Segundo a LDB5 (1996), a educação escolar tem como objetivo, no ensino fundamental, a formação básica do cidadão compreendida em quatro pontos essenciais, sendo o segundo deles a “compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade” (BRASIL, 1996, p.17). Dessa forma, apresenta-se na lei brasileira a possibilidade e a importância de olhar para essas questões que, muitas vezes, não se limitam à escola, extrapolando para as vivências sociais da cidade. Essa compreensão apresentada não apenas pode ocorrer nessas experiências urbanas como é importante que também o seja, possibilitando novas interações, contatos e entendimentos, os quais permitem uma formação mais consciente e política de seus direitos cidadãos.

5

Lei de diretrizes e bases da educação nacional.


24

2.1.1 Aprendizagem solidária O termo “aprendizagem solidária” é utilizado pelo CLAYSS6. Diz de uma aprendizagem caracterizada pelo desenvolvimento de projetos colaborativos de intervenção social. O objetivo é buscar o estímulo para que estudantes utilizem os conhecimentos adquiridos na escola para desenvolver uma participação ativa na vida social, “propondo alternativas para problemas reais - da escola, do entorno, da comunidade, da cidade - e promovendo a transformação de suas vidas e da sociedade” (SINGULARIDADES, 2017, p. 17). A aprendizagem solidária só acontece quando os alunos, então, aplicam na vida o que estudam nas aulas, para transformar a realidade. Essa troca os leva a aprender questões que não encontram necessariamente nos livros, nos laboratórios ou nas lições das escolas. Ao mesmo tempo, essa aprendizagem só se faz possível quando o sujeito assume a responsabilidade de ver e olhar para as mazelas da sociedade e, para além disso, de intervir nelas a partir de soluções concretas. (ALMEIDA; MORI, 2017). É entendido enquanto conhecimento e sustentado pela ética e cidadania. Assim, trata-se de uma visão que reconhece o humano enquanto ser social, pertencente ao grupo sociedade e que, por meio dele aprende e produz, mas também devolve, visando a dignidade de todos. Dessa forma, pode ser visto enquanto uma metodologia de ensinoaprendizagem, mas também como uma filosofia ou pedagogia. Uma metodologia no sentido que gera aprendizagens significativas e permite o aprendizado por meio de problemas reais, com o objetivo de oferecer soluções concretas e otimizar o desenvolvimento de conhecimento, competências e atitudes que motivam os estudantes a se engajar e se envolver de forma solidária com o contexto social que os cercam (PASO JOVEN, 2004, s/p).

6

Centro Latino Americano de Aprendizagem e Serviço Solidário, fundado em 26 de fevereiro de 2002 em Buenos Aires, Argentina, hoje conta com uma rede de colaboradores em toda a Argentina, bem como no Uruguai e no Brasil. Desenvolve suas atividades na América Latina, bem como na África, Europa e em outras regiões do mundo com a missão de contribuir com o crescimento de uma cultura fraternal e participativa na América Latina por meio do desenvolvimento de projetos educativos solidários.


25

Já uma filosofia ou pedagogia quando se apresenta como uma maneira de pensar a educação, a partir de estratégias que demandam do aluno a participação ativa para aprender e desenvolver-se. Portanto, é um conceito que coloca a educação como corresponsabilidade entre a escola, comunidade, estado, família e sociedade civil, extrapolando o limite dos muros escolares. 2.1.2 Autonomia Ao longo dessa pesquisa, o conceito de autonomia aparecerá algumas vezes, sendo, inclusive, um dos objetivos trabalhados com as crianças. Dessa forma, é relevante compreender a noção de autonomia aqui proposta, a qual baseia-se, essencialmente, em uma abordagem piagetiana e freiriana. Piaget foi um biólogo suíço que desenvolveu seus estudos a partir de observações com crianças e buscou explicar aspectos da forma como o indivíduo adquire conhecimento, isto é, como a inteligência se desenvolve para que a criança aprenda. Através de suas pesquisas sobre o Julgamento Moral, Piaget (1973) apontou que as crianças são capazes de raciocinar em um nível superior quando estão pautadas em suas experiências pessoais e não nas hipotéticas. Acreditava que, por meio delas, as crianças poderiam compreender as motivações por detrás das ações, sendo, assim, capazes de perceber o outro como um sujeito dotado de ideias e sentimentos. Esses valores morais seriam adquiridos internamente. A questão da autonomia, então, tão relevante para Piaget, diz respeito a um governo de si próprio. Diz de um indivíduo que já consegue refletir sobre a ação e colocar a intencionalidade como mais importante que a gravidade. Para Piaget, "toda moral consiste num sistema de regras, e a essência de toda moralidade deve ser procurada no respeito que o indivíduo adquire por essas regras" (PIAGET, 1932/1994, p. 23 apud LA TAILLE, 1992, p. 49). Dessa forma, acredita que os jogos coletivos de regras são fundamentais para a moralidade humana.


26 Desde muito pequena, a criança é rodeada de regras que são guiadas pela moral. Entretanto, ela não sabe o porquê dessas regras, ela ainda não entendeu os princípios e os valores que estão por trás dessas. Desse modo, ela apenas sabe aquilo que pode e aquilo que não pode fazer. Segundo Freud, a criança obedece a essas regras apenas por medo. Assim,

segundo

Piaget

(1973),

as

crianças partem,

dentro

do

desenvolvimento do juízo moral, de um estádio de anomia, que é o momento no qual as crianças, geralmente até cerca de 5 anos, não seguem regras coletivas. Segue-se a essa etapa outra, a da heteronomia, geralmente até cerca de 9, 10 anos (o que é interessante notar, uma vez que é a idade das crianças envolvidas nessa pesquisa), momento no qual a criança ainda é governada pelo outro. Nesse momento há uma relação unilateral, na qual o professor – ou outro adulto qualquer – manda e a criança apenas obedece. Isto é, a criança ainda interpreta as regras ‘ao pé da letra’, sem entender que as regras são um contrato firmado e podem ser modificadas, vendo-as como sagradas e imutáveis. Além disso, a gravidade da ação é moralmente mais relevante do que a intenção que a promoveu. Em oposição a heteronomia, encontra-se a autonomia, momento em que se alcança um governo de si próprio. Autonomia é um termo de origem grega cujo significado está relacionado a independência, liberdade ou autossuficiência. Neste caso, a autonomia indica uma realidade que é dirigida, portanto, por uma lei própria, entendendo-a como a capacidade de tomar decisões nos campos moral e intelectual, independentemente de recompensa e/ou punição. As regras passam a ser interpretadas a partir dos princípios e a intencionalidade da ação é o elemento moral mais importante. “A autonomia intelectual caracteriza-se, na obra piagetiana, pela articulação de três conceitos axiais, que são: estrutura, gênese e equilibração” (PASCUAL, 1999, p. 3). Já a autonomia moral está relacionada a poder analisar criticamente a obrigatoriedade de normas e aceitar responsabilidades. Assim, a autonomia faz com que o indivíduo faça suas próprias escolhas, independente das opiniões externas e divergentes. É de extrema importância que se leve a criança na direção da autonomia. Uma vez que, para Piaget, o desenvolvimento precede a aprendizagem, é fundamental


27 esse desenvolvimento do juízo moral. Para tal, é importante que a criança possa refletir sobre sua experiência pessoal, com a qual elas começam a perceber o outro e conseguem maior desenvolvimento moral. Paulo Freire não descarta as ideias de heteronomia abordadas por Piaget, entretanto, adiciona uma dimensão social na noção de autonomia, colocando-a como a emancipação do homem, ideia bastante referenciada em seu livro Pedagogia da Autonomia (2016). Isto é, a autonomia é como o homem dialogicamente encontra possibilidade de direcionar o rumo de sua própria história, assumindo para si um caráter crítico. Ele apresenta o conceito enquanto uma condição sócio histórica de alguém que tenha emancipando-se e conquistado sua liberdade. A autonomia está diretamente relacionada com a ideia freiriana de “ser para si” bem como com a de libertação. A pessoa heterônoma, por sua vez, é aquela que se encontra na condição de oprimido, de “ser para o outro”, a libertação da situação de opressão possibilita a autonomia. Assim, Freire “propõe uma educação que busca construir uma realidade social que possibilite a autonomia, propõe um processo de ensino que possibilite a construção de condições para todos poderem ser ‘seres para si’” (ZATTI, 2007, p. 38), para que, assim, possa-se construir a autonomia por meio das decisões, da liberdade. Portanto, pode-se dizer que ninguém é intrinsecamente autônomo, é preciso conquistála e, para tal, libertar-se. Para alcançar a liberdade, não é possível ser passivo, é preciso uma postura ativa e de intervenção no mundo e a educação precisa possibilitar experiências que estimulem as decisões e a responsabilidade. Dessa forma, a autonomia, além da liberdade de pensar por si, além da capacidade de guiar-se por princípios que concordem com a própria razão, de poder escolher e expor ideias, envolve a capacidade de saber-se no mundo de maneira crítica e de realizar, o que exige um sujeito consciente, e, por isso, o homem passível pode ser entendido como oposto ao homem autônomo.

2.2 Projetos com crianças e cidade


28 Apresentarei, aqui, projetos que tratam de forma cuidadosa e fortalecem a relação da infância com o urbano. Apesar de ainda não ser maioria hegemônica, há projetos que vieram sendo desenvolvidos e pensados na perspectiva da relação da cidade com as crianças. São projetos que as levam em consideração ao pensar no que uma cidade deve ter, a ordem das coisas e de que forma devem ser construídas. Que querem alcançar uma cidade mais criativa, democrática e brincante, reconhecendo as crianças como cidadãs. 2.2.1 As Cidades Educadoras Cidades Educadoras é o primeiro dos projetos que envolvem crianças e cidade aqui apresentados. Inicialmente pensado em Barcelona, hoje já está presente em diversos países do mundo e parte da ideia de que as cidades se entendem – ou deveriam entender - como educadoras, sendo a educação e formação de seus habitantes uma de suas funções. Isso se traduziria em cidades mais justas, participativas e inclusivas, com destaque para a cidadania das crianças. 2.2.1.1 A carta das Cidades Educadoras O I Congresso Internacional das Cidades Educadoras ocorreu em 1990 na cidade de Barcelona, na Espanha, devido ao grande redimensionamento na compreensão do papel e da importância da cidade como agente educador. Foi um encontro no qual um grupo de cidades concordaram princípios que se pautavam no desenvolvimento de seus habitantes e deveriam orientar suas políticas públicas. Essas cidades se propuseram a sistematizar em uma Carta as ideias básicas que acreditavam formar a cidade em seu perfil educativo. Assim, a Carta das Cidades Educadoras trata dos princípios os quais as cidades que se associam ao compromisso educador de cidade devem cumprir, partindo da ideia de que o desenvolvimento dos cidadãos está relacionado à cidade e ele não pode ser deixado de lado. Ela já foi revista em outros congressos (1994 em Bolonha e 2004 em Gênova) para acomodar-se às mudanças sociais e aos novos desafios impostos. Foi


29 baseada na Declaração Universal dos Direitos do Homem7 (1948), no Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais8 (1966), na Declaração Mundial da Educação para Todos9 (1990), na Convenção nascida da Cimeira Mundial para a Infância (1990) e na Declaração Universal sobre Diversidade Cultural10 (2001). Em seu preâmbulo, a Carta defende a ideia de que as crianças e os jovens já não devem mais ser passivos na vida social e na cidade, devendo tornar-se sujeitos e protagonistas. Em 1989, com a Convenção das Nações Unidas11, já foi outorgado às crianças direitos civis e políticos, tornando-as cidadãos de pleno direito. Portanto, as crianças e os jovens deveriam deixar de ser passivos na vida social e, por conseguinte, na cidade. Dessa forma, pensar esses grupos sociais na cidade não se limita à sua proteção, mas deve ampliar sua condição enquanto cidadão e garantir a coexistência, igualdade e respeito entre as gerações. A Carta diz que “a cidade, grande ou pequena, dispõe de inúmeras possibilidades educadoras mas pode ser igualmente sujeita a forças e inércias deseducadoras” (BARCELONA, 1990, p. 1) e que possui a potencialidade, a partir de elementos intrínsecos a si, de uma formação integral, sendo um “sistema complexo e ao mesmo tempo um agente educativo permanente, plural e poliédrico, capaz de contrariar os fatores deseducativos” (BARCELONA, 1990, p. 1). Dessa forma, define que a cidade deve possuir uma identidade local bem como manter-se aberta às vizinhas e sempre objetivar o aprendizado, a troca de 7

ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Assembleia Geral das Nações Unidas. (217 [III] A). Paris, 1948. 8 _______. Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais. 1966. 9 _______. Declaração Mundial de Educação para Todos. Conferência de Jomtien, Tailândia. UNICEF, 1990. 10 _______. Declaração Universal sobre Diversidade Cultural. Conferência de Estocolmo, Suécia. UNESCO, 2001. 11 A Assembleia Geral das Nações Unidas adotou a Convenção sobre os Direitos da Criança – Carta Magna para as crianças de todo o mundo – em 20 de novembro de 1989, e, no ano seguinte, o documento foi oficializado como lei internacional. No preâmbulo da Convenção se recorda a Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, que proclama que toda a pessoa humana tem todos os direitos e liberdades enunciados e, assim mesmo, que a infância tem direito a cuidados e assistência especiais. A Convenção se orienta precisamente a especificar estas atenções, as quais tem um significado duplo: por uma parte, reflete o interesse pela infância que se traduz principalmente em proteção; por outro, significa a segregação dos seres humanos pequenos em espaços particulares, no que se refere principalmente a sua participação social e sua autonomia pessoal (REVILLA, 2008, p.27). A Convenção sobre os Direitos da Criança é o instrumento de direitos humanos mais aceito na história universal, tendo sido ratificado por 196 países.


30 experiências e o enriquecimento da vida dos habitantes. A cidade que se diz educadora deverá, então, priorizar o investimento cultural e a formação permanente da população. Deve exercer sua função educativa em paralelo com todas as outras, ocupando-se prioritariamente com as crianças e os jovens. A cidade será educadora quando reconheça, exerça e desenvolva, para além das suas funções tradicionais (económica, social, política e de prestação de serviços), uma função educadora, isto é, quando assuma uma intencionalidade e responsabilidade, cujo objetivo seja a formação, promoção e desenvolvimento de todos os seus habitantes, a começar pelas crianças e pelos jovens. [...] Uma cidade será educadora se oferecer todo o seu potencial de forma generosa, deixando-se envolver por todos os seus habitantes e ensinando-os a envolverem-se nela (BARCELONA, 1990, p. 1).

Assim, no mesmo sentido, apresentam-se os grandes desafios das cidades educadoras. Primeiro, conseguir investir em cada um ao mesmo tempo em que investe em todos, para que possam desenvolver seu próprio potencial humano. Depois, promover a igualdade e o diálogo, garantindo que todos se respeitem, sejam e sintamse respeitados. Terceiro, associar os fatores necessários para construir uma sociedade do conhecimento e sem exclusões, na qual todos tenham acesso às tecnologias. Por fim, considerando a diversidade das cidades atuais e prevendo seu aumento, a cidade educadora precisa promover equilíbrio e harmonia entre identidade e diversidade, garantindo o reconhecimento de todos. Portanto, quer-se que todos possam ter o direito a uma cidade educadora, o qual nada mais é do que a extensão do direito à educação e do direito à cidade. A educação formal não deve estar tão distante da vida adulta, que segue em formação inclusive pela cidade e seus potenciais. “O direito a uma cidade educadora deve ser uma garantia relevante dos princípios de igualdade entre todas as pessoas, de justiça social e de equilíbrio territorial” (BARCELONA, 1990, p. 4). A partir dessa concepção, foram elaborados vinte princípios norteadores das Cidades Educadoras, divididos em três grandes grupos: direito a uma cidade educadora (1); compromisso da cidade (2); e serviço integral das pessoas (3)12 (BARCELONA, 1990, p. 4-8).

12

Os vinte princípios podem ser encontrados resumidamente em anexo.


31 O primeiro deles diz respeito ao direito a uma Cidade Educadora, isto é, engloba seis princípios que colocam como direito de todo cidadão usufruir de maneira democrática, com liberdade e igualdade, da cidade, onde o potencial educativo seja garantido por políticas municipais que promovam a educação formal, não-formal, informal e a diversidade cultural. O segundo aborda o compromisso da cidade: são seis princípios que visam o oferecimento de equipamentos e serviços públicos para garantir o desenvolvimento dos seus habitantes, com atenção especial às crianças e aos jovens, atendendo as necessidades de acessibilidade, encontros e lazer, de modo a promover o conhecimento, a aprendizagem e a valorização cultural. A cidade também deve estimular a participação cidadã e a co-responsabilidade no projeto coletivo e educador através do oferecimento de informações e orientações aos seus habitantes. E o terceiro, ao pensar a respeito do serviço integral das pessoas, traz oito princípios que englobam a responsabilidade da cidade em oferecer e favorecer atividades de formação cidadã visando a participação, a co-responsabilidade e o desenvolvimento dos habitantes no contato com o meio urbano. A cidade também deve conhecer as formas de exclusão e desigualdades a fim de combatê-las. Ainda hoje, a Carta é o referencial mais importante da Associação Internacional de Cidades Educadoras, a qual reúne mais de 482 cidades em 36 países do planeta, distribuídos nos cinco continentes. No Brasil são 16 municípios associados: Belo Horizonte, Caxias do Sul, Guarulhos, Horizonte, Mauá, Nova Petrópolis, Porto Alegre, Santiago, Santo André, Santos, São Bernardo do Campo, São Carlos, São Paulo, Sorocaba e Vitória. Entretanto, no caso brasileiro observamos uma predominância de projetos concentradas em cidades de grande e médio portes, com limitações a ações efetivadas em territórios locais, que não promovem transformações mais profundas nas relações que estabelecem. Além disso, elas costumam partir da sociedade civil e pouco das governanças da cidade. 2.2.1.2 A concepção de Cidades Educadoras


32 A partir da Carta fundante, entende-se, então, uma Cidade Educadora como aquela que reconhece, promove e exerce um papel permanentemente educador na vida de seus cidadãos para além de seus deveres tradicionais, “formando-os com consciência crítica para a participação ativa na construção do espaço da democracia” (MAYUMI, 2009, p. 7). As políticas, os espaços, os tempos e os atores são todos entendidos como agentes pedagógicos capazes de influírem - espera-se que de maneira positiva - no desenvolvimento dos habitantes. Rompendo com a lógica das políticas fragmentadas, as experiências em diálogo com a Cidade Educadora evocam a necessidade de articulação entre os diferentes setores do governo e da sociedade em um pacto pelo desenvolvimento humano e social, sempre buscando contemplar as diferentes vozes. O movimento das Cidades Educadoras, iniciado em 1990 com o I Congresso Internacional de Cidade Educadoras, gerando a Carta, impulsionou e possibilitou mais notoriedade ao conceito, compromissado com a construção de cidades mais inclusivas, justas e participativas. Elas buscam o desenvolvimento econômico em consonância com o desenvolvimento sustentável e a justiça social, enfrentando os problemas urbanos de forma sistêmica, transparente e horizontal, sempre respeitando o meio ambiente. São cidades que ativam seu potencial educativo, entendido como inerente a todas, e o buscam especialmente pelo exercício da cidadania por parte das crianças e dos jovens. Nessa perspectiva, a cidade forjada em projetos de exclusão e segmentação dá lugar a uma cidade com espaços públicos acessíveis, desenhados para melhorar a qualidade de vida, a saúde e o bem-estar das pessoas. Essa cidade deve criar condições para plena igualdade, de forma que todos se sintam respeitados e respeitem o próximo, em constante diálogo. Na Cidade Educadora, a inclusão é uma dimensão que atravessa todo o planejamento urbano. A concepção de Cidade Educadora remete ao entendimento da cidade como território educativo. É um projeto com grande dimensão participativa: Sem a co-responsabilidade cidadã, sem o envolvimento da comunidade, dos diversos agentes educativos, sociais e culturais que atuam no território, sem a participação de entidades, associações, sindicatos,


33 empresários, universidades, etc., é impossível dar forma ao projeto e muito menos colocá-lo em prática (GRANELL; VILA, 2003, p. 33).

Dessa forma, deve ser um projeto coletivo de toda a cidade e, portanto, exige a mobilização de todos. Busca-se a integração dos conhecimentos de cada indivíduo,

favorecendo

que

as

pessoas

aprendam,

partilhem,

troquem

e,

consequentemente, enriqueçam suas vidas. A Cidade Educadora compromete-se a valorizar a pluralidade cultural dos territórios, abrindo caminho para as diferentes identidades, expressões e saberes comunitários. Portanto, a educação, nessa visão, deve ser compreendida como um elemento norteador das políticas da cidade bem como o processo educativo como um processo permanente e integrador. Este deve ser garantido a todos em condições de igualdade e deve ser potencializado pela valorização da diversidade intrínseca à vida na cidade e pela intencionalidade educativa dos diferentes aspectos da sua organização: do planejamento urbano, da participação, do processo decisório, da ocupação dos espaços e equipamentos públicos, do meio ambiente, das ofertas culturais, recreativas e tecnológicas. Para tornar a realidade urbana mais permeável às necessidades da infância, é preciso tomar as crianças como parâmetros chave de planejamento e gestão urbana. A educação extrapola a escolarização e o ensino de conteúdos conceituais básicos. Trata-se de um processo permanente em nossas vidas, que nos possibilita conhecer, refletir e reconstruir os valores e códigos de nossa sociedade. Neste sentido, a cidade também é um agente de nossa educação. Enquanto educadora, a Cidade é também educanda. Muito de sua tarefa educativa implica a nossa posição política e, obviamente, a maneira como exerçamos o poder na cidade e o sonho ou a utopia de que embebamos a política, a serviço de que e de quem a fazemos (FREIRE, 1993, p. 23).

A Cidade Educadora reconhece e assume este papel político e social, desenvolvendo um planejamento que se volta integralmente para o bem-estar de seus habitantes e de seus múltiplos territórios.


34 2.2.1.3 A experiência de Barcelona Ao entender a cidade como um espaço educativo, como apresentado acima, deve-se considerar tanto sua concepção quanto a necessidade de articulação entre os diferentes agentes educativos, buscando a promoção da coletividade e convivência, princípios baseados na igualdade e na solidariedade. É o que se buscava – e ainda se busca – com o projeto educativo da cidade de Barcelona, na Espanha, primeira a se declarar Cidade Educadora. Foi a partir da mudança de olhar sobre o território e o redimensionamento para uma noção da cidade enquanto agente educador que a capital catalã passou a repensar-se. No início dos anos 90, partindo de sua tradição referencial educativa, foi organizado o evento que deu origem a primeira versão da Carta das Cidades Educadoras (BARCELONA, 1990), entorno da qual se organizaria a Associação Internacional das Cidades Educadoras. O objetivo, ao mudar o olhar e passar a pensar um projeto educativo, era “converter a educação em um dos eixos estratégicos do desenvolvimento da cidade” (GRANELL; VILA, 2003, p. 44). Para tal, a cidade passou a pensar seu projeto a partir de dois eixos principais. O primeiro deles dizia respeito ao processo, que deveria ser inovador, com muita reflexão e análise, buscando sempre perceber os desafios que se impunham a cidade. Esses desafios estavam também relacionados à percepção da nova sociedade da informação e do conhecimento, uma vez que exigia entender o papel da educação dentro desse contexto. Devia-se buscar passar de uma ‘pedagogia da cidade’13 para a ideia de ‘cidade como pedagogia’, na qual cada agente – empresas, museus, meios de comunicação, famílias, associações, urbanistas e planejadores – assuma sua responsabilidade educativa e seja capaz de fazer seu currículo educativo (GRANELL; VILA, 2003, p. 45).

Era importante que se articulasse em um projeto único e bem definido todas as propostas já existentes em um campo de ação comum. O projeto educativo nasceu buscando ser um plano estratégico para a cidade. 13

A “pedagogia da cidade” entende a cidade como um recurso educativo para a escola. Isto é, podem ocorrer saídas pedagógicas, visitas a museus, entre outros. Mas, a cidade ainda se encontra muito atrelada à função da escola, apenas correspondendo a demandas da educação formal.


35 O segundo eixo buscava fazer do Plano Educativo de Cidades um projeto coletivo, por meio da participação cidadã. Buscou-se, então, uma descentralização, criando conselhos e plataformas nas diferentes instâncias, seja na cidade ou nos distritos14, onde é possível uma maior aproximação das necessidades. Assim, acreditava-se possível criar uma capacidade social de reflexão. Seguindo essas duas linhas, desenrolaram-se dois anos de trabalho que contaram com muitos debates cidadãos e instrumentos de participação (como questionários, reuniões, entrevistas) e com a colaboração de diversos profissionais de áreas também diversas na elaboração de documentos15. O processo era pensado a partir de três eixos: reflexão, consenso e comunicação, por meio dos quais, sempre através da coletividade, foi possível chegar a um consenso de projeto educativo de cidade. Para que a proposta caminhasse concomitantemente a um compromisso com a educação por parte dos agentes educativos formais, foram criados conselhos representativos dessas instituições, que discutiam e preparavam documentos que deveriam ser aprovados pelo conselho diretivo e, em seguida, por outros organismos de participação cidadã. Esse processo culminou em um diagnóstico da situação da educação na cidade de Barcelona e em um plano de intenções, composto por sete linhas estratégicas e 79 propostas de atuação. Cito aqui as sete propostas (BARCELONA, 1999, s/p): ● Aprofundar a dimensão social e comunitária da educação promovendo um compromisso estável dos agentes sociais em distritos e bairros; ● Desenvolver as ações adequadas para melhorar a igualdade de oportunidades diante das mudanças tecnológicas, econômicas, sociais, culturais e institucionais; ● Adequar as diversas formas de formação profissional às necessidades do ambiente produtivo da região metropolitana de Barcelona; ● Promover uma cidadania ativa, crítica, responsável e aberta à diversidade; 14

Em Barcelona, os distritos podem coincidir com os bairros ou não. Eles tratam dos serviços mais próximos e diretos da prefeitura para com a sociedade, havendo um vereador representante de cada distrito. 15 Esses documentos estão disponíveis em dois volumes já editados (AA. VV. 1999 a e b). Eles exploram a ideia de que a educação é essencial e constitutiva de uma sociedade do conhecimento e da cultura mais igualitária e coesa.


36 ● Formar a cidadania no uso sustentável dos recursos e promover um ecossistema urbano integrado que melhores a qualidade de vida das pessoas; ● Capacitar as pessoas para a inovação e para a gestão dos conhecimentos em todos os campos das ciências, da cultura e das tecnologias; ● Aproveitar as oportunidades oferecidas pela Carta Municipal16 para melhorar a gestão, o planejamento e a qualificação do sistema educativo. Assim, com a aposta em espaços públicos e na articulação de diferentes setores para garantir a educação integral de suas crianças e adolescentes, Barcelona pode desenvolver sua proposta pioneira e tornar-se, hoje, a maior referência acerca do conceito, que se espalhou pela Espanha, país com mais cidades associadas à Associação Internacional das Cidades Educadoras. A cidade conseguiu garantir a noção de que todos são responsáveis pela educação. O projeto educativo da cidade de Barcelona não é uma obra de ninguém, mas uma obra de muitas pessoas. Não é um projeto da prefeitura, mas o projeto de toda a cidade, um pacto para transformar a educação na chave do conhecimento e da convivência (GRANELL; VILA, 2003, p. 55).

Graças a este projeto, foram criados, por exemplo, numerosos conselhos infantis nos municípios, no qual foram realizados e pensados planos de espaços urbanos com a participação de crianças, o que fez com que a segurança em determinadas zonas das cidades aumentasse, permitindo maior autonomia para as crianças que passaram a poder ir sozinhas às escolas. Essa ação dialoga com as experiências da Cidade das Crianças, idealizadas por Francesco Tonucci, segundo projeto envolvendo crianças e cidade apresentado nesse trabalho.

2.2.2 A Cidade das Crianças

“A Carta Municipal é uma lei especial para Barcelona que prevê, entre outras coisas, colocar em funcionamento um mecanismo de decisão e de gestão do sistema educativo entre o governo estadual da Cataluña – que tem hoje as competências em matéria educativa – e a Prefeitura de Barcelona” (GRANELL; VILA, 2003, p. 48). 16


37 O segundo dos projetos que envolvem crianças e cidades aqui apresentado é o Cidade das Crianças, pensado por Francesco Tonucci, psicopedagogo italiano nascido na cidade de Fano. Ele é responsável por inúmeras pesquisas sobre o papel das crianças no ecossistema urbano, olhando para a participação social da infância na discussão pública sobre o futuro das cidades. Sua obra mais conhecida é o livro “A cidade das crianças” (La città dei bambini), no qual aponta a criança como um paradigma para uma cidade para todos, isto é, aposta na transformação das cidades a partir do olhar das crianças que nela habitam. “O projeto nasce e cresce com este objetivo precisamente: tomar partido da ira e a da valentia das crianças para mudar as cidades” (TONUCCI, 2015, p. 12, tradução nossa)17. A ideia desenvolvida em seu livro é uma proposta concreta que nasce de uma experiência iniciada em sua cidade natal em 1991. Procura-se é abrir um laboratório, que pode vir a executar-se por diversos meios, seja pelo prefeito ou pelos cidadãos, mas que deve prever a cidade enquanto um laboratório de investigação para mudanças profundas, escutando as crianças e dandolhes papéis protagonistas. Atualmente, a presença de crianças brincando nas ruas e demais áreas públicas dos centro urbanos está cada vez menor, o que faz com que sejam ainda mais invisíveis aos olhos dos adultos e das políticas públicas. Antes, nos contos e histórias, o bosque era o local carregado de perigos e temores, porém, hoje essa relação se inverteu e a cidade se converteu no bosque dos nossos contos e a estratégia vendida é a solução privada: a casa torna-se o lugar seguro. Limitando a infância ao ambiente privado, ela é privada também da participação social. A imagem de uma cidade perigosa vem sendo fortalecida, estabelecendo uma relação cíclica: com menos crianças nas ruas, essas são dominadas por carros que circulam em alta velocidade, tornando-as espaços esvaziados e sem uso, tendência para o aumento da violência, a qual tira as crianças das ruas, uma vez que os pais, preocupados, impedem cada vez mais seu movimento. As crianças, ao perderem as cidades, perdem também a possibilidade de viver experiências necessárias para seu correto desenvolvimento, como o jogo, a exploração, a aventura. As cidades, ao perderem as crianças, 17

El proyecto nace y crece con este objetivo precisamente: sacar partido de la ira y la valentía de los niños para cambiar las ciudades.


38 perdem segurança, solidariedade, controle social. As crianças necessitam da cidade; a cidade necessita das crianças (TONUCCI, 2009, p. 147).

O projeto da Cidade das Crianças defende a ideia de que as crianças nas ruas são capazes de torná-las mais seguras, o que também possibilita que sejam frequentadas por outros agentes, como os idosos, por exemplo, que, podendo auxiliar as crianças nos espaços públicos, visualizam uma possibilidade de voltar a frequentar a cidade. Com as crianças marcando os espaços públicos com seus jogos e brincadeiras, acende-se a possibilidade de uma mudança também nos adultos, que passam a respeitar os espaços vividos por seus filhos e netos. O projeto idealizado por Frato procura, por um lado, permitir e garantir a participação das crianças no exercício de governo e de pensar as políticas públicas e, por outro, recuperar sua autonomia de movimento, vivência e deslocamento na cidade. Para isso, sua proposta é uma busca por conseguir alterar os parâmetros urbanos das cidades. Para que as crianças possam exercitar seu direito ao jogo, as cidades devem mudar, renunciando a algumas características estruturais e a alguns comportamentos que tornam impossíveis esta experiência fundamental para um crescimento correto dos cidadãos menores. Em primeiro lugar, há de se devolver aos cidadãos o espaço público, o que significa que as calçadas, as ruas, as praças e os parques não podem estar nas mãos dos automóveis que os ocupam ou transitam por eles; e os espaços não podem ser separados e especializados, porque se são exclusivos para usos das crianças ou para idosos, deixam de ser públicos. Os espaços devem estar abertos às necessidades e às oportunidades de todos os cidadãos e, especialmente daqueles menores e mais fracos (TONUCCI, 2006, p. 66).

Isto é, acredita-se em um projeto que possa orientar as políticas públicas para garantir o direito de brincar aos meninos e meninas e seu reconhecimento enquanto cidadãos ativos. A ideia é substituir o cidadão médio, adulto, homem, branco, trabalhador pela criança, uma vez que esse parâmetro atual apenas agrava a situação de degradação urbana, afastando cada vez mais os demais cidadãos da cidade. As cidades vêm se esquecendo das crianças, e o autor acredita que seria essencial pensa-las refletindo sobre as exigências das distintas idades da vida


39 Muitas vezes, oferecer às crianças esses espaços, essas oportunidades, implanta fortes conflitos com os interesses dos adultos, dos políticos, dos professores e dos próprios pais. Os conflitos mais frequentes e significativos são contra o poder ilimitado dos automóveis, contra o desaparecimento dos espaços públicos, contra a ocupação do tempo livre com deveres e atividades extraescolares, contra o desinteresse que os adultos mostram pelas opiniões e necessidades infantis. Acredita-se que adotando a criança como parâmetro, a cidade não deixará de atender ninguém, uma vez que ela teria uma diversidade intrínseca, que garantiria todas as outras diversidades. Isto é, se trata de adotar uma nova ótica, uma nova filosofia para programar, avaliar, projetar e modificar a cidade. Tonucci defende que essa eleição tem motivações psicológicas, sociológicas, antecedentes históricos, significado moral e peso político. A criança é comumente vista como menor, como fraca, isto é, como alguém que ainda virá a ser maior, não sendo reconhecido seu direito fundamental ao presente, a hoje, ao ser cidadão. Entretanto, esse é um direito já reconhecido por todos, que deveria ser colocado em prática. Além disso, Frato ressalta que a criança é o passado, pois todos já foram crianças, é também presente, pois elas vivem e experienciam esse momento ao mesmo tempo em que os adultos entregam muitos esforços para seus filhos, e são também nosso futuro, a sociedade de amanhã. Assim, “vale a pena apostar na criança porque ela é paradoxalmente mais forte” (TONUCCI, 2015, p. 51, tradução nossa)18. A criança é considerada um indicador ambiental sensível: se em uma cidade são vistas crianças que jogam e passeiam sozinhas, significa que a cidade está saudável; se não é assim, a cidade está enferma. Uma cidade onde as crianças estão pelas ruas é uma cidade mais segura para as crianças e para todos os cidadãos (TONUCCI, s/d, p. 3-4).

Dessa forma, entende-se que deve haver uma mudança na prioridade de atendimento das cidades, não por meio de espaços especializados, como parques de diversão, que apenas segregam ainda mais, mas olhando para as necessidades dos menores e possibilitando que eles possam ser participativos e ativos na construção e

18

Vale la pena apostar por el niño porque el niño es paradójicamente más fuerte.


40 transformação do espaço, que ele possa também ser delas e, dessa forma, de todos. Quer-se promover uma inversão de tendências nas opções políticas e atitudes individuais para garantir cidades mais habitáveis. “Se elegemos, então, a criança como novo parâmetro de mudança, deveremos escolher um caminho completamente novo para o qual já não terá valor os velhos equilíbrios, os velhos compromissos” (TONUCCI, 2015, p. 52, tradução nossa)19. As diretrizes apresentadas pela Cidade das Crianças propõem pensar e projetar espaços múltiplos que possam ser utilizados por todas as idades, sem distinção de grupos específicos, onde as diferentes faixas etárias possam usufruir e encontrar-se em um mesmo local. Se trata de pensar em uma cidade mais ágil, mais sensível, na qual todos os cidadãos valham mais, de devolver as praças às pessoas e ao jogo das crianças. “Podemos estar seguros de que se as crianças participam dos projetos da cidade a sentirão, hoje sendo crianças e amanhã sendo adultos, como ‘sua’, a cidade que hão de cuidar e defender” (TONUCCI, 2015, p. 62, tradução nossa)20. Não podemos deixar de falar das periferias, ideia essencial para essa pesquisa. Elas não podem ser esquecidas e possuem muito potencial para transformação, conforme aponta Tonucci: Vem depois o grande problema das periferias, que não se caracterizam por sua beleza, mas que tão pouco podemos demolir. Mas se se aumenta essa consciência de respeito dos direitos dos cidadãos, a partir dos menores e dos mais débeis, se chegará a reconhecer o direito de viver a cidade, de recorrê-la, de se encontrar e se divertir, então terá que se colocar a pensar que também nossas periferias tem direito a serem belas. É um magnífico desafio que os administradores devem lançar aos arquitetos, aos urbanistas, partindo da consciência de que frequentemente as periferias são potencialmente boas para fazê-las adequadas às crianças, com seus espaços ainda não resolvidos, com seus cantos naturais esquecidos pela cega urbanização. Se deverá utilizar todos os espaços ainda não construídos para restituí-los ao uso social. Se deverão criar áreas peatonais periféricas; liberar as praças, caso elas existam, e devolvê-las aos cidadãos; inventar praças onde não estejam previstas. Se poderão reabilitar as velhas estruturas industriais (fábricas, fornos, depósitos) e convertê-las em espaços de uso público. Terá que se pensar nas calçadas, nos monumentos, nas fontes. Será 19

Si elegimos, pues, al niño como nuevo parámetro del cambio, deberemos escoger un camino completamente nuevo para el cual ya no trendrán valor los viejos equilibrios, los viejos compromisos. 20 Podemos estar seguros de que si los niños llegan a participar en los proyectos de la ciudad, la sentirán, hoy siendo niños y mañana siendo adultos, como ‘suya’, la ciudad que hay que cuidar y defender (...).


41 questão, em definitiva, de encarar um grande projeto de reabilitação social e estética das periferias. Neste grande projeto as crianças têm muito que dizer e que dar, porque as opções razoáveis já não bastam; é necessário se atrever, inventar, buscar ideias novas que, por certo, não faltarão às crianças (2015, p. 89, tradução nossa)21.

Assim, as mudanças necessárias em uma cidade atuante são: mais tempo dedicado às crianças; escutar as crianças; mudar as prioridades - pedestres frente a automóveis, bairros frente às cidades, crianças frente aos adultos, o jogo frente ao trabalho; eleger as prioridades democraticamente; aumentar a autonomia de movimento; uma nova política de segurança - bastante relacionada ao que também Jane Jacobs já falava em 1960: ocupar o espaço público e garantir que a criança seja uma responsabilidade social de todos, e não apenas dos pais; um modo diferente de fazer política; interesse pela investigação científica. Dentro do projeto da Cidade das Crianças, algumas iniciativas foram elaboradas para que as crianças assumissem sua autonomia e participação na medida da transformação urbana, tais como: projeto “Para a escola vamos sozinhos”, “Conselho das crianças” e “Conselho dos alunos”, dentre outros. Essas três propostas colocam os meninos e meninas como sujeitos do ambiente em que habitam e capazes de exercer a responsabilidade e a autonomia por aquilo que fazem e propõem. A experiência foi colocada em prática nas cidades de Fano, na Itália, Rosário, na Argentina, e Pontevedra, na Espanha. De acordo com o site oficial do projeto, atualmente, a Rede Internacional Cidade das Crianças é composta por cerca de 200

21

Estás después el gran problema de las periferias, que no se caracterizan por su belleza pero que tampoco podemos demoler. Pero si aumenta esta conciencia respecto de los derechos de los ciudadanos, a partir de los más pequeños y de los más débiles, si llegara a reconocerse el derecho a vivir la ciudad, a recorrerla, a encontrarse y divertirse, entonces habrá que ponerse a pensar que también nuestras periferias tienen derecho a ser bellas. Es un magnífico desafío que los administradores deben lanzar a los arquitectos, a los urbanistas, partiendo de la conciencia de que a menudo las periferias son potencialmente buenas para hacerlas adecuadas a los niños, con sus espacios aún no resueltos, con sus rincones naturales olvidados por la ciega urbanización. Se deberán utilizar todos los espacios aún no construidos para restituirlos al uso social. Se deberán crear áreas peatonales periféricas; liberar las plazas, si las hay, y devolverlas a los ciudadanos; inventar plazas allí donde no estén previstas. Se podrán rehabilitar las viejas estructuras industriales (fábricas, hornos, almacenes) y convertirlas en espacios de uso público. Habrá que pensar en las aceras, en los monumentos, en las fuentes. Será cuestión, en definitiva, de encarar un gran proyecto de rehabilitación social y estética de las periferias. En este gran proyecto los niños tienen mucho que decir y que dar, porque las opciones ‘razonables’ ya no bastan; es necesario atreverse, inventar, buscar ideas nuevas que, por cierto, no les faltan a los niños.


42 cidades em diferentes países da Europa e da América Latina – Itália, Espanha, Argentina, Uruguai, Colômbia, México, Peru e Chile –, além do Líbano.

2.2.3 As experiências no Brasil No Brasil, a noção concreta do potencial da relação de crianças com cidades chega mais recentemente. Um dos principais antecedentes das cidades educadoras no país foram as Escola Parque, por volta da década de 1930, de Anísio Teixeira, quem defendia uma educação para a democracia e para a liberdade. Elas se relacionavam com a educação integral, uma vez que visavam extrapolar as disciplinas tradicionais e trabalhar aprendizagens relacionadas a trabalho, cultura e criatividade. Assim, deveriam ser alternadas atividades intelectuais com atividades práticas, manuais, jogos, recreação, artes, música e dança. Havia também um novo olhar para o espaço escolar, entendendo-o como uma das bases do desenvolvimento urbano dos territórios onde estava inserido. Logo em seguida, entre 1935 e 1938, enquanto estava no Departamento Municipal de Cultura da Prefeitura de São Paulo, Mário de Andrade deu início a construção de Parques Infantis pela cidade, uma primeira proposta de educação fora da escola, buscando promover acesso à cultura e ao lazer para as crianças de classes menos favorecidas. Os herdeiros mais diretos das Escolas Parques e dos Parques Infantis são os Centro Educacionais Unificados (CEUs), voltados para as áreas periféricas de São Paulo, tendo sido o primeiro inaugurado em 2003. Logo, esse espaço público com múltiplas funções educativas tornou-se uma política federal, passando a chamar-se Centro de Artes e Esportes Unificados (ainda chamados de CEUs). Em 1972, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) lançou o relatório “Aprender a Ser”. O documento afirma que a educação não se define mais em relação a um conteúdo determinado que se trata de assimilar, mas concebe-se, na verdade, como um processo de ser que, através da diversidade de suas experiências, aprende a exprimir-se, a comunicar, a interrogar o mundo e a tornar-se sempre mais ele próprio (UNESCO, 1972, s/p).


43 Entendendo a educação como contínua, ela extrapola o limite do espaço formal escolar, podendo adentrar em outras vias. Assim, a UNESCO foi pioneira ao considerar a cidade como um espaço fundamental da educação dos cidadãos. Logo após a Constituição Federal de 1988, foi promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, que coloca esses dois grupos como sujeitos de direitos. Esse documento é bastante significativo no contexto brasileiro uma vez que apresenta as necessidades das crianças e adolescentes como prioridades no atendimento do poder público e da sociedade civil. É bastante interessante notar que o capítulo II, artigo 16, trata do direito de ir e vir e de estar nos logradouros e espaços públicos como fundamental à criança, dando relevância à questão urbana e colocando em voga o direito das crianças de estarem na rua. Em 1994, com base na Carta das Cidades Educadoras, é fundada a Associação Internacional de Cidades educadoras (AICE), visando o auxílio de governos, prefeituras,

secretarias

e

cidades

a

implementarem

medidas

voltadas

ao

desenvolvimento integral de seus habitantes tendo a educação, a equidade e os direitos humanos como alicerces. A cada 4 anos se realiza um Congresso para trocas de experiências e fortalecimento dos compromissos das Cidades Educadoras. Foi Porto Alegre, onde nasceu o Fórum Social Mundial, que deu a partida no Brasil e integrou, em 2001, o Movimento das Cidades Educadoras, iniciando uma nova caminhada nessa associação. O Programa das Cidades Educadoras vem sendo fortalecido no país através da Associação Cidade Escola Aprendiz, por meio de ações estratégicas que buscam integrar comunidades, escolas e territórios, buscando a noção, fundamental ao conceito de Cidade Educadora, de cidades construídas para garantir o desenvolvimento integral dos cidadãos. Recentemente, vem sendo possível observar políticas públicas, em nível federal e municipal, orientadas para um território formador e educativo. Em 2001, o Estatuto da Cidade do Brasil inscreveu o direito à cidade na lei federal e, em 2006, já era possível observar um exemplo bastante forte no país: o programa Escola Integrada, de Belo Horizonte (MG). Ele buscava a articulação de novos agentes no processo educativo com propostas que iam para além da sala de aula e impactavam as crianças e toda a


44 comunidade, valorizada de modo integral. Também em 2006, Nova Iguaçu (RJ) deu início ao Bairro-escola Nova Iguaçu, no qual tem-se a intenção de transformar em espaços educativos as praças, clubes comunitários e ruas, também buscando uma reforma curricular. Foi um trabalho que envolveu os diversos setores da cidade e pensou sua reconfiguração urbana. O documento de criação do programa diz que a educação ocorre não somente nos limites da escola, mas em todos os cantos da comunidade. O bairro passa, portanto, a ser visto como um grande laboratório de experiências educativas. E a escola, por sua vez, passa a ser o elemento mobilizador, a partir do qual se cria uma rede cidadã pronta a trocar conhecimentos e valores; a ensinar e, ao mesmo tempo, aprender (NOVA IGUAÇU, 2006, s/p).

Em 2007, foi criado o programa federal Mais Educação, que deveria garantir a educação integral em 60 mil escolas públicas, aumentar as horas na escola e ampliar as oportunidades de aprendizagem, reorganizando o currículo, o qual deveria conectar as áreas tradicionais do saber aos direitos humanos, à cidadania, ao meio ambiente, às artes, saúde, educação e cultura. Foi uma estratégia do Ministério da Educação que visava a educação integral por meio das diferentes experiências pedagógicas e da articulação de políticas públicas, equipamentos públicos e atores sociais. Para tanto, foi proposta maior articulação da escola com o território, apostando na ampliação dos tempos, espaços, linguagens e agentes para a consolidação de um processo educativo qualificado. “A definição de um paradigma contemporâneo de educação integral entende que o território da educação escolar pode expandir-se para além dos muros da escola, alcançando seu entorno e a cidade em suas múltiplas possibilidades educativas” (MEC, 2007, s/p). Assim, pela primeira vez em nível nacional, se apresentou na discussão da formação educacional do país o pensar sobre o território. Também foi criado o programa nacional dos Pontos de Cultura, que buscava maior democratização da cultura no território. Voltava-se para iniciativas culturais autônomas, que poderiam ser geridas tanto pelo poder público como por representantes da comunidade. Assim, além de difundir a cultura, agregava agentes e parceiros.


45 Compõe também o cenário brasileiro o Plano Nacional de Educação (PNE), que prevê 50% das escolas nacionais com educação integral até 2024. Sua aprovação, em 2014, tem ampliado a demanda por novos arranjos educativos nos municípios e estados, exigindo medidas que reconfigurem a relação entre escolas e territórios. Uma experiência em Maranguape (CE), consolidada em 2005, permite ver alguns reflexos dessa nova discussão. A cidade buscou se consolidar enquanto Cidade Educadora por meio de um Plano Municipal de educação que acolhesse os princípios do conceito. Pais, estudantes, professores, associações civis, jovens e idosos moradores da cidade se envolveram no projeto de repensar os espaços urbanos visando a criação de um Ecomuseu comunitário pensado em um antigo casarão. O acervo do projeto também é preparado continuamente pelos moradores e estudantes, através de pesquisas escolares. A experiência ganhou relevância nos debates sobre a educação formal ofertada no município a ponto de seu Plano Municipal de Educação ter definido a elaboração de um currículo capaz de qualificar os territórios comunitários do município como espaços educativos. Para monitorar e avaliar a implementação dessas estratégias, a sociedade civil criou um observatório da Cidade Educadora. Essa tendência também pode ser observada na conformação do Bairroescola Rio Vermelho, em Salvador (BA); na proposta que articula educação e saúde, concebida em Sorocaba (SP); em programas organizados em torno de uma proposta pedagógica e intergeracional, na cidade de Santos (SP); na vocação de Cidade que Educa, assumida pelo município de Coronel Fabriciano (MG); entre outros. Soma-se a esses exemplos o surgimento de diferentes movimentos sociais de ocupação e ressignificação do espaço público nas principais metrópoles do país. Passaram-se a manifestar, cada vez mais, grupos colaborativos que buscavam dar nova qualidade às ruas, praças, calçadas, parques, escadarias de suas cidades. Esses movimentos se pautavam, ao mesmo tempo em que o exerciam, no direito à cidade, reivindicando-o como inalienável. No último Congresso Internacional de Cidades Educadoras, o qual ocorreu em 2016 na cidade de Rosário, Argentina, mais de vinte cidades brasileiras estavam


46 presentes e, além de apresentarem suas experiências, reuniram-se para definir linhas estratégicas de fortalecimento da agenda em âmbito nacional. São quatro as principais premissas que vem sendo trabalhadas no Brasil para o fortalecimento da ideia. A primeira delas é a participação e o controle social. Só faz sentido pensar em uma Cidade Educadora se as políticas em diálogo com ela forem voltadas ao avanço da democracia e a maior e melhor participação social. Assim, é essencial a garantia de políticas públicas transparentes que, em todas as suas etapas valorizem e permitam a participação civil, incluindo também as crianças nas decisões acerca de seus espaços de uso e vivência. A segunda é o reconhecimento das escolas enquanto agentes de transformação do território. A escola, enquanto campo formal, estabelece-se como muito importante no processo educativo e deve, além de ver a cidade como um espaço de estudos e conhecimentos, estar aberta à comunidade, envolvendo-se com suas questões e sendo também agente de suas transformações. Assim, é possível uma aprendizagem significativa em diálogo com questões cotidianas incluídas nas vidas dos alunos, pensando em sua formação integral enquanto cidadãos. A terceira premissa diz respeito a intersetorialidade na gestão pública, buscando a articulação entre instituições, pessoas e saberes, aproximando as políticas e os serviços das pessoas, as quais são destinados. Assim, pretende-se, com soluções mais integradas, construir respostas mais eficazes e coletivas aos desafios locais. Entretanto, no Brasil, essa é uma das maiores dificuldades para a consolidação da agenda. Os municípios concentram suas ações nas Secretarias Municipais de educação fazendo com que não seja um projeto de cidade e apenas propostas isoladas. Por fim, prima-se o acesso aos bens culturais da cidade. Uma cidade que quer educar deve estimular e garantir a conexão e a recognição de seus habitantes com o território. Assim, é necessário o acesso aos equipamentos de cultura, assim como narrativas estéticas protagonizadas por diferentes grupos sociais. Associada ao aprofundamento da democracia e, portanto, à emergência de novas vozes, a cultura é a dimensão da Cidade Educadora que aposta no protagonismo, na autonomia, nas diferentes linguagens, na inovação, na descoberta, no encantamento e na criatividade para recriar lugares de convivência, solidariedade e respeito mútuo (CIDADE ESCOLA APRENDIZ, s/a, s/p).


47

A grande diferença do Brasil para os movimentos europeus, como o de Barcelona, é que não há grande trabalho do governo envolvendo diferentes especialistas e buscando participação abrangente. Apesar de, agora, algumas políticas públicas estarem se voltando para tal, na maioria das vezes é a própria população que inicia o movimento de reflexão e de repensar as necessidades locais. Em abril de 2004, São Paulo, objeto de investigação dessa pesquisa, foi a 281ª cidade a assinar e associar-se à Carta de Barcelona e à Associação Internacional das Cidades Educadoras. Para além disso, em dezembro de 2016, a cidade inaugurou oficialmente o Fórum de Educação Integral para uma Cidade Educadora, dando maior força à pauta. Ele nasce da articulação de instâncias da prefeitura, instituições do terceiro setor, academia e representantes da sociedade civil, buscando traduzir um projeto que, para além de pensar a educação integral como o mero aumento da jornada, quer valorizar os saberes das escolas, mas também das comunidades, mobilizando todos pela educação. Assim, ainda que não grandemente difundidas, é possível apontar na cidade alguns projetos e experiências, a maioria de Bairros Educadores, que se desenvolvem como possibilidades de trabalhar com as crianças no meio urbano, de modo a concebê-las como cidadãs de respeito, que merecem ser atendidas e escutadas em suas necessidades.

2.3 Cidade periférica e suas infâncias Será essencial para o desenvolvimento do presente trabalho os conceitos de criança e de infância e, para tanto, considero fundamental expor como enxergarei esses conceitos nesta pesquisa. A criança a ser considerada aqui é a criança de hoje: com sua necessidade de ser ouvida, respeitada em suas particularidades e conhecimentos, agente social capaz de produzir cultura e participar da vida pública da cidade; já a infância será entendida enquanto uma categoria na estrutura social. Ao trabalhar com crianças - e talvez qualquer agente social - é necessário mergulhar no universo que as envolve para compreender os fatores que permeiam seu


48 cotidiano e acabam por impactar em seus sonhos, escolhas e aspirações. Nesse sentido, a infância na periferia deve ser compreendida a partir de um olhar atento e sensível às suas particularidades. 2.3.1 A infância enquanto categoria social Os estudos sobre a infância, na atualidade, vêm se organizando em uma perspectiva de estudo designada sociologia da infância, que “trata-se de romper a cegueira das ciências sociais para acabar com o paradoxo da ausência das crianças na análise científica da dinâmica social com relação a seu ressurgimento nas práticas e no imaginário social” (SIROTA, 2001, p. 11 apud NASCIMENTO; BRANCHER; OLIVEIRA, 2013, p. 59). Partindo de Ariés (1973), começou-se a ter uma visão da infância como uma construção social, e não como algo natural, um objeto passivo e imutável. A infância, tal qual conhecemos hoje, era inexistente antes do século XVII. A construção social da infância concretiza-se pelo estabelecimento de valores morais e expectativas de conduta. Isso significa que a infância possui uma cultura própria e que, portanto, deve ser olhada em seus traços específicos. Essas características podem mudar - e por isso caracteriza-se enquanto uma construção social - mas o grupo infância permanecerá enquanto categoria social, e não apenas um período. A ideia de infância, assim como sua categorização, foi construída histórica e socialmente, de acordo com Qvortrup (2010). É possível, então, traçar uma linha comum que caracteriza aquela categoria social ao longo do tempo, mesmo com mudanças. A ideia de ver a infância como um período coloca as crianças como excluídas da sociedade, uma vez que a percebe como um movimento “de um estado menos desejável para um mais desejado” (QVORTRUP, 2010, p. 635). Ao colocá-la como um componente estrutural, pode-se começar a pensar no desenvolvimento da própria infância e colocar a criança como produtora de cultura, como parte integrante da sociedade. Quando uma criança (ou uma geração delas) atinge a idade adulta, a realidade da infância enquanto categoria estrutural não se perde, ela continua a existir, uma vez que novas crianças farão parte dessa categoria social.


49 Aos poucos, esses estudos foram desenvolvendo-se e passam a enxergar diferentes infâncias “porque não existe uma única, e sim, em mesmos espaços têm-se diferentes infâncias, resultado de realidades que estão em confronto” (Demartini, 2001, p. 4 apud NASCIMENTO; BRANCHER; OLIVEIRA, 2013, p. 60). Há uma preocupação atual de não reduzir as infâncias a uma única, atentando-se às suas pluralidades, sejam de questões e práticas cotidianas ou de representações sociais e do imaginário. Assim, Qvortrup (2010) propõe enxergar a criança enquanto indivíduo, cujos “valores se alteram ao longo de cada infância individual” (VICENTE, 2018, p. 37), enquanto presente. Já a infância seria uma categoria permanente, que sofre a ação de parâmetros sociais - econômicos, políticos e culturais. A “infância sociológica é muito mais suscetível a mudanças históricas, enquanto a dinâmica da infância individual pode ser encontrada no desenvolvimento da personalidade” (QVORTRUP, 2014, p. 25). A infância seria então uma forma particular e distinta em qualquer estrutura de sociedade, não sendo uma fase de transição, mas uma categoria social permanente e uma parte integrante da sociedade. As crianças, por sua vez, são construtoras da infância e da sociedade (QVORTRUP, 2011). é válido também falarmos em infâncias, se referindo a essa categoria como uma variável social que se articula à diversidade de vida das crianças, considerando-se suas multiplicidades de classes sociais, gênero, pertencimento étnico e cultural, que não representam uma concepção única. As infâncias são construções tanto estruturais quanto culturais (VICENTE, 2018, p. 38). Da mesma maneira que se constrói a ideia de infâncias como uma pluralidade, também não é possível pensar em uma única cultura da infância, já que também se caracterizam pela heterogeneidade, com diferentes realizações de produção de sentido e da pluralidade dos sistemas de valores, crenças e representações sociais (VICENTE, 2018, p. 39).

Dessa maneira, podemos dizer que não podemos interpretar as culturas infantis sem olhar para seu contexto social, que dá sentido para o que vivem, interagem e fazem. Partindo do apresentado acima, se faz importante analisar a produção de significados que as crianças constroem quando pensam as suas infâncias,


50 principalmente atravessadas pelos processos culturais que configuram suas vidas na periferia urbana. Podemos, através das relações que configuram as periferias, olhar para as singularidades das infâncias de crianças de periferia urbana, assumindo como pressuposto que as relações estabelecidas pelas crianças entre si e com os adultos, assim como os significados que conferem às diferentes práticas sociais, constituem elementos de estudos sociológicos que contribuem para a área da educação. 2.4 A cidade como materialização da sociedade Ao longo das últimas décadas, as cidades vêm sofrendo grandes transformações, profundas e muito rápidas, as quais vêm mudando muito também a infância. As cidades vêm se fazendo maiores e mais complexas; a frequente separação de funções e as distâncias cada vez maiores demandam o uso diário e permanente do automóvel. Ao mesmo tempo, nesse contexto, cresceu uma população infantil cuja qualidade de vida em relação às cidades deteriorou-se notavelmente. A cidade pode ser entendida como a materialização das sociedades, isto é, representa a forma como se organiza a sociedade. Muitos autores, de alguma forma, vieram tratando desse tema. Para Lefebvre, arquiteto francês, o “urbano é a simultaneidade, a reunião, é uma forma social que se afirma” (1986, p. 159), enquanto a cidade “é um objeto espacial que ocupa um lugar e uma situação” (1972, p. 65) ou “a projeção da sociedade sobre um local” (2001, p. 56). A cidade e o urbano para Lefebvre são sociais. O urbano é um fenômeno que se impõe em escala mundial. Ele é um conceito, uma temática e, por necessidade de articulação teórica e prática, uma problemática. A cidade se constitui historicamente, e, por meio do encontro, se tornou um local de reprodução social. “Desde seu aparecimento, há mais de 6 mil anos, a cidade tem estado diretamente vinculada ao conceito de cidadania e cultura” (GRANELL; VILA, 2003, p. 17). Na Grécia antiga, a polis era o lócus da vida coletiva. A ideia de cidade também foi historicamente associada à de Paidéia, a cidade é, em si mesma, um agente educativo e assim foi entendida pelas diferentes civilizações. Um lugar onde as pessoas se reúnem para


51 conviver, para aprender, para participar da vida social e política e para exercer seus direitos cidadãos (GRANELL; VILA, 2003, p. 18).

Ao

longo

da

história,

a

cidade

vem

sofrendo

transformações

intrinsecamente relacionadas aos modos de produção, expressando sua condição enquanto produto social. A cidade grega, já apresentada, estava relacionada à noção política, centralizada na Ágora e, a partir dessa noção, estabelecia-se a divisão espacial e do trabalho. Segundo o historiador Ariès (2006), até os séculos XV e XVI, no início da Idade Moderna, nas cidades europeias, as crianças ainda eram bastante presentes e misturadas aos adultos nas atividades e na vida em público. Com os jogos, as brincadeiras e a participação nas festas populares, ambos ocupavam os mesmos lugares urbanos. No entanto, ainda não havia uma classificação e um entendimento da infância. Para Lima (1995), as festas que aconteciam nas cidades tinham uma função social importante, pois serviam para transmitir costumes, tradições, valores e a identidade coletiva, estreitavam as relações entre seus membros, aglutinavam pessoas de várias idades, gêneros e procedências diversas e serviam como um ambiente potencialmente rico para as crianças. Tanto as festas quanto as brincadeiras e os jogos se davam nos espaços públicos e “a rua, mais ainda que a praça, era o lugar das crianças por excelência” (LIMA, 1995, p.184). Essa liberdade e apropriação caracterizam formas de aprendizado. Entretanto, o convívio social era marcado pela moral cristã que, a partir do século XVII até os dias de hoje, veio condenando muitas das danças, festas e jogos coletivos entre adultos e crianças por seu caráter sexual (ARIÈS, 2006 apud VICENTE, 2018). Assim, aos poucos, os espaços públicos vieram perdendo essa função de expressão coletiva. Apenas com os moralistas e os educadores do século XVII, que fundam os colégios no fim da Idade Média, que o sentimento de uma infância longa começa a se estabelecer, focada nas práticas de educação por meio de uma formação moral e intelectual e de uma preocupação em isolar as crianças do mundo ‘sujo’ dos adultos, mantendo-as na ‘inocência’. Concomitantemente à escolarização, as crianças vão


52 passando a construir menos seus aprendizados baseados no exemplo e no convívio com outros grupos sociais. Inclusive, é um tanto contraditório observar que, na Idade Média, apesar da criança ainda não ser identificada como tal, elas exerciam funções sociais dentro do grupo e podiam desfrutar da cidade e das relações de maneira irrestrita; enquanto, a partir do século XVII, conforme foram ganhando reconhecimento e cuidados diferenciados, perderam seus papeis sociais e o direito de usufruir dos espaços urbanos com liberdade. Com a necessidade de maior isolamento das famílias, da mudança e da redução da sociabilidade, acrescidas das transformações advindas dos processos de industrialização e do incremento da população urbana, a partir dos séculos XVIII e XIX, as cidades e os espaços livres públicos se modificaram, assumindo aspectos de funções especializadas, opostas às possibilidades de ocupações, relações sociais e atividades coletivas públicas, realizadas anteriormente de maneira ampla e espontânea. Com o desenvolvimento do comércio, a cidade política é superada por outra. Os comerciantes assumem a classe dominante, passando a centralidade para o mercado. Na sequência, consolida-se a cidade industrial, que carrega consigo uma sociedade também com essas características. Ainda que a cidade estivesse se transformando e abrigando outros usos em decorrência da chegada das indústrias e dos veículos automotores, até a primeira metade do século XX, o espaço urbano ainda possibilitava o encontro e as trocas entre os cidadãos – adultos e crianças – mesmo que de uma maneira muito distinta do que aquela apresentada anteriormente. Após a segunda metade do século XX, as áreas urbanas vão, cada vez mais, especializando-se e fragmentando-se com o surgimento de novos espaços para abrigar os usos públicos, anteriormente localizados nas ruas, fato que auxiliou no processo de segregação e especulação do solo urbano. Nesse contexto, as crianças constituem o segmento mais frágil da população e, por isso mesmo, simples espectadores das mudanças boas ou más que ocorrem à cidade e aos seus moradores, agora transformados em meros produtores e ocupantes (LIMA, 1995, p. 184).


53 A partir daí a cidade vai deixando de ser o lugar do encontro e das trocas e começa a desenvolver-se um interesse pelo estabelecimento de locais especializados para cada função e público alvo. Essa mudança no papel e nas funções urbanas permite uma transformação dos espaços públicos em áreas de perigo e desconfiança. O mesmo já apontava Jane Jacobs (2014), ainda nos anos 60, colocando-se contra os espaços especializados, que apenas seriam mais perigosos e esvaziados. Hoje, em uma sociedade ocidental e moradora de grandes centros urbanos, como é o caso de São Paulo, vemos um grande distanciamento e uma especialização da infância, ausentando as crianças das relações sociais mais amplas – fora dos círculos familiares e escolares – e dos lugares de uso comum a todos os cidadãos, como são os espaços livres públicos urbanos. No capítulo final de seu livro A cidade e a criança (1989), Mayumi Lima, arquiteta japonesa que se formou no Brasil, retoma a história da industrialização para demonstrar como a criança perdeu seu espaço nas grandes cidades. Até o século XVIII, a rua era o local da vida cotidiana de adultos e de crianças. As casas eram pequenas, apenas lugar de dormir e comer, não um local de permanência. Na rua aconteciam as festas populares, os encontros e as trocas (o comércio), uma espécie de extensão da casa, onde as crianças podiam brincar. Aos poucos, com a industrialização, surge a polícia metropolitana, responsável pela ordem urbana. As festas são proibidas, evita-se tumultos e promovese o decoro. A rua passa a ter a função predominante de circulação e as crianças passam a ser confinadas em espaços fechados – a casa, a escola, as fábricas onde passam a trabalhar. Perde-se o convívio natural entre adultos e crianças no espaço urbano. Assim, pensando o mundo atual, podemos dizer que, cada vez mais, vivemos em espaços urbanos fragmentados e conflituosos. Surgiram, nos últimos anos, novos bilionários ao mesmo tempo em que a renda dos pobres estagnava ou diminuía. Os resultados dessa situação apresentam-se nas cidades atuais, as quais mostram-se mais e mais como fragmentos fortificados, condomínios fechados e espaços públicos privatizados, sob vigilância constante (HARVEY, 2013, p. 47). São cidades com enorme segregação socioespacial, que coloca a população sempre às margens, em uma periferia distante do centro e carente não só de


54 infraestrutura como de equipamentos, lazer e qualidade urbana. Dessa forma, David Harvey, geógrafo urbano britânico e professor, afirma que “os ideais de identidade urbana, cidadania e pertencimento se tornam muito mais difíceis de sustentar” (HARVEY, 2013, p. 47). Embasada nessa leitura e reforçando o caráter de uma produção urbana que favorece os interesses de alguns, em detrimento de outros, podemos considerar que a cidade contemporânea se forma como resultado e expressão das relações sociais constituídas dentro da produção capitalista, que tem na sua materialização espacial uma das principais formas de produção e reprodução do capital. Assim, segundo Mayumi (1989), o poder, primeiro da sociedade de classes, segundo, das instituições representativas dessa sociedade e, terceiro, dos adultos em geral, se apodera do espaço da criança e o transforma num instrumento de dominação. A organização e a distribuição dos espaços, a limitação dos movimentos, a nebulosidade das informações visuais e até mesmo a falta de conforto ambiental estavam e estão voltadas para a produção de adultos domesticados, obedientes e disciplinados, sem vontades próprias e temerosos de indagações, podendo-se inclusive fazer relação com a ideia dos ‘corpos dóceis’ proposta por Foucault (1975)22. Os espaços definidos pelo poder são, de alguma maneira, estabelecidos em função da preservação e fortalecimento desse mesmo poder e, portanto, voltados para o controle e a distribuição desigual de direitos e poderes, através da ilusão da superioridade de alguns, naturalmente colocados em confronto com a inferioridade dos demais (LIMA, 1989, p. 38).

O capítulo “Corpos Dóceis” do livro “Vigiar e Punir” (1975) de Michel Foucault fala de como muitas vezes se pretende domar, submeter, transformar e “aperfeiçoar” alguém para se atingir um corpo dócil, isto é, aquele que é mais obediente quanto mais útil e vice e versa, um corpo submisso e disciplinado. Uma tentativa de transformar o homem em algo que se fabrica. Trata também da questão do tempo e da ideologia da escola, que literalmente aprisiona. As matérias são disciplinas, o sinal define quando se pode sair ou não, todos permanecem sentados em fileiras. Colégios fechados, nos quais cada indivíduo deve estar no seu lugar e, em cada lugar, deve ter um indivíduo, garantindo a vigília sobre a ausência e a presença, disciplinando todos em um espaço analítico, que, além de tudo, deve ser útil. Essa organização traduz materialmente uma ideologia que hierarquiza o saber e as capacidades, tirando a criança do seu local como autônoma e produtora de cultura. De modo geral, o controle, a rigidez e a obediência são características que permeiam o texto. 22


55 A cidade é um espaço de disputas: social, econômica e política, onde prevalecem os interesses de atores pertencentes às classes sociais dominantes, excluindo-se de seu meio outras camadas sociais, etárias e culturais. A liberdade da criança e, assim, sua autonomia é a insegurança dos educadores, pais ou outros adultos e, em nome da criança, devemos buscar a nossa tranquilidade, “impondo-lhes até os caminhos da imaginação” (LIMA, 1989, p. 11) e garantindo-lhes autonomia. A escola é, ela própria, uma criação da civilização urbana e, a partir da idade média, a instituição que permitiu às classes urbanas, sobretudo à burguesia, assumir a liderança econômica, cultural e política das sociedades modernas. Porém, a época moderna, que corresponde à expansão crescente da escola, assistiu também à sua utilização pelo Estado como instrumento para a educação e formação dos cidadãos baseada em um projeto por ele assumido e imposto à sociedade. Foi o tempo do Estado Educador. Com isso a escola perdeu as ligações diretas ao seu ambiente imediato que era a cidade, de onde tinha sido originária, para se situar no horizonte do Estado-Nação, com um projeto de conformação universal do cidadão, dirigido e assumido pelo Estado e fechado às influências locais. Na perspectiva iluminista do Estado Educador, as ligações locais significavam a penetração de influências conservadoras e retrógradas (FERNADES; SARMENTO; FERREIRA, s/d, p.1). Harvey também reforça que fomos feitos e refeitos, ao longo da história, por um processo urbano impulsionado por forças sociais poderosas. [...] A urbanização sempre foi, portanto, algum tipo de fenômeno de classe, uma vez que os excedentes são extraídos de algum lugar ou de alguém, enquanto o controle sobre o uso desse lucro acumulado costuma permanecer nas mãos de poucos (2013, p. 29-30).

Dessa forma, ao pensar a cidade que desejamos, também estamos pensando que pessoas queremos ser e que tipos de vínculos sociais, relacionamentos com a natureza, estilos de vida, tecnologias e valores estéticos nós buscamos (HARVEY, 2013, p. 28). A cidade, nas palavras do sociólogo e urbanista Robert Park (1967, p. 3)


56 é a tentativa mais bem-sucedida do homem de refazer o mundo em que vive mais de acordo com os desejos do seu coração. Mas, se a cidade é o mundo que o homem criou, é também o mundo onde ele está condenado a viver daqui por diante. Assim, indiretamente, e sem ter nenhuma noção clara da natureza da sua tarefa, ao fazer a cidade o homem refez a si mesmo.

Observando suas palavras, é possível perceber, mais uma vez, a cidade como um reflexo da sociedade. Isto é, ela materializa as questões sociais e, ao mudá-la, é também possível mudar a si mesmo e a coletividade. Lefevbre (1972) entende o espaço como a inscrição do tempo no mundo, isto é, as cadências da população urbana que seriam responsáveis por definir o cotidiano. As novas sociedades que vão se formando surgiriam, então, da alteração dos seus ritmos. Para uma nova sociedade, dotada do direito à cidade, seria necessário propiciar o uso completo dos lugares, com plena fruição de direitos. Assim, é possível concluir, que a urbanização, em nosso tempo, vem desempenhando um papel bastante importante no reinvestimento dos lucros, em escala crescente, ao mesmo tempo em que cria fortes processos de destruição que espoliam as massas de qualquer direito à cidade. Ao mesmo tempo, essas cidades são traçadas de forma a representar concepções de mundo e poder, verdadeiros conjuntos de representações em tempos e espaços diversos. “Se o nosso mundo urbano foi imaginado e feito, então ele pode ser reimaginado e refeito” (HARVEY, 2013, s/p). Pensando a partir dessa colocação de Harvey, também é possível enxergar a cidade como uma construção humana e de seres humanos, como o lugar onde os desejos podem ganhar forma, onde as pessoas podem se encontrar, onde podem passar e perder seu tempo, encontrar de novo os lugares do passado, preparar o futuro; onde as crianças podem crescer, descobrindo coisas novas, espiando os adultos, admirando os monumentos. Mas também podem aceitar serem corrompidas e apagadas pelos mais baixos desejos de seus habitantes, em geral dos mais poderosos e prepotentes, por suas especulações, seu egoísmo, seus automóveis. Então as cidades apagam os desejos do idoso que quer passear, da criança que quer brincar, do jovem que quer encontrar privacidade e intimidade (TONUCCI, 2005, p.124,125, tradução nossa).

Essa visão dialoga com Paulo Freire (2016, 2017), que entende também uma responsabilidade social e coletiva na concepção dessa imagem, na qual a cidade


57 somos nós e nós somos a cidade, materializamo-nos nela. “A cidade somos nós também, nossa cultura, que gestando-se nela, no corpo de suas tradições, nos faz e refaz” (VICENTE, 2018, p.30). Assim, é nessa dicotomia que se forma o conceito de cidade trabalhado por essa pesquisa: um local desigual e excludente, concebido para atender aos interesses daqueles com maiores poderes, que acaba por restringir seus usos e apropriações; mas também um lugar de possibilidades de desenvolvimento e estabelecimento de relações entre seus habitantes, sobretudo para aquelas classes mais vulneráveis, como é o caso das crianças, pois a cidade, sendo expressão daquilo que somos, nos coloca em um processo de construção desse espaço e construção de nós mesmos. Importa, sobretudo, analisá-la sob essa perspectiva para pensar os principais pontos que se relacionam com as infâncias urbanas. Nesse questionamento, cabe destacar não apenas uma relação com os espaços construídos, mas também com o como essas crianças são vistas dentro da sociedade e das políticas públicas. 2.5 A noção do direito à cidade A ideia de direito à cidade é atribuída à Lefebvre (1968), quem apresenta uma reflexão acerca dos fenômenos urbanos que se originaram a partir da consolidação do modo de produção capitalista. Trata da questão da segregação socioeconômica e seu fenômeno de afastamento, isto é, a expulsão da população pobre para as periferias da cidade, trazendo como exemplo a “tragédia dos banlieusards”23. Partindo desse raciocínio, o autor apresenta o direito à cidade como o direito de não exclusão da sociedade de suas qualidades e benefícios urbanos. Entende que deve ser uma recuperação coletiva do espaço urbano por grupos marginalizados que vivem nos espaços periféricos. Critica o urbanismo positivista e o planejamento racionalista24, uma vez que acredita ser simplista tornar os problemas urbanos uma questão meramente 23

A tragédia dos banlieusards foi uma situação na França que forçou pessoas de classe baixa a viverem em guetos residenciais longe do centro da cidade. 24 A emergência da arquitetura moderna, por meio da experiência da Bauhaus (1919), trouxe consigo uma visão bastante racionalista e funcional, que também reflete no planejamento urbano, trazendo Brasília como um grande símbolo do momento. O plano de Lúcio Costa, aqui como exemplo do urbanismo racionalista, tomou o racionalismo por base e inspirou-se nos princípios da Carta de Atenas (documento


58 administrativa e técnica. Essa visão criticada manteria certa alienação dos cidadãos, colocando-os mais como objetos do que como sujeitos do espaço social, fruto de relações econômicas de dominação e de políticas urbanísticas por meio das quais o Estado ordena e controla a população. O Estado que atua enquanto supremacia pode até resolver questões imediatas, porém, impede as pessoas de serem sujeitos da construção da própria cidade e, então, do próprio modo de vida. Em oposição a essa perspectiva administrativista, Lefebvre politiza a produção social do espaço: assume a ótica dos cidadãos, colocando o direito à cidade no espaço da luta por criação e fruição do espaço social para todos. Lefebvre distingue citadins (todos os habitantes da cidade) de citoyens (os quais o Estado reconhece a cidadania política), deixando claro que o direito à cidade é de todos os seus habitantes, independentemente de ser reconhecido ou não legalmente como cidadão, ideia também apresentada por Toro (2005, p. 52) em sua definição. A compreensão de cidadania do autor, então, extrapola o aspecto formal e estatal, atribuindo plena cidadania para todos os habitantes da cidade. Assim, todos são chamados de cidadãos. É essa noção de cidadania e cidadão que adotarei em meu estudo, colocando as crianças também nessa posição. Porém, vale ressaltar que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) do Brasil já os reconhece como tal e que, portanto, não poderia ser diferente. Essa concepção de cidadania de Lefebvre, indo além do direito de voto e expressão verbal, aproxima-se de uma democracia direta. Ele acredita que, por meio da ação direta das pessoas sobre o fazer de sua cidade, essa constituída de forma coletiva e possibilitando a expressão individual e das diferenças, será possível, senão uma democracia direta, algo mais próximo a ela e que represente de fato sua sociedade. Entretanto, isso só se faz possível se os cidadãos se apropriarem do espaço urbano, confrontando a lógica de dominação. Ao apropriar-se25, os cidadãos podem transformar, coletivamente, a partir de suas necessidades e vontades.

máximo do urbanismo moderno, de autoria de Le Corbusier), que propunha a divisão funcional da cidade em setores. Trabalha preocupando-se com a questão técnica e com uma intervenção bastante racional no espaço, pouco o percebendo como uma totalidade viva, dinâmica e composta de agentes sociais diversos. 25 A ideia de apropriação está relacionada ao uso, e não com a propriedade.


59 Alguns autores fizeram releituras das ideias trazidas por Lefebvre. Um deles foi David Harvey, que explora a noção de direito à cidade como um direito humano. Harvey (2013) aborda de forma bastante incisiva a relação entre o urbanismo e o capitalismo, bem como a própria relação da sociedade e sua materialização no espaço. Ele vai discutir a essencialidade do urbanismo ao capitalismo, bem como, ao mesmo tempo, o capitalismo também incita o urbanismo, tornando-se essa uma relação dialética, cíclica e crônica. O capitalismo está eternamente produzindo os excedentes de produção exigidos pela urbanização. A relação inversa também se aplica. O capitalismo precisa da urbanização para absorver o excedente de produção que nunca deixa de produzir. Dessa maneira, surge uma ligação íntima entre o desenvolvimento do capitalismo e a urbanização (HARVEY, 2013, p. 30).

Assim, é possível pensar que, com o aumento e a consolidação capitalista, também houve aumento da população urbana. Pode-se perceber a relação, mais uma vez, da cidade com a sociedade e suas formas de expressão e produção. A cidade vai confirmando-se como a materialização da sociedade. A urbanização, segundo Harvey (2013), é um fenômeno de classe, afinal, o controle dos excessos está nas mãos de poucos. O urbanismo permite, além de transformar a cidade, transformar, também, como consequência, o modo de vida. Assim, o capitalismo apropria-se da urbanização, fazendo com que o urbanismo desempenhe papel ativo no desenvolvimento do capitalismo. Se a questão é como reinvestir o dinheiro, o urbanismo aparece sempre como um ótimo meio e instrumento para tal. O investimento capitalista na transformação da cidade acarretou ondas de reestruturação urbana, como a de Paris26, transformando, também o modo de vida. Essas reformas - a de Paris, inclusive - possuem sempre uma dimensão de classe, afinal, beneficiam poucos e os pobres são sempre desfavorecidos. 26

Haussmann, funcionário público francês, em 1852, foi encarregado de modernizar Paris urbanisticamente. Devia resolver os problemas de excedentes de capital e desemprego por meio da urbanização. Demoliu pequenas vias medievais, criando boulevards e jardins. Para tanto, arrasou os velhos cortiços parisienses, usando o poder de expropriação do Estado em nome do progresso, higienização e renovação urbana. Expulsou os pobres para qualificar os espaços para os ricos. A reforma de Paris “envolveu não só a transformação da infraestrutura urbana como também a construção de um novo modo de vida e uma nova personalidade urbana” (Harvey, 2013, p. 35).


60 Harvey apresenta, dessa forma, uma relação intrínseca entre o urbanismo e o capitalismo, sendo a modificação das cidades a forma essencial de reinvestimento de lucro e que, então, move essa relação. Acredita que, portanto, deve-se buscar um controle mais democrático sobre a produção e o investimento do lucro. Sendo o processo urbano uma das principais vias de utilização desse dinheiro, o direito à cidade constituiria na criação de uma gestão mais democrática de sua aplicação. O autor utiliza como exemplo a Comuna de Paris, de 1968, quando os trabalhadores, revoltados com o planejamento e as mudanças de Haussmann, que os havia colocado à margem da cidade, se reapropriaram do centro da cidade, em um desejo de retomada da mesma, que estava sendo destituída em prol de poucos. Ao apresentar essas questões, Harvey falava do direito à cidade, bandeira de seu texto. Isto é, reinvestindo democraticamente, toda a população consegue de fato, ter, viver e ser da cidade. Só assim se faz possível mudar a si mesmo e mudar o modo de vida social. Afinal, este é um direito coletivo, a transformação e o direito à cidade só ocorrem de fato com o poder coletivo que, por essência, deve envolver todos. De acordo com Harvey (2013, p. 28) o direito à cidade é muito mais do que um direito de acesso individual ou grupal aos recursos que a cidade incorpora: é um direito de mudar e reinventar a cidade mais de acordo com nossos mais profundos desejos; de mudar a nós mesmos mudando a cidade. Além disso, é um direito mais coletivo do que individual, uma vez que reinventar a cidade depende inevitavelmente do exercício de um poder coletivo sobre o processo de urbanização. A liberdade de fazer e refazer a nós mesmos e a nossas cidades, como pretendo argumentar, é um dos nossos direitos humanos mais preciosos, ainda que dos mais menosprezados.

Através da percepção de que a urbanização está diretamente relacionada com a produção de lucro, se faz preciso uma democratização do direito à cidade. A construção da possibilidade de fazer valer a vontade de todos é imperativo para que todos os cidadãos possam ser sujeitos de novas formas de urbanização. Segundo Harvey (2013), o direito à cidade é, ao mesmo tempo, uma crítica e uma exigência. Argumenta que essa ideia não se origina de meios intelectuais, e, sim, das ruas, das pessoas. Não deve ser entendido como estritamente individual, mas


61 tambÊm como um direito e um desejo coletivo, quase uma utopia social, buscando reivindicaçþes coletivas.


62 3. CAMPO DE PESQUISA Pretendendo descrever os aspectos metodológicos que nortearam esta pesquisa, se faz importante retomar seus objetivos. Busquei recuperar e ressignificar os espaços livres e o lugar e protagonismo da infância na cidade a partir do olhar das crianças habitantes do Jardim Elisa Maria, na Brasilândia, periferia de São Paulo. Assim, entendendo as ruas, praças e todos os espaços públicos urbanos como educativos, entender e refletir sobre como a cidade, enquanto pedagogia, possibilita a aquisição de autonomia, da noção de cidadania e a apropriação da noção do direito à cidade. Isto é, pensar a cidade enquanto um projeto educativo, partindo de sua potência intrínseca de auxiliar na construção de um ser liberto e de direitos. Neste sentido, as perguntas centrais deste trabalho foram: •

Como as experiências das crianças na cidade podem ser uma estratégia educativa de formação de sujeitos?

Em que medida a configuração urbana possibilita a sensação de pertencimento e aponta possibilidades de estratégias educacionais?

Como a cidade contribui no despertar das crianças para a importância de seu papel cidadão e de ser de direitos?

Como se dão as relações de aprendizagem entre a sala de aula e a cidade?

Para isso, realizei uma pesquisa de abordagem qualitativa caracterizada enquanto pesquisa-ação, que, segundo Severino (2007, p. 120), “é aquela que, além de compreender, visa intervir na situação, com vistas a modificá-la. O conhecimento visado articula-se a uma finalidade intencional de alteração da situação pesquisada.” Dessa forma, propus, junto com o coletivo Co-Criança, com o qual o trabalho foi desenvolvido, práticas e oficinas que buscavam levar a uma melhora na condição do espaço urbano, bem como na percepção de pertencimento à sociedade das crianças, relacionada ao direito à cidade e à sua noção educacional de cidadania, fortalecendo o território da criança na cidade. É também importante destacar que Oliveira (2010) afirma que, para uma pesquisa-ação, é fundamental a relação com um grupo social e a resolução de um


63 problema coletivo, envolvendo pesquisadores e participantes de modo cooperativo e participativo. Esse aspecto foi primordial para meu trabalho, que buscou dialogar com as questões de um grupo social muito específico, as crianças periféricas, sempre em coação com elas, visando resolver uma de suas questões principais: a carência de espaços para brincar, o qual me possibilitou entender suas questões com a cidade e como isso influencia em suas concepções cidadãs. Esta pesquisa foi realizada em um Centro de Crianças e Adolescentes (CCA) da cidade de São Paulo, localizado no Jardim Elisa Maria, na zona norte da cidade, que tem como pressuposto ressignificar as vivências dessas crianças e criar experiências de desenvolvimento de autonomia e cidadania enquanto prevenção de risco. Lá, foi possível olhar para crianças que vivem em um bairro com graves questões urbanas e, a partir da metodologia elaborada pelo grupo Co-Criança, do qual participo, em parceria com o CCA e o educador Bruno César, perceber como as intervenções de mudança no território, propostas em co-ação com as crianças, influenciam em sua relação, vivência e interação com a cidade e o que isso pode ensinar a elas. É importante destacar o fato de se tratar de um espaço de educação não formal o que, na minha visão, permite maior liberdade de atuação para pensar questões que não se limitam aos conteúdos escolares– ainda que entenda que o espaço institucional formal não devesse se limitar a tal –, podendo trabalhar questões como autonomia e cidadania, essenciais para a formação integral do sujeito e que, ao meu ver, foram fundamentais para minha pesquisa e para a formação, senão de uma cidade, de um bairro educador. Partindo-se das questões colocadas e apontadas na escala dos bairros e dos espaços cotidianos, buscou-se atingir aspectos mais amplos e temas comuns às crianças em suas relações com as cidades de modo geral. As observações foram realizadas semanalmente, ao longo de seis meses, com duração aproximada de 3/4 horas, além das atividades anteriores desenvolvidas com o coletivo Co-Criança por quase um ano. Esse olhar tinha o objetivo de perceber a cidade enquanto sala de aula ampliada, isto é, investigar as relações de aprendizagem


64 entre a sala de aula e a cidade a partir da compreensão das diferentes culturas e do estabelecimento de uma nova relação com o urbano. Durante a realização da pesquisa, utilizei como subsídio para a coleta de dados alguns instrumentos, a começar pela observação, que permite uma aproximação direta do contexto e dos acontecimentos ali vividos e experienciados, sendo possível, então, apreender as relações e a realidade no qual se inseriu minha pesquisa. Essa ferramenta foi essencial para a posterior sistematização dos dados coletados que permitiram a obtenção mais próxima de fatos daquela realidade. Acredito que foi fundamental para perceber as crianças em seus meios e poder observar suas interações. Fiz uso do que Oliveira (2010) e Marconi; Lakatos (2003) chamam de observação participante, que “consiste na participação real do pesquisador com a comunidade ou grupo. Ele se incorpora ao grupo, confunde-se com ele” (MARCONI; LAKATOS, 2003, p. 194). Para mim, o contato direto com o grupo foi fundamental para obter informações sobre a realidade dos atores sociais em seu próprio contexto, afinal, é essencialmente essa relação com o contexto que me interessa. Durante minhas observações, utilizei notas de campo, buscando registrar um pouco da vida que ali ocorre, estabelecendo relações entre as interações criançacidade (MÁXIMO-ESTEVES, 2008); diário, reproduzindo as vivências com maior exatidão a fim de permitir que se perceba os sentimentos, emoções e quaisquer reações que tenham ocorrido; fotografias e vídeos27; e documentos produzidos pelas crianças durante as oficinas. As manifestações infantis analisadas “[...] nunca são utilizadas instrumentalmente, como ilustração, mas em seu caráter de realidade específica, que através de vários mecanismos ativados pela interpretação permite acessos iluminadores a essa outra realidade, a urbana” (GORELIK, 2014, p. 12). Em outros momentos também recorri a entrevistas e conversas com os alunos e com o educador Bruno, buscando entender suas percepções do espaço em que vivem e o que sentem e percebem com as mudanças construídas, visando a compreensão de sua noção cidadã e de pertencimento, bem como se a cidade entorno ajuda ou não a tal.

27

Com relação ao direito de imagem das crianças, foi conversado com os pais e foi autorizada a realização de fotografias e filmagens.


65 Ao considerar as crianças enquanto sujeitos de direitos, suas falas tornamse essenciais para conhecer suas culturas e construções de mundo. Assim, ouvi-las, além de ser um aspecto fundamental dentro da consideração de seus papéis sociais, mostra-se também como um reconhecimento delas enquanto cidadãs. [...] Conhecer as crianças a partir delas mesmas e através de suas falas nos possibilita acessar e interpretar seus mundos e modos de vida, que muito se distinguem dos adultos. Seus olhares sobre determinados assuntos ou aspectos nos permitem revelar fenômenos sociais ocultos aos adultos, que carregam vivências, vícios e modos de encarar a realidade, muitas vezes, contaminado pelo pessimismo e pela rigidez imposta pelo mundo urbano. Dessa forma, a criança é capaz de revelar aquilo que o adulto desaprendeu ou deixou de ver (VICENTE, 2018, p. 39).

Vale ainda ressaltar que, durante a presente pesquisa, as crianças foram encaradas enquanto participantes dela, e não apenas objetos de estudo, reconhecendo, assim, suas experiências e suas capacidades de decisão e suposição. A participação das crianças em pesquisas pressupõe mudar a ênfase de métodos e tópicos. Reconhecer as crianças como co-pesquisadoras ao invés de apenas objetos de pesquisa envolve aceitar que as crianças podem ‘falar’ por si mesmas e relatar pontos de vista e experiências válidos. (ALDERSON, 2008, p. 278 apud FARIAS; MULLER, 2017, p. 264).

Em especial com as crianças, busquei realizar entrevistas informais (MÁXIMO-ESTEVES, 2008), que se aproximassem das conversações cotidianas, apesar da intencionalidade, para que elas pudessem responder da forma mais natural e espontânea, desvelando seus pontos de vista. Também realizei análise de documentos relacionados ao contexto, seja do CCA mais especificamente, seja da Brasilândia, como por exemplo o plano regional da subprefeitura. Meu objetivo com esses documentos foi entender com maior profundidade a realidade na qual estão inseridas as crianças com as quais venho pesquisando. Por fim, apesar da importância de todos os outros instrumentos, meu principal recurso durante a pesquisa foram oficinas de co-criação, co-ação e co-reflexão com as crianças do CCA. 3.1 As oficinas – metodologia Co-Criança


66 Faz falta estarmos convencidos de que as crianças tem coisas para nos dizer e dar, e são diferentes das que sabemos e somos capazes de fazer e que, portanto, vale a pena deixá-los expressar o que pensam de verdade. Para fazer isso, tem de se ajudar as crianças a libertar-se dos estereótipos, das respostas óbvias e triviais [...]. Tem-se que estimular às crianças a atrever-se, a desejar, a inventar e, então, surgirão suas ideias, suas propostas, suas contribuições. Finalmente, tem que se compreender as crianças indo para além da aparente simplicidade de suas propostas. Então estas ideias nos permitirão não somente ter em conta as exigências das crianças, senão fazer que seja melhor a cidade de todos (TONUCCI, 2015, p. 59-60)28.

O trecho apresentado acima reflete de forma direta no maior e mais potente instrumento de observação e ação da presente pesquisa: a realização de oficinas, desenvolvidas metodologicamente pelo grupo Co-Criança. Elas envolvem a co-criação e são lúdicas, com a finalidade de fazer as crianças sentirem-se à vontade para se expressar e auxiliá-las a desenvolver e organizar uma opinião crítica a respeito do espaço em que vivem, nos permitindo entender sua visão sobre esses espaços e sua percepção enquanto cidadãs. As oficinas, realizadas conjuntamente com as crianças, se deram por meio de diferentes estratégias. Foram utilizados jogos lúdicos para entender a percepção espacial das crianças e a realidade do bairro; percursos pelo bairro, passando por possíveis áreas de intervenção com maiores potencialidades e deficiências, ouvindo as opiniões e desejos das crianças; desenhos que expressassem sonhos e desejos para o local; e atividades de retorno à comunidade, onde as crianças sentissem-se protagonistas e pertencentes àquele espaço, conscientizando também outras pessoas. As oficinas partiram da intenção de exploração do universo infantil quanto aos conhecimentos e saberes adquiridos e construídos por elas em suas vivências e experiências nos espaços públicos cotidianos. Este marco metodológico de construir o conhecimento junto com a comunidade pesquisada rompe com a hierarquia epistêmica entre quem investiga e

28

Hace falta estar convencidos de que los niños tienen cosas para decirnos y darnos, y son diferentes de las que sabemos y somos capaces de hacer los adultos y que, por tanto, vale la pena dejarlos expresar lo que piensan de verdad. Para hacer esto hay que ayudar a los niños a liberarse de los estereotipos, de las respuestas obvias y triviales […]. Hay que estimular a los niños a atreverse, a desear, a inventar, y entonces surgirán sus ideas, sus propuestas, sus aportes. Finalmente, hay que saber comprender a los niños, yendo más allá de la aparente simpleza de sus propuestas. Entonces esas ideas nos permitirán no sólo tener en cuenta las exigencias de los niños, sino hacer que sea mejor la ciudad de todos.


67 quem é investigado. Neste sentido, a ação comunicativa, que visa o entendimento, implica a busca de compreensão dos três mundos – social, objetivo e subjetivo – cuja totalidade de relações e vivência nestes e entre estes estabelecida corresponde ao mundo da vida. As oficinas colocam em evidência cinco aspectos que o grupo Co-Criança considera importante: Diálogo, Cooperação, Educação Socioambiental, Autonomia e Liberdade para tornar-se um projeto colaborativo que possa devolver o protagonismo às crianças enquanto agentes, usuárias e transformadoras do espaço. A partir desses princípio, seja na escola, nas praças, nos parques, nas ruas, no campo ou na cidade, a criança é escutada e olhada de forma igualitária, respeitosa e consciente. A escolha em trabalhar, inicialmente, as questões da cidade a partir dos elementos existentes nos bairros fez-se por acreditar ser esta a principal escala urbana vivenciada pelas crianças, onde se estabelecem seus contatos mais familiares e diários. A partir dessa leitura, foi possível ampliar as discussões, buscando uma aproximação com a cidade e trazendo novos temas a serem investigados pelas crianças. As oficinas foram divididas em duas etapas de abordagem: uma de investigação e exploração, que diz respeito ao conhecimento do mundo dessas crianças e da sua visão sobre ele; e outra de desejos e projetos, que diz respeito à aproximação dos desejos das crianças para os espaços que utilizam bem como à sua participação na transformação urbana, a partir de sua concepção como sujeitos ativos. Apesar do raciocínio das duas etapas de abordagem, é importante destacar que este foi feito para fins de análise, não havendo necessariamente uma divisão rígida entre elas, podendo, inclusive, haver intersecções. A lógica de encadeamento das oficinas partiu de uma unidade menor, a vizinhança, o bairro, até chegar na escala da cidade. Esta escolha está relacionada com a ideia apresentada de trabalhar as questões da cidade a partir dos elementos existentes no bairro, mais próximo do cotidiano e das experiências das crianças. Assim, a partir dessa primeira leitura mais local é possível ampliar as noções pensando, aqui, na escala da cidade. Como diz Paulo Freire Antes de tornar-me um cidadão do mundo, fui e sou um cidadão do Recife, a que cheguei a partir de meu quintal, no bairro da Casa Amarela.


68 Quanto mais enraizado na minha localidade, tanto mais possibilidades tenho de me espraiar, me mundializar. Ninguém se torna local a partir do universal. O caminho existencial é inverso (1995, p. 25).

Dessa forma, foram realizadas 10 oficinas, resumidamente apresentadas abaixo. É importante dizer que foi feito um recorte: dentre todas as oficinas realizadas ao longo de todo o processo do grupo de extensão, selecionei aquelas que faziam sentido para esta análise e adicionei as que desenvolvi por conta própria para me auxiliarem a responder as perguntas propostas. Oficina 1: consistiu em uma primeira aproximação para ouvir as crianças. Ocorreu a apresentação de todos por meio de crachás escritos por cada um com informações sobre si. Em seguida, com um jogo de tabuleiro criado especificamente para aquela região, buscou-se entender o olhar das crianças sobre o lugar, levantando em conjunto as principais problemáticas e estimulando a co-criação de soluções. Caracterizou-se, então, por um mapeamento lúdico dos espaços com maior potencial de intervenção. Oficina 2: consistiu em reconhecer o espaço e percorrê-lo com um olhar diferente e mais atento, estimulando a observação, a imaginação e a capacidade de pensar e projetar a paisagem desejada para o local. Iniciou-se com uma caminhada pelo espaço, chegando ao lugar que se quer transformar, onde as crianças foram convidadas a fazer dois desenhos: um de observação da paisagem e outro com o que gostariam que tivesse lá. Percorrendo espaços com potencial, as crianças imaginaram as futuras possibilidades. Foi um primeiro contato com aquilo que as crianças previam para o lugar. Oficina 3: consistiu em elaborar as primeiras propostas conjuntas para o local, integrando as ideias e os elementos criados pelas crianças. Ocorreu uma retomada daquilo que já havia sido vivenciado e foram apresentadas as primeiras ideias que as facilitadoras puderam tirar para o lugar, questionando-as com as crianças. Foram retomados os desenhos feitos na oficina anterior, os quais podiam ser explicados pelos autores. Em seguida, as crianças foram convidadas a, em grupos, alcançar uma proposta para realizar uma intervenção no espaço, trabalhando sobre maquetes. Após a escolha do local, as crianças brincavam de projetar as primeiras propostas, em cima das maquetes.


69 Oficina 4: consistiu em mapear e ajudar as crianças a enxergarem os recursos possíveis e existentes para a reforma, por meio da dinâmica da Fluxonomia (baseada em 4 dimensões: social, ambiental, cultural e econômica), bem como pensar nas possibilidades de apresentar o projeto para a comunidade. Oficina 5: consistiu em uma introdução ao processo de levantar recursos. O objetivo era que as crianças pudessem entender os trâmites necessários para levantamento de verba e pudessem se preparar para conversar com a autoridade que poderia ajudar a tal. Pretendia-se embasar e praticar a argumentação por meio da ludicidade. Oficina 6: consistiu em auxiliar as crianças no processo de se aprontarem para iniciar o contato com as autoridades locais, que precisavam ser acionadas para a efetiva revitalização da praça; bem como a conversa efetiva no gabinete da subprefeitura. Oficina 7: consistiu em conseguir levantar um nome para a praça, colocando as crianças como protagonistas dessa ação e, partindo do nome, fazer com que elas sentissem que esse espaço poderia ser delas. Essa escolha foi feita por meio de um jogo de “stop”, que também permitia perceber visões que as crianças têm sobre os espaços. Oficina 8: consistiu na realização da festa na praça. Objetivou-se que as crianças pudessem apresentar esse espaço, como o percebiam e o projeto que vinha sendo desenvolvido para a comunidade. Queria-se que fosse possível observar como se dava a relação com esse espaço em uma experiência menos formal bem como que toda a comunidade pudesse também se envolver. Oficina 9: consistiu em entender os lugares os quais as crianças mais gostam de brincar. Queria-se conhecer, através dos desenhos e das falas, a representação das crianças sobre os espaços urbanos e como esses espaços livres públicos aparecem nas brincadeiras e nas sensações cotidianas. Oficina 10: consistiu em conhecer os olhares e afetos das crianças sobre os bairros onde moram e vivenciam suas atividades cotidianas por meio de fotografia dos lugares que gostam no bairro. Queria-se, então, explorar, observar, vivenciar e


70 registrar o bairro através de fotografias e desenhos, partindo daquilo que era importante para as crianças. Vale dizer, quase como uma conclusão, que, partindo da perspectiva da presente pesquisa, a metodologia se faz fundamental para apreender os objetivos propostos. Uma vez que a grande ênfase da metodologia se dá na cidade, podemos entendê-la, então, como uma sala de aula ampliada. Assim, a metodologia se faz fundamental e já se inicia enquanto resposta para as questões apresentadas.

3.2 Caracterização institucional A fim de olhar para o contexto da pesquisa e não cair no perigo de uma única história da infância, se faz importante a caracterização do distrito, do bairro e da instituição de ensino das crianças. Entendendo seu meio social e urbano e o que eles possibilitam ou não, a análise aqui proposta bem como a noção dessa infância pode ser construída de forma mais rica e complexa. 3.2.1 A Brasilândia e o Jardim Elisa Maria O Jardim Elisa Maria é um bairro na zona Norte de São Paulo e faz parte da subprefeitura da Brasilândia e Freguesia do Ó, a qual conta com

Figura 1: Localização Brasilândia no município Fonte: produção própria

do

distrito

407.215 habitantes de acordo com o Censo de 2010. O distrito, desde a década de 1940, veio se transformando em alternativa para moradia das classes mais carentes, que buscavam trabalho em outras regiões da cidade. “Até hoje esta região possui grande número de habitações precárias, localizadas, em sua maioria, em áreas sujeitas a risco” (SÃO PAULO, 2016, p. 5). Grande parte da Brasilândia apresenta severas restrições à ocupação urbana em decorrência do relevo acidentado, com altas declividades, solos suscetíveis à erosão, matacões e cabeceiras de drenagem. Apesar disso, a região viveu a

da


71 implantação de loteamentos clandestinos nas encostas dos morros e fundos de vale, resultando em uma ocupação urbana inadequada com graus diversos de risco geológico e geotécnico. A numerosa ocupação dos morros do distrito aumenta o grau de impermeabilidade do território, acelerando o escoamento das águas em direção aos córregos e gerando graves problemas de alagamento. Pelo Plano Diretor Estratégico de São Paulo de 201429 a região, de modo geral, está definida enquanto uma Zona Especial de Interesse Social30 I (ZEIS 1), caracterizada pela presença de favelas, loteamentos irregulares, empreendimentos habitacionais de interesse social e assentamentos habitacionais populares, nos quais podem ser feitas intervenções de recuperação urbanística, regularização fundiária e produção e manutenção de habitações de interesse social. Essa zona tem como objetivo urbanístico manter a população moradora e promover sua regularização fundiária. As ZEIS ocupam 32,4% do território da Brasilândia e existem na subprefeitura 6.861 moradores em situação de risco, a maioria deles, 95,53%, no distrito estudado. É importante destacar que é uma das regiões com a população etária mais jovem da cidade de São Paulo, sendo, na Brasilândia, o percentual de jovens menores de 14 anos 23,1%, o que é superior ao encontrado no município, 20,8%. O percentual de jovens no distrito é de 27,5%. Além disso, possui IDH de 0,765, inferior à média do município (0,805) e apresenta uma enorme carência de infraestrutura de lazer. Quase metade da população da subprefeitura (46%) se encontra distante de um equipamento de cultura, sendo que, na Brasilândia, esse número chega a 53,43%.

29

O Plano diretor Estratégico é uma lei municipal que orienta o desenvolvimento e o crescimento da cidade até 2030. Elaborado com a participação da sociedade, o PDE direciona as ações dos produtores do espaço urbano, públicos ou privados, para que o desenvolvimento da cidade seja feito de forma planejada e atenda às necessidades coletivas de toda a população, visando garantir uma cidade mais moderna, equilibrada, inclusiva, ambientalmente responsável, produtiva e, sobretudo, com qualidade de vida. A nova administração municipal deve regulamentar alguns instrumentos urbanísticos previstos e rever outros vigentes, de forma a tornar São Paulo mais aderente à cidade real pré-existente e mais atrativa a atividades econômicas que reforcem seu perfil de cidade global, e à condição da 3ª maior metrópole do mundo 30 De acordo com o PDE, as ZEIS tem os objetivos de incorporar a cidade clandestina à cidade legal, reconhecer a diversidade local no processo de desenvolvimento urbano, estender o direito à cidade e à cidadania, associar desenvolvimento urbano à gestão participativa, estimular a produção de Habitação de Interesse Social (HIS), estimular a regularização fundiária, estimular a ampliação da oferta de serviços e equipamentos urbanos. Assim, podem ser entendidos enquanto zonas de fragilidade social.


72 Abaixo seguem dois mapas retirados de documento da Prefeitura de São Paulo, que ilustram e quantificam a falta de equipamentos públicos na subprefeitura, bem como a grande quantidade de crianças menores que 14 anos que vivem na região.

Figura 2: mapa da porcentagem de incidência de crianças no território Fonte: DatSub, caderno da subprefeitura

Os

espaços

públicos

da

Figura 3: mapa da porcentagem de acesso a parques, equipamentos de esporte e cultura Fonte: DatSub, caderno da subprefeitura

região

também

possuem

pouquíssima

qualificação: as calçadas são estreitas e os pedestres disputam espaço com os carros estacionados, lixo, postes e casas, que algumas vezes a ocupam toda. A Brasilândia possui quase a mesma população que a Islândia (278 mil pessoas), porém não conta com nenhum parque público. Os poucos espaços livres públicos restantes sofrem com o descaso do poder público, que não realiza satisfatoriamente a coleta de lixo nem a manutenção adequada, resultando em sua gradual degradação. Ainda assim, a comunidade, por vezes, organiza-se de modo a realizar a própria coleta de lixo e a manutenção de alguns espaços, como é o caso da organização Nossa Vila Limpa, que atuava na região da Brasilândia. A região é carente de infraestruturas de lazer, como apresentado no mapa acima, fato que impulsiona as crianças a ocuparem espaços muitas vezes perigosos e insalubres, enquanto seus espaços livres públicos encontram-se subutilizados.


73 Nesse contexto, as crianças também saem prejudicadas, sem espaços que possibilitem seu brincar, uma das maiores potencialidades da infância. Acabam apropriando-se e ampliando a dimensão das ruas, que se tornam locais de convivências e trocas. Entretanto, ao contrário de ser a apropriação desejada de uma rua ativa, voltada para os pedestres e que promova a relação com a cidade, acaba por ser o que resta para as crianças, pois essas ruas não são e nunca foram projetadas para serem seguras para elas, tendo como prioridade os carros. Olhando para o caderno de proposta do Plano Regional da subprefeitura31 trabalhada, fica clara a carência de infraestrutura que promova uma conexão entre as localidades, seja ela de mobilidade local ou de mobilidade urbana como um todo: “O sistema viário é configurado por vias estruturais que cortam o território no sentido nortesul e confluem para a Marginal Tietê. São poucas e precárias as vias que fazem a ligação leste-oeste” (2016, p. 81). Sob o ponto de vista territorial, principalmente na Brasilândia, a fragmentação do tecido viário, resultante da ocupação desordenada em meio físico acidentado, dificulta a conexão leste-oeste e a integração com as subprefeituras vizinhas. A descontinuidade do sistema viário prejudica também a rede de transporte coletivo, tornando-a precária e de baixa capacidade (2016, p. 86).

A distância do centro e a má articulação do transporte público configuram uma barreira física que isola as crianças da Brasilândia e, em especial, do Jardim Elisa Maria, de outras realidades, limitando-as ao seu bairro. Assim, mesmo espaços considerados perigosos e inadequados para crianças são recriados pela imaginação e tornam-se palco de diversão e de brincadeiras. Essas crianças acabam mais abertas àquilo que a cidade oferece e são capazes de enxergar potencialidades onde o olhar De acordo com a prefeitura, os “Planos Regionais são instrumentos de planejamento e gestão da política urbana que têm como objetivo detalhar as diretrizes do Plano Diretor Estratégico no âmbito territorial de cada subprefeitura, articulando as políticas setoriais e complementando as questões urbanísticoambientais em seus aspectos físicos e territoriais. (...) Os Planos Regionais podem indicar áreas com maior demanda por equipamentos sociais, áreas verdes e parques; propor melhores conexões entre as áreas da cidade, os equipamentos públicos e as ciclovias; propor intervenções nos espaços públicos, articulandoos aos equipamentos existentes e às ações públicas previstas no território; propor a qualificação de ruas e praças, criando melhores condições de circulação, acessibilidade, permanência e uso” (SÃO PAULO, s/d, s/p). 31


74 adulto vê apenas problemas. É no espaço público que acontece o desenvolvimento motor, social e psíquico dessas crianças Também são restritas na Brasilândia as oportunidades de emprego e o uso do solo reflete essa carência: apenas 4% das áreas construídas não se destinam ao uso residencial. A violência atinge parâmetros elevados, superiores aos do Município. Em 2013, foram 20,19 homicídios por 100 mil habitantes, enquanto em São Paulo esse número é de 14,17 homicídios por 100 mil habitantes. “Esse quadro se reflete no Índice Paulista de Vulnerabilidade Social - IPVS. Este índice na Brasilândia é superior ao encontrado no município e muito maior ao da Freguesia do Ó. Na Brasilândia 29,8% da população está nos grupos de maior vulnerabilidade” (SÃO PAULO, 2016, p. 8). Essas questões sociais graves que marcam a vida dessas crianças são realçados no Mapa da Desigualdade da Primeira Infância32. Essa metodologia, elaborada pela Rede Nossa São Paulo, vem sendo aplicada há seis anos na cidade de São Paulo, utilizando-se de 28 indicadores municipais para identificar oferta de equipamentos e serviços públicos nos 96 distritos da capital. Os indicadores contemplam áreas como educação, saúde, assistência social, meio ambiente, direitos humanos, entre outras. Vale destacar que o mapa trata de crianças de 0 a 6 anos, faixa etária que não compreende o público pesquisado, entretanto, reflete muito de sua realidade. De acordo com o estudo, os piores distritos são aqueles que aparecem mais vezes entre os 30 piores no conjunto dos 28 indicadores utilizados no Mapa da Primeira Infância. Nesse contexto, a Brasilândia encontra-se como o quarto pior distrito do município, tendo aparecido 16 vezes (rede de esgoto; crianças de 0-5 anos residentes em áreas de vulnerabilidade social; distribuição territorial de favelas; domicílios com crianças de 0-5 anos com banheiro de uso exclusivo dos moradores; domicílios particulares com crianças de 0-5 anos com renda per capta de 1/8 a ½ salário mínimo; homicídios da população feminina; iluminação pública; serviço de coleta de lixo doméstico; baixo peso ao nascer; gravidez na adolescência; horas de atendimento de

32

Com o desenvolvimento do mapa, esperava-se sensibilizar gestores públicos, lideranças, organizações e a sociedade em geral para aquilo que os indicadores revelam: a cidade precisa cuidar melhor de suas crianças: 500 mil crianças da capital estão nos 26 piores distritos em termos de serviços.


75 pediatras; mortalidade infantil (até um ano); mortalidade infantil (até 5 anos); mortalidade materna; pré-natal insuficiente; tempo médio de agendamento de consulta pediátrica) entre os 30 piores distritos para um total de 28 ocorrências possíveis.

3.2.2 O CCA Elisa Maria Por fim, com vistas a entender como se organiza o espaço institucional observado e sua relação com o entorno, fundamental para minha pesquisa, apresento a seguir a caracterização da instituição de ensino objeto da pesquisa. O Centro de Crianças e Adolescentes (CCA) é uma instituição de contraturno escolar vinculada à Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS)33 de São Paulo e, segundo a prefeitura, caracteriza-se pelo desenvolvimento de atividades com crianças e adolescentes de 6 a 14 anos e onze meses, tendo por foco a constituição de um espaço de convivência a partir dos interesses, demandas e potencialidades dessa faixa etária. O CCA tem uma proposta de atuação que busca proporcionar um ambiente seguro e criar oportunidades de desenvolvimento e transformação. As intervenções devem ser pautadas em experiências lúdicas, culturais e esportivas como formas de expressão, interação, aprendizagem, sociabilidade e proteção social. Deve atender crianças e adolescentes com carências, retiradas do trabalho infantil e/ou submetidas a outras violações de direitos, com atividades que contribuam para ressignificar vivências de isolamento, bem como propiciar experiências favorecedoras do desenvolvimento de sociabilidades e prevenção de situações de risco social. Ao oferecer ferramentas que despertem interesses e ao colocá-los em contato com várias formas de expressão cultural, o CCA incentiva os jovens a apropriarem-se de suas vidas e projetarem seu futuro.

33

Os princípios e diretrizes devem assegurar garantias sociais, como Segurança de Acolhida; Segurança de Sobrevivência e Renda; Segurança de Convívio e Convivência. Estão voltadas para o atendimento de todos, pessoas de qualquer idade ou famílias que se encontram em situação de privação, vitimização, exploração, vulnerabilidade, exclusão pela pobreza, risco pessoal e social.


76 Assim, de forma geral, objetiva oferecer proteção social à criança e ao adolescente em situação de vulnerabilidade e risco, por meio do desenvolvimento de suas potencialidades, bem como favorecer aquisições para a conquista da autonomia, protagonismo e cidadania, mediante o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários. Portanto, é um espaço de observação muito interessante pra a pesquisa por, mesmo que indiretamente, visar transformar o bairro em algo que se aproxime mais de um bairro educador, promovendo a cidadania e o desenvolvimento integral da comunidade. Isto é, são atividades socioculturais e educacionais no contraturno escolar que oportunizam a conquista da autonomia, cidadania e fortalecem vínculos familiares e comunitário, o que é fundamental para o que foi aqui proposto. Por buscar esses objetivos, o CCA faz maior uso da cidade, acreditando que ela também é importante para a conquista dessas qualidades. Isso é feito por meio de ferramentas e atividades que permitem à criança e ao adolescente desenvolverem a expressão oral e escrita, a expressão artística e a criatividade, a utilização da tecnologia favorecendo a inclusão digital, a prática de variadas modalidades esportivas descobrindo e aprimorando suas habilidades físicas e, acima de tudo, se conscientizando da importância do trabalho em equipe e de sua responsabilidade pessoal na realização de seus sonhos. Os CCA, de modo geral, inserem-se nas periferias da cidade, justamente por serem regiões mais carentes nas quais é muito significativa e urgente a necessidade de acreditar na pessoa como sujeito de direitos, independentemente da idade, fortalecendo sua autonomia para a efetivação da cidadania, procurando quebrar as paredes invisíveis que separam as periferias de outros bairros da cidade. Assim, entendo o CCA como um importante complemento ao trabalho escolar e um espaço de referência para o desenvolvimento de ações sócio educativas com crianças e adolescentes, promovendo seu protagonismo e atuação na sociedade de forma ética.


77 4. Análise de dados A título de análise de dados, se faz importante olhar para os objetivos da presente pesquisa, os quais partiam da vontade de recuperar e ressignificar os espaços livres e o lugar e protagonismo da infância na cidade a partir do olhar das crianças habitantes do Jardim Elisa Maria, na Brasilândia, periferia de São Paulo. Assim, entendendo as ruas, praças e todos os espaços públicos urbanos como educativos, entender e refletir sobre como a cidade, enquanto pedagogia, possibilita a aquisição de autonomia, da noção de cidadania e a apropriação da noção do direito à cidade. Isto é, pensar a cidade enquanto um projeto educativo, partindo de sua potência intrínseca de auxiliar na construção de um ser liberto e de direitos. Dessa forma, enquanto grande objetivo, queria-se olhar para a relação entre a cidade e a sala de aula e pensar como esses espaços públicos podem ser importantes e devem ser utilizados na formação educacional das crianças. Assim, as oficinas e observações realizadas com e pelas crianças intencionavam a exploração do universo infantil quanto aos seus conhecimentos e saberes e como estes haviam sido adquiridos e construídos em suas vivências e experiências nos espaços cotidianos. Busquei, então, olhar para a questão dos espaços livres públicos a partir da visão das crianças e da percepção delas sobre a cidade e, assim, pensar como esses elementos podem ser trabalhados, direta ou indiretamente, pelo campo da pedagogia e da educação, com a multiplicidade de temas que essa questão abarca. Sendo assim, elegemos duas grandes categorias de análise: Com olhos de criança, na qual através da perspectiva da criança é possível entender tanto sua leitura do espaço quanto seus desejos de transformação; e Estratégias educacionais: relações entre a pedagogia e a cidade, na qual se faz possível pensar a cidade em sua dimensão educativa. Essas categorias foram discutidas e desdobradas em alguns subtítulos a seguir:

4.1 Com olhos de criança


78 Nessa primeira categoria, propõe-se levantar e investigar a temática dos espaços livres públicos no que diz respeito às questões e percepções manifestadas pelas crianças durante as oficinas propostas. Isto é, dentro dessa categoria, foram discutidas duas diferentes percepções notadas no desenvolvimento das oficinas com as crianças: aquilo que elas veem concretamente, isto é, sua percepção do espaço; e a projeção que fazem para aquele lugar, aquilo que imaginam e desejam enquanto um espaço para si. Cada uma dessas percepções contém elementos próprios, mas também dialogam diretamente, como pode-se acompanhar na análise que segue: 4.1.1 O que a criança viu: leitura dos espaços das infâncias urbanas Nesse primeiro momento, olhamos para as percepções das crianças acerca dos espaços urbanos: como elas os percebem e se relacionam com eles, o que eles transmitem para elas, como elas sentem-se neles. É um olhar para questões mais concretas, que já estão ali. Essa análise foi dividida em alguns subtítulos para direcionar o pensamento e a compreensão do leitor, uma vez que se acreditou, por ter uma grande quantidade de informações diferentes para a análise, que separá-las poderia ser mais interessante. 4.1.1.1 A relação com a cidade Dentro dessa primeira abordagem, foi possível perceber algumas coisas e a primeira delas foi a própria relação com a cidade. Neste primeiro subtítulo da análise, buscamos entender, então, como a criança sente e se relaciona com o espaço a sua volta. Conforme já discutido anteriormente, partimos da ideia de que o envolvimento com a cidade vai determinar a relação do indivíduo com o espaço urbano. Durante as minhas observações, fui percebendo que, para as crianças, essa relação também depende de como os adultos as veem e quais as oportunidades que o local – a cidade – vai oferecer para elas. Isto é, o contato com o urbano vai além do material, envolvendo emoções e memórias e invocando sensações de medo, segurança, familiaridade, estranhamento, possibilidades, afetos, histórias e desafios. As crianças


79 apresentam uma relação com os espaços que está muito ligada ao que elas sentem e podem fazer neles. Os afetos, as percepções e as relações estabelecidas por cada criança na cidade se faz de maneira única. Cada uma constitui sua própria infância e também sua própria cidade, que possui contornos pessoais. Isso pode ser visto, por exemplo, nos primeiros desenhos que as crianças fizeram, durante a Oficina 2, sobre aquilo que viam na praça.

Figura 4: desenho e percepção da Geovana sobre o que via na praça

Figura 6: desenho e percepção do Anderson sobre o que via na praça

Figura 5: desenho e percepção do Vinicius sobre o que via na praça

Figura 7: desenho e percepção da Sarah sobre o que via na praça


80 A partir dos desenhos apresentados, é possível ver que a percepção de cada uma sobre aquele espaço varia bastante. Na primeira imagem, vemos que a forma como a criança vê a praça está relacionada com a presença de lixo. O lixo a incomoda bastante e ocupa a maior parte do desenho, mas ainda é possível ver a presença de um brinquedo e uma árvore, além de um sol alegre. Já na terceira imagem, fica claro que a grande significância da praça está relacionada com a existência dos brinquedos, não importa tanto seu entorno ou demais mobiliários, são essenciais os brinquedos. Na segunda imagem, se destaca o grafite que existia em uma das paredes da praça. Aqui, se sobressai um fator bastante pessoal: para esta criança, a praça é representada pelo grafite. Em oposição à essa representação, vemos a última imagem, que apresenta a praça como um lugar pouco agradável. Ela representa o lixo, brinquedos quebrados, cocô e coloca o que o desenho anterior havia representado como o destaque da praça, o grafite, como um grande borrão escuro o qual chama de ‘pichamento’. Dessa forma, podemos perceber que cada criança constituiu sua própria praça, algumas mais agradáveis, com brinquedos e sol, outras muito menos, mostrando a representação pessoal que cada um constrói sobre a cidade. Também foi possível estabelecer essa relação a partir de contradições que apareceram no jogo de stop proposto na Oficina 7. Uma das categorias do jogo era “minha Eliza Maria é”, no qual as crianças deveriam colocar características do bairro. Nela, em um mesmo grupo, aparecem as palavras “limpa” e suja”, por exemplo, o que mostra que, entre as crianças desse grupo, diferentes visões sobre o mesmo espaço aparecem.

Figura 8: jogo de stop de um dos grupos


81 Mas, partindo desse pensamento, observando e convivendo com as crianças do CCA e percebendo sua relação com a cidade, foi possível entender que, apesar de todas as diferenças, elas sentem o espaço urbano enquanto um lugar no qual gostariam de estar. Nem sempre ele se apresenta adequado a tal, mas as crianças não o entendem como perigoso ou como um lugar que não deveria ser ocupado por elas e partilham o desejo de poder estar na cidade. Foi possível perceber, a partir de seus processos e produções, que os espaços não foram vistos como elementos estranhos e afastados, mas como algo que possibilitou uma experiência paisagística, especialmente em lugares mais familiares dos bairros onde moram e estudam. Essa relação fica bastante visível em muitas das falas das crianças sobre a praça, por exemplo: As pessoas acham que é só pra ficar de enfeite, mas não, é para as crianças se divertirem. É muito bom ficar aqui. Eu gosto bastante. O ruim dessa praça é que não tem muito brinquedo para fazer exercício. Aqui não dá pra brincar muito, mas dá pra aproveitar (DIÁRIO DE CAMPO, Oficina 2).

Ou, ainda, na Oficina 9, após terem realizado desenhos dos seus lugares preferidos de brincar, foram convidados a falar uma palavra sobre as experiências que o brincar nos lugares que haviam desenhado proporcionava. Como quase nenhum desenho representava um lugar privado, podemos usar essas sensações, que se referem a espaços públicos, para pensar na relação das crianças com a cidade. As palavras ditas por elas foram felicidade, alegria, amizade, amor, alegre, confiante, compaixão, união, paz, felicidade, paixão, amoroso, alegre, natural, energia, meio ambiente, liberdade, felicidade, brincadeira, imaginação, brinquedo (DIÁRIO DE CAMPO, Oficina 9).

É uma lista bastante positiva, que mostra que gostam de estar, ou, pelo menos, de brincar nesses espaços. Isto é, parece ser uma boa relação com a cidade. A falta de segurança nas cidades, que é lugar comum na fala de muitos adultos, como aponta Tonucci (2015), também pode ser percebida nas observações. Antes de começar as oficinas com as crianças, o grupo Co-Criança aplicou um pequeno


82 questionário com os pais34, no qual, além de pedir autorização para o uso da imagem das crianças, também perguntávamos aos pais aonde as crianças costumavam brincavam. Das 27 respostas recebidas, 24 (88,8%) mencionavam as casas e, dentre essas, 9 respostas, um terço do total (33,3%) colocavam apenas a casa como o lugar no qual as crianças brincavam. Esse medo dos pais, que, muitas vezes, acaba por afastar as crianças das ruas, também pode ser percebido na fala das crianças: W: - Minha mãe não deixa eu ir na pracinha (DIÁRIO DE CAMPO, Oficina 5).

Entretanto, não é essa a visão das crianças. A percepção infantil sobre a cidade é bastante distinta: elas praticamente não demonstram medos ou receios de estarem em áreas públicas, muito pelo contrário, clamam por isso, exibindo sentimentos bastante positivos sobre estar nesses espaços. Esse desejo por estar na cidade é perceptível na fala das crianças ao pedirem mais brinquedos nas praças e nos desenhos, onde remetem à cidade como o melhor lugar para brincar, aspecto que será mais discutido no subitem seguinte; ou ainda em seu fervoroso desejo por ter a aula na quadra da rua: A aula seria realizada fora da escola, em uma quadra pública próxima. Assim que o professor anunciou para a sala aonde seria a aula, a agitação foi instantânea. Todas as crianças comemoraram (DIÁRIO DE CAMPO, Observação 13/09/2018).

Tonucci (2015) defende que os adultos carregam uma imagem urbana muito mais tomada pelas fatalidades e aspectos negativos, enquanto as crianças têm uma percepção bastante diferente. Então, ao mesmo tempo em que os adultos respondem a esses eventos retirando as crianças das ruas, elas apontam para que se modifiquem as condições ambientais a fim de garantir sua presença nesses locais. A criança é mais aberta àquilo que a cidade oferece e é capaz de enxergar potencialidades onde o olhar adulto vê apenas problemas. Por isso, ela consegue se apropriar mais facilmente do espaço no qual vive.

34

Esse questionário pode ser encontrado no apêndice.


83 Outra percepção importante foi que a relação dessas crianças observadas com a cidade é muito diferente daquela observada nas áreas mais centrais: elas usam e vivem muito mais na cidade, fato que enfatizam em sua fala: Se não der para brincar aqui onde vai ser? Na rua passa carro e em casa não tem espaço. Essa é a dúvida da maioria das crianças do bairro. E quando elas encontram espaço, ou tem lixo ou está sendo usado para uso de drogas. (DIÁRIO DE CAMPO. Oficina 8).

O “aqui” da primeira frase se refere à praça, mostrando que elas entendem que ali, a praça, representante do espaço público, deve ser um espaço de brincar e estar por excelência. Da mesma forma, na segunda frase, dita por M., que narrava a peça, percebemos que os espaços que as crianças encontram para brincar, mesmo que não estejam aptos a isso, são espaço públicos, de uso de todos. Assim, partindo da vivência na Brasilândia, tivemos a percepção de que a criança na periferia se apropria mais das ruas e espaços públicos em seu bairro. É ali que acontece toda a sua infância e juventude, muitas vezes por não ter acesso a outros lugares e bairros, a criança da periferia só vive o mundo do seu bairro, que muitas vezes é carente de espaços de brincar de qualidade para atendê-las e, assim, aprendem a imaginar um mundo e se apropriam de tudo a sua volta como uma forma de diversão. Como resultado das cenas coletadas, constatou-se que, para essas crianças, a rua deixa de ser espaço estritamente de circulação e ganha maior dimensão, tornando-se espaço de convivência, troca e enfrentamento de adversidades. É nesse contexto que as crianças, com autonomia, tornam-se protagonistas do seu cotidiano, livres para subir, descer, correr e realizar, sozinhas, seus percursos diários, elas dominam as ruas que, por sua vez, não são e nunca foram projetadas para serem seguras para elas. No final do horário letivo no CCA, as crianças da turma que observei (9 a 11 anos) são dispensadas e vão embora sozinhas. São pouquíssimos os pais que vão buscá-las, ao contrário do que eu havia observado em outras experiências de estágio em escolas centrais. Isso mostra uma apropriação muito maior da cidade por essas crianças e também uma maior autonomia. Portanto, acredito que não é possível afirmar que todas as crianças estão perdendo seu espaço nas ruas e entrando para dentro de


84 casa. A cidade não olha para elas, mas elas continuam vendo as potencialidades que a cidade carrega. Assim, a criança consegue identificar o que enxerga e entende como bom na cidade, o que foi possível perceber durante a Oficina 10. As crianças foram convidadas a percorrer os espaços urbanos que gostavam no entorno do CCA e fotografar aquilo que consideravam bom naquele lugar:

Figura 9: algumas fotos tiradas pelas crianças daquilo que gostavam nos espaços

É possível perceber que elas valorizam espaços com brinquedos, com iluminação, com árvores, com grafites que embelezam os lugares, enfim, todas as características que constituem quase um consenso de qualidade. Mas, o que é interessante é que essas características lhes chamam mais atenção do que aquilo que é ruim, fazendo com que gostem de estar nesses espaços.


85 A cidade não parece refletir uma sociedade preocupada com a infância. Entretanto, apesar da cidade não se preocupar com ela, não é assim que a criança a vê. Podemos concluir, então, que a cidade se educa ao converter-se em educadora, conforme aponta Freire (1992). Precisando ensinar, ela se faz educadora. Ao fazer-se educadora, a cidade forma uma nova sociedade que a vê de outra forma e que, portanto, poderá também transformá-la.

4.1.1.2 A cidade como espaço de brincar Uma das minhas primeiras observações em relação à percepção das crianças sobre o espaço urbano é que elas consideram a cidade um espaço de brincar e é nela que vivem a maioria de suas experiências lúdicas. Na oficina 9, de reconhecimento dos lugares de brincar, foi possível perceber, através dos desenhos e das falas das crianças, que os espaços urbanos livres públicos aparecem como seus lugares preferidos de brincar. Os desenhos são uma forma de expressão e representam e refletem a interpretação que as crianças têm do mundo, bem como de seus sentimentos internos e, para isso, foi bastante interessante utilizá-los enquanto material de investigação para entender as representações de mundo que comunicam a partir da cidade vivenciada e interpretada pelos meninos e meninas. Na oficina 9, foi pedido às crianças que desenhassem o lugar no qual mais gostavam de brincar e, dos 23 desenhos realizados, apenas 4 não representavam espaços públicos, sendo esses quatro desenhos das próprias casas. Dessa forma, percebemos que mais de 80% das crianças da turma entendem espaços da cidade – e, por espaços da cidade, entendemos espaços públicos, e não privados – como os lugares nos quais mais gostam de brincar. Inclusive, em um dos desenhos, o autor escreveu: “sair de casa é bom”, como podemos ver na imagem 6.


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Figura 10: Desenho realizado por criança durante a oficina 9 expressando seu lugar preferido de brincar

Também vale destacar que sete dos desenhos mostravam praças como o lugar que mais gostavam de brincar e, dentre esses sete, quatro, mais da metade, representavam a praça que vem sendo trabalhada para reforma com a sala junto com o grupo Co-Criança.

Figura 11: Desenho realizado por criança na Oficina 9 expressando seu lugar preferido de brincar: a praça


87 Achei válido destacar a importância das praças para as crianças enquanto espaço de brincar (30% dos alunos desenharam praças) por serem espaços intrinsecamente urbanos e públicos. Mostra-se, implicitamente, um desejo e, de certa forma, até necessidade das crianças por esses espaços, uma vez que, após um ano de trabalho de conscientização e recuperação da praça, esse espaço já se apresentou, para uma quantidade razoável da sala (17,4%) como seu lugar favorito de brincar, a atividade mais potencial da infância e também um direito. Ao brincar, a criança, junto de seus pares, se apropria de questões ainda não internalizadas, como as do mundo adulto, internalizando também a cultura, as representações culturais, firmando sua autoimagem, desenvolvendo sua independência, trabalhando a simbolização e resolução de conflitos, entre outras conquistas. Assim, podemos, a partir das observações, entender o brincar também como uma experiência educacional potencializada pela cidade, na visão das crianças. Ao mesmo tempo, a criança, em seus desenhos, confirma o espaço público como lugar social por excelência, colocando-o como o lugar preferido de brincar. Isto é, é nele onde ocorrem suas trocas e suas primeiras significações. Portanto, é bastante relevante o fato dessas crianças terem apontado os espaços livres públicos das cidades como espaços de brincar, uma vez que é pelo brincar que a criança faz as primeiras interpretações e internalizações sociais e é também nos espaços da cidade que se dão as relações sociais. Então, aparece como importante para elas a relação com o mundo, apontada por Paulo Freire (2017) como fundamental. Ainda, de acordo com Lima (1989), o jogo e a brincadeira possibilitam a apropriação do espaço pela criança, que vai desenvolvendo seu conhecimento de mundo. Diante disso, parece quase natural que as crianças apontem esse convívio com a cidade como primordial para suas brincadeiras. Esse espaço diário de vivências vai construir inúmeras memórias e permitir muitas construções nas relações de pares, representação interpretativa e na convivência com os adultos por parte das crianças. Não é à toa que todos os desenhos vêm acompanhados de alguma fala que expressa a sensação da criança nesse lugar: nenhum espaço é um vazio, ele é preenchido de memórias e sentimentos. É possível perceber isso na imagem a seguir, no qual a criança desenha também como se sente ao


88 brincar, dando a entender que ele de fato entra na brincadeira, e sua imaginação parece real, bem como os desafios e as possibilidades potencializados pela cidade.

Figura 12: Desenho de criança expressando seus sentimentos ao brincar

Para além disso, também é bonito ver que as crianças enxergam o brincar como um direito seu: Um dos meninos estava desenhando para o cartaz de direito das crianças e me chamou para mostrar seu desenho, era um carro colorido. Eu: “O que vai significar esse desenho no cartaz?” Gustavo: “É as crianças brincando com ele” Passou um tempo e ele veio me perguntar o que mais poderia desenhar. Eu: “O que é direito das crianças pra você?” Gustavo: “É direito as crianças brincando” Eu: “Ah, legal! E do que você gosta de brincar?”


89 Gustavo: “Pega-pega, esconde-esconde” Eu: “E você não consegue desenhar essas coisas?” Gustavo: “Eu não” Eu: “Tá, e aonde você gosta de brincar?” Gustavo: “Na viela” Eu: “E a viela, você não consegue desenhar?” Gustavo: “Vou tentar!” Então ele desenhou uma das casas da viela, um relógio e escreveu crianças para sempre Eu: “E porque você acha que brincar é um direito das crianças?” Gustavo: “Porque elas têm que ser livres e brincar” (Diário de Campo, Observação 04/10/2018).

Dessa forma, reivindicam seu direito pelo brincar e o fazem em espaço públicos. É também interessante notar que a primeira proposta de educação fora da escola se deu pela implementação de parques infantis na cidade de São Paulo, mostrando, desde o início dessa discussão, a cidade como espaço de brincar por excelência, o que também exacerba sua condição educadora. Então, mesmo os espaços que são considerados, pelos adultos, perigosos e inadequados para as crianças são recriados pela imaginação delas e tornam-se espaços de diversão e de brincadeiras. Não à toa chegamos à esse mapa afetivo após as duas primeiras oficinas:

Figura 13: mapa afetivo desenvolvido pelo grupo Co-Criança a partir da atividades com as crianças


90 Ao designarem a cidade como espaço de brincar, teremos mais crianças nas ruas e demais áreas públicas, aumentando a visibilidade infantil e tornando a cidade mais segura e democrática, ideias defendidas por Tonucci (2015).

4.1.1.3 A cidade como um devir Apesar das crianças entenderem a cidade como um lugar de afetos e com muitas potências, como o brincar, logo nos primeiros contatos, nos quais se objetivava investigar e explorar como se dava a relação e a percepção das crianças com a cidade, elas expuseram seus imaginários e experiências urbanas, trazendo suas percepções e preferências, que confrontam e denunciam insatisfações com o contexto no qual estão inseridas. Mais uma vez, se faz importante destacar que não apenas as materialidades marcam as leituras das crianças sobre seus territórios cotidianos. Essa visão vem carregada de simbolismo e interpretações que perpassam problemas e questões apresentadas na região que não escapam à percepção infantil. Assim, durante o convívio com a sala, também foi possível perceber que, apesar de terem uma relação próxima com a cidade, as crianças também percebem inúmeros problemas e questões. A questão que mais vezes foi destacada foi a questão do lixo, tanto em falas quanto em representações das crianças, conforme apresentado abaixo: Eu vejo lixeiras, eu vejo lixo e só. Muito cachorro, uma lanchonete e muitas casas (DIÁRIO DE CAMPO, Oficina 1). Eu gostaria que fosse melhor, limpo, sem muita sujeira, sempre tem lixo. Muita gente joga papel de bala no chão (DIÁRIO DE CAMPO, Oficina 1). A praça da Rosa Alboni, ela é muito suja (DIÁRIO DE CAMPO, Oficina 2). - Nossa! Quanto lixo! - É, aqui está meio difícil de brincar mesmo. (...) A nossa praça passa por diversos problemas como falta de luz e limpeza. (DIÁRIO DE CAMPO, Oficina 8).


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Figura 14: Desenho de criança sobre o que vê na praça, o qual reforça a presença do lixo

Também percebem, como revelam os dados, de maneira quase unânime, a necessidade de equipamentos voltados para atender as demandas das crianças, principalmente aquelas relacionadas ao lazer e à brincadeira, ou a inadequação dos espaços, que se apresentam no uso cotidiano. Elas expressam desejos de melhorias e equipamentos novos, muitas vezes inexistentes35, bem como espaços nos quais possam brincar:

Ao colocar em discussão os elementos de atendimento às necessidades apresentadas pelas crianças – parquinhos, parque de diversão, campos de futebol, etc. – não se deseja pensar apenas nos locais especializados para essa faixa etária, mas também em lugares capazes de acolher esses usos e os demais cidadãos de modo não discriminatório. 35


92 Nessa praça fizemos uma dinâmica em que todos ficavam em roda e cada um falava uma coisa que queria que tivesse na praça. Houveram falas como: “plantas, banco, pinturas, limpeza e brinquedos” [...] “É muito bom ficar aqui. Eu gosto bastante. O ruim dessa praça é que não tem muito brinquedo para fazer exercício. Aqui não dá brincar muito, mas dá pra aproveitar” (DIÁRIO DE CAMPO, Oficina 2). “É muito engraçado, hoje em dia vocês falam que as crianças só ficam na internet, mas e nosso espaço para a gente brincar?” (DIÁRIO DE CAMPO, Oficina 8).

Elas clamam por espaços e possibilidades de brincar nesses espaços. Um dos alunos, na Oficina 2, ao ser convidado a fazer um desenho do espaço optou por escrever um texto que revela e sintetiza esses sentimentos:

Figura 15: texto de criança sobre a praça: “a praça da rosa Alboni ela é muito suja as pessoas não dão valor as pessoas acha que é só para ficar de enfeite mas não é pras crianças se diverti as pessoas não pensa nas crianças. Os brinquedos todos quebrados folhas de árvore caindo no chão. Eu queria que tivesse mais brinquedos mais pessoas se divertindo porque tem no mínimo 30 crianças porque ultimamente as crianças estão ficando triste e isso não é legal” (grifo nosso).


93 Mas, além disso, as crianças percebem outras questões na cidade, como a poluição dos rios: A aula seria realizada fora da escola, em uma quadra pública próxima. Pouco antes de saírem da sala, S. veio me falar: “a gente vai te mostrar o Rio Tietê que temos aqui”. Quando estávamos saindo do CCA muitas crianças vieram dizer que seriam meus seguranças, que iriam me proteger. Fomos andando do CCA até a quadra e passamos pelo suposto ‘Rio Tietê’, que era um córrego bastante poluído. Chegando nele, E. comentou: “Eu queria que essa água fosse limpa. ‘Nóis’ ia logo nadar aqui” (DIÁRIO DE CAMPO, 13/09/2018).

A partir dessa cena, é possível notar que as crianças possuem um imaginário sobre o que seria o ideal para esse espaço e conseguem prever as experiências que poderiam ter nesse local se ele estivesse em melhores condições, como, por exemplo, nadar. Elas, aparentemente, também percebem problemas de infraestrutura como a ausência de calçadas, o que faz com que precisem andar na rua, onde passa carro. Voltando da quadra para o CCA, o professor, Bruno, vendo que todas as crianças estavam no meio da rua disse alto: - Calçada!! M. respondeu: - Não tem calçada no Elisa Maria. (DIÁRIO DE CAMPO, 13/09/2018).

O automóvel vem, cada vez mais, ocupando os espaços anteriormente ocupados pelas pessoas, transformando-os em locais de passagem, e não de estar. As crianças do Elisa Maria até frequentam e usam as ruas, mas percebem a falta de qualidade desses espaços urbanos, reconhecendo também o perigo dos automóveis. Se não der para brincar aqui onde vai ser? Na rua passa carro e em casa não tem espaço (DIÁRIO DE CAMPO. Oficina 8).

A decisão das cidades atuais em privilegiar e construir políticas públicas baseadas no homem, adulto, trabalhador e, geralmente, proprietário e usuário de automóveis como meio de transporte prioritário (TONUCCI, 2015), afeta e agrava, cada vez mais, o quadro de degradação urbana em relação aos espaços e aos projetos destinados aos demais cidadãos, principalmente para aqueles com maiores carências e necessidade de interação com a cidade, como é o caso das crianças.


94 Os espaços públicos urbanos, quando não absorvem uma atenção especial com a questão da infância, podem ser locais de subordinação ao poder daqueles que efetivamente o constroem (LIMA, 1989). O poder daqueles que dirigem, por exemplo, se sobressai ao dos pedestres, o que parece estranho, uma vez que todos são pedestres, mas nem todos são motoristas. Essa questão compromete a liberdade das crianças nas áreas de uso público. Esse adultocentrismo, existente nas relações sociais de produção da cidade, é percebido também nas falas das crianças: a praça da Rosa Alboni, ela é muito suja, as pessoas não dão valor. As pessoas acham que é só pra ficar de enfeite, mas não, é para as crianças se divertirem. As pessoas não pensam nas crianças (DIÁRIO DE CAMPO, Oficina 2, grifo nosso).

As crianças demonstram sentir que não há uma preocupação do adulto com seus espaços de estar, lazer e brincar. Apontam também que o local que eles gostam de estar, a praça (público), não é valorizada por esse mesmo grupo que não pensa nelas. Para além do adultocentrismo, o Estado e as políticas públicas por ele determinadas também assumem papéis de grandes controladores e definidores das vivências das meninas e meninos, sobretudo na periferia, onde a carência e o descaso das classes dominantes é ainda maior. Pensando, a partir dessa relação de poder na construção dos espaços, também discutida por autores como Foucault (2014), Freire (2017a) e Harvey (2013), pode-se entender a materialização da sociedade nesses espaços. Essa diminuição da qualidade e, portanto, das ofertas oferecidas pelo espaço público interferem no desenvolvimento das crianças no que diz respeito à coletividade, à partilha, à solidariedade, às regras. Ao retirarmos áreas que deveriam ser de uso de todos, inclusive das crianças, limitamos a utilização da cidade e das manifestações que ela possibilita de maneira ampla, impossibilitando diferentes formas de desenvolvimento social e, assim, retirando o direito à cidade dessas pessoas. As políticas voltadas aos espaços públicos pensadas e planejadas para o atendimento das demandas apresentadas pelos bairros localizados nas periferias urbanas, como é o caso da Brasilândia, são ainda mais desrespeitosas em relação à


95 infância, pois não consideram essas crianças como sujeitos de direitos. Se a temática da infância urbana quase não tem abertura dentro das discussões e das transformações das áreas centrais, quando olhamos para os lugares mais desfavorecidos econômica e socialmente, localizados nas periferias, essas questões ganham dimensões ainda mais excludentes, já que é no espaço físico que as desigualdades ganham materialidade e transparecem. Esses espaços, controlados pelo poder, visam a manutenção desse poder, formando adultos domesticados. Isto é, não se desenvolve a autonomia e o senso crítico, que deveriam ser fundamentais à educação. Nas falas das crianças, então, foi possível identificar uma postura de insatisfação e um olhar crítico sobre os lugares onde moram, apontando aspectos que não correspondem aos seus desejos e indicando características que consideram importantes para uma cidade adequada à moradia e vivência. Pode-se concluir, por meio das observações, que as crianças percebem que é necessária uma alteração na cidade, que os espaços públicos devem voltar a pertencer aos cidadãos, da mesma forma que afirma Tonucci (2015). Assim, São Paulo ainda não se pode dizer educadora, pelo menos não em sua plenitude, uma vez que não oferece todo o seu potencial às crianças e ainda limita o seu uso. As crianças percebem essa falta, mas ainda sonham com uma cidade educadora. 4.1.1.4 A relação com a comunidade É possível pensar que, ao sentir que faz parte da cidade, a criança também sente que faz parte da comunidade. E que, para que isso aconteça, a cidade deve garantir oportunidades para isso, por meio, por exemplo, da mobilidade, de espaços de brincar, de ruas convidativas e instrutivas. Entretanto, muitas vezes o caminho contrário também acontece. É justamente a partir dessa relação com a comunidade que a criança faz valer seu sentimento de que a cidade também é sua. Logo que cheguei ao CCA, C., uma das alunas, veio me contar uma história que havia vivido no final de semana: - tia, no final de semana eu passei lá na praça e os homens que fumam estavam lá nas mesas jogando tudo no chão que eles fumavam. Aí eu


96 falei ‘você está louco? Não tem responsabilidade? Essa praça é nossa. Você não tem vergonha de ficar fumando? Nós fizemos a festa na praça e vamos arrumar ela e você fica jogando essas coisas aí?’. Aí ele me mandou calar a boca. Eu fui lá e chamei meu tio que explicou tudo pra ele. C. ainda completou que, ao entender a situação, o homem que estava fumando disse que ia compartilhar e falar para outras pessoas. (DIÁRIO DE CAMPO, Observação 13/09/18).

Assim, a presença das crianças também pode alterar o comportamento da sociedade, conforme apresenta Tonucci (2015). Elas fazem com que os adultos passem a cuidar e respeitar mais aquele lugar, utilizando-o de outro modo. A nossa praça passa por diversos problemas como falta de luz e limpeza. - E para vocês, o que falta na praça? - Vocês adultos não sabem que as crianças reproduzem tudo que vocês fazem? - Eu estou perguntando pra você mesmo: o que falta na praça? A plateia responde: árvore - Só isso? A plateia continua: brinquedos, limpeza - O que você está fazendo pela nossa praça? - Nada! – Elas respondem em coro. - Ah! Nãos abe responder né? Tem que ter mais responsabilidade pelo nosso bairro, pela nossa casa. - É muito engraçado, hoje em dia vocês falam que as crianças só ficam na internet, mas e nosso espaço para a gente brincar? Vocês não ajudam! - E a sua parte? – todos falam juntos. O que iremos fazer aqui não é por mim, não é por ele, é por todos nós, é pelo nosso bairro, é para as crianças terem um lugar bacana para brincar e decente para morar (DIÁRIO DE CAMPO, Oficina 7).

Nessa cena de apresentação das crianças, bem como na interação apresentada anteriormente de uma das alunas, é possível perceber um movimento das crianças por transmitir aquilo que vem discutindo para o restante da comunidade, tentando transformar também seu jeito de pensar e agir sobre o bairro. Muitas vezes, a ação das crianças não apenas sensibiliza os adultos, mas também busca conscientizálos de forma direta sobre as questões que vem descobrindo em seu percurso de formação cidadã.


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4.1.1.5 A sensação de pertencimento A partir das observações, foi também possível entender em que medida a situação urbana e a própria cidade possibilita a sensação de pertencimento das crianças ao local. Ao contrário do que se esperava e imaginava inicialmente, as crianças puderam sentir-se pertencentes a esse lugar apesar da realidade urbana com pouca infraestrutura e poucos espaços públicos. Essa questão é muito visível ao observar como as crianças passaram a se referir à praça e aos espaços públicos no entorno ao longo do projeto: A nossa praça passa por diversos problemas como falta de luz e limpeza. (...) Ah! Nãos abe responder né? Tem que ter mais responsabilidade pelo nosso bairro, pela nossa casa. (...) O que iremos fazer aqui não é por mim, não é por ele, é por todos nós, é pelo nosso bairro, é para as crianças terem um lugar bacana para brincar e decente para morar (DIÁRIO DE CAMPO, Oficina 7, grifo nosso).

O repetido uso de pronomes possessivos indica a ideia de posse, que reforça o uso e o pertencer. Também é interessante notar que o pronome aparece na primeira pessoa do plural, colocando o pertencimento como algo coletivo, o que é bastante simbólico por tratar-se de um espaço público. A sensação apresentada decorre justamente da relação com a cidade. Só por ser a materialidade da sociedade e por permitir experiências, a situação urbana já possibilita a sensação de pertencimento. Quanto mais acolhedora for essa cidade, maior o sentimento. Isto é, por menos pensada com e para as crianças, e por maiores que sejam as carências do Jardim Elisa Maria, a criança lá vive muito na rua, o que possibilita esse vínculo. Como discute Harvey (2013), a enorme segregação socioespacial presente nas cidades, a qual as crianças do CCA sentem diariamente, apenas dificulta o sustento dos ideais de identidade urbana, cidadania e pertencimento. As observações me fizeram perceber que esse sentimento só se mantém nessas crianças por elas ainda terem vivências cotidianas na cidade. Isto é, não por essa ser pensada para elas, mas por ser sua única opção.


98 Tonucci (2015) aponta que devemos devolver ao cidadão, a partir da criança, a possibilidade de reconhecer a própria cidade e de identificar-se com ela. Assim, o trabalho com a praça e a sua participação no projeto urbano, mesmo que em pequena escala, permitiu que as crianças reconhecessem como delas aquele espaço, como é possível perceber, por exemplo, com a escolha do nome da praça. A eleição do nome da praça se deu, inicialmente, na Oficina 7. Para tal, as crianças foram convidadas a jogar um jogo de stop, o qual continha 6 categorias: sonhos; natureza; personalidade; minha Elisa Maria é; crianças; livre. Cada uma dessas categorias deveria, além de ser preenchida com a letra indicada, ser referente ao bairro em que moravam. Após o jogo, embasando-se nas palavras levantadas, os grupos pensaram em possíveis nomes para a praça e compartilharam os seus preferidos com a sala, que votou e levou 5 possíveis nomes para serem votados por toda a comunidade na festa.

Figura 16: levantamento de possíveis nomes para a praça


99 Os 5 nomes mais votados e, portanto, escolhidos para serem votados pela comunidade foram “Praça da Irmã Clara e do João Victor” (a Irmã era responsável pelo CCA e recentemente falecida, e João Victor, um garoto morador de rua assassinado pela polícia na região), “Praça a hora livre das crianças é aqui”, “Praça livre para as crianças”, “Praça dos sonhos”, “Praça da igualdade”. Todos os nomes refletem uma projeção positiva e coletiva na praça. Ela se apresenta enquanto um lugar possível de sonhos, ou sonhada, desejada, como um espaço de horário livre, como local de igualdade, como uma representação de figuras da região e como um local que é livre para as criança, que as permite. Os nomes em conjunto são simbólicos, mas é também significativa a votação final, que elegeu “Praça livre para as crianças” como o nome da praça. Isto é, o nome que mais representou as crianças e a comunidade dizia de um local que era livre e era para elas, para as crianças, que as pertencia.

4.1.2 O que a criança viu: desejos de transformação Nesse segundo momento de olhar através da percepção infantil para as questões manifestadas por elas, discutiremos não mais a percepção das crianças sobre o espaço urbano, mas sim uma abordagem acerca de suas projeções, aquilo que sonham e imaginam para o lugar. Essa análise, em consonância com a anterior, também foi dividida em subtítulos. 4.1.2.1 O poder de mudança A criança é produto da cidade e das relações sociais e culturais que se dão nesse local, mas também pode ser ator político e agente de transformação desses espaços. A cidade, de modo semelhante, também é produto e fator determinante das relações humanas que se estabelecem nela. Conforme apresenta Lefebvre (1968), a cidade é social e historicamente vem transformando-se de acordo com as formas de produção, caracterizando-se como um fenômeno de classe. Assim, ela exprimem concepções de mundo e poder. A criança e a cidade são elementos que se interligam, se complementam e promovem, simultaneamente, suas construções.


100 E, conforme visto, as crianças também se constituem enquanto um grupo social e devem ser entendidas enquanto cidadãs que, portanto, possuem direitos e deveres. Com as observações, foi possível perceber que é também essa a imagem que elas fazem sobre si mesmas. Isto é, em suas falas, ao longo do processo, vai sendo perceptível que elas se consideram potentes para mudanças e melhorias na cidade, da mesma forma que percebem que é também seu dever enquanto cidadãs fazê-lo. Esse ímpeto foi expresso ainda na primeira oficina: (...) a terceira parte da oficina propôs que eles apresentassem de maneira livre os problemas que viam no Jardim Eliza Maria e soluções para eles. Dois grupos apresentaram cenas de teatros e o outro apresentou um rap: Alô prefeito, eu ‘tô’ ligando, resolva isso que eu não ‘tô’ mais aguentando. É o lixo, é o racismo, use o meio ambiente para ficar limpo. Preste atenção no que eu vou falar: ponha o lixo no seu lugar. Alô prefeito, escuta isso, na frente da minha casa tem um monte de lixo. Chama as meninas, chama os meninos, para o nosso país ficar bonito (DIÁRIO DE CAMPO, Oficina 1, grifo nosso).

É importante notar que o grupo que bolou o rap se colocou na condição de agentes responsáveis pelas mudanças: chame as crianças para transformar essas condições. Ainda indo além, é interessante perceber que elas não se apresentaram prontas apenas para melhorar a praça da qual estavam falando, ou ainda seu bairro, mas sim o país inteiro. Conforme afirma Toro (2005), se faz cidadão a partir de sua capacidade de criar e modificar a ordem social em cooperação com outros. Assim, ao enxergarem esse poder que possuem de transformar, conforme exemplifica a cena, as crianças também se veem enquanto cidadãs. Mais uma vez podemos ver a cidade, com suas possibilidades de ação, mostrando à criança essa noção de cidadania. É fundamental que as crianças se coloquem nessa posição enquanto agentes ativas, posição defendida pela Carta das Cidades Educadoras. Esse exercício de cidadania exercido pelas crianças ativa o potencial educativo inerente às cidades. Dessa forma, essa percepção também dialoga com as propostas da Cidade das Crianças, uma vez que os meninos e meninas já são vistos agora como cidadãos e sujeitos do ambiente que habitam, capazes de exercer a responsabilidade e autonomia por aquilo que fazem e propõe.


101 Esse movimento de participação também gera empoderamento a elas e uma relação com o campo social, impactando em sua constituição individual e coletiva. Ao permitir que a criança se relacione com o mundo e que ela se enxergue em condição ativa, nos parece que a mediação com o mundo permite a formação completa e a preparação para a vida cidadã. Nesse sentido, também percebemos a autonomia em seu sentido social quando as crianças se colocam com a possibilidade de direcionar o caminho de sua própria história, de seu bairro, assumindo um caráter crítico. Isto é, ela consegue emancipar-se através da conquista da liberdade. E, nesse sentido, para alcançar a liberdade não é possível ser passivo, é preciso uma postura ativa e de intervenção no mundo. Acredito que, nesse momento, no qual a criança se coloca de fato no mundo, para além dos muros protetores da escola ou de casa, a criança revela sua potência enquanto cidadã e agente capaz de viver a cidade e, inclusive, de transformála, de ser produtora de cultura e do espaço, o qual ela constrói e caracteriza. E que momento mais livre e possível de emancipação que este no qual você está no mundo, construindo ou sonhando-o? Além disso, muitas vezes as crianças enxergam possibilidades mais simples para enfrentar os problemas e sempre estão dispostas e desejosas a buscar a mudança. Na Oficina 10, na qual elas fotografaram aquilo que gostavam na cidade e depois discutiram como solucionar aquilo que não gostavam, apareceu o seguinte diálogo: S.: A gente podia colocar regras e quem desrespeitasse deveria colocar dinheiro na caixinha, que a gente deixava lá. A.: Isso não vai dar certo, vão levar a caixinha. O problema é que as mesmas pessoas que reclamam que não tem espaço para brincar e se divertir são as que sujam esses espaços. M.: A gente podia colocar uma placa falando que ‘agora que você entrou aqui você tem o direito de brincar e de fazer o que você quiser, mas também tem o dever de cuidar e respeitar (DIÁRIO DE CAMPO, Oficina 10).

Essa cena mostra, em um primeiro momento, o envolvimento das crianças e a vontade de transformar aquele espaço em um lugar melhor para se estar. Ao mesmo


102 tempo, esse exemplo mostra um enorme censo de cidadania. Elas se percebem, senão apenas no direito, também no dever de intervir, expressar opiniões e fazer propostas a respeito de todos os problemas da cidade, porque elas também ali vivem, como todo cidadão, e são capazes de intervir a partir de seu próprio ponto de vista. Apenas os adultos enxergam as crianças como não capazes e sem o direito de atuação, não é assim que elas se percebem. Elas não apenas sabem que podem como também querem intervir na cidade. E a própria relação e vivência no e com o espaço urbano incentiva essa vontade. Isso se dá uma vez que, como a criança está em fase de formação e constituição pessoal, esses aprendizados irão influir em sua percepção. Então, se ela tem direitos, ela aprende a valorizar e a respeitar esses direitos, bem como entende seus deveres. Partindo da e escutando a voz dessas crianças, elas não apenas não são transformadas em corpos dóceis pela cidade como também podem transformá-la. Conforme diz Freire (2016), é como seres transformadores e criadores que os homens concebem a si mesmos e ao coletivo. Só vendo-se assim, então, é que podem ver-se como cidadãos. Ao dar voz a essas crianças, elas resgatam seu protagonismo e se percebem ainda mais como cidadãs de direitos e de deveres. Podemos ver, então, a partir das observações, que a cidade permite uma formação com consciência crítica para a participação ativa na construção do espaço da democracia, o que se aproxima dos princípios de uma Cidade Educadora bem como da definição de educação dada pela UNESCO, que valoriza as experiências no e com o mundo para tornar-se cada vez mais ele, ideia também apresentada por Paulo Freire (2017b). Ao terem consciência de sua atividade no mundo e atuarem em função de suas proposições, buscando encontrar a si mesmo e aos outros nessa relação, impregnando-o com as transformações propostas, as crianças conseguem enxergar-se enquanto cidadãs, conseguindo experiências plenas que as colocam em lugar ativo.

4.1.2.2 O direito à cidade


103 Em consonância com a ideia de sentirem-se no poder e até responsáveis por mudanças urbanas, entendemos que as crianças consideram e enxergam o direito à cidade como um direito seu. Sua relação com o subtítulo anterior é intrínseca, uma vez que é, além de uma liberdade individual para acessar os recursos urbanos, o direito de mudar a si mesmo para mudar a cidade; e um exercício coletivo não apenas de usar como de refazer a cidade (HARVEY, 2013; LEFEBVRE, 1968). O direito das crianças à cidade, assim como também o é para o adulto, vai além do acesso aos equipamentos públicos que esse espaço pode oferecer; é um direito de participar de sua transformação para atender as necessidades coletivas e torná-la mais democrática em seus usos. Dessa forma, independentemente da condição social ou da faixa etária a qual pertençam, todos os cidadãos têm o direito de serem escutados e respeitados em suas demandas, deixando seus papéis de consumidores dos espaços urbanos, para tornarem-se agentes. Não são apenas as crianças que são desconsideradas nestes processos, mas, para elas, isso torna-se ainda mais latente, pois estão excluídas dos meios de decisões e necessitam de estruturas ‘adaptadas’ para que sua participação possa se efetivar. Entretanto, apesar de desconsideradas, de forma geral, nesses processos, foi possível perceber que suas vivências urbanas possibilitam uma consciência muito grande, afinal, enxergam como seu esse direito, clamando pela atuação na cidade em prol do coletivo, do nosso, conforme apresentado. Apenas por meio de uma cidade mais democrática e inclusiva e de uma maior escuta da infância é que esse grupo social poderá de fato entender-se como cidadão e exercer sua cidadania. É preciso acreditar que esse grupo também tem potencial para transformar o modo como são construídas as cidades. Isto é, o modo de fazer e de viver o meio urbano deve buscar devolver ao indivíduo uma capacidade de ação sobre a cidade, restituindo assim, uma habilidade de agir sobre o seu ambiente. Há uma busca das crianças, conforme será apresentado no próximo item, por uma Cidade Educadora. Isto é, uma vontade de usufruir a cidade livremente de maneira democrática, ideia diretamente relacionada à noção do direito à cidade, que propõe o uso de toda a cidade por todos os cidadãos, invocando que as políticas públicas


104 considerem os trajetos percorridos pelas diferentes populações e realidades, que se pense na cidade como um lugar de encontro, reunião e simultaneidade, onde o valor da cidade é o de uso. Seria uma cidade democrática, contrária à alienação provocada pelos imperativos de uma urbanização desenfreada e regulatória. Também é possível perceber a força da educação informal, colocada por Gohn (1990), como formadora de aprendizagens cidadãs, incentivando a participação, bastante relacionada à educação solidária. Isso inclui atuar sobre essa cidade, o que garante uma formação crítica e política que é o dever da educação, como afirma a LDB. As próprias crianças, ao terem uma formação crítica, invocam o ECA e exigem seus direitos, colocando-se no lugar de seres de direitos. Isso é bastante importante: se a sociedade não as houve, então elas se fazem ouvir em seus direitos, criando também outra consciência social. O documento também coloca o direito de estar nos logradouros públicos, que as crianças reconhecem e entendem como importante e que não deixa de ser uma forma de direito à cidade. Ao entenderem que a praça deve ser delas, que elas devem ter direito de usufruir dessa praça, as crianças entendem seu direito de não exclusão dos benefícios urbanos e, portanto, seu direito à cidade. Lefebvre (1968) aponta que esse direito deve vir de um movimento coletivo de grupos periféricos para recuperação de espaços urbanos e é exatamente esse o movimento que fazem as crianças. Também o fazem de maneira coletiva, condição fundamental para Harvey (2013). Por fim, vale dizer que o direito à cidade é uma expressão muito importante também no sentido de que gera identificação: quando mencionada em reivindicações de esfera pública, as pessoas sentem que pertencem à cidade.

4.1.2.3 As projeções para esses espaços Não se objetiva no presente trabalho discutir as formas de participação infantil nas políticas públicas – apesar de acreditar que essa ação seria bastante importante e caberia a uma cidade educadora, como se diz São Paulo36, uma vez que 36

A participação infantil é assegurada legalmente pelo artigo 12 da Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada pelo Unicef em 1989 e instituída pelo Brasil em 1990, e pelo artigo 16 do Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990 e atualização posterior, que garante à criança o direito de expressar


105 possibilitar atuação e participação nas decisões urbanas é concebê-las enquanto atores sociais e considerá-las nos vários âmbitos da sociedade, principalmente e, sobretudo, nos espaços públicos -; mas sim, poder olhar para as suas projeções e desejos para esse espaço, sem descarta-los como possibilidade de projetos, inclusive como o fazemos na praça que estamos reformamos, relacionando-os com a concepção formativa dessas crianças e olhando como isso as está constituindo enquanto cidadãs. Ao fazer propostas para problemas reais, a criança se faz cidadã uma vez que participa ativamente da vida social e faz valer seu direito à cidade. Ao atuar diretamente sobre si e influenciar a sociedade, também está se formando. Ao agir, coloca-se enquanto ser social, pertencente ao grupo, com o qual contribui. Durante o desenvolvimento das atividades e oficinas com as crianças, desde o início, elas demostraram suas capacidades de análise e proposições quanto ao assunto a ser explorado: a cidade. Observando o conjunto de desenhos elaborados pelas crianças dentro da proposta da Oficina 2, na qual desenharam seu sonhos para aquele espaço observado, bem como na Oficina 10, quando fotografaram aquilo que lhes agradava nos espaços, ou, ainda, no teatro realizado na Oficina 8, pode-se dizer que as crianças possuem uma distinção daquilo que acham bom para um espaço, conseguindo pensar em possíveis mudanças e melhoras.

Figura 17: escrita de uma das crianças sobre o que desejava para a praça na Oficina 2

sua opinião sobre questões que lhe digam respeito e de tê-la levada em consideração para a tomada de decisões no âmbito da vida comunitária e política: “Participar é um dos principais instrumentos na formação de uma atitude democrática. Quem participa ativamente da vida pública de uma comunidade, de uma cidade, estado ou país, torna-se sujeito de suas ações, é capaz de fazer críticas, de escolher, de defender seus direitos e também de cumprir melhor os seus deveres” (UNICEF, 2013, p. 26).


106

Figura 18: desenho de uma das criança sobre o que desejava Figura 19: desenho de umas das crianças sobre o que para a praça, Oficina 2 desejava para a praça, Oficina 2

Essa é a dúvida da maioria das crianças do bairro. E quando elas encontram espaço, ou tem lixo ou está sendo usado para uso de drogas. - Xii, agora que não dá para brincar mesmo – enquanto crianças simulam o uso de drogas. A nossa praça passa por diversos problemas como falta de luz e limpeza. (DIÁRIO DE CAMPO, Oficina 8).

Elas reforçam a necessidade de possível tratamento para o lixo bem como a necessidade de brinquedos e do verde. Tantos os desenhos quanto o texto da Oficina 2 falam de árvores, as quais também aparecem nas fotografias daquilo que as crianças gostam nos espaços, colocando a natureza como essencial. Podem ser flores, mata ou até mesmo uma “árvore bem grande no meio”, o que coloca a natureza como potente para o estar e brincar da criança, como um despertador para sua curiosidade, investigação, descobertas. Ao olhar para as maquetes desenvolvidas na Oficina 3, concluímos que a vontade do verde e a grande preocupação com a questão do lixo se mantém, pensandose agora soluções para isso, deixando clara a sua enorme consciência ambiental, destacada nas lixeiras de recicláveis, na presença de árvores e flores e até mesmo em uma horta coletiva.


107

Figura 20: grupo 1, Oficina 3

Figura 21: maquete grupo 1

Figura 22: grupo 2, Oficina 3

Figura 23: maquete grupo 2

Figura 24: maquete grupo 3


108 Para além disso, é possível perceber que elas não apenas projetam espaços bons para si, mas projetam para todos, inclusive aos adultos. O mesmo acontece na cena observada na Oficina 5, quando as crianças questionam problemas em estruturas pensadas para os adultos e querem pensar soluções que os abarque também, incluindo-os na brincadeira:

Facilitadora: - Por que a gente precisa de brinquedos? Por que a gente precisa da estrutura da praça? S: - Para deixar a praça mais bonita. C: - Para deixar a praça mais colorida. W: - Para todo mundo ver que a gente conseguiu reformar a praça e ver que pedimos a ajuda de todos. T: - As cadeiras tão tudo quebradas e tem pessoa que não pode nem jogar um xadrez B: - Não tem lazer C: - Tinha que ter mais brinquedos pras crianças brincar e luz lá embaixo W: - Minha mãe não deixa eu ir na pracinha. S: - Pode ser até para os adulto brincar C: - Tem o xadrez também para eles (DIÁRIOS DE CAMPO, Oficina

5). Assim, acredito ser possível dizer que as crianças sonham com uma Cidade Educadora, ainda que não usem esse nome. Ela sonha com uma cidade com espaços públicos acessíveis, que possam ser usados por todos e com melhores qualidades de vida, que criem condições para o exercício da cidadania e que permita seu usufruto pleno. Cidades que pactuem pelo desenvolvimento humano, social e sustentável, respeitando o meio ambiente, fato que elas enfatizam constantemente ao falarem sobre o lixo e ao pensarem e proporem lixeiras de coleta seletiva para a reciclagem. A característica educadora ainda é enfatizada por sua dimensão participativa e de responsabilidade cidadã, que envolve toda a comunidade, partindo das próprias crianças. Ao mobilizar e envolver todos, valoriza o território, suas memórias e seus agentes. É uma cidade que se volta para o bem-estar de seus habitantes. Ao repensar e refazer a cidade, essas crianças estão refazendo a si mesmas e a sua condição (HARVEY, 2013). Ao modificar o entorno, a criança expressa seus desejos, formando a cidade, mas também a si mesma. Como defendido por muitos autores aqui discutidos (LEFEBVRE, 1968; GRANNELL; VILA, 2003; LIMA, 1995;


109 HARVEY, 2013; PARK, 1967; FREIRE, 2016, 2017), a cidade é a expressão daquilo que somos e, portanto, permite a construção de nós mesmo.

*** Como afirma Paulo Freire: [...] estar no mundo necessariamente significa estar com o mundo e com os outros. Estar no mundo sem fazer história, sem por ela ser feito, sem fazer cultura, sem ‘tratar’ sua própria presença no mundo, sem sonhar, sem cantar, sem musicar, sem pintar, sem cuidar da terra, das águas, sem usar as mãos, sem esculpir, sem filosofar, sem pontos de vista sobre o mundo, sem fazer ciência, ou tecnologia, sem assombro em face do mistério, sem aprender, sem ensinar, sem ideias de formação, sem politizar não é possível. É na inconclusão do ser, que se sabe como tal, que se funda a educação como processo permanente (FREIRE, 2016, p. 57). Dessa forma, após essa primeira aproximação e análise de dados, faz-se possível perceber que a leitura de mundo está intrinsecamente relacionada com a constituição cultual e social do sujeito, o qual também forma o coletivo. Essa formação acaba por trabalhar com questões cidadãs que despertam uma consciência de direitos e deveres nas crianças. 4.2 Estratégias educacionais: relações entre a pedagogia e a cidade

Agora, partindo do discutido na categoria anterior, é possível pensar nas segunda categoria de análise. Dentro dessa categoria, se faz importante pensar e perceber quais foram as estratégias geradas, decorrentes e facilitadoras, da relação entre a sala de aula e a cidade; bem como o que foi possível gerar e produzir a partir disso, pensando as contribuições para a formação das crianças. Dessa forma, é relevante pensar e olhar para as construções que se tinha antes do começo da intervenção, seja no espaço ou no olhar das crianças, o que foi possível fazer e quais foram os resultados posteriores. Ao longo dessa análise, serão utilizadas cenas antagônicas temporalmente que retratam o começo e o final do projeto desenvolvido na Brasilândia, a fim de


110 possibilitar a percepção das mudanças propiciadas pelo método e seu constante uso da cidade como agente educadora. Durante o período que compreendeu a atuação do Co-Criança e da presente pesquisa no território do Jardim Elisa Maria, se observou uma evolução nos conceitos, termos e palavras chaves nomeadas pelas crianças em relação a diversos temas, fundamentais para esta pesquisa-intervenção. Percebe-se uma aquisição enorme por parte delas, derivante de nossa intencionalidade pedagógica, das ideias de cidadania, autonomia e direito à cidade. Assim, para essa análise das transformações geradas nas crianças a partir da ideia da cidade enquanto espaço educativo, será importante, em um primeiro momento, pensar e olhar para a metodologia desenvolvida pelo grupo, fundamental enquanto estratégia para o que foi proposto e principal articuladora da relação da pedagogia com a cidade nesse trabalho. Retomando aquilo discutido no capítulo 3, voltaremos a reforçar a importância da metodologia para o desenvolvimento e apreendimento das conquistas, vivências, experiências e expectativas alcançadas pelas crianças, sendo uma inicial resposta para entender a cidade enquanto uma sala de aula ampliada e para as demais questões apresentadas, como o reconhecimento das crianças enquanto atores sociais. Não pretendo defender a metodologia Co-Criança como a única forma possível ao longo da educação de crianças para alcançar a autonomia, cidadania e a noção de direito à cidade e pertencimento. Entretanto, parece interessante enquanto possibilidade e disparador para pensar as inquietações e motivações de estender a educação para além da escola. Assim, baseada na metodologia desenvolvida, buscarei olhar agora, mais uma vez fazendo uso de categorias didáticas para o desenvolvimento da análise, as aquisições das crianças. Sabendo aquilo que era desejado enquanto conhecimento, mostrarei a evolução de seu processo de aprendizagem, destacando, por meio de cenas, suas posições e ideias iniciais em contraponto com aquilo por elas apresentado nas últimas oficinas. Isto é, farei uma análise comparativa daquilo que se tinha com o que foi possível construir e conquistar.


111 É importante destacar que, ao longo dessa análise, se faz uso da repetição de algumas cenas devido à vontade de percepção temporal. Ao tentar compilar o processo no antes e depois, acabamos por optar essencialmente pelo uso das oficinas iniciais e finais e, por isso, algumas situações aparecem mais de uma vez. Há uma ênfase na oficina da realização da festa, uma vez que o teatro elaborado pelas crianças pode ser entendido quase como uma síntese da construção que foi feita. No momento em que elas foram convidadas a apresentar o projeto para a comunidade, precisaram retomar todos os processos vividos e organizá-los em uma síntese daquilo que viveram e aprenderam, fazendo com que essa apresentação seja bastante importante para o estudo. As categorias aqui discutidas, por sua vez, estão construídas a partir dos pilares educativos que se buscava estudar a partir do potencial da cidade: a aquisição de autonomia, a noção de cidadania e apropriação do direito à cidade.

4.2.1 Aquisição de autonomia

Para trabalhar a aquisição das crianças, vale reforçar e relembrar o conceito de autonomia, que seria, olhando para o proposto por Piaget (1973) e Freire (2016), um governo de si próprio relacionado à capacidade de tomar decisões e analisar criticamente, o que permite sua libertação por meio da postura ativa de intervenção no mundo. Pensando de acordo com o exposto, pode-se destacar uma evolução no que diz respeito a autonomia nas crianças do CCA Eliza Maria. Em um primeiro momento, as crianças apontavam as múltiplas questões do espaço, como o lixo, por exemplo, mas exigiam sempre de alguém a melhora: dos adultos, das governanças. Ao longo das análises anteriores já foram mostrados exemplos das oficinas iniciais sobre como as crianças pediam por melhoras, mas sem se colocar enquanto possibilidade potente para essas mudanças: Meu nome é E., tenho 10 anos, eu queria ser um leão e eu queria ter o superpoder de fazer o mundo melhor (DIÁRIO DE CAMPO, Oficina 1, grifo nosso).


112 Eu gostaria que fosse limpo, que limpassem todo dia, passassem água – fala do C. (DIÁRIO DE CAMPO, Oficina 1, grifo nosso).

Já nas últimas oficinas, foi possível perceber que, ao invés de reclamar que os adultos não olham para as crianças e apenas elencar os problemas, são as crianças que passam a clamar pela participação e atenção dos adultos, assim como colocam-se ativas e pensantes sobre as mudanças e soluções possíveis: - Vocês adultos não sabem que as crianças reproduzem tudo que vocês fazem? - Eu estou perguntando pra você mesmo: o que falta na praça? [...] - Ah! Nãos abe responder né? Tem que ter mais responsabilidade pelo nosso bairro, pela nossa casa. (DIÁRIO DE CAMPO, Oficina 7).

A criança, então, se coloca como o verdadeiro motor que faz questão de abrir os olhos dos adultos para o que elas pensam, refletem e, por fim, decidem que precisam transformar, para poder crescer e se desenvolver em condições favoráveis. Isto é, nessa medida, a criança consegue estabelecer um governo de si própria e refletir sobre

sua

ação,

ressaltando

sua

relação

com

independência,

liberdade e

autossuficiência. A liberdade, por exemplo, aparece na escolha do nome da praça, conforme já apresentado: Praça Livre para as Crianças. Nesse sentido da liberdade, recupera-se muito Paulo Freire (2016), para o qual a conquista da própria autonomia implica na libertação, especialmente das estruturas opressoras, que aqui podem ser vistas como o adultocentrismo, a falta de escuta para sua voz e vontades, a cidade não pensada para ela. Assim, lutando por essa liberdade, elas colocam-se enquanto sujeitos ativos, conscientes e que querem intervir no mundo, sendo possível entender a liberdade também como uma forma de emancipação. Essa libertação também é visível quando as crianças vão ao gabinete da subprefeitura conversar com o vereador e reivindicar por sua praça. Na Oficina 6, quando se preparavam para a conversa, as criança foram capazes de expressar de forma bastante eficaz seus argumentos, lutando por aquilo que queriam construir para o bairro e, portanto, para a sua própria história, enquanto forma de decisão autônoma:


113 “Sr. Prefeito, nós aqui do CCA Elisa Maria, zona norte de São Paulo, a gente veio falar sobre nosso lazer, sobre nossa cultura, da pracinha que a gente tem e ao mesmo tempo que a gente não tem. Por causa que a gente precisa arrumar ela para o lazer das crianças”. “Conversamos também sobre a importância das duas praças, precisa todo mundo ter direito às praças”. “Queremos nosso dinheiro para construir nossa pracinha, porque vocês vão construir outra pracinha. A gente quer brinquedos, luz, reforma, lazer” (DIÁRIO DE CAMPO, Oficina 6).

Figura 25: os dois representantes da sala do CCA na reunião na subprefeitura da Freguesia do Ó.

A criança indefesa, sem força, quase sem voz para se entender e expressar a sua escolha diante da população local, se transforma em agente de verdadeira transformação socioespacial, se assume como responsável para as mudanças que quer para o bairro dela, se proclama como liderança para fazer os seus próprios sonhos acontecerem.


114 4.2.2 Noção de cidadania

Para pensar a incorporação da criança ao conceito de cidadania, vale retomar o proposto por Toro (2005), que aponta que o que torna alguém cidadão é sua capacidade de criar ou modificar o espaço em suas diferentes instâncias, sempre em cooperação com os outros. Assim, a cidadania pode ser entendida como a condição que garante a participação na vida política, a condição do cidadão. Desde o começo, as crianças mostraram seu desejo por espaços limpos e cuidados nos quais pudessem brincar, conforme observado ao longo das oficinas iniciais: Eu gostaria que fosse melhor, limpo, sem muita sujeira, sempre tem lixo [...] (DIÁRIO DE CAMPO, Oficina 1). É muito bom ficar aqui. Eu gosto bastante. O ruim dessa praça é que não tem muito brinquedo para fazer exercício. Aqui não dá pra brincar muito, mas dá pra aproveitar (DIÁRIO DE CAMPO, Oficina 2). Uma calçada com menos lixo, menos buraco, mais árvore e horta (DIÁRIO DE CAMPO, Oficina 1).

No início do processo, expressavam as questões do bairro como uma queixa, sem colocar-se em seu papel cidadão, sem colocarem-se enquanto potentes, conforme apresentado na análise anterior. Já na apresentação que fizeram à comunidade, foi possível observar uma carga de auto e corresponsabilidade sobre a questão, uma vez que as crianças se colocaram como responsáveis pela situação, como seres atuantes que também podem transformar a realidade e como voz que pode chamar ao restante da comunidade para também atuar. Eles deixaram bem claro que a ação é por todos, é pelo bairro, que é deles. Isso também é bastante significativo, uma vez que expressa a íntima relação desenvolvida pela cidade: as ações são pelo bairro e aquele bairro os pertence. O que iremos fazer aqui não é por mim, não é por ele, é por todos nós, é pelo nosso bairro, é para as crianças terem um lugar bacana para brincar e decente para morar (DIÁRIO DE CAMPO, Oficina 7).

No desenvolvimento das oficinas, nas quais foram trabalhadas as ideias de que todos e cada um são responsáveis por seus resíduos e pelos lugares que ocupam,


115 foi possível perceber uma construção do discurso das crianças, que expressam justamente o uso das palavras na constituição das relações, como é possível perceber na cena a seguir, na qual todos, inclusive elas, são colocados enquanto responsáveis pelo espaço: [...] Bruno interveio perguntando se eles haviam reparado que os espaços com os piores cheiros eram justamente os espaços mais públicos. V. concordou dizendo que eram as duas praças. Bruno perguntou de quem era a culpa e se eles achavam que havia algum culpado. A.: a culpa é de quem joga o lixo. D.: a culpa é de todo mundo, porque a pessoa joga mas o outro também não fala nada. A gente tem que ajudar. Bruno: e o que a gente poderia fazer para mudar isso? S.: a gente podia colocar regras e quem desrespeitasse deveria colocar dinheiro na caixinha, que a gente deixava lá. A.: isso não vai dar certo, vão levar a caixinha. O problema é que as mesmas pessoas que reclamam que não tem espaço para brincar e se divertir são as que sujam esses espaços. M.: A gente podia colocar uma placa falando que ‘agora que você entrou aqui você tem o direito de brincar e de fazer o que você quiser, mas também tem o dever de cuidar e respeitar (DIÁRIO DE CAMPO, Oficina 10).

Ao mesmo tempo em que se mostram responsáveis pelo lixo, também aparecem dispostas a criar uma solução para tal, entendendo que aquele espaço é de responsabilidade delas. Podemos dizer, então, que a criança começou a se enxergar como uma cidadã responsável e capaz de desejar e materializar aquilo que se propõe a mudar na sua comunidade. Ainda sobre o discurso elaborado pelas crianças para a apresentação final no encontro de celebração na praça, é possível notar uma grande evolução das crianças em relação ao seu poder de fala, ao poder da sua palavra, ao questionar diretamente aos adultos sobre as suas contribuições e responsabilidades para com elas e para com o bairro. De um discurso com certos aspectos de violência, manifestado ao longo das primeiras oficinas, nas quais as crianças chegam a encenar a toxicidade do vínculo entre os moradores locais para com as pessoas em situação de rua do bairro: Duas crianças deitam, desajeitam os cabelos. As crianças fazem de conta de serem pessoas em situação de rua.


116 Mais duas crianças entram na cena, lançando chinelos em cima daquelas crianças que estão deitadas. Ao perceber o que está acontecendo, elas levantam, falando: - Lixo! Comida! Em seguida, as duas correm para um canto da sala, com aquilo que os outros tinham jogado em cima delas. Outras duas crianças entram na cena, chegam perto das crianças em situação de rua, que agora estão comendo o lixo jogado sobre elas; e observam o comportamento, achando-o estranho. Enquanto são observadas, as crianças em situação de rua dialogam: - Precisamos de alguma coisa para defender nós. - Não pega isso do lixo, não... - Vocês não estão entendendo, a gente é mendigo... - Mas a gente não tem casa, não tem comida, não tem nada. As crianças começam a brigar entre elas. Em seguida, mais uma criança entra na cena, falando: - Comida, comida, comida, lanche, lanche! As crianças param e começam a discutir como seria o final da peça. Por consenso, decidem que iria ter mais um ator na encenação final, que chegaria oferecendo almoços para as pessoas que moram na rua. Então, explicaram, essa nova figura era uma candidata política, e, caso votassem nela, as pessoas com dificuldades teriam acesso à comida.

(DIÁRIO DE CAMPO, Oficina 1). Passou-se para uma cultura de paz, manifestada na peça de teatro do penúltimo encontro, no qual as palavras finais são de conciliação da criança para com o todo, da percepção de seu papel nessas ações e de uma consciência muito grande de seu direito de estar e ocupar aquele lugar. Ao longo do desenvolvimento da pesquisa, foi possível perceber que a criança desenvolveu senso de empatia com os diferentes atores e questões sociais conforme foi entrando em contato com eles. É uma características para a consciência de vida em comunidade enquanto cidadão: poder olhar para o outro e para o mundo ao seu redor buscando sempre o melhor. “Hoje, tem um moço gentil que paga a luz da pracinha da casa dele, mas a gente podia ajudar ele” (DIÁRIO DE CAMPO, Oficina 6). “[...] A gente tá fazendo um futuro melhor para seus filhos ou para qualquer outro tipo de criança, seja seu parente ou amigos (DIÁRIO DE CAMPO, Oficina 5).


117 Essas falas denotam o quanto a criança assume, ao longo do processo vivido no método, a responsabilidade de levar junto à comunidade uma missão comum, em prol do bairro e não só dela, para conseguir fazer com que a transformação do espaço seja consciente e duradoura.

Se colocando no papel de anciãos, pais, mães, usuários de droga, adolescentes, pessoas em situação de rua, prefeitos, empresários e todo tipo de personagens identificadas e mapeadas pelas próprias crianças, elas puderam pensar através das diferentes visões e entender o melhor jeito de pensar e defender a praça (DIARIO DE CAMPO, Oficina 5).

Podemos dizer, então, que, na evolução do discurso da criança, ela passa a manifestar um senso de pertencimento ao grupo e um especial cuidado com o outro, conseguindo também colocar-se no lugar daquele outro, pensando seus pontos de vista. Ao co-criar a peça de teatro que mostrariam para a comunidade, as crianças colocaram com clareza a construção coletiva e por todos, enfatizando em sua síntese a noção de cidadania e coletivo construída, percebida ao longo do processo em inúmeros outros momentos. O aluno que estava representando o papel do prefeito entre os Revolts se pronuncia: - Eu posso reclamar porque eu tenho dinheiro, coisa que vocês não tem. Então, um dos defensores logo vem em resposta: - Calma Sr. Prefeito, por isso que a gente tem união, a gente não precisa de dinheiro! (DIÁRIO DE CAMPO, Oficina 5, grifo nosso).

4.2.3 Apropriação do direito à cidade

Por fim, vale pensar na apropriação da criança ao direito à cidade ao longo do processo vivido e experienciado. Essa noção relaciona-se com os itens tratados anteriormente: a autonomia, em seu sentido de liberdade, e a cidadania. Apresenta-se, mais uma vez, quase como uma síntese dos dois no sentido da emancipação de querer e sentir-se potente para usar e transformar a cidade, dialogando com a definição de Toro (2005) de cidadão: aquele que cria ou modifica o espaço. Apresenta-se enquanto a liberdade de nos mudar mudando a cidade.


118 Dessa forma, do mesmo modo que apenas reclamavam do lixo sem proporse enquanto ativos para solucionar essas questões, as crianças também não se entendiam no direito de transformar os espaços urbanos. A reforma da praça não era um desejo concreto e manifesto por ela nas primeiras oficinas. Entretanto, ao entenderem-se enquanto protagonistas, enquanto cidadãs, enquanto livres para conduzirem suas escolhas, as crianças também entenderam a potência que tinham para as mudanças, para concretizar aquilo que apenas sonhavam. Durante o desenvolvimento do projeto, as crianças passaram a querer lutar pela construção da praça, isto é, a transformação daquele espaço passou a ser um desejo. “Queremos nosso dinheiro para construir nossa pracinha, porque vocês vão construir outra pracinha. A gente quer brinquedos, luz, reforma, lazer” (DIÁRIO DE CAMPO, Oficina 6).

Assim, havia uma vontade de transformação do espaço que era coletiva, uma vez que usam o pronome “nossa” na terceira pessoa, e que partia de seus próprios desejos, aquilo que queriam e necessitavam. Assim, por meio dessas mudanças, conseguiram construir em si mesmos novas noções, como a autonomia, a cidadania e o próprio direito à cidade e entendimento de mundo. Isto é, conseguiram construir-se a partir do desejo de mudar a cidade, o local no qual estão. O fato desse direito ser coletivo também é bastante significativo para Lefebvre (1968) e Harvey (2013), que entendem o conceito como uma recuperação por meio da ação direta coletiva no espaço urbano. A primeira vez que o dado foi jogado, saiu Lixo. A partir disso, foi possível o seguinte diálogo: Facilitadora: - Eu acho que para colocar lixeira na praça é preciso de.... A: - Reciclado. T: - Eu sei! Precisa de balde! Facilitadora: - Uma lata de lixo? Onde a gente consegue uma lata de lixo? E: - Reciclando! Ag.: - Casa! Facilitadora: - Você vai pegar uma da sua casa e colocar na praça? S: - Lata de tinta! Facilitadora 2: - O depósito que a gente precisa para colocar o lixo é um depósito, certo? Ele é um objeto e tudo que é objeto vai estar aqui no ambiental.


119 [...] T: - Também precisa motivar! Facilitadora 2: - motivar para que? T: - Para não jogar lixo! Para jogar na lata. Facilitadora: - Motivar para usar a lata então. [...] B: - Podemos também falar com o Nossa Vila Limpa! T: - Sim! Eles dá saco de lixo! S: - Pra mim eu acho que eles que mudou o Elisa Maria. [...] S: - O lixo que ‘nóis’ joga no chão, pega ela pra reciclar, ai depois vai lá para pegar o lixo para reciclar e aí ‘nóis’ vai ganhar dinheiro em troca, com esse dinheiro podemos comprar latas de lixo para a praça (DIÁRIO DE CAMPO, Oficina 4).

Assim, vemos que, para além de querer reformar a praça, as criança fizeram dessa ação um trabalho muito coletivo. Cada um, com suas ideias e possibilidades de contribuição, foi constituindo um todo que se mostrou a elas enquanto essencial para atuar sobre o processo urbano. Entenderam o poder coletivo na luta por criação e fruição do espaço social para todos. “[...] Porque quando a gente faz junto é para melhorar” (DIÁRIO DE CAMPO, Oficina 5).

Ao reivindicarem por essas mudanças, estão pedindo também por um direito de não exclusão da sociedade, e então, deles próprios em sua condição cidadã, de suas qualidades e benefício urbanos. Querendo estar na e viver a cidade, estão lutando por também pertencer a ela. Ao sentir que pertence, que é seu, a criança quer cuidar e passa a perceber seus deveres, mas também o quer, pois é de direito. Dessa forma, ao conquistar a noção de direito à cidade, é possível perceber a cidade enquanto educadora, uma vez que para pertencer é preciso estar. Transformando, sonhando, modificando, isto é, através dessa prática social de usar e construir a cidade, a criança é capaz de fazer-se e refazer-se (FREIRE, 2017b).

4.2.4 Ouvir as crianças


120 Por fim, trazemos enquanto ferramenta essencial a importância de ouvir as crianças. Aqui, vale destacar, primeiramente, que essa categoria se diferencia das outras por não ser uma aquisição das crianças, e, sim, uma aquisição do grupo. Entretanto, é essencial olhá-la, uma vez que acredito que foi ela que possibilitou a apreensão das crianças de todas as ideias acima apresentadas. Isto é, a escuta da voz da infância apresenta-se enquanto instrumento fundamental para garantir a relação da pedagogia com a cidade, possibilitando a máxima potência educativa do urbano. Também vale evidenciar a escolha semântica por ouvir as crianças e não por dar voz às crianças. As crianças já possuem voz, ideias, desejos e vontades. Entretanto, acabamos não olhando para elas, impondo, nas mais diversas situações, o pensamento do adulto. Assim, escutar a criança é dar espaço a esse novo agente, que também é criador de cultura e cidadão por excelência. A partir do reconhecimento das crianças como cidadãs, Tonucci (2015) defende que elas não sejam enquadradas apenas dentro dos papéis de alunos, necessitados ou doentes, mas que se tornem atores sociais de respeito em sua condição atual e não como uma projeção do futuro e do que virão a ser. Dessa forma, partindo dessas premissas e referenciais, parece ter sido significativo, conforme observado nos subtítulos anteriormente analisados, o fato das crianças terem sido consideradas parte fundamental, protagonista e ativa da ressignificação, transformação e revitalização dos espaços públicos. De permitir que a criança se envolvesse no trabalho também como parte da equipe de pesquisa, contribuindo com os seus saberes para a construção do discurso elaborado. Pareceu importante que a criança fosse responsável pela construção de seu saber, uma vez que, enquanto parte ativa, desenvolvia aquilo que era significativo para ela e lhe fazia sentido, construindo suas ideias, alcançando autonomia e liberdade. Trabalhar com a praça, que era o lugar que, desde o começo, ansiavam por brincar, permitiu seu interesse e envolvimento com a cidade, o que lhe possibilitou inúmeros aprendizados. Retirar essa voz da criança, muitas vezes, leva a uma falta de interesse que não possibilita uma aprendizagem completa. O Método Co-Criança se propõe a devolver a voz e a vez das crianças nas cidades, escutando-as, dialogando com elas e integrando-as no processo de pesquisa e


121 projeção urbana como um todo, fazendo delas uma parte fundamental e protagonista da revitalização e ocupação consciente das comunidades e cidades. Ao colocar a criança nesse papel, ela, desde pequena, pode perceber-se enquanto agente capaz e produtora de cultura social, urbana, artística e todos os outros sentidos que a cultura pode ter. Entender a criança ativa é também entender a criança cidadã e dar-lhe a possibilidade de entender-se assim. Portanto, podemos dizer que, ouvindo a criança, isto é, colocando-a enquanto cidadã, enquanto ser de direitos e que pode mudar e influir em seu entorno e fazer cultura, a escola ou qualquer outra instituição de ensino já está formando cidadãos que terão outro olhar e relação com a cidade, também transformando-a e tornando-a melhor. Apresenta-se uma relação cíclica: pessoas melhoram a cidade e a cidade melhora as pessoas. Dessa maneira, valorizar suas falas e expressões de experiências enquanto alguém que já é, e não alguém que virá a ser, garante sua visão enquanto parte fundamental e integrante da comunidade e, portanto, da cidade; ao mesmo tempo que a liberta da condição de dominada. Defendemos e pudemos perceber ao longo das oficinas que essa escuta é importante para que a criança possa aprender a usar sua palavra na construção de todas e cada uma de suas relações sociais, seja com o outro ou com o mundo. Ouvir as crianças é fundamental, pois elas dizem: “[...] Essa é a nossa história, a história das crianças do Elisa” (DIÁRIO DE CAMPO, Oficina 8).


122 5. SÍNTESES E DESAFIOS Para além da metodologia desenvolvida pelo grupo de extensão CoCriança, que também foi analisada ao longo deste trabalho, essa pesquisa se apresenta como um relatório da escuta da criança a partir de um recorte específico. Trata-se de entender a relação das crianças com a cidade, ao mesmo tempo em que quer unir dois campos do conhecimento para pensar novas formas possíveis dessa relação, que possam favorecer e fazer uso do potencial da cidade enquanto educativa. Esse tema, de forma ainda embrionária, vem sendo debatido no que tange as discussões do planejamento urbano, entretanto, pouco ou quase nada se fala no campo educacional. Assim, o estudo apresenta-se enquanto essencial para garantir à criança a sua condição de direito ao hoje e para garantir à educação sua função primordial: formar cidadãos. Os quais não sejam apenas receptores dos serviços da cidade, senão também cidadãos que a constroem e, com isso, se constroem. A pesquisa torna-se, assim, bastante relevante para a área da educação devido à importância da participação das crianças na construção da cidade e, mais ainda, da participação da cidade na construção de crianças cidadãs. É dentro da chave do aprendizado vivencial, de aprender na cidade, com a cidade e com as pessoas que se desenvolvem as noção de mudança na forma de considerar a posição e o papel da criança na sociedade. É uma pesquisa de grande significância também para colocar a criança em seu papel ativo e de potencializar sua voz. Tomando como base essa perspectiva, o campo da Sociologia da Infância oferece importantes contribuições para compreender a atuação da criança como ator social, sujeito de direitos com visibilidade e capaz de expressar sua opinião utilizandose das mais distintas formas e linguagens comunicativas. Desse modo, ela deixa o lugar de menor importância dentro da sociedade e das pesquisas, assumindo um papel social que até então não lhe era proporcionado pelos adultos. A participação política infantil, como um direito de cidadania, só pode ser conquistada a partir do momento em que as crianças são consideradas sujeitos sociais e cidadãs.


123 Dessa forma, objetivava-se recuperar e ressignificar os espaços livres e o lugar e protagonismo da infância na cidade a partir do olhar das crianças habitantes do Jardim Elisa Maria, na Brasilândia, periferia de São Paulo. Assim, entendendo as ruas, praças e todos os espaços públicos urbanos como educativos, entender como a cidade, enquanto pedagogia, possibilita a aquisição de autonomia, da noção de cidadania e a apropriação da noção do direito à cidade. Isto é, pensar a cidade enquanto um projeto educativo, partindo de sua potência intrínseca de auxiliar na construção de um ser liberto e de direitos. Diante disso, foram elaboradas perguntas que me motivavam a buscar respostas que foram subsidiando o escopo deste trabalho. Procurei entender •

Como as experiências das crianças na cidade podem ser uma estratégia educativa de formação de sujeitos?

Em que medida a situação urbana possibilita a sensação de pertencimento e aponta possibilidades de estratégias educacionais?

Como a cidade contribui no despertar das crianças para a importância de seu papel cidadão e de ser de direitos?

Como se dão as relações de aprendizagem entre a sala de aula e a cidade? Ao longo do processo da pesquisa, pude ir elaborando, percebendo e

entendendo que as perguntas aqui propostas estão bastante interligadas e dialogam, da mesma forma que suas respostas e a própria análise de dados, que, apesar de estar separada em itens didaticamente, só se concretiza em sua completude se compreendida enquanto todo e tomando as crianças enquanto agentes sociais dotados de plena capacidade de transformação. Dessa maneira, ao olhar para toda a pesquisa e processo desenvolvidos e pensar acerca do observado na análise de dados, criar condições de real participação democrática por parte das crianças parece ser um compromisso importante a ser assumido por uma filosofia que busque os valores de autonomia, cidadania e direito à cidade. Parece-me que a cidade, conforme vem sendo apresentado, garante essa condição. Ao conectar-se com o bairro, com os espaços públicos e com as áreas livres


124 a criança sentirá vontade de mudar o mundo do qual faz parte. Essa motivação forma cidadãos, conforme foi possível observar. Além dos sentimentos individuais produzidos pelos espaços urbanos nas crianças, a construção de identidades infantis nesses locais possibilita também o estabelecimento do pertencimento a esses territórios, onde a cidadania e o reconhecimento delas enquanto sujeitos sociais de direitos podem ser fortalecidos e potencializados. Pode-se dizer, assim, que, conforme a terceira hipótese proposta, ao se apropriarem da cidade, as crianças podem sentir-se mais pertencentes a ela. Ainda, conforme levantado enquanto segunda hipótese, a cidade de fato não é pensada para e com as crianças, entretanto, ao contrário do que se propunha, isso não significa que não seja convidativa a elas. A cidade passou a ser vista como perigosa e local de passagem apenas pelos adultos, os quais impõe isso às crianças e limitam seu movimento, mas não é isso o que a criança enxerga. Ela ainda consegue vê-la como potência e uma possibilidade de devir. Talvez a cidade não seja democrática e inclusiva e não possibilite a escuta da infância, entretanto, colocando esse grupo social entendendo-se enquanto cidadão no exercício de sua cidadania, ele também acreditará que tem potencial para transformar o modo como são construídas as cidades e assim, talvez, as cidades possam ser mais acolhedoras. Portanto, acredito que a metodologia permitiu pensar a cidade em duas diferentes dimensões: a de lugar pedagógico, isto é, em aprendizados na cidade; bem como na cidade como um objeto de conhecimento, devendo aprender-se a própria cidade. A mediação do mundo é fundamental, assim, não limitamos as crianças aos seus muros, fazendo com que pudessem conhecer e usar a cidade. Apenas colocamos intencionalidade pedagógica nas experiências já intrínsecas e existentes, garantindo aprendizagens significativas. Então, pudemos entender que a primeira hipótese proposta foi confirmada ao longo do trabalho: as vivências na cidade durante a infância são essenciais para garantir a autonomia das crianças. A cidade que possibilita que a criança viva suas experiências sem estar sob regime de poder permite um ser emancipado e liberto, que entende seu papel enquanto agente cultural e transformador e reivindica por esse direito.


125 Também propusemos, inicialmente, que o direito à cidade estava intrinsecamente relacionado às possibilidades que a cidade proporciona, e que, assim, ao excluir as crianças, a cidade também transmite certa noção de cidadania. É fato que o direito à cidade está relacionado às possibilidades que a cidade proporciona, entretanto, a educação e o pertencimento podem mudar isso. O método desenvolvido e analisado, mais uma vez, não como forma única de atuação, mas como forma possível, é uma pedagogia que pode aproximar-se da aprendizagem solidária, isto é, que demanda participação ativa do aluno. Se há o desejo por uma cidade educadora, é preciso formar crianças com consciência crítica para participação ativa na construção do espaço da democracia. Assim, ao educar, não podemos, enquanto educadores, nos isentar de nossa posição política. Segundo Paulo Freire (2017a), ela invoca nosso sonho de cidade e de cidadania; e invoca o pensar de por quem, para quê e quem a educação se faz. Pensar a cidade, da mesma forma que pensar a educação, é também pensar que pessoas e relações queremos. A metodologia desenvolvida, então, partindo da noção de cidade educadora, buscou a promoção da coletividade e convivência, da igualdade e solidariedade, invertendo a lógica: a cidade não deve mais ser um recurso educativo para a escola; mas a cidade em si deve tornar-se pedagogia. Assim, parece possível defender territórios educativos como comunidades de aprendizagem, que incluem atores de dentro e fora da instituição educacional, pressupondo um diálogo intersetorial em torno de um projeto educativo e cultural próprio para educar a si (a comunidade de aprendizagem), suas crianças e seus jovens e adultos, graças a um esforço intrínseco, cooperativo e solidário, baseado em um diagnóstico não apenas de suas carências , mas, sobretudo, de suas forças para superar essas carências. Assim, por fim, a última hipótese proposta nos aparece agora quase como uma conclusão: ao olhar, escutar e viver a cidade como território educativo é possível promover experiências pedagógicas muito ricas e multiculturais. Portanto, a cidade é um lugar educador por excelência que pode educar de diversas formas dependendo de como for pensada e proposta.


126 Fui percebendo que olhar para a cidade como pedagogia cria uma educação mais humana, que valoriza os direitos humanos, a cidadania e a cultura, formando cidadãos mais críticos e criando um currículo mais adequado para a vida e para formação de cidadãos em seu sentido pleno, que seriam capazes de criar uma nova cultura para a sociedade. Por outro lado, vale pensar na continuação do trabalho desenvolvido com as crianças. Isto é, quando acaba a nossa ação, o que fica com elas? Essa questão apresenta-se como caminho ainda a ser trilhado e pesquisado na direção, mas para além do aqui proposto. Nesse sentido, me vem ainda duas enormes inquietações. A primeira delas é pensar a extensão desse trabalho para as escolas, as instituições de ensino formais, e como essa relação seria possível. Assim, me vem o segundo questionamento: se nem a educação em seu campo mais reconhecido – as escolas – se propõe a pensar e dialogar com a cidade, enxergando-a como educativa, como conseguirá São Paulo, em sua dimensão e escala, converter a educação em um de seus eixos de desenvolvimento? Essa indagação desperta em mim a vontade de seguir investigando de forma a pensar meios de expandir esse trabalho para que seja possível atingir um maior número de pessoas e, quem sabe, instrumentalizar a ação estabelecendo uma interface de fomento a políticas públicas.


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135

APÊNDICE


136 APÊNDICE 1 - PAUTA DE ESTÁGIO PAUTA DE ESTÁGIO Orientação de observação da pesquisa

Tema: A cidade como um projeto educativo

Pergunta de pesquisa: •

Como as experiências das crianças na cidade podem ser uma estratégia educativa de formação de sujeitos?

Em que medida a situação urbana possibilita a sensação de pertencimento e aponta possibilidades de estratégias educacionais?

Como a cidade contribui no despertar das crianças para a importância de seu papel cidadão e de ser de direitos?

Como se dão as relações de aprendizagem entre a sala de aula e a cidade?

Objetivos: pretendo olhar para as crianças que vivem na periferia da cidade de São Paulo, visando recuperar a ocupação dos espaços livres e o lugar da infância na cidade para incentivar a autonomia e o sentimento de pertencer ao lugar que habitam. Partindo da noção de Cidade Educadora e de que a cidade, as ruas e as praças podem ser uma sala de aula, quero pensar a questão do direito à cidade e sua inserção na noção de cidadania, olhando para como essas questões são entendidas pelas crianças e como a cidade pode auxiliar para construir nas crianças a noção de seu papel cidadão e de um ser de direitos.

Metodologia: Realizar oficinas junto com às crianças de: I. percepção espacial e entendimento de seu bairro através de jogos lúdicos; II. deriva pelo bairro percorrendo essas áreas de potencialidades, ouvindo as opiniões e desejos das crianças; III. levantamento de materiais disponíveis entre elas e na comunidade, e entendimento de como serão utilizados para a praça; IV. retorno à comunidade, onde as próprias crianças realizarão o projeto idealizado em grupo;


137 Oficinas de co-criação: desenvolvimento de oficinas lúdicas a serem pensadas junto com as crianças, com a finalidade de fazê-las se sentirem a vontade de se expressarem e auxiliá-las a desenvolver e organizar uma opinião crítica a respeito do espaço em que vivem.

Aspectos gerais: - Realizar a caracterização da instituição, levantando aspectos físicos e também a história da instituição e sua relação com a comunidade; - perceber se ela se propõe a trabalhar com o diálogo com a comunidade - se se propõe, perceber como pretende trabalhar esse diálogo - perceber se há uma preocupação com o entorno e como ela se dá - perceber se há uma utilização do entorno e como ela se dá

- Observar os espaços utilizados pelas crianças - entender se elas se limitam à sala de aula - observar como é a sala de aula - observar quais outros espaços elas utilizam - observar se há uma utilização de espaços públicos exteriores ao da instituição

- Observar como se dá a utilização dos espaços públicos pelas crianças - observar durante o horário letivo - observar se nesses momentos há intervenção do educador, como e em que momentos - entender como usam a cidade fora do horário letivo - entender quais são os principais espaços utilizados

- Observar como se dá a relação das crianças com os espaços públicos e a cidade - perceber se as crianças utilizam os espaços públicos - observar com quem utilizam esses espaços e como se dá essa relação - observar se elas brincam nesses espaços


138 - observar como elas brincam nesses espaços

- Observar como se dá a percepção das crianças com os espaços públicos e a cidade

- Observar quais as atividades realizadas com as crianças - perceber se há alguma atividade que sensibilize seu olhar - observar se há alguma atividade que trabalhe com a conscientização sobre os espaços - observar se há alguma atividade que trabalhe com a noção dos direitos cidadãos das crianças

- Observar a relação cidade - criança - entender se a criança se sente pertencente à cidade - entender como a criança percebe a Brasilândia e o Elisa Maria em relação à cidade - entender a relação das crianças com a comunidade - entender como a criança percebe a cidade e como percebe o Elisa Maria - entender como a criança se sente em relação à cidade (medo? desilusão? alegria? etc) - perceber se a criança se sente autônoma para interagir com a cidade

- Entender quais são os trajetos diários realizados pelas crianças - entender que lugares frequentam e por onde passam - entender como são esses trajetos - entender como as crianças percebem esses caminhos - entender esse deslocamento dentro da questão da mobilidade


139 APÊNDICE 2 – DIÁRIO DE CAMPO Por motivos de organização para a análise, optou-se por colocar sempre primeiro o roteiro da oficina e, em seguida, a descrição do que foi observado.

OFICINA 1 – Ouvindo as crianças Roteiro: OBJETIVO: Conhecer o percurso das crianças desde casa até a escola e o CCA. Descobrir os detalhes dos caminhos que elas fazem (coisas interessantes, obstáculos, dificuldades, percepções delas sobre o caminho). Conseguir uma descrição mais detalhada e entender o olhar das crianças sobre os lugares onde elas transitam, estimular a co-criação de soluções que podem ser apresentadas para melhorar o lugar onde elas moram e o percurso que elas fazem diariamente. ETAPA: Investigação e exploração

1. CRACHA + Apresentação individual em roda Apresentação, integração entre os participantes, todos saberem os nomes e conhecer os gostos e os sonhos das crianças. Todos devem pegar um dos crachás (já prontos) e escrever as seguintes informações sobre cada um: nome, idade, qual animal você seria, qual seu superpoder e o que você quer ser quando crescer. Depois de ter todas as informações escritas, fazemos uma roda e cada uma das crianças/facilitadores conta o que escreveu rapidamente. 2. JOGO DO TABULEIRO Colocar um cartaz branco colado na parede, no lugar da sala onde cada grupo for ficar, para registrar os dados levantados pela fala das crianças. As crianças serão divididas em 3 grupos, cada um deles será coordenado por dois facilitadores – incluindo o Bruno-, que irão entregar um tabuleiro e 5 peões de massinha para cada grupo. Crianças jogam e os facilitadores vão ajudando e anotando no cartaz da parede as impressões/percepções das crianças e os lugares que elas transitam Descrição do tabuleiro:


140 Circular 5 duplas por tabuleiro 3 pontos: Casa, CCA e Escola Metade do círculo dia, metade noite

Figura 26: o tabuleiro

3. CRIAÇÃO DE PROPOSTAS EM GRUPO: conflitos e soluções Com base nas informações levantadas nos 3 cartazes, os facilitadores selecionam os tópicos, conflitos e descobertas dos caminhos das crianças mais recorrentes. Depois de serem selecionados essas temáticas, as crianças são convidadas a “encenar” o conflito em questão e uma possível solução através de diferentes formas de expressão: música, teatro, desenho o outro. 4. REDE DE FIO Uma criança começa falando o que ela aprendeu durante a oficina e como ela se sentiu, enquanto segura o barbante de fio. Tendo amarrado o fio com um dedo só, quando ela acabar de falar, lança o barbante para outro colega da roda. A mesma


141 dinâmica é replicada por todas as pessoas que estão na roda. Quando a rede de fio estiver pronta, 2 facilitadores colocam 2 garrafas de vidro no chão e penduram 2 canetas na rede. Facilitadores explicam a missão do grupo: se coordenar para conseguir enfiar as duas canetas nas duas garrafas, se movimentando em sincronia. Quer-se escutar às crianças, conhecer o que elas aprenderam durante a oficina e como elas se sentiram. Estimular a colaboração e cooperação entre elas, para trabalharem em qualquer aspecto das suas vidas, através da dinâmica da rede de fio.

Observação: Foi o primeiro contato com a turma de crianças do CCA Eliza Maria que acompanhamos nesse processo. Além da atividade proposta para atingir nosso objetivo central, quisemos fazer uma oficina lúdica e permitisse uma aproximação com as crianças. A primeira atividade proposta foi a criação de um crachá para que todos apresentassem seus nomes, suas idades, um animal que gostariam de ser e um superpoder que gostariam de ter. Uma das alunas do CCA se apresentou da seguinte maneira: “Meu nome é E., tenho 10 anos, eu queria ser um leão e eu queria ter o superpoder de fazer o mundo melhor”. Em seguida a turma foi dividida em três grupos de dez crianças para jogar o jogo de tabuleiro, produzido a partir de elementos do bairro onde elas moram e com perguntas que as incentivassem a contar mais detalhes sobre a sua vivência no espaço público. A medida que as duplas de crianças iam andando pelas “casas” do tabuleiro com peões de massinha, respondiam questões sobre as praças, os escadões, as ruas, as vielas, os córregos e as calçadas que fazem parte do seu trajeto cotidiano. As falas das crianças enfatizaram como o principal problema o lixo, entulho, sujeira e esgoto. Também falaram bastante sobre como queriam o bairro mais colorido, com casas pintadas, desenhos nos muros, árvores frutíferas, mais plantas e mais brinquedos nas praças. O tabuleiro é circular, a criança sai de casa e se desloca, passando pela escola, pelo CCA e depois volta pra casa, quando o jogo acaba. Essa configuração


142 pretende uma aproximação com o cotidiano das crianças e estimulá-los a contar sobre o seu cotidiano, sobre os lugares que passam no caminho e o que fazem neles. Também existem casas com interrogação no caminho em que deve ser tirada uma cartinha surpresa, que também envolve aspectos do bairro e dos desejos para ele.

Figura 27: as cartas do jogo

As falas das crianças enfatizaram o problema do lixo, entulho, sujeira e esgoto como o principal problema em todos os espaços públicos. “Eu vejo lixeiras, eu vejo lixo e só. Muito cachorro, uma lanchonete e muitas casas” – fala do E. “Eu gostaria que fosse melhor, limpo, sem muita sujeira, sempre tem lixo. Muita gente joga papel de bala no chão” – fala do J. “Eu gostaria que fosse limpo, que limpasse todo dia, passasse água” – fala do A.


143 “Uma calçada com menos lixo, menos buraco, mais árvore e horta” – fala do C.

Também falaram bastante sobre como queriam o bairro mais colorido, com casas pintadas, desenhos nos muros, mais plantas, árvores frutíferas e mais brinquedos nas praças. A partir desses desejos, a terceira parte da oficina propôs que eles apresentassem de maneira livre os problemas que eles veem no Jardim Eliza Maria e soluções para eles. Dois grupos apresentaram cenas de teatros e o outro apresentou um rap: Alô prefeito, eu ‘tô’ ligando, resolva isso que eu não ‘tô’ mais aguentando. É o lixo, é o racismo, use o meio ambiente para ficar limpo. Preste atenção no que eu vou falar: ponha o lixo no seu lugar. Alô prefeito, escuta isso, na frente da minha casa tem um monte de lixo. Chama as meninas, chama os meninos, para o nosso país ficar bonito. (CRIANÇAS DO CCA, abril de 2017).

Cena representada por um grupo de 10 crianças da turma, após a primeira parte da Oficina Investigativa por meio de Jogos Cooperativos, na qual o convite foi para a reflexão sobre as belezas e dores do bairro, sendo o processo facilitado pelo jogo de tabuleiro desenhado para o encontro. “Duas crianças deitam, desajeitam os cabelos. As crianças fazem de conta de serem pessoas em situação de rua. Mais duas crianças entram na cena, lançando chinelos em cima daquelas crianças que estão deitadas. Ao perceber o que está acontecendo, elas levantam, falando: - Lixo! Comida! Em seguida, as duas correm para um canto da sala, com aquilo que os outros tinham jogado em cima delas. Outras duas crianças entram na cena, chegam perto das crianças em situação de rua, que agora estão comendo o lixo jogado sobre elas; e observam o comportamento, achando-o estranho. Enquanto são observadas, as crianças em situação de rua dialogam: - Precisamos de alguma coisa para defender nós. - Não pega isso do lixo, não...


144 - Vocês não estão entendendo, a gente é mendigo... - Mas a gente não tem casa, não tem comida, não tem nada.” As crianças começam a brigar entre elas. Em seguida, mais uma criança entra na cena, falando: - Comida, comida, comida, lanche, lanche! As crianças param e começam a discutir como seria o final da peça. Por consenso, decidem que iria ter mais um ator na encenação final, que chegaria oferecendo almoços para as pessoas que moram na rua. Então, explicaram, essa nova figura era uma candidata política, e, caso votassem nela, as pessoas com dificuldades teriam acesso à comida”.

O tema das três apresentações reiterou a questão do lixo e apontaram o prefeito como principal responsável por essa questão, mas também mostraram que as crianças podem juntas limpar e lutar por seus espaços de brincar.

Figura 28: mapa afetivo desenvolvido pelo grupo Co-Criança a partir da atividades com as crianças


145 A partir da oficina, foi possível para o grupo desenvolver um mapa afetivo das crianças do CCA, isto é, os lugares nos quais elas gostavam de estar, se identificavam. Por fim, foi feita uma dinâmica de teia de barbantes em que cada um falava como tinha se sentido durante o dia de oficina, a animação e empenho das crianças se mostrou maior do que a expectativa e surgiu a ideia delas nos levarem para conhecer os espaços públicos que elas apontaram no jogo de tabuleiro.


146 OFICINA 2 – Desenhando os sonhos Roteiro: OBJETIVO: Reconhecer o espaço e percorrê-lo com um olhar diferente e mais atento. Estimular a observação do espaço através da representação gráfica e a imaginação e capacidade de pensar e projetar a paisagem. Valorização do ponto de vista, das necessidades, dos desejos e pedidos de todos e cada um dos indivíduos que fazem parte do processo de pesquisa. Respeito da voz e da vez do outro. Dialogo na rua como fonte de conhecimento acadêmico. ETAPA: Investigação e exploração / Desejos e projetos

1. SAÍDA DO CCA Facilitadoras explicam para as crianças que chegou a hora de conhecer o bairro por meio da interpretação delas. Elas vão nos mostrar os lugares que querem -e precisam- ocupar. Todos saem do ambiente do CCA para uma breve caminhada em um trajeto pré-determinado que termine em um espaço livre residual. 2. PRAÇA 1: ROSA ALBONI Todos sentam em um lugar confortável, e são distribuídos pranchetas e material de desenho para todos. É solicitado que cada criança faça um desenho de observação da paisagem que está enxergando e, em seguida, um desenho do mesmo local, mas agora com o que elas gostariam que a praça fosse e com o que gostariam que tivesse lá. 3. PRAÇA 2: ROSA ALBONI (2) Brincadeira em roda. O que eu quero e o que quer o meu companheiro? Cada criança irá falar um elemento que gostaria ter nessa praça, e cada criança deve repetir o que os companheiros anteriores desejaram antes de se manifestar o seu pedido/necessidade. 4. PRAÇA 3: BERNARDO DE VERA Pensar e imaginar o que gostariam que tivesse naquele lugar. 5. PRAÇA 4: CLARA NUNES Deixar as crianças livres para brincar na praça.


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Observação: Nesse segundo momento, a mesma turma nos levou para conhecer quatro pracinhas próximas ao CCA. A primeira fica ao lado da Passagem Nina Grieg e a entrada é pela R. Rosa Alboni. Ela tem três patamares e as crianças a chamam de Praça da Rosa Alboni(1). Lá distribuímos pranchetas de desenho e pedimos para cada criança desenhar a praça como elas estavam vendo e depois fazer outro desenho imaginando o que elas gostariam que tivesse.

Figura 29: desenhos do que veem na praça


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Figura 30: desenhos dos desejos para praça

A segunda praça também fica na R. Rosa Alboni (2), muito próxima à primeira. Ela tem mais espaço verde e árvores, mas não tem muitos espaços de permanência para as crianças e o único balanço que tinha estava quebrado. Nessa praça fizemos uma dinâmica em que todos ficavam em roda e cada um falava uma coisa que queria que tivesse na praça. Houveram falas como: “plantas, banco, pinturas, limpeza e brinquedos” “a praça da Rosa Alboni, ela é muito suja, as pessoas não dão valor. As pessoas acham que é só pra ficar de enfeite, mas não, é para as crianças se divertirem. As pessoas não pensam nas crianças.”


149 “É muito bom ficar aqui. Eu gosto bastante. O ruim dessa praça é que não tem muito brinquedo para fazer exercício. Aqui não dá pra brincar muito, mas dá pra aproveitar” – fala do J.

A terceira praça é a da R. Bernardo de Vera, fica no cruzamento da rua com o linhão de transmissão de energia e tem uma vista privilegiada de grande parte do Jardim Eliza Maria e do Jardim Vista Alegre. Nessa praça também tem uma quadra de futebol bem pequena. Ficamos lá e pedimos para as crianças observarem o espaço e a vista e pensarem o que gostariam que tivesse naquele espaço livre rasgado pelo linhão entre o amontoado de casas no morro. A última praça visitada, a da R. Clara Nunes, havia sido reformada pelo projeto Nossa Vila Limpa e as crianças puderam brincar livremente no balanço, gira-gira e equipamentos de ginástica. Os brinquedos já não estavam a pleno funcionamento, o gira-gira estava afundado e o balanço já tinha os parafusos amolecidos, porém, ficou claro pela euforia com que corriam e brincavam no pequeno espaço residual transformado em praça, a carência dessas crianças por espaços públicos de lazer.


150 OFICINA 3 – Co-design do espaço Roteiro: OBJETIVO: Apresentar o vídeo de todo o processo até aqui, retomando o que foi feito nas oficinas anteriores e relacionando junto com as crianças as atividades realizadas com o objetivo final de reformar a praça, buscando estabelecer uma conexão emocional com o projeto. Após a reflexão sobre tudo o que foi feito, incentivá-las a criar sua própria praça. ETAPA: Desejos e projetos

1. EXIBIÇÃO DO MINI-DOCUMENTÁRIO Relembrar o que foi vivido nas duas primeiras oficinas desenvolvidas pelo Co-Criança no CCA Eliza Maria. Mostrar para as crianças como elas mesmas contribuíram na construção das ideias para as intervenções urbanas que estão sendo pensadas. Também, iremos discutir a escolha da praça e as possibilidades de realizar uma intervenção na Praça Rosa Alboni. 2. REPASSAR ESCOLHA DA PRAÇA Relembrando que na segunda oficina visitamos 4 praças, explicaremos o porquê de estarmos considerando fazer uma intervenção na praça Rosa Alboni: ser a mais próxima do CCA, estar em um momento de necessidade de intervenção para ela voltar a ser das crianças, ser um espaço com muitas possibilidades, ser um espaço ocioso. Questionaremos a nossa escolha junto com as crianças e tentaremos entender se a intervenção nesse local faz sentido ou não: “Vocês voltaram na praça da Rosa Alboni? Como ela está agora? Vocês acham que com a nossa ajuda ela pode ser transformada num território crianças do CCA? Vocês acham que vão poder aproveitá-la mais nos percursos que eles fazem para chegar no CCA?” 3. COMPARTILHAMENTO DOS DESENHOS Com os desenhos realizados na última oficina previamente colados na parede, as crianças que se sentirem à vontade, poderão se voluntariar para explicar o que quiseram manifestar com as representações que fizeram.


151 Em um segundo momento cada grupo de 5 crianças, terá o objetivo de alcançar uma proposta em conjunto para realizar uma intervenção na praça, registrada em um cartaz. Teremos 1 facilitadora em cada um dos 6 grupos formados, que deverá cuidar da colheita das ideias das crianças. Os cartazes devem estar divididos em 2 partes: o que as crianças podem fazer com o que tem disponível no CCA e na sua casa (matérias/suporte/estrutura) – projeções possíveis/ reais de intervenção; e o que as crianças poderiam fazer se pudessem contar com o apoio de outros parceiros, se tivessem a possibilidade de acessar 3 materiais ou fazer três pedidos pontos chave para descobrir como as crianças querem que seja a praça das crianças do CCA – projeções prováveis de intervenção. 4. REALIZAÇÃO DA MAQUETE Cada grupo irá realizar, sobre uma maquete já levada da topografia da praça, o projeto do que desejam e imaginam para a praça. O objetivo será conseguir uma proposta de intervenção para que a Praça Rosa Alboni seja das crianças e tenha o que elas precisam para apropriarem-se dela. As perguntas chave para a construção das maquetes serão: O que não pode faltar na Praça Rosa Alboni para ela ser das crianças O que a Praça Rosa Alboni precisa ter para você se sentir à vontade de ir lá? O que a Praça Rosa Alboni poderá te oferecer que você na6o consiga achar em outros lugares do Eliza Maria Depois do trabalho em cima das maquetes, dois representantes de cada grupo deverão apresentar as suas ideias para a turma. 5. APRESENTAÇÃO DA MAQUETE CO-CRIANÇA A equipe de Co-Criança, que também brincou de maquete, mostrará e irá expor as suas ideias para as crianças neste momento. O principal objetivo desta dinâmica será mostrar para elas que está sendo feita uma co-criação real no processo de intervenção da praça, e que assim como a gente ouviu as ideias delas, também queremos ser escutadas. 6. CO-DESIGN COLETIVO Momento de integração das ideias e dos elementos criados pelas crianças para praça na maquete previamente feita por Co-Criança. Os objetivos deste último momento serão: ·Unificar as coisas em comum das 3 maquetes feitas por elas


152 ·Regatar as coisas diferentes em cada maquete e cada grupo deve selecionar a mais importante para elas, o que não pode faltar ·Juntar tudo em nossa maquete e chegar em uma proposta de intervenção comum. 7. ENCERRAMENTO Para encerrar a terceira oficina de Co-Criança no CCA Eliza Maria, as crianças serão convidadas a partilhar em roda: uma palavra para definir como elas se sentiram durante a oficina de co-design e alguma coisa que gostariam de fazer no próximo encontro -para continuarmos a projetar uma intervenção coletiva na Praça Rosa Alboni. Observação: Nesta terceira oficina reunimos as crianças na sala de aula e tivemos uma conversa sobre o que elas lembravam das oficinas passadas, o jogo de tabuleiro e as reflexões feitas durante ele e o passeio pelas praças e as observações delas. Logo após essa conversa mostramos a elas o vídeo produzido durante todo o processo desde o início do projeto, em meio a momentos de excitação e timidez das crianças, pudemos reparar a ausência de algumas crianças que não estavam presentes, algumas delas por que saíram do CCA, e a presença de outras novas, que não estavam no vídeo. Logo depois, conversamos mais a respeito da segunda oficina e as praças que elas nos levaram para conhecer, focadas na praça Rosa Alboni, contamos a elas o porquê de termos escolhido essa praça, dando abertura para que elas deixassem suas opiniões sobre a praça e sobre essa escolha. Elas reafirmaram o fato de não se sentirem seguras naquele espaço e se mostraram animadas a fazerem a intervenção nessa praça. Para retomar as reflexões feitas durante a segunda oficina na praça, trouxemos os desenhos delas e expusemos eles nas paredes da sala de aula, observamos com elas para sabermos se aquilo mostrado nos desenhos ainda é o que elas veem na praça. Feito isso, introduzimos a atividade programada para a oficina. Mostramos a elas as 3 maquetes previamente confeccionadas da praça escolhida para o projeto e o material de trabalho, entre ele massinhas, papéis, palitos, canetinhas, etc. Separamos elas em 3 grupos, oferecemos o material e as deixamos livre para que pudessem, em equipe, trabalhar em uma proposta para a praça, através da


153 linguagem 3D, modelando os elementos em massinhas. Ficou claro para nós, que de todas as linguagens que já exploramos, entre desenho, música, teatro, escrita, essa foi a que eles melhor conseguiram trabalhar. As equipes se mantiveram focadas, trabalhando em equipe sem conflitos. No tempo em que foi dado elas produziram 3 maquetes feitas com muito capricho e com vários elementos novos, que não havíamos colocado em nossa proposta inicial. Elas contemplaram em suas propostas, crianças das mais diversas idades, colocando brinquedos até para bebês. Colocaram piso tátil para deficientes visuais, corrimão, sinalização, bebedouro, entre outros elementos imprescindíveis para o bom funcionamento da praça e inclusão de todos. Com as maquetes finalizadas, subimos todos para a sala e colocamos as crianças em roda, com as 3 maquetes no centro, para que todos pudessem vê-las. Encorajamos elas a refletir sobre todos os projetos e dizer o que gostaram das maquetes e o que mudariam em suas maquetes após ver a de todos. Apresentamos a nossa maquete após a reflexão, para termos certeza que o nosso projeto não influenciaria na elaboração do projeto delas.


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Figura 31: maquetes produzidas com e pelos desejos das crianรงas


155 OFICINA 4 – Mapeando recursos Roteiro:

OBJETIVO: Mapear os recursos possíveis e existentes para a reforma da praça colocando as crianças como participantes ativas nesse processo e protagonistas da transformação. Mostrar que elas também são capazes de intervir nos espaços. ETAPA: Investigação e exploração.

1. BOAS-VINDAS/ APRESENTAÇÃO Esta oficina será realizada na praça Rosa Alboni. O objetivo da primeira dinâmica é conhecer as novas crianças. Teremos uma bolinha circulando pela roda, as pessoas passam de uma para a outra, a modo de “bastão de fala”, respondendo seu nome, idade e que desejo você gostaria de pedir agora. 2. CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS Como as oficinas tem certo tempo entre si, faremos uma contação de histórias, que guiará as crianças pela jornada que começamos ano passado e que precisamos continuar para reformar a praça, trazendo para elas algumas das dificuldades do processo e a importância de nos unirmos para conseguirmos dar continuidade ao projeto. O objetivo desta segunda atividade é entender o que as crianças perceberam do trabalho de Co-Criança até o momento, como é a sua conexão afetiva com o projeto, com a nossa presença no CCA, e auxiliar elas para relembrarem de tudo o que aconteceu, desde que começaram os trabalhos do grupo de extensão. Começaremos a contar a história a partir de um roteiro, mas incentivaremos as crianças para contribuírem com a construção coletiva do conto. São elas que vão falar para os novos colegas tudo o que vem acontecendo desde que a gente chegou no CCA. As facilitadoras só ficam de olho para apoiar a fala delas, caso não lembrarem da sucessão das oficinas. Para contribuir com a sequência dos fatos, iremos mostrar um elemento representativo de cada oficina que desenvolvemos no CCA, para as crianças se lembrarem das atividades em que já participaram.


156 Concluiremos essa etapa com a demonstração do projeto final impresso. 3. FLUXONOMIA – Mapeando recursos Trata-se de um processo de identificação dos recursos tangíveis e não tangíveis, que leva em consideração os bens sociais, culturais, e tempo-espaciais, para além dos próprios materiais que seriam necessários para a revitalização da praça. A ideia de trabalhar com base na dinâmica da Fluxonomia é ajudar às crianças a enxergarem todos os recursos que elas têm, para além dos econômicos. A Fluxonomia é baseada em 4 dimensões (social, ambiental, cultural e econômica), dando lugar a 4 tipos de economias: colaborativa, compartilhada, criativa e multimoedas. Neste sentido, a Fluxonomia pretende valorizar recursos intangíveis (talentos, aptidões, capacidades, locais aos que temos acesso, recursos humanos, recursos naturais, etc.) como fontes de riqueza que temos à nossa disposição, mas que normalmente não contamos, devido a nossa visão “limitada” e capitalista, que só consegue enxergar recursos económicos para viabilizar propostas . Contamos com o apoio da Ana, especialista em Fluxonomia, que nos acompanhou durante a oficina para conseguir passar esses conteúdos para as crianças. A partir desta oficina, já teremos mapeado os recursos que temos disponíveis para fazer a reforma da praça acontecer. O objetivo é que as crianças se apropriem da ideia de fazer uma intervenção na praça e saibam que, com “as suas próprias mãos” e com os recursos que tem disponíveis em volta delas, conseguiremos transformar o lugar em um espaço delas. Co-Criança definiu 6 grandes áreas de atuação, pensando no que poderia ser fornecido pelos membros do grupo, incluindo as crianças e a rede local à que pertencem. Jardim, Brinquedos, Arte, Reforma, Lixo e Luz foram os 6 pontos essenciais identificados para serem mapeado pelas crianças, na procura dos recursos necessários para a ressignificação da praça como um espaço público que deve ser devolvida a elas. Esse mapeamento foi feito por meio de um diagrama de fluxo desenhado no chão da praça e um dado com cada um dos 6 campos nomeados no parágrafo anterior. O dado foi jogado por cada criança, que adotava uma área, e, em seguida, era questionada para identificar com quais recursos disponíveis, tangíveis ou intangíveis poderia contribuir nesse campo.


157 O dado, de 6 lados, representou cada uma das áreas de atuação na praça (arte, brinquedos, reforma, lixo, luz e jardim); e com base nisso as crianças foram brincando e apontando as suas capacidades para contribuir com cada necessidade específica 4. MAPEAMENTO DE PROPOSTAS DE DIVULGAÇÃO DO PROJETO Uma vez mapeados 1) os recursos e 2) os anseios das crianças para contribuírem com a reforma da praça, a ideia será ver junto com elas, as diversas possibilidades de apresentarmos o projeto de reforma da praça para os moradores da comunidade. Seguindo o formato de apresentação através de diversas formas de arte, livres, que facilitamos durante a primeira oficina, a ideia era dividir as crianças em 3 grandes grupos (cada um dos grupos dom 10 crianças aprox.), para elas pensarem, em colaboração, qual a melhor forma de levar a projeto da reforma para praça para os moradores. Assim, teatro, música, ou qualquer outro tipo de forma de expressão, poderão ser escolhidas por elas, para contarem para o mundo o que querem fazer na praça Rosa Alboni junto com a ajuda de Co-Criança.

Observação: A principal meta do Co-Criança foi fazer com que todos os recursos utilizados na revitalização do espaço urbano procedessem tanto da população local quanto dos fundos arrecadados em diversos eventos organizados pelo grupo de pesquisa; assim como, em um segundo momento, chamar para o investimento públicoprivado, que conseguisse sustentar com os custos mais elevadas sobre a infraestrutura da praça. Neste sentido, a finalidade foi sempre a de incentivar um sentimento geral de pertencimento à iniciativa proposta e a de articular diversos atores para se responsabilizarem para com o cuidado do espaço público. O exercício foi útil não só para o coletivo ter uma noção da viabilidade para materializar o projeto de reforma da praça, mas também para que cada criança e pesquisadora se sentissem parte e protagonistas ativas das contribuições que poderiam ter para o projeto. Também foi possível criar uma divisão das crianças e pesquisadoras em 3 comissões que, a partir daquele momento, iriam trabalhar com foco em duas áreas identificadas como complementares, no dado. Neste ponto, o objetivo foi estabelecer


158 três equipes de trabalho que conseguissem desenvolver de forma autônoma propostas de intervenção específicas para cada área. A revitalização da praça ficou dividida em 3 times: reforma e brinquedos; arte e lixo; luz e jardim. As comissões foram desenhadas em busca da articulação de três redes individuais que irão se unir, a cada passo sucessivo do projeto, com o objetivo de estabelecer uma partilha justa dos objetivos, metas e propostas para fazer a transformação da praça acontecer de forma viável, efetiva e responsável. A primeira vez que o dado foi jogado, saiu Lixo. A partir disso, foi possível o seguinte diálogo:

Facilitadora: - Eu acho que para colocar lixeira na praça é preciso de.... A: - Reciclado. T: - Eu sei! Precisa de balde! Facilitadora: - Uma lata de lixo? Onde a gente consegue uma lata de lixo? E: - Reciclando! Ag.: - Casa! Facilitadora: - Você vai pegar uma da sua casa e colocar na praça? S: - Lata de tinta! Facilitadora 2: - O depósito que a gente precisa para colocar o lixo é um depósito, certo? Ele é um objeto e tudo que é objeto vai estar aqui no ambiental. (...) T: - Também precisa motivar! Facilitadora 2: - motivar para que? T: - Para não jogar lixo! Para jogar na lata. Facilitadora: - Motivar para usar a lata então. (...) B: - Podemos também falar com o Nossa Vila Limpa! T: - Sim! Eles dá saco de lixo! S: - Pra mim eu acho que eles que mudou o Elisa Maria. (...)


159 S: - O lixo que ‘nóis’ joga no chão, pega ela pra reciclar, ai depois vai lá para pegar o lixo para reciclar e aí ‘nóis’ vai ganhar dinheiro em troca, com esse dinheiro podemos comprar latas de lixo para a praça.

Figura 32: levantamentos das crianças durante a oficina de Fluxonomia

Por fim, o formato escolhido pelas crianças para apresentação do projeto em futura festa na praça foi um teatro.


160 OFICINA 5 – Argumentação criativa Roteiro:

OBJETIVO: introdução ao processo de levantar recursos. O objetivo é retomar as soluções que foram escolhidas na anterior oficina por cada um dos grupos, e levantar os principais questionamentos, desafios e oportunidades de cada comissão. Também se pretende que as crianças possam entender os trâmites necessários para levantamento de verba e possam se preparar para conversar com a autoridade que poderá ajudar a tal. ETAPA: Desejos e projetos

1. BOAS-VINDAS Dinâmica de escuta ativa: fazemos duas rodas concêntricas, os de dentro olham para fora, os de fora olham para dentro. Formamos duplas primeiro e cada um fala sobre como foi o seu dia, o parceiro só escuta. Depois, invertemos os papéis: o que escutou, fala, e quem falou agora só escuta. Voltamos para a roda geral, e, cada criança, conta para o grupo como foi o dia do seu companheiro, falando o nome do companheiro, antes de tudo. 2. APROFUNDAMENTO DAS COMISSÕES Tendo as 3 comissões definidas pela oficina anterior: Reforma e Brinquedos, Arte e Lixo e Luz e Jardim, a ideia é que, cada criança, pertencente a cada um dos grupo, se aprofunde nas questões que irá tratar ao longo do desenvolvimento do projeto. Cada uma deverá conseguir enxergar e analisar os dois elementos com que irá trabalhar de forma efetiva, para assim conseguir comunicar a missão do projeto para a comunidade como um todo. Para facilitar a compreensão das possibilidades de cada comissão, tentaremos associar as vantagens do nosso projeto e de cada comissão aos ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU). Desta forma, estaremos ajudando as crianças a enxergarem o impacto global do projeto em que estamos trabalhando, a partir de iniciativas locais.


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Figura 33: objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU

As facilitadoras apresentam os 17 ODS. Assim, cada problema e soluções das comissões serão alinhadas com os ODS. Em seguida, começaremos uma discussão sobre os aspectos fundamentais que o projeto está levando para a comunidade, o bairro e a sociedade como um todo. 3. TRIBUNAL As crianças são divididas em Guardiões da Paz, Apoiadores e Revolts para a explicação da atividade: Guardiões da Paz – 2 de cada comissão = 6 guardiões Apoiadores – 3 de cada comissão = 10 apoiadores Revolts – 3 de cada comissão = 10 revolts Os Apoiadores, junto com 2 facilitadoras, devem pensar em argumentos a favor da praça e em argumentos para rebater os Revolts. Os Revolts, junto com 2 facilitadoras, devem pensar em argumentos contrários à reforma da praça (argumentos de prefeitura, de moradores, da polícia)


162 Os Guardiões da Paz ficam com 1 facilitadora deverão prestar atenção e tomar notas para futuramente chegar em um julgamento. Depois, cada grupo escolherá dois representantes para o debate. Os argumentos serão dados com direito a réplica e tréplica. Após a finalização dos argumentos, os Guardiões da paz vão encontrar possibilidades de contemplar e satisfazer ambos os lados. Grupos se posicionam a favor ou contra a solução apresentada, mostrando o posicionamento deles com os dedos, até atingir um consenso do grupo como um todo.

Observação: Para além de servir como um exercício de conscientização, em relação ao cuidado necessário em nossas rotinas e vidas para com a sociedade da que fazemos parte, esta dinâmica fez com que as crianças se enxergassem como verdadeiras agentes de transformação social, que conseguem gerar um impacto global a partir da proposta local em que trabalham dentro do CCA. Se colocando no papel de anciãos, pais, mães, usuários de droga, adolescentes, pessoas em situação de rua, prefeitos, empresários e todo tipo de personagens identificadas e mapeadas pelas próprias crianças, elas puderam pensar através das diferentes visões e entender o melhor jeito de pensar e defender a praça. As metas foram apresentadas para as crianças contando um pouco sobre sustentabilidade e de projetos locais, tentando ajudar as crianças a pensarem o que acontece no Elisa Maria e como isso e as ações das comissões podem contribuir para uma ação mais global, como isso pode impactar mais pessoas. Elas relacionaram, por exemplo, o objetivo 12 – consumo e produção responsável - com reciclagem, adubo e horta. Ou, ainda, “Colher o que plantamos e distribuir nas casas. O trabalho decente e o crescimento econômico está ligado em tudo” – fala do C. Ou ainda, “Quando a gente planta árvores melhora o ar” – fala do S. Em um grupo, foi possível presenciar a seguinte discussão: Facilitadora: - Por que a gente precisa de brinquedos? Por que a gente precisa da estrutura da praça? S: - Para deixar a praça mais bonita.


163 C: - Para deixar a praça mais colorida. W: - Para todo mundo ver que a gente conseguiu reformar a praça e ver que pedimos a ajuda de todos. T: - As cadeiras tão tudo quebradas e tem pessoa que não pode nem jogar um xadrez B: - Não tem lazer C: - Tinha que ter mais brinquedos pras crianças brincar e luz lá embaixo W: - Minha mãe não deixa eu ir na pracinha. S: - Pode ser até para os adulto brincar C: - Tem o xadrez também para eles

Figura 34: cartaz produzido pela comissão de brinquedos e reformas pensando a relação com as ODS da ONU

Depois, quando as crianças foram divididas entre Revolts, Defensores e Guardiões da Paz, a conversa no grupo dos Revolts seguiu o seguinte caminho: Facilitadora: - Quem que existe que vocês acham que pode ser contra a praça? E: - Por causa do barulho que pode ter nela?


164 Facilitadora: - Que que elas vão falar? Finge que você é um morador que não quer ter barulho perto da sua casa, o que você falaria? E: - Ah, vai embora para outro lugar, vai causar mais barulho, não quero as crianças fazendo barulho. T: - É que nem quando eu tô indo dormir e começa a ter funk. Funk pode ser um problema E: - É, pode falar que se tiver funk assim na minha porta eu ligo para a polícia. S: - Também pode ter muita poluição, e aí vem aquele fedor para dentro de casa. W: - Pode ser também que tão montando um time de futebol e aí um que tem pé torto, sem maldade, joga a bola lá para cima e ai bate na janela do homem e ai quebra e ele tem que mandar pagar. Facilitadora: - E a prefeitura? O Que ela pode falar? S: - Reclamar, ficar falando merda. Tipo assim, ah, vocês não gostam da praça. E: - Não é problema nosso C: - Não querer pagar a luz, porque a prefeitura só pensa em si B: - Os usuários de droga também podem não querer a reforma para continuar usando o espaço A: - Lá tem muitos, né Bruno? Após a discussão em grupos, a sala se organizou para o debate, que começou com os Revolts, que trouxeram as queixas e visões de diferentes atores sociais: “Eu não quero que vocês faça isso porque lá já tá sujo e vai ficar mais sujo ainda e vai quebrar as janelas do meu quarto.” “Eu sou o prefeito e não gosto dessa praça porque tenho coisa muito mais importante para fazer”. “Eu sou usuário de drogas e não quero essa pracinha porque eu não tenho lugar para fazer isso. Eu não tenho lugar para usar minhas drogas”. “Eu não gosto dessa praça porque tem muito barulho, eu não quero que fique muito barulho na minha porta”. Então, o grupo defensor da praça lhes respondeu: “Vocês têm muito preconceito da gente, a gente tá fazendo o maior trabalho e vocês ainda tá falando mal da gente. A gente tá fazendo um futuro melhor para seus filhos ou para qualquer outro tipo de criança, seja seu parentes ou amigos, entendeu. Ai vocês


165 vem aqui só para questionar o mal, tem mil questionários sobre o mal para vocês falarem sobre a gente. Mas quando a gente terminar nosso trabalho vocês vai ficar de boca aberta.” “Vocês não querem que as crianças se diverte não? Por que vocês não querem?” “É bom que vocês não vão para a praça mais longe, tem praça mais perto aqui ó”. “Tudo bem que a gente pode rachar sua janela, mas isso não seria possível acontecer. A gente tá fazendo o melhor para vocês”. Em sua resposta, os Revolts dizem que: “Vocês falaram que com a reforma irei quebrar minha janela e minha parede, então, que disse que irei perder minha casa?” “E esses brinquedos? Só vão se machucar”. “Aqui é meu ponto de usar droga”. “E o desperdício de água e energia, como fica?” “Se tiver que escolher entre uma praça e uma AMA, a AMA ganha”. Os Defensores ainda tiveram direito a mais uma réplica: “Você tá achando que esse lugar é sua casa? A gente está fazendo um bom trabalho, não existe forma de quebrar a sua casa”. “Sr. Prefeito, esse não seria seu trabalho? De arrumar as praças, ruas. Nós estamos fazendo o seu trabalho e você ainda tá reclamando?” “Você não quer barulho, mas você tem que se divertir! Não quer se divertir? Então tá!” O aluno que estava representando o papel do prefeito entre os Revolts se pronuncia: “Eu posso reclamar porque eu tenho dinheiro, coisa que vocês não tem”. Então, um dos defensores logo vem em resposta: “Calma Sr. Prefeito, por isso que a gente tem união, a gente não precisa de dinheiro!” Para concluir, os Guardiões da Paz se juntam para pensar e, então, fazem a seguinte proposta: “Temos poucas praças”. “Não teria espaço suficiente para fazer um AMA em pouco espaço. E também porque as crianças não tem muito oportunidade de brincar como esse mundo tá agora, elas não tão tendo um incentivo de um futuro melhor e eles estão querendo ajudar e vocês estão reclamando.


166 “A inocência das crianças está acabando cada vez mais rápido”. “Sobre os usuários de drogas: as drogas é uma coisa assim que acaba muito com a sua saúde, a gente não pode transformar você, por exemplo, se você não quer sair das drogas, tá bom, mas as crianças precisam de um espaço pra elas também, pra elas poder brincar. Porque elas ali brincando, por exemplo, e vocês ali fumando droga, elas vão ter um incentivo e vão querer fazer também e isso vai acabar com o futuro delas”. “A vizinha também aproveita porque é bem perto, a pracinha pra você ir com a sua família, para você brincar. Porque tem muita gente que não tem um praça perto de casa”. “Com o barulho, incentivar um certo horário para fazer barulho e depois não ter. Colocar placas para não ter lixo e a vizinha que mora perto ajudar a limpar também. Porque quando a gente faz junto é para melhorar. Porque se ela ajudar, a praça não vai ficar suja, então não vai ter como ela reclamar”. Depois houve a negociação e discussão das propostas.


167 OFICINA 6 – Conversa com autoridades e atores locais Roteiro:

OBJETIVO: auxiliar as crianças no processo de se aprontarem para iniciar o contato com as autoridades locais, que precisavam ser acionadas para a efetiva revitalização da praça. ETAPA: Desejos e projetos

1. POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL Esse primeiro momento foi contextualizado no próprio espaço público, a praça que vinha sendo trabalhada. A oficina foi inaugurada com o oferecimento de algumas informações sobre os processos das políticas públicas no Brasil, sobre a importância delas olharem para a garantia dos direitos dos cidadãos e portanto, das crianças de toda comunidade e região. Assim, em forma de histórias, foi detalhado o funcionamento do sistema de arrecadação estadual, e exposta a importância do acesso à verba pública para o cuidado dos espaços públicos. 2. REFLEXÃO De volta ao CCA, pretendeu-se incentivar as crianças a refletirem sobre a importância das políticas públicas e do auxílio da prefeitura para fazer o nosso projeto acontecer, pois uma grande parte das necessidades para a praça se transformar em um lugar adequado para o seu uso e desfrute por parte da população local, são responsabilidade do poder público. Luz, água, iluminação e limpeza, entre tantos outros itens para serem contemplados na praça, deviam ser fornecidos pelas instituições locais. 3. ARGUMENTAÇÃO A turma foi dividida em 4 grupos, nos quais as crianças refletiram sobre argumentos concretos, que poderiam ser usados na hora de conversar com a prefeitura, com quem iríamos nos reunir nas semanas sucessivas. As crianças foram convidadas para se colocarem no lugar do outro, dessa desconhecida autoridade local, para entenderem quais argumentos poderiam surgir ao longo das conversas. 4. DEBATE


168 Quatro representantes, um de cada grupo, foram selecionadas por meio de votação, para colocarem as ideias levantadas pelo coletivo, em uma roda de conversa final. Assim, o convite foi para começar um debate, que seria aberto pelos políticos, representados pelas quatro crianças selecionadas, para continuar com a intervenção da fala cidadã sobre a questão, representada por todas as outras crianças da turma. Para garantir uma maior efetividade da discussão, o Co-Criança resolveu recorrer à dinâmica do aquário, que se trata de uma estrutura para incentivar conversas, que vai administrando de forma gradual e orgânica o número de intervenções. Quatro cadeiras são colocadas no meio da sala, das quais uma sempre deverá ficar livre para poder ser ocupada pelas falas “pulsantes”. Em volta da roda, todas as pessoas presentes no local ficam do lado de fora, formando círculos concêntricos e tendo sempre a possibilidade de participar da discussão, simplesmente ocupando a cadeira disponível. As falas pulsantes são todos aqueles discursos de qualquer pessoa presente na sala, que sinta a vontade ou necessidade de colocar na roda alguma questão para ser debatida. Assim, na roda, sempre tem 3 pessoas conversando sobre algum aspecto concreto, que vão entrando e saindo dos círculos que ficam de fora, abrindo espaço para novas ideias e sempre respeitando um lugar livre para qualquer indivíduo entrar na discussão. Desta forma, o aquário garante a rotatividade da conversa e abre a possibilidade de todas as falas presentes entrarem no círculo principal, onde a conversa acontece. Quem participa do aquário, tem total liberdade de escolha: ficando da parte de fora, escutando aquilo que está sendo discutido pelos outros; ou entrando e contribuindo com a conversa, a partir do seu olhar, no seu tempo, e seguindo as suas próprias regras, necessidades e vontades. 5. REPRESENTANTES Após o término do debate, o encerramento da oficina se materializou com a realização de uma votação geral, para escolher duas crianças que iriam conversar, de fato, com as autoridades locais da prefeitura, no encontro marcado pelas facilitadoras e responsáveis pelo Co-Criança.


169 Observação: Por meio da história e da primeira discussão acerca do sistema de arrecadação de dinheiro, as crianças puderam entender que o dinheiro da prefeitura vem da população por meio de contas, de impostos. E que, “em troca” desse dinheiro que damos para ela, recebemos saúde, escola, transporte, etc. Assim, elas começaram a pensar sobre seu direito de ter uma praça em sua região, perto da sua casa. A partir disso, propusemos de ir até o prefeito ou alguém relacionado a ele para pedir que nossa praça fosse construída. Durante o debate, as crianças foram trazendo seus argumentos: “Sr. Prefeito, nós aqui do CCA Elisa Maria, zona norte de São Paulo, a gente veio falar sobre nosso lazer, sobre nossa cultura, da pracinha que a gente tem e ao mesmo tempo que a gente não tem. Por causa que a gente precisa arrumar ela para o lazer das crianças”. “Conversamos também sobre a importância das duas praças, precisa todo mundo ter direito às praças”. “Queremos nosso dinheiro para construir nossa pracinha, porque vocês vão construir outra pracinha. A gente quer brinquedos, luz, reforma, lazer”. “Hoje, tem um moço gentil que paga a luz da pracinha da casa dele, mas a gente podia ajudar ele” Em seguida, foram eleitos os dois representantes da sala, a Ag. e o A, para irem ao gabinete do Luiz, assistente do subprefeito da Freguesia do Ó. Uma semana depois, a reunião no gabinete da subprefeitura foi aprovada, a partir do conhecimento da existência de um recurso disponível para a reforma de uma praça na Rua Rosa Alboni, distinta daquela escolhida pelas crianças participantes do projeto. As crianças foram ao gabinete da subprefeitura e colocaram suas necessidades e desejos, percepções e experiências sobre o espaço. Elas, crianças, assumiram e protagonizaram a primeira conversa com as autoridades locais, peça chave para a revitalização do espaço trabalhado, e foram elas as que abriram as portas para a o projeto da reforma acontecer para além do papel.


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Figura 35: os dois representantes da sala do CCA na reunião na subprefeitura da Freguesia do Ó.

O Luiz, assessor do gabinete e pessoa responsável pelo recurso financeiro para a reforma da praça, concordou com todas e cada uma das sugestões das crianças, e se comprometeu a liberar o orçamento para conseguir que o projeto de intervenção urbana virasse realidade.


171 OFICINA 7 – Nome para a praça Roteiro:

OBJETIVO: Preparar as crianças para apresentar o projeto na festa e conseguir tirar opções de nome para a festa. ETAPA: Investigação e exploração/ Desejos e projetos 1. STOP – NOME DA FESTA Queremos pensar em pelo menos 3 nomes na praça, para isso, vamos jogar STOPBrasilândia! A sala será dividia em 5 equipes e o jogo terá 6 diferentes tópicos para serem preenchidos, todos relacionados à Brasilândia. Em cada rodada, cada equipe receberá letras diferentes e deverão preencher a tabela. Quem finalizar primeiro, grita “STOP!”. TÓPICOS: •

O que você sonha para a Elisa Maria? - SONHOS

Algum aspecto da natureza da Elisa Maria. - NATUREZA

Pessoas que foram importantes - PERSONALIDADES

MINHA ELISA MARIA É

O que é ser criança na Elisa Maria- CRIANÇAS

LIVRE

Depois do jogo, cada grupo pode olhar suas tabelas e eleger as 3 palavras que mais gostou e seria interessante para ser o nome da praça. A partir desse levantamento, votaremos em 6 nomes para serem votados na festa. Observação: A partir do jogo de STOP, as crianças conseguiram levantar um grande número de possibilidades de nomes para a praça, os quais foram votados e cinco deles selecionados para serem votados pela comunidade na festa.


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Figura 36: jogo de stop dos 4 grupos


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Figura 37: levantamento de possíveis nomes para a praça

Como é possível ver na imagem acima, após votação das crianças da turma do CCA, os cinco nomes elegidos para serem votados pela comunidade na festa foram: - Praça da irmã Clara e do João Vitor - Praça a hora livre da criança é aqui - Praça dos sonhos - Praça da igualdade - Praça livre para as crianças


174 OFICINA 8 – A festa Roteiro: 15h30 início da festa 16h oficina de grafite na parede da praça com Cléo Moreira e John Tamojunto 17h apresentação das crianças e do Coletivo Co-Criança sobre o projeto 17h30 coral das crianças 18h30 Banda de Forró: Pé de Manacá 20h Palhaços com a Cia Sama 21h Rap com Nego Hélio RDC

Observação: Foi este um encontro entre as crianças, a comunidade educativa do CCA, a comunidade local e vários coletivos e atores culturais do próprio bairro, incluindo o CoCriança, no qual a questão a ser debatida foi o direito das crianças a ocuparem os espaços públicos que também a elas pertencem. Como forma de comunicação para com os adultos, jovens e idosos que fazem parte do bairro, as crianças organizaram uma peça de teatro e um recital com várias músicas, com as quais expressaram como foi o processo vivido ao longo de quase dois anos junto com o Co-Criança. As crianças expuseram os motivos delas desejarem que essa reforma acontecesse, com um discurso bastante político:

“Que praça é essa, que a maioria das vezes tem lixo? Essa é a nossa história. A história das crianças do Eliza. - Nossa! Quanto lixo! - É, aqui está meio difícil de brincar mesmo. - Se não der para brincar aqui onde vai ser? Na rua passa carro e em casa não tem espaço. Essa é a dúvida da maioria das crianças do bairro. E quando elas encontram espaço, ou tem lixo ou está sendo usado para uso de drogas.


175 - Xii, agora que não dá para brincar mesmo – enquanto crianças simulam o uso de drogas. A nossa praça passa por diversos problemas como falta de luz e limpeza. - E para vocês, o que falta na praça? - Vocês adultos não sabem que as crianças reproduzem tudo que vocês fazem? - Eu estou perguntando pra você mesmo: o que falta na praça? A plateia responde: árvore - Só isso? A plateia continua: brinquedos, limpeza - O que você está fazendo pela nossa praça? - Nada! – Elas respondem em coro. - Ah! Nãos abe responder né? Tem que ter mais responsabilidade pelo nosso bairro, pela nossa casa. - É muito engraçado, hoje em dia vocês falam que as crianças só ficam na internet, mas e nosso espaço para a gente brincar? Vocês não ajudam! - E a sua parte? – todos falam juntos. O que iremos fazer aqui não é por mim, não é por ele, é por todos nós, é pelo nosso bairro, é para as crianças terem um lugar bacana para brincar e decente para morar”.

Na celebração, marcaram presença também diversos atores locais: palhaços, rappers, e principalmente uma grande quantidade de crianças de fora e dentro do CCA, que saíram para as ruas para reivindicar os seus direitos de aprender e se desenvolver brincando, com segurança, nos espaços públicos do seu bairro. Por outro lado, a presença dos pais dos alunos do CCA foi bastante reduzida.


176 OFICINA 9 – Os lugares de brincar Roteiro: OBJETIVO: Conhecer, através dos desenhos e das falas, a representação das crianças sobre os espaços urbanos e como os espaços livres públicos aparecem nas brincadeiras e nos desejos de transformação do bairro. ETAPA: Investigação e exploração

1. APRESENTAÇÃO E AQUECIMENTO Essa foi a primeira oficina que realizei sozinha, sem a participação dos outros membros do Co-criança. Dessa forma, apresentei para as crianças o que eu estava fazendo e contei um pouco sobre minha pesquisa. Em seguida, fiz aquecimento com um jogo teatral: todos deviam ficar andando, assim que eu batesse palma, deveriam formar coletivamente a forma que eu falasse (ex: círculo, quadrado, coração). 2. RETOMADA DA PESQUISA Em minha observação na semana anterior, as crianças estavam pesquisando, entre outras coisas, sobre os direitos das crianças. Dessa forma, retomei com elas essa pesquisa e pedi que elas levantassem quais tinham sido os principais direitos que haviam descoberto. Busquei focar na importância do direito de brincar. 3. DESENHOS DOS LUGARES DE BRINCAR Convidei as crianças a desenharem o lugar no qual mais gostavam de brincar e, enquanto desenhavam, pensassem na sensação que tinham ao estarem brincando nesse lugar. 4. COMPARTILHAMENTO Após a finalização dos desenhos, voltamos para uma grande roda e deixei que quem quisesse contar sobre seu desenho que o fizesse. Em seguida, convidei as crianças para que contassem suas sensações por meio de um jogo, que consistia em dizer em uma palavra sua sensação, quem estava sentado à direita deveria repetir a palavra do amigo e acrescentar a sua.


177 5. OS LUGARES DO BAIRRO Depois, pensando nessas sensações, questionei os alunos sobre quais os lugares que gostavam de ir. Em seguida, perguntei sobre os que eles não gostavam de ir e porquê. Combinamos de, na próxima oficina, ir aos lugares que gostavam para que eles fotografassem o que fazia com que eles gostassem desses lugares.

Observação: Convidei as crianças a fazerem desenhos dos locais os quais mais gostavam de brincar pensando em como se sentiam naquele espaço. Alguns dos desenhos obtidos:

Figura 38: alguns dos desenhos feitos pelas crianças sobre seus locais preferidos de brincar


178 Em seguida, os convidei a exporem seus sentimentos acerca desses lugares por meio de um jogo: a primeira pessoa devia falar suas emoções naquele espaço, a seguinte deveria repetir a palavra do anterior e adicionar o seu sentimento. Assim, o último da roda deveria repetir o sentimento de todos os anteriores antes de falar o seu. A sequência que obtivemos foi: “Felicidade, alegria, amizade, amor, alegre, confiante, compaixão, união, paz, felicidade, paixão, amoroso, alegre, natural, energia, meio ambiente, liberdade, felicidade, brincadeira, imaginação, brinquedo” Para finalizar a oficina, conversei com as crianças, pensando na oficina seguinte, sobre os lugares no entorno do CCA nos quais elas gostavam de ir e estar em oposição àqueles que elas não gostavam. A ideia era que pudéssemos pensar o porque alguns espaços eram positivos e outros não.

Lugares que gostam: - CCA - Quadra - Rio do Bruno - Pracinha do vista - Praça livre para as crianças - Casa do Marquinho - Sorveteria - Pet shop - Escola Cecília - Clara Nunes - Igreja

Lugares que não gostam: - Pedreira - Beco das ruas - Bar - barulho


179 OFICINA 10 – Qualidades urbanas Roteiro: OBJETIVO: Entender, por meio de registro fotográfico, a visão das crianças sobre o espaço urbano, evidenciando as características que elas consideram positivas na cidade. ETAPA: Investigação e exploração

1. SAÍDA FOTOGRÁFICA A partir dos lugares levantados na oficina anterior, desenvolvi, junto com o educador Bruno, um roteiro no entorno no CCA passando pelos principais lugares destacados como positivos pelas crianças. Minha proposta foi que, chegando nesses lugares, cada criança pudesse tirar duas fotos daquilo que dissesse do porque gostavam do lugar, algo que lhes chamava atenção, que era bom. 2. REFLEXÃO Após as fotografias feitas, voltar ao CCA e conversar sobre as percepções que as crianças tiveram: o que gostavam naqueles espaços? O que mais lhes chamava atenção?

Observação:

As crianças tiraram muitas fotos de grafites e pinturas nos muros. Era perceptível o quanto elas estavam à vontade naqueles lugares e na rua. Desde a hora que eu perguntei o percurso que faríamos, elas conseguiram mentalizar os lugares e formarem o percurso em suas cabeças, isto é, conheciam muito bem este entorno. Nas praças, em especial na Clara Nunes, que está reformada, foi perceptível a interação das crianças com esse espaço. Assim que chegaram, já correram para os brinquedos e o interesse por tirar foto até diminuiu.


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Figura 39: fotos tiradas pelas crianças daquilo que gostavam nos espaços

Ao chegarmos de volta ao CCA, perguntei o que eles haviam achado e todos comentaram que tinham gostado muito. Eu perguntei o que eles tinham percebido que mais tinham gostado nos lugares, duas crianças falaram do grafite e das pinturas. Outro deles comentou que cada lugar tinha suas características específicas. Outro aluno comentou dos cheiros, dizendo que muitos lugares tinham cheiros ruins. Nesse momento, Bruno interviu perguntando se eles haviam reparado que os espaços com os piores cheiros eram justamente os espaços mais públicos. V. concordou dizendo que eram as duas praças. Bruno perguntou de quem era a culpa e se eles achavam que havia algum culpado. A.: a culpa é de quem joga o lixo.


181 D.: a culpa é de todo mundo, porque a pessoa joga mas o outro também não fala nada. A gente tem que ajudar. Bruno: e o que a gente poderia fazer para mudar isso? S.: a gente podia colocar regras e quem desrespeitasse deveria colocar dinheiro na caixinha, que a gente deixava lá. A.: isso não vai dar certo, vão levar a caixinha. O problema é que as mesmas pessoas que reclamam que não tem espaço para brincar e se divertir são as que sujam esses espaços. M.: A gente podia colocar uma placa falando que ‘agora que você entrou aqui você tem o direito de brincar e de fazer o que você quiser, mas também tem o dever de cuidar e respeitar.


182 OBSERVAÇÃO DE AULA 1: aula na rua (13/09) Logo que cheguei ao CCA, C., uma das alunas, veio me contar uma história que havia vivido no final de semana: “tia, no final de semana eu passei la na praça e os homens que fumam tavam la nas mesas jogando tudo no chão que eles fumavam. Aí eu falei ‘você ta louco? Não tem responsabilidade? Essa praça é nossa. Você não tem vergonha de ficar fumando? Nois fizemos a festa na praça e vamos arrumar ela e você fica jogando essas coisas aí?’. Ai ele me mandou calar a boca. Eu fui lá e chamei meu tio que explicou tudo pra ele.” C. ainda completou que, ao entender a situação, o homem que estava fumando disse que ia compartilhar e falar para outras pessoas. A aula seria realizada fora da escola, em uma quadra pública próxima. Assim que o professor anunciou para a sala aonde seria a aula, a agitação foi instantânea. Todas as crianças comemoraram. Pouco antes de saírem da sala S. veio me falar: “a gente vai mostrar o Rio Tietê que temos aqui”. Quando estávamos saindo do CCA muitas crianças vieram dizer que seriam meus seguranças, que iriam me proteger. Fomos andando do CCA até a quadra e passamos pelo suporto ‘Rio Tietê’, que era um córrego bastante poluído. Chegando nele, E. comentou: “Eu queria que essa água fosse limpa. Nois ia logo nadar aqui” Em conversa com duas alunas sobre os lugares que frequentavam nos finais de semana, M. contou que havia ido apenas duas vezes ao centro de São Paulo. Ela e MC. costumam ir a casa das tias nos finais de semana, as quais ficam em São Miguel e no Jaraguá.

Voltando da quadra para o CCA, o professor, Bruno, vendo que todas as crianças estavam no meio da rua disse alto: Bruno: “Calçada!!” M. respondeu: “Não tem calçada no Elisa Maria”


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OBSERVAÇÃO DE AULA 2: Ação e comunicação não violenta (20/09) Bruno leu uma história que tratava de um gato que tentava caçar um rato. A sala estava ambientada: luz apagada, apenas com velas. Bruno: “o que vocês sentiram quando eram o rato?” “medo” Bruno: “alguém mais sentiu medo?” “eu senti o maior pavor” “mas quando eu era o gato eu ficava pensando que não queria fazer isso com os outros” “quando eu era o rato eu não sabia o que fazer. Quando eu era o gato, não queria fazer mal ao rato, ai deixei ele fugir” Bruno: “vocês se sentiram mais confortáveis sendo gato ou rato?” “Como gato” Bruno: “porque será?” “porque eu podia escolher o que eu queria fazer” Bruno: “é, vocês tinham o poder, né? E na nossa vida muitas relações são assim, marcadas pelo poder e a gente pode escolher o que fazer. Pensa quando vocês estão decidindo do que brincar e todo mundo quer pega-pega e uma pessoa escondeesconde. Todos vão jogar pega-pega. Vocês pensaram naquela última pessoa? Como será que ela está sentindo? Alguém pergunta isso pra ela?” Pede que tirem as cadeiras da sala e façam um círculo. Devem andar e quando parar a música devem tocar no outro (a música tinha a ver). Estátua: quem se mexer ou falar sai. Depois, quando para a música 1. se abraçar 2. abraçar uma pessoa 3. abraçar duas pessoas 4. …... Bruno: “Agora vamos conversar sobre o abraço. O que a gente ouviu na música?” “Que o melhor lugar do mundo foi dentro de um abraço”


184 Bruno: “ e foi bom esse abraço?” Bruno: “Que exemplos temos na nossa sociedade dessas pessoas invisíveis? → moradores de rua “Criar um olhar para isso” “Vamos esquecer quem tem muito pra gente conseguir fazer nossa parte”. Montar 3 grupos, um com cada uma das 3 pessoas escolhidas pelo Bruno. Bruno já havia falado com o 3 para recusar todos que estivessem sem casaco, de bermuda, de chinelo. “estamos selecionando as pessoas e fazemos isso o tempo todo. Quando escolhemos time, por exemplo, não pensamos como o outro vai se sentir. Como podemos incluir eles?” As crianças começam a subir as calças, emprestar um pé do chinelo. Bruno: “Todos aqui fizeram um sacrifício para se encaixar. Assim que é bom? A: “Não, a gente tem que ser aceito como a gente é” Bruno: “Formem duplas e escolham quem é o lindo e quem é o maravilhoso. Desse lado os lindos, desse os maravilhosos”, diz apontando para os lados da sala. “Os maravilhosos vão fazer uma cena violenta. Os lindos, em seguida, vão pegar essa cena e transformá-la em não violenta.” Improvisação: uma menina começa xingando outro em tom alto e logo se estabelece uma briga generalizada. O outro grupo reproduz a cena, mas, ao invés do grupo todo ir para cima, separou a briga. B: “Quero ouvir vocês. Essas cenas acontecem?/ A: “Acontece muito!” B: “E porque vocês só fazem isso no teatro?” A: “Um menino foi separar uma briga outro dia lá na escola e apanhou.” B: “Será que a gente tem medo disso acontecer?” → crianças contaram diversas histórias em que isso ocorreu. Jogo: ações violentas e não violentas. Bruno lia ações e as crianças deveriam ir para o lado. “Meu pai é um homem bom” - todos bom


185 “Falaram que meu pai é um homem bom” - acharam que era ruim alguns por conta do julgamento. “Silvio não pediu minha opinião na reunião” “Só pela roupa dela, já se imagina muita coisa” - 4 alunos acharam não violento e se conversou sobre. Diferença entre julgar e afirmar. “Mulher pode usar cueca e homem não pode usar calcinha porque os muleques zoa. “O que é julgar?” Deixa as crianças falando “se achar superior” Pega o dicionário e lê o significado •

Teatro do oprimido

Compartilhar coisas felizes: a grande parte das crianças disse de algum momento que pode estar com a família. Tico: “Quando entrei no CCA” Alison: “o dia que fomos para rua lutar por nossos direitos” Breno: “O dia que entrei no CCA”.


186 OBSERVAÇÃO AULA 3: Direitos das crianças (04/10)

No mês de outubro no CCA foram trabalhados 3 temas: natureza, direito do idoso e direito das crianças. Hoje, as crianças estão divididos em três grupo, um de cada tema e devem: responder 3 perguntas sobre o tema por meio de perguntas, fazer um cartaz sintetizando as suas ideias sobre o assunto e uma apresentação (música, teatro) também sobre o tema. Um dos meninos estava desenhando para o cartaz de direito das crianças e me chamou para mostrar seu desenho, era um carro colorido. Eu: “O que vai significar esse desenho no cartaz?” Gustavo: “É as crianças brincando com ele” Passou um tempo e ele veio me perguntar o que mais poderia desenhar. Eu: “O que é direito das crianças pra você?” Gustavo: “É direito as crianças brincando” Eu: “Ah, legal! E do que você gosta de brincar?” Gustavo: “Pega-pega, esconde-esconde” Eu: “E você não consegue desenhar essas coisas?” Gustavo: “Eu não” Eu: “Tá, e aonde você gosta de brincar?” Gustavo: “Na viela” Eu: “E a viela, você não consegue desenhar?” Gustavo: “Vou tentar!” Então ele desenhou uma das casas da viela, um relógio e escreveu crianças para sempre Eu: “E porque você acha que brincar é um direito das crianças?” Gustavo: “Porque elas têm que ser livres e brincar” As meninas estavam escrevendo um poema também para o cartaz e vieram me perguntar o que mais poderiam colocar. Elas haviam falado bastante das crianças enquanto seres potentes. Perguntei sobre o que mais elas queriam falar e elas me disseram que sobre os direitos. Então perguntei quais eram esses direitos e elas me responderam que direito de estudar e de brincar.


187

ANEXOS


188 ANEXO 1 – OS 20 PONTOS (resumidos) DAS CIDADES EDUCADORAS 1. ●

O governo deve assegurar que todos os habitantes de uma cidade terão o direito de desfrutar, em condições de liberdade e igualdade, os meios e oportunidades de formação, entretenimento e desenvolvimento pessoal que ela lhes oferece;

A cidade deverá promover uma educação que visará combater qualquer tipo de discriminação;

Deverá encorajar o diálogo entre gerações, na contribuição de suas capacidades;

Políticas educacionais também englobam questões de justiça social;

Os municípios deverão exercer política educativa ampla, com carácter transversal e inovador, compreendendo todas as modalidades de educação formal, não formal e informal;

Os responsáveis pela política municipal de uma cidade deverão possuir uma informação precisa sobre a situação e as necessidades dos seus habitantes, garantindo possibilidade de estudos e canais abertos. 2.

A cidade deverá apresentar sua identidade pessoal valorizando seus costumes e origens, sabendo dialogar com os modos de vida internacionais;

O planejamento urbano, no crescimento das cidades, que devem perpetuar as construções e símbolos de seu passado, deverá saber de sua influência no desenvolvimento das pessoas, atentando-se à necessidades de acessibilidade, encontro, relação, jogo e lazer e de uma maior aproximação à natureza;

A cidade educadora deverá fomentar a participação cidadã com uma perspectiva crítica e co-responsável;

O governo municipal deverá dotar a cidade de espaços, equipamentos e serviços públicos adequados ao desenvolvimento pessoal, social, moral e cultural de todos os seus habitantes, prestando uma atenção especial à infância e à juventude;


189 ●

A cidade deverá garantir a qualidade de vida de todos os seus habitantes;

O projeto educador explícito e implícito na estrutura e no governo da cidade deverão ser objeto de reflexão e de participação.

3. ●

Se estabelecerá um equilíbrio entre a necessidade de protecção e a autonomia necessária à descoberta. Oferecerá, igualmente espaços de formação e de debate;

A cidade deverá procurar que todas as famílias recebam uma formação que lhes permitirá ajudar os seus filhos a crescer e a apreender a cidade, bem como para os indivíduos que interferem na cidade estarem cientes de seu papel educador;

Deverá oferecer aos seus habitantes a possibilidade de ocuparem um lugar na sociedade. Para este efeito, as cidades deverão definir estratégias de formação que tenham em conta a procura social e colaborar com as organizações sindicais e empresas;

Deverá estar consciente dos mecanismos de exclusão e marginalização que as afetam e desenvolver as políticas de ação afirmativa necessárias;

As intervenções destinadas a resolver desigualdades devem partir de uma visão global da pessoa;

A cidade deverá estimular o associativismo enquanto modo de participação e co-responsabilidade cívica;

Deverá garantir informação e acesso à ela a todos;

Deverá oferecer a todos os seus habitantes uma formação sobre os valores e as práticas da cidadania democrática.


190 ANEXO 2 – MODELO DE AUOTIZAÇÃO PARA DIREITO DE IMAGEM E ENTREVISTA COM OS PAIS


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