Revista Mediação - Número 32

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revista de educação do colégio medianeira NÚMERO 32 | ANO XV - 2019 | ISSN 1808-2564

O Papa JESUÍTA e a consciência GLOBAL

Medianeira no Timor-Leste:

os desafios de um país pós-conflito

O ensino da língua estrangeira:

um convite para conhecer o outro

P. Nereu Fank: Uma lição de amor e vida

mediação

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2

mediação


Diretor Geral P. Nereu Fank, S.J.

Diretor Acadêmico Prof. Fernando Guidini

Diretor Administrativo Henrique Weidlich

Jornalista responsável Carlos Alberto Jahn (MTB 9977)

sumário

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Medianeira em Timor-Leste

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Uma lição de amor: a trajetória de P. Nereu Fank

Coordenação Editorial Vinicius Soares Pinto, Jonatan Silva e Liliane Grein

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Revisão Martinha Vieira

Redação

Por José Reali

Por Jonatan Silva

O Papa Jesuíta e a Consciência Global Por P. Claudio Paul , S.J.

Jonatan Silva

Projeto Gráfico Liliane Grein

Ilustrações e imagens

17

Wagner Roger, Paulinha Kozlowski e Shutterstock

Colaboraram nesta edição Alessandro França Quadrado, Carlos Machado, Hugo Meza Pinto, Javier Gonzáles, Jonatan Silva, José Reali, Miguel Angelo Manasses, P. Claudio Paul , S.J., Roberta Aparecida Uceda, Wagner Roger

Coordenações das Unidades de Ensino Educação Infantil e Ensino Fundamental de 1º a 5º ano Profª Silvana do Rocio Andretta Ribeiro

a serviço da Missão

Universal da COMPANHIA DE JESUS

21

Ensino Fundamental de 6º a 9º ano Profª Eliane Dzierwa Zaionc

Ensino Médio

25

Profº Marcelo Pastre

Centro de Inclusão Karolina Vargas

Centro de Formação Cristã e Espiritual P. Marcelo Costa, S.J.

Centro de Arte e Esporte

Comunicação a serviço da Missão Universal da Companhoa de Jesus

Por Javier Gonzáles - Tradução: Jonatan Silva A COMUNICAÇÃO

expediente

Revista de educação editada e produzida pelo Colégio Medianeira ISSN 1808-2564

O ENSINO e a APRENDIZAGEM

Manuel Castells: o mago da sociedade em rede

Por Miguel Angelo Manasses

O ensino e a aprendizagem integral da língua estrangeira

Por Alessandro França Quadrado

29

Onde está a verdade na era das Fake News?

33

Uma viagem criativa

39

A sala de aula: a raiz do professor

45

A mesma moeda

integral da

língua estrangeira

Por Jonatan Silva

Vinicius Soares Pinto

Midiaeducação Vinicius Soares Pinto

Tiragem

Por Hugo Meza Pinto e Wagner Roger

3300

Papel Capa: Papel 180g Miolo: Papel 90g

Número de Páginas

Por Jonatan Silva

56

Impressão Gráfica Radial Tel: 3333-9593

Os artigos publicados são de inteira responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a opinião dos editores e do Colégio Nossa Senhora Medianeira. A reprodução parcial ou total dos textos é permitida desde que devidamente citada a fonte e autoria.

Linha Verde - Av. José Richa, nº 10546 Prado velho - Curitiba/PR fone 41 3218 8000 Fax 41 3218 8040 www.colegiomedianeira.g12.br comunicacao@colegiomedianeira.g12.br

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Por Carlos Machado

Juventude: os novos tempos e espaços de aprendizagens

Por Roberta Aparecida Uceda Nó na Garganta

Por Jonatan Silva

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editorial

“Estranho é o mesmo que estrangeiro: aquele que não faz parte”. A definição de Noemi Jaffe para idiossincrasias do não lugar reflete a sutileza do estar partido ao meio – como o visconde de Calvino, que ferido por uma bala de canhão transforma-se em dois, ambos incompletos. Todos os dias caminhos nos levam a um labirinto de informação: são notícias, fatos, relatos e olhar sobre si e sobre o mundo. Se um dia o conhecimento era quase inalcançável pela ausência de acesso à informação, em nossos tempos – de touch screen e streaming – a distância se dá pelo emaranhado de dados de que dispomos. A produção do saber acontece pela leitura, interpretação e movimentação de conhecimento no mundo. A escola do presente já não é mais o espaço catedrático e unilateral, mas o conjunto de ferramentas que possibilitam a formação de pessoas capazes de enxergar o mundo para além da visão local. Sob esse prisma, a cidadania global é o fio condutor que percorre os textos que formam a revista. Por isso, a Mediação, em

seu número 32, é o convite para um mosaico de possibilidades de olhares sobre o mundo. Da experiência do sempre-aluno José Reali no Timor Leste à sociedade hiperconectada de Castells; das fakes news à distopia de Black Mirror, série que nos diz muito mais sobre o hoje que a respeito do amanhã; passando pelo papel do Papa – desculpe a aliteração – na concepção de um cidadão global e

cidadãos do mundo e sujeitos completos, capazes de, como ensinou Santo Inácio, em tudo amar e servir.

uma viagem aos rincões do Peru para levar tecnologia aos povos mais longínquos. Há também a experiência de comunicação partilhada pela Federação Latino-americana de Colégios da Companhia de Jesus (FLACSI) e o futuro do trabalho para os jovens que encerram a Educação Básica.

A Mediação que você lê é um mapa construído a muitas mãos. E é também uma jornada mar adentro do conhecimento e das trocas de experiências. Somos todos, em algum momento, estrangeiros, alheios e partidos. Mas essa não precisa ser uma condição perpétua. Ao contrário, pode e deve ser mutável. Portanto, agora cabe a você, leitor, participar dessa viagem e deixar de ser o mesmo.

Esta edição traz duas entrevistas. A primeira com a professora e orientadora pedagógica Claudia Furtado de Miranda, cuja trajetória no Medianeira é um exemplo a ser seguido. A outra nos apresenta P. Nereu Fank, jesuíta que assume a Direção Geral do Medianeira após quatro anos de trabalhos no Colégio Catarinense. São histórias que, a partir de 2019, se cruzam em uma mesma missão: a de formar pessoas para que sejam

No cerrar das cortinas, uma crônica – que como as cenas após os créditos finais de um filme – nos aguarda com uma grata surpresa. É um singelo, porém arguto, olhar sobre o mundo e as relações humanas.

Boa leitura! Jonatan Silva

Envie sugestões e comentários para:

comunicacao@colegiomedianeira.g12.br Procure essa e as edições anteriores, que podem ser lidas na íntegra, no nosso site:

www.colegiomedianeira.g12.br

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Medianeira em

Timor-Leste

O sempre-aluno José Reali partilha a sua trajetória como consultor internacional da ONU e a importância de sua formação em um colégio jesuíta para superar os desafios encontrados em um país pós-conflito. Por José Reali

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N

um domingo qualquer,

prevaleceu,

ta de profissionais especializados.

pois em 1999 um referendo

Estado de São Paulo quan-

patrocinado pelas Nações Unidas

do me deparei com um

decidiu pela independência. A

anúncio do Programa das Nações

retirada das forças indonésias

Unidas para o Desenvolvimento –

do território deixou um rastro

a UNDP, na sigla em inglês – que

de morte e destruição. Mais de

buscava um especialista em ad-

80% das infraestruturas do país

ministração e recursos humanos

foram destruídas e milhares de

para prestar consultoria ao Parla-

mano sustentável. Meu trabalho

timorenses perderam a vida.

na UNDP consistia em analisar

Confesso minha ignorância: naquela oportunidade nem mesmo sabia onde ficava Timor-Leste! Rápida pesquisa revelou-me a então mais jovem nação, tornada independente em 2002. Timor-Leste tem uma história rica e trágica. Composto da

Movido pela curiosidade pes-

profissional é um tanto diversifi-

da Austrália, com mais de vinte mil

cada: graduei-me em Direito, mas

ilhas. A Ilha de Timor, repartida

fiz mestrado em gestão de Recur-

entre colonizadores portugueses

sos Humanos. Até então, minha

e holandeses a partir do século

experiência profissional decorria

XVI, servia especialmente para a

essencialmente do exercício de

exploração do sândalo, madeira

cargos jurídicos e de gestão no

nobre que abundava na região.

setor público. Passei por exames

Sofreu

ocupação

escritos e uma entrevista pro-

nipônica durante a 2ª Guerra

fissional e recebi uma oferta de

Mundial, quando milhares de

trabalho. Em setembro de 2004

timorenses pereceram. Obteve sua

cheguei a Timor-Leste para minha

independência em 1975, durante

primeira experiência profissional

o processo de descolonização

fora do Brasil.

anos

moção do desenvolvimento hu-

transitório.

o Arquipélago Malaio, a noroeste

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de erradicação da pobreza e pro-

ceu a função de administrador

da pela UNDP. Minha formação

Seguiram-se

o braço responsável por ações

Sérgio Vieira de Mello, que exer-

no Sudeste Asiático, e que integra

pela República da Indonésia.

das e programas, sendo a UNDP

que para a atuação do brasileiro

àquela vaga de consultor anuncia-

dias depois ser invadido e ocupado

de órgãos, agências especializa-

seguintes dois anos, com desta-

ilhas do Arquipélago da Sonda,

brutal

Unidas é um complexo sistema

a administração do país pelos

metade da Ilha de Timor, uma das

uma

A Organização das Nações

As Nações Unidas assumiram

soal e profissional, inscrevi-me

portuguesa, para apenas nove

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timorense

em 2004, eu lia o jornal O

mento Nacional de Timor-Leste.

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povo

Apesar

da

Vista tropical da estátua

de Cristo Rei de Díli, no Tim

or-Leste.

Uma casa tradicional cidade de Lospalos, a 248 km de Díli, capital do Timor-Leste.

Independência,

então restaurada há dois anos, a presença das Nações Unidas

de

era ainda fortemente sentida. A

ocupação e genocídio, quando

administração pública apoiava-

quase um terço da sua população

-se em assessores internacionais

foi dizimada pela guerra e pela

oriundos de diversas nações para

fome. A resistência do bravo

superar as dificuldades com a fal-

Lenços feitos de tais, o tradicional tecido do Timor-Leste e vendido no mercado de souvenirs em Díli.


a administração do Parlamento Nacional de Timor-Leste, propor e implementar soluções para que desempenhasse mais efetivamente sua atividade parlamentar de aprovação de leis e fiscalização do governo.

iniciou há mais de cem anos. Mas a lista dos desafios de uma jovem nação é extensa. Imaginem começar um país do zero: aprovar suas leis, criar seus serviços públicos, fazer funcionar escolas e hospitais, organizar a

O primeiro obstáculo de um

sociedade civil, incentivar o setor

consultor internacional num país

privado e tantas outras atividades

pós-conflito é superar as barrei-

de construção da sociedade or-

ras culturais e encontrar forma de

ganizada. Timor-Leste avança no

transmitir os seus conhecimentos

caminho do desenvolvimento e

técnicos de maneira que sejam

em 2016 foi considerada a nação

úteis e aplicáveis à realidade local.

mais democrática do Sudeste Asi-

Por certo é um trabalho resiliente

ático pela revista The Economist.

de formação contínua, que não se limita à transmissão de conhecimentos técnicos, mas inclui também a habilidade e a empatia necessária para trabalhar com pessoas que carregam cicatrizes e traumas dos anos de guerra e cuja preparação profissional não foi adequadamente concluída. Tantas vezes lembrei-me dos ensinamentos do Colégio Medianeira, da formação humanista e integral, e não meramente acadêmica. Estas experiências oferecidas pelo Medianeira, e que vão muito além do currículo escolar, são valiosíssimas na futura vida profissional dos estudantes de hoje.

Pessoas no Mercado da cidade de Díli. A imagem é de novembro de 2009.

Depois da experiência inicial com a UNDP, tive a oportunidade de servir em outros organismos internacionais e missões de paz. Se você pensa um dia trabalhar para a Organização das Nações

Pôr do sol na praia central

de Díli.

Unidas, ou uma das suas muitas agências e programas, como o Banco Mundial, a UNESCO, ou mesmo o Secretariado das Nações Unidas, aqui vai o meu conselho: primeiro adquira fluência em inglês. Se possível, adicione francês ou outra língua oficial das Nações Unidas (mandarim, espanhol ou russo). Diversifique a sua formação. As universidades hoje oferecem a possibilidade de frequentar

Bandeira do Timor-

Leste no uniforme do

exército timorense.

A Companhia de Jesus dá

disciplinas de outros cursos, algo

uma importante contribuição ao

incomum no tempo em que cursei

ou programa que te interessa. O

desenvolvimento de Timor-Leste.

a faculdade de direito.

Sistema das Nações Unidas é muito transparente em relação aos seus objetivos, planos, programas e regulamentos. Uma busca na Internet vai revelar uma farta documentação para orientar o seu estudo.

Estão em funcionamento o Instituto São João de Brito, academia de formação de professores do país e o Colégio de Santo Inácio de Loyola, escola com mais de 500 estudantes, prosseguindo um trabalho de presença em um país de forte tradição católica, que se

Participe de programas de desenvolvimento comunitário. Infelizmente nós brasileiros somos um povo que dedica pouco tempo ao serviço voluntário. Os organismos internacionais e agências humanitárias valorizam muito essas experiências. Conheça a agência

As diversas agências e programas das Nações Unidas mantêm

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programas para jovens gradua-

ma oferece colocação em missões

dos, chamados YPP – Young Pro-

de paz e escritórios das Nações

fessionals Programme, que são as

Unidas em todo o mundo e, ape-

melhores portas de entrada para

sar do nome, paga ao voluntário

uma carreira nas Nações Unidas.

uma ajuda de custo e proporciona

São programas destinados a pro-

outros benefícios.

fissionais com formação universitária e até 32 anos de idade que, depois de passarem por um concorrido processo seletivo, obtêm uma oferta de emprego com uma perspectiva de carreira.

Uma

carreira

internacional,

como qualquer outra, encerra desafios e confere recompensas. Se de um lado se sente a ausência da família e dos amigos e a distância do seu país, de outro a vida é en-

O programa de voluntários das

riquecida pela imersão em outras

Nações Unidas, chamado UNV,

culturas. Experimente. Você nun-

também constitui uma oportuni-

ca mais será o mesmo!

dade para graduados com, no mínimo, 25 anos de idade. O progra-

comente este artigo: comunicacao@colegiomedianeira.g12.br

José Reali é sempre-aluno da turma de 1985, especialista em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília, mestre em Gestão em RH pela Fundação Getúlio Vargas (RJ) e Assessor Jurídico e de Políticas Públicas do Governo de Timor-Leste.

Recomendações Balibo Diretor Robert Connolly | 114 min. Em busca da verdade e da justiça, o jornalista Roger East é chamado pelo jovem José Ramos-Horta para investigar o desaparecimento de cinco jornalistas no Timor-Leste, em 1975, enquanto a Indonésia se preparava para invadir a antiga colônia portuguesa. Ao mesmo tempo em que Roger intensifica suas buscas, a ameaça de invasão aumenta.

O Homem que queria salvar o mundo Samantha Power | Companhia das Letras Sergio Vieira de Mello foi um dos mais corajosos e carismáticos diplomatas de sua geração. Carioca, viu-se obrigado a viver fora do país a partir dos dezessete anos de idade, quando seu pai, também diplomata, foi punido pelo regime militar brasileiro. Muito jovem, tornou-se funcionário da Organização das Nações Unidas, com cujos ideais sempre teve grande afinidade. Diferentemente da maioria de seus colegas com formação universitária e aspirações intelectuais, preferia ir ao campo de ação em vez de exercer cargos burocráticos em Nova York.

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Uma lição de amor: a trajetória de O jesuíta assume a Direção Geral do Medianeira após quatro anos de trabalho no Centro de Formação Cristã e Pastoral do Colégio Catarinense, em Florianópolis. Para acolhê-lo em nossa comunidade, conversamos a respeito de suas ideias e olhares sobre o mundo. Por Jonatan Silva

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mundo vive um momento de mudanças e tensões. Para P. Nereu Fank, Diretor Geral do Colégio Medianeira,

O

cabe à educação ser um projeto de futuro cuja “adaptação aos novos tempos é imperativa”. E é papel de uma instituição da Rede Jesuíta de Educação (RJE) estar na vanguarda dos movimentos que ressignificam os processos acadêmicos e pedagógicos sem abrir mão dos “valores que inspiram e orientam de modo saudável e

sustentável o desenvolvimento da vida humana, em todas as suas dimensões”. Com experiência internacional e uma visão universalizada da missão da Companhia de Jesus, o jesuíta – consciente da importância do local na promoção da fé – participou, em 2013, da Jornada Mundial da Juventude, sediada no Rio de Janeiro e que recebeu o Papa Francisco. Aliás, os jovens são a semente a ser plantada para frutificar a boa nova. É por meio do compromisso com a formação de pessoas em sua integralidade que P. Fank acredita que o Medianeira possa contribuir para a construção de um mundo mais justo e fraterno. Em seu primeiro bate-papo como parte do corpo diretivo do Colégio Medianeira, P. Nereu Fank reconstrói os pontos marcantes de sua vida e relembra momentos importantes de sua caminhada religiosa.

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Para começarmos, por vários anos o senhor trabalhou na formação de novos jesuítas e na evangelização em comunidades. Como foi a sua transição para a Educação Básica?

e vocações, uma das preferên-

sidindo em cidades como Casca-

cias apostólicas da Companhia

vel, São Leopoldo, Porto Alegre e

de Jesus no Brasil. Nesse traba-

Florianópolis.

lho, acompanhei o processo de

Antes de tudo, saúdo com

e espiritual, e também participei

muito afeto a comunidade edu-

da elaboração do projeto de vida,

cativa do Colégio Medianeira. É

importante para o discernimento

uma satisfação poder partilhar,

vocacional. Acompanhei religio-

nestas linhas, algo de minha traje-

sos, religiosas e outros grupos

tória e as expectativas que trago

nos Exercícios Espirituais de Santo

comigo. Sou jesuíta há 29 anos e,

Inácio de Loyola. Tive, igualmen-

há 16, sacerdote. Colaborei por

te, uma presença em trabalhos

vários anos na área de juventude

paroquiais; exerci essa missão re-

No ano de 2014, passei a atuar na Educação Básica, exercendo minha missão no Colégio Catarinense, em Florianópolis. A presença em um colégio me coloca uma vez mais em contato com o mundo juvenil; costumo dizer que se trata de uma missão nobre, pois nela ajudamos crianças, adolescentes e jovens em seu processo de formação integral, tão cara ao processo pedagógico

jovens no crescimento humano, sobretudo nas dimensões afetiva


da Companhia de Jesus. O período de cinco anos no Colégio Catarinense deixa lembranças muito boas; é gratificante ver alunos na busca do Magis, desejosos de dar o melhor de si, tanto na sala de aula como em outras atividades formativas. Recordo com satisfação, por exemplo, os inúmeros encontros no Pinheiral e os acampamentos, além do projeto Encontro de Vida, realizado com alunos do terceirão, o voluntariado, as vivências solidárias e tantos outros momentos de partilha e aprendizado. Em 2013, o senhor participou da Jornada Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro. Que ensinamentos o senhor trouxe dessa experiência de contato com o Papa Francisco? A Jornada Mundial da Juventude (JMJ) teve como cenário a cidade do Rio de Janeiro e marcou a vida de uma geração. Muitos eventos aconteciam durante aqueles dias, mas a atenção sempre se voltava à figura do Papa Francisco, que havia assumido há poucos meses o pontificado, mas já conquistara o coração dos jovens. Como lembrança daqueles seis dias de Jornada, recolho algumas frases marcantes do Papa Francisco: “Deus sempre nos reserva o melhor. Mas pede que nos deixemos surpreender pelo seu amor”; “O cristão não pode ser pessimista”; “Deus faz tudo, mas, vocês, deixem-no agir, deixem que Ele trabalhe neste crescimento”. A JMJ foi um encontro de esperança; reacendeu o ânimo

das juventudes e a capacidade de mobilização. Todas as dioceses do Brasil estavam representadas por seus jovens, que viviam e testemunhavam a fé e a esperança. A Jornada Mundial da Juventude foi precedida pelo programa Magis Brasil 2013, uma atividade com jovens que compartilham da espiritualidade inaciana. O Magis Brasil reuniu, na cidade de Salvador, 1.800 jovens, advindos dos cinco continentes, com o objetivo de prepararem-se para celebrar a fé e o compromisso com a construção de uma sociedade que sinalize o Reino. O evento ofereceu diversas experiências de inserção e imersão em diferentes cidades do país. Na época, eu residia em São Leopoldo, e então organizei uma peregrinação na região das Missões, no Rio Grande do Sul, da qual participaram jovens de três nacionalidades, durante quatro dias de caminhada. Pensando nas suas vivências e estudos em outros países, gostaria que o senhor relatasse algumas dessas experiências. E como esses tempos e espaços experienciados se articulam à ideia de cidadania global da Companhia de Jesus? Assim que ingressamos na Companhia de Jesus, tomamos consciência da universalidade da missão. Os primeiros jesuítas revelam a internacionalidade do grupo fundador, que era formado por homens vindos da Espanha, de Portugal, da França. Em poucos anos de fundação, a Companhia estava espalhada nos cinco continentes, e agora ela se faz presente

em aproximadamente 120 países. Desde 1549, os jesuítas atuam em nosso território nacional. Em relação às etapas de formação, temo-las bem estruturadas em nosso país. Também realizamos estudos especiais ou etapas de formação no exterior. Concretamente, fiz estudos de Teologia Moral, em Madri, e a Terceira Provação, em Havana. Fiz, também, estudos em Dublin. No que diz respeito à Ter-

ceira Provação, esta é uma etapa de formação que prepara para a incorporação definitiva em nossa ordem religiosa, através da profissão dos últimos votos; realizei essa etapa formativa na ilha caribenha com um grupo de 12 jesuítas, vindos de sete países. Assim, depois de alguns anos de ingresso na Companhia de Jesus, a experiência da Terceira Provação nos propõe um tempo especial para reler a opção pela vida religiosa consagrada. Fazemos isso a partir dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio, durante 30 dias,

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Tanto o campo quanto a cidade necessitam dela. O homem do campo apropria-se dela com grandes benefícios; assistimos a novos inventos tecnológicos, acessíveis a todos, e os “nativos digitais” apropriam-se deles de modo espontâneo. Junto ao entusiasmo com as novas tecnologias, fazem-se necessários o resgate e uma maior sensibilização com as questões socioambientais.

e também visitamos e aprofundamos nossos conhecimentos sobre os principais documentos da Companhia de Jesus. Conviver com outros jesuítas, vindos de diversos países, brinda-nos com profundas experiências de partilha de fé e adesão à pessoa de Jesus Cristo. Por isso, sou muito grato e faço questão de externar minha alegria, inclusive por ter conhecido o P. Benjamin González Buelta SJ, instrutor, mestre e guia. P. Benjamim, em tom poético, ofereceu-nos excelentes textos de espiritualidade, os quais nos convidaram a lançar novos olhares sobre a vida, sempre centrados na pessoa de Jesus Cristo. Sabemos que o senhor tem grande apreço pelo campo e pelo meio ambiente. Como fazer as crianças e os jovens, tão afeitos às novas tecnologias, se conectarem também à natureza em uma perspectiva de Casa Comum? De modo geral, a tecnologia está incorporada em nosso cotidiano.

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A sensibilidade, o encanto e o valor que damos à natureza passam pela educação e pela contemplação. Santo Inácio, nos Exercícios Espirituais, convida-nos à atitude de saborear e contemplar: “Não é o muito saber que sacia e satisfaz a alma, mas o sentir e saborear internamente as coisas” (EE, 2). Aqui, aparece a pedagogia do contemplar, do observar e do saborear; aliás, a Filosofia nasce da contemplação, ou seja, do olhar profundo e atento da realidade. O homem do campo conhece o tempo, o espaço, o ritmo e o cuidado necessário a uma planta, para seu desenvolvimento. As novas tecnologias apresentam outro ritmo, e, aos afeitos pela tecnologia, a observação do tempo próprio da natureza pode ser de grande valia. A escola, nesse mesmo intuito, deve oferecer vivências de contato e encontro com a natureza; encontros que ajudem a sentir e saborear a obra criada. As escolas de Companhia de Jesus, em sua proposta pedagógica e estrutura física, oferecem a possibilidade de criar esse encontro da criança com

a natureza, o que leva a transformar o olhar e a sensibilidade da criança. Vale dizer, também, que as Campanhas da Fraternidade dos anos de 2016 e 2017 trataram do tema da Casa Comum e dos biomas brasileiros, despertando um maior cuidado com o meio ambiente, por abordarem o cuidado com a própria vida. Aliás, a qualidade da vida humana está relacionada com a saúde do nosso entorno; o olhar de fé e o compromisso com a justiça, traços característicos da espiritualidade inaciana, levam-nos a contemplar a Casa Comum como obra do Criador, fazendo desta maravilhosa obra um espaço de inclusão social e convivência fraterna. A encíclica Laudato Si’, publicada pelo Papa Francisco em 2015, faz uma crítica ao consumismo e ao desenvolvimento irresponsável, apelando para o combate à degradação ambiental e às alterações climáticas. O Papa, inclusive, questiona sobre o tipo de mundo que queremos deixar a quem vai suceder-nos, às crianças que estão a crescer. Isso em vista, não podemos conceber o meio ambiente de maneira isolada, de forma fragmentária ou paralela à vida humana. Somos também meio ambiente, por isso o cuidado com o meio ambiente é o cuidado com a qualidade da vida humana. Sob uma perspectiva teológica, podemos dizer que nossa fidelidade a Deus deve manifestar-se na preservação de tudo o que é necessário para que a grande família humana possa viver com dignidade e justiça, em um ambiente


bem cuidado. Essa fidelidade nos impulsiona a colaborar com Jesus Cristo na obra da criação e construir um mundo que ofereça condições dignas para todos, especialmente aos mais pobres. Deus colocou o homem em Seu jardim com a vocação de cuidar e guardar a criação. Nosso seguimento e adesão a Jesus Cristo exige o zelo e o respeito pela obra criada. Assim, como colaboradores da missão de Cristo, cabe a nós cuidar e zelar pela obra criada. Em outras palavras, somos chamados como cristãos a “cuidar da nossa Casa Comum”, como tem destacado constantemente o Papa Francisco, em suas reflexões. Desta forma, estaremos contribuindo para uma convivência mais harmoniosa, equilibrada e justa com a criação (biomas) e com as criaturas, ajudando na construção de um planeta mais sustentável, fraterno e solidário. Antes de assumir a Direção Geral do Medianeira, o senhor atuou como coordenador da Formação Cristã e Pastoral do Colégio Catarinense, em Florianópolis. Qual o papel pedagógico da espiritualidade na Educação Básica? Talvez convenha dizer que a palavra espiritualidade sofre prejuízo. Ela, em boa parte, ainda é vista como esfera distante da vida real, fruto de uma concepção entre o dualismo corpo-espírito ou a oposição entre espírito e matéria. Isso pode desencadear uma fé intimista, individualista, divorciada da realidade. Diferentemente da tradição grega, a tradição

judaico-cristã apresenta-nos a Palavra de Deus como integradora entre fé e vida; a Bíblia enfatiza a ligação entre o amor a Deus e o amor ao próximo. Concebemos a espiritualidade como um modo de viver em relacionamento com Deus e com os outros; ela envolve a pessoa em todas as suas realidades e dimensões. Nesse sentido, o PEC fala do cultivo das diversas dimensões, em vista da formação de pessoas íntegras e autônomas: espiritual, ética, afetiva, estética, cognitiva, comunicativa, corporal e sociopolítica. O Projeto Pedagógico e Pastoral da escola, pautado em uma sólida espiritualidade, visa a dinamizar e celebrar os valores que a regem. O cultivo dos valores merece atenção especial, pois é perceptível sua crise nos tempos modernos. Ao conceber a escola com a função social de inserir o aluno no mundo dos conhecimentos sistematizados e para a autonomia, torna-se imprescindível o papel da Pastoral no Projeto Pedagógico. Ela dá o sabor das vivências, dialoga com os diversos eixos pedagógicos e oferece experiências de celebração, vivências solidárias, o cuidado com o cuidador, a dimensão da escuta e a atenção personalizada, por exemplo. Vale dizer que Inácio e seus primeiros companheiros tiveram clara a missão de “ajudar as almas”, sem ficar restritos a uma única tarefa, imposta por circunstâncias históricas. Ao optar por consagrar a Companhia nascente à educação escolar da juventude, os primeiros jesuítas puseram

o aluno no centro das atenções, posto que visavam à formação de homens íntegros, voltados ao bem da Igreja e da sociedade, capazes de convidar outros jovens para esse tipo de compromisso. Como se configura a missão da Companhia de Jesus, e também do Medianeira, frente ao atual cenário de mudanças e transições de nossa sociedade? Vivemos em um tempo de mudanças, por isso, a adaptação aos novos tempos é imperativa. Igualmente, é imperativo ler e interpretar os sinais dos tempos, desenvolver a cultura do discernimento e ter clareza da missão, da nossa vocação humana e do nosso papel como instituição, como ordem religiosa. Frente ao cenário de mudanças, não abrimos mão dos valores que inspiram e orientam de modo saudável e sustentável o desenvolvimento da vida humana, em todas as suas dimensões. O trabalho em Rede deve configurar a ação apostólica em tempos de mudança. Ninguém age de modo isolado; sempre temos muito a aprender com outras experiências e com uma ação conjunta. A Província dos Jesuítas no Brasil (BRA) busca uma nova maneira de realizar a missão, adaptada aos nossos tempos e dinamizada pelo trabalho em rede. Em seu Plano Estratégico, estabelece quatro Preferências Apostólicas, que visam a orientar o apostolado: a experiência transformadora da fé, as juventudes, a superação do abismo das desigualdades e a consciência amazônica. A missão

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da Companhia de Jesus, descrita no Plano Estratégico, reza que, “[...] como homens de Igreja, ‘servidores da missão de Cristo’ e inflamados por Sua paixão pelo Reino, sentimo-nos enviados às novas fronteiras de nosso país, de nosso continente e do mundo, chamados a reinventar nosso serviço à fé, à promoção da justiça e ao diálogo com as culturas e com as outras religiões, colaborando com outros(as), para que se realize o projeto divino de reconciliação, para a maior glória de Deus e a salvação do mundo”. O Colégio Medianeira faz parte da Rede Jesuíta de Educação. Seu plano pedagógico orienta-se a partir da tradição da Companhia de Jesus, seu carisma e missão. Certamente, entre os documentos próprios e mais recentes que inspiram o fazer pedagógico, estão as Congregações Gerais, as Características da Companhia de Jesus, a Pedagogia Inaciana e o Plano Estratégico da Província dos Jesuítas do Brasil, além de outros. O Colégio também se orienta nas prioridades da Rede Jesuíta de Educação: Programa de Liderança Juvenil, Projeto Educativo Comum, Projeto Moodle, acordos do JESEDU, ONU Colegial, Concurso de Redação e Arte da Rede, Mestrado e Especialização em Educação Jesuíta e outros. Essas atividades em Rede marcam o processo educativo. Em tempos de “fatos alternativos” e fake news, de que maneira a Educação Básica deve

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atuar na formação de uma pessoa capaz de ler e interpretar as diversas realidades que surgem em seu horizonte? Visamos, em nossa proposta educativa, à formação de homens e mulheres competentes, com espírito crítico, capazes de se posicionarem de maneira madura diante das adversidades da vida. Os alunos estão em franco desenvolvimento em todas as suas dimensões e imersos em um mundo concreto, até cruel, muitas vezes. Daí a importância em formarmos em valores humanos e cristãos, com vistas a fundamentar as ações éticas. Na busca do Magis, nossa educação capacita para o exercício da cidadania de modo responsável e consequente. Vemos que é fundamental formar para uma consciência crítica que favoreça o discernimento e a capacidade de filtrar a enxurrada de informações que são publicadas a cada dia, optando por um modo de vida que defenda a verdade, a dignidade humana, a sustentabilidade do nosso planeta. A formação nas virtudes e letras é o que marca a diferença e oferece elementos para um sadio discernimento. O P. Pedro Arrupe, Superior-geral da Companhia de Jesus no período de 1965 a 1983, dizia que a Companhia de Jesus deve formar homens para os demais, sublinhando a dimensão do serviço. Nesse sentido, penso que a formação nos valores seja a peça-chave para o exercício da lideran-

ça – líderes que tenham, na justiça e no serviço, seus principais compromissos (PEC, 52); líderes capazes de ler e interpretar as diversas realidades, denunciando as mentiras e o que ameaça e degrada a vida humana. Mais que isso, líderes que contribuam para uma nova lógica social, fundamentada na ética, no serviço e no amor. Que mensagem o senhor gostaria de deixar para a comunidade educativa do Medianeira? Antes de tudo, quero reconhecer o valioso trabalho educativo que está sendo feito no Colégio Medianeira. Agradeço pela dedicação de cada um dos educadores e agradeço às famílias que confiam ao Colégio Medianeira a educação de seus filhos. O Colégio possui um excelente plano pedagógico, fruto do esforço de muitas mãos, desejosas em servir. Junto-me a tantos profissionais, igualmente desejoso em contribuir com a missão de educar, pois esse é um empreendimento nobre. Tocamos o coração e a vida de alunos, educadores, famílias; a escola ajuda a educar na formação integral, em vista do bem comum. Lidamos com tensões próprias da vida humana, mas educamos movidos pela esperança e pelo amor. Confiamos que a missão educativa se realiza em parceria entre família, escola e comunidade, dessa forma, juntos, celebramos o crescimento afetivo, cognitivo e espiritual de nossas crianças e jovens. comente este artigo: comunicacao@colegiomedianeira.g12.br


O Papa JESUÍTA e a consciência GLOBAL Francisco segue os passos de Inácio e atualiza a imagem do mundo como morada, convidando todos a cuidar da casa comum. Por P. Claudio Paul, S.J.

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ue conexão haveria entre um papa jesuíta e a consciência global? Para responder à pergunta, deve-se ir à experiência fundante de todo membro da Companhia de Jesus: os Exercícios Espirituais de S. Inácio de Loyola.

Q

No “retiro inaciano”, um momento fundamental – porque toca o núcleo da experiência cristã – é a contemplação da Encarnação. Nela se é convidado a contemplar “a grande capacidade e redondeza do mundo, na qual estão tantas e tão diversas gentes”, mas também “a casa e os aposentos de nossa Senhora, na cidade de Nazaré, na Província da Galileia”. Essa contemplação tem três “efeitos”. Primeiro, a atenção se volta à realidade humana na sua totalidade, convida a uma “consciência global”. Em segundo lugar, sensibiliza àquela diversidade da realidade humana. Por fim, enfoca o particular, o “detalhe”. Cria-se uma tensão produtiva entre global, geral, universal, por um lado, e local, particular, individual, por outro. Daí se compreende a máxima inaciana: “É divino não se deixar limitar pelo máximo, e, ao mesmo tempo, deixar-se abarcar pelo mínimo”. Deus pode ir sempre mais além, sem, contudo, perder a capacidade de acomodar-se ao limitado, o que nos recorda o neologismo “glocal”: a atenção expandida à dimensão global, mas com uma ação efetiva no âmbito local. A Companhia de Jesus nasce da experiência dos Exercícios

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Espirituais, por isso, desde seus inícios, se compreende com uma vocação aberta ao universal e, ao mesmo tempo, atenta ao particular de cada situação. O horizonte global da Companhia nascente transparece no fato de que, menos de um ano depois da sua fundação (1540) um de seus “membros fundadores”, S. Francisco Xavier, é enviado à Índia. Dali vai às ilhas que hoje compõem a Indonésia, e por fim chega ao Japão (1549). Morre pouco depois, em 1552, em uma ilhota perto de Macau, tentando chegar à China. Mas também na direção oposta se movia a Companhia. Em 1549, os jesuítas chegam à América, ao Brasil, liderados pelo P. Manuel da Nóbrega. Outro grupo é enviado à Etiópia em 1557. Assim, em menos de 20 anos, há jesuítas presentes em quase todos os continentes. Entretanto, a tensão produtiva entre universal e particular não se perde. Inácio, nas Constituições da Companhia, com frequência especifica que as regras devem ser entendidas e aplicadas “segundo tempos, lugares e pessoas”, tomando em conta cada situação em suas particularidades. Aquela tensão percebe-se também na correspondência entre o governo central da Companhia e os jesuítas espalhados pelo globo. Inácio insistia muito em que escrevessem regular e abundantemente, relatando as atividades missionárias, mas também descrevendo as carac-

terísticas de cada região. Esses relatos continuam sendo hoje fonte de informação sobre geografia, geologia, fauna, flora, astronomia, etnologia, linguística, história... Nada é alheio ao interesse dos jesuítas, exercitados na prática de “buscar e encontrar a Deus em todas as coisas”. O intercâmbio de tanta informação ajudou a Companhia a formar uma imagem global da realidade. As preocupações localizadas eram também interesse de todos. Os recursos humanos e materiais se distribuíam segundo a percepção da universalidade da missão da Companhia, mas tomando em conta as necessidades de cada situação. Passados já quase cinco séculos desde sua fundação, a perspectiva global continua marcando a vida e a missão da Companhia. Seus 16.000 membros estão distribuídos em 80 “províncias” em 120 países. Desde há algumas décadas, a Companhia define sua missão como um serviço à fé conectado à promoção da justiça, ambos vividos no diálogo com as culturas e as religiões. Contemplando o mundo atual, a Companhia percebe que uma nova urgência da sua missão global é colaborar em processos de reconciliação. São evidentes as rupturas e conflitos: entre países, povos, religiões, correntes políticas e ideológicas. Há uma forte ruptura no próprio equilíbrio da vida no planeta e um processo de dissociação entre os seres humanos e seu Criador. A Companhia reconhece as dimensões globais desses


processos e deseja colaborar no enfrentamento dessas dinâmicas de ruptura, marginalização, violência, vingança, destruição e degradação. O atual horizonte internacional de fato parece marcado por um “retrocesso” na “consciência global”. A crise que certo tipo de “globalização” gerou e mantém leva a que interesses particulares se sobreponham ao interesse comum. Sente-se um enfraquecimento de projetos e instituições com horizontes mais amplos ou globais. Os líderes dos grandes blocos político-econômicos estão mais interessados em garantir seus interesses particulares ou regionais em detrimento do interesse de todos. Honrosa exceção nessa realidade é a voz do Papa Francisco. Certamente inspirado por sua experiência espiritual como jesuíta – revivendo ano após ano os Exercícios de S. Inácio –, Francisco publicou, em 2015, a encíclica Laudato Si´ (LS). Fazendo jus ao seu papel de líder católico – uma vez que “católico” significa “referente à totalidade” –, o Papa Francisco deixa claro, já no início de sua mensagem, que não se dirige somente à Igreja. Quer “entrar em diálogo com todos acerca da nossa casa comum” (LS 3). Mais adiante, afirmará a importância de “revigorar a consciência de que somos uma única família humana. Não há fronteiras nem barreiras políticas ou sociais que permitam isolar-nos e, por isso mesmo, também não há espaço para a globali-

zação da indiferença.” (LS 52). De fato, o Papa reconhece que “as negociações internacionais não podem avançar significativamente por causa das posições dos países que privilegiam os seus interesses nacionais sobre o bem comum global” (LS 169). Por isso, propõe um diálogo do qual ninguém se sinta excluído. O Papa não hesita em afirmar “tudo está estreitamente interligado no mundo” (LS 16). Francisco reconhece a existência de uma concepção do planeta como pátria de todos, e da “humanidade como um povo que habita uma casa comum” (LS 164). Por isso, afirma não bastar reconhecer os efeitos negativos globais das atuais práticas de produção e consumo de energia e bens. O que se requer agora é “procurar que as soluções sejam propostas a partir duma perspectiva global e não apenas para defesa dos interesses de alguns países. (...) Para enfrentar os problemas de fundo, que não se podem resolver com ações de países isolados, torna-se indispensável um consenso mundial.” (LS 164). O Papa reitera a necessidade de uma ação global que nasça e seja coerente com uma verdadeira consciência global, pois “buscar apenas um remédio técnico para cada problema ambiental que aparece, é isolar coisas que, na realidade, estão interligadas e esconder os problemas verdadeiros e mais profundos do sistema mundial.” (LS 111). Contudo, essa forte consciência global não elimina o valor

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da particularidade. Pelo contrário. Francisco critica duramente “a economia globalizada atual, [que] tende a homogeneizar as culturas e a debilitar a imensa variedade cultural, que é um tesouro da humanidade.” (LS 144) Francisco afirma que não se pode “negligenciar a complexidade das problemáticas locais, que requerem a participação ativa dos habitantes. Os novos processos em gestação nem sempre se podem integrar dentro de modelos estabelecidos do exterior, mas hão de ser provenientes da própria cultura local.” (LS 144). Sem dúvida, a Encíclica preocupa-se com a conservação da biodiversidade; contudo, o Papa afirma, com radicalidade e coragem, que “o desaparecimento de uma cultura pode ser tão

ou mais grave que o desaparecimento de uma espécie animal ou vegetal” (LS 145). Por isso, além da preocupação ecológica, o Sínodo Extraordinário sobre a Amazônia, convocado para 2019, quer ser ocasião para fazer ouvir especialmente as vozes de culturas minoritárias ameaçadas em sua sobrevivência. Nesse sentido, afirma o Papa, é fundamental tomar muito a sério “a perspectiva dos direitos dos povos e das culturas” e favorecer “o protagonismo dos atores sociais locais a partir da sua própria cultura. Nem mesmo a noção da qualidade de vida se pode impor, mas deve ser entendida dentro do mundo de símbolos e hábitos próprios de cada grupo humano” (LS 144). Em 1561, falando aos jesuítas na Espanha, o P. Jerônimo de

Nadal usou uma expressão que se tornou famosa: “O mundo é nossa casa”: a amplidão do globo, a particularidade da morada. O papa jesuíta, passados cinco séculos, retoma e atualiza essa imagem ao convidar as pessoas de boa vontade ao “cuidado da casa comum”. comente este artigo: comunicacao@colegiomedianeira.g12.br

Claudio Paul é nascido em Porto Alegre (1962), estudou no Colégio Anchieta. Cursou Letras na UFRGS e, em 1987, entrou na Companhia de Jesus, no Noviciado em Cascavel. Fez seu período de Magistério (1993-1994) no Colégio Medianeira. Foi ordenado presbítero em 1998. Depois de estudar no Pontifício Instituto Bíblico em Roma, foi professor na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE) em Belo Horizonte, até 2012, quando foi enviado a colaborar em Cuba. Desde 2017, trabalha na Cúria Geral da Companhia de Jesus em Roma, como Assistente do Padre Geral.

Recomendações Grande Sertão: Veredas Guimarães Rosa | Nova Fronteira Na obra, o sertão é visto e vivido de uma maneira subjetiva e profunda, e não apenas como uma paisagem a ser descrita, ou como uma série de costumes que parecem pitorescos. Sua visão resulta de um processo de integração total entre o autor e a temática, e dessa integração a linguagem é o reflexo principal. Para contar o sertão, Guimarães Rosa utiliza-se do idioma do próprio sertão, falado por Riobaldo em sua extensa e perturbadora narrativa.

A Partida Diretor Yojiro Takita | 131 min Em busca de emprego, após ser despedido da orquestra em que tocava, Daigo se candidata a uma vaga bem remunerada sem saber qual será sua função. Mais tarde descobre que será assistente de um agente funerário, o que significa que terá que manipular pessoas mortas. De início sente nojo da situação, mas a aceita devido ao dinheiro. Aos poucos ele passa a compreender melhor a tarefa de preparar o corpo de uma pessoa morta para que tenha uma despedida digna.

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A COMUNICAÇÃO

a serviço da Missão

Universal da COMPANHIA DE JESUS Javier González, responsável pela Comunicação da FLACSI, relata como as estratégias de interação e integração entre colégios de diferentes países são importantes para a disseminação dos ensinamentos de Santo Inácio na América Latina. Por Javier González. Tradução por Jonatan Silva

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A

dimensão das comunica-

maneira, é possível que as comu-

mundo. Como diz Papa Francisco,

ções encarna na atualida-

nicações sejam orientadas a partir

“temos que estar entre os jovens,

de um meio de colabora-

de três âmbitos: comunicar a atu-

com a linguagem que eles me-

ção criativa e estratégica

alidade de nossos colégios e re-

lhor entendem: a do coração”. E

para o serviço à Missão Universal

des; compartilhar o trabalho con-

a comunicação não tem que estar

da Companhia de Jesus. A 36ª

junto que se leva a cabo partindo

distante. Não há encontro sem co-

Congregação Geral estabelece o

dos projetos federativos; e contri-

municação e se esta comunicação

trabalho em rede como uma das

buir cada vez mais para promover

quer ser efetiva tem que tocar o

linhas definitivas do nosso atual

uma consciência global. A seguir,

coração.

modo de proceder e, nesse con-

apresentam-se algumas das ações

texto, assegura que “as novas tec-

mais significativas que se vêm de-

nologias de comunicação abrem

senvolvendo e que podem ajudar

formas de organização que faci-

a observar a transversalidade das

litam a colaboração. Fazem pos-

comunicações da FLACSI a partir

sível a mobilização de recursos

das áreas levantadas.

humanos e materiais em apoio à

frente a fenômenos de alcance global entre nossos estudantes: nativos digitais que cresceram em um mundo globalizado. Exemplo

de atividades nas páginas da inter-

disso foi a última iniciativa reali-

net, um boletim informativo men-

zada: I Concurso de Arte FLACSI,

sal e uma página de Facebook, na

chamado “Miradas de Hospita-

A partir da Federação Latino-

qual a prioridade é dar voz aos

lidad e Migración”, do qual par-

-americana de Colégios da Com-

colégios e redes da FLACSI para

ticiparam mais de 180 obras de

panhia de Jesus (FLACSI) se deu

que compartilhem suas notícias

19 colégios em 10 países. Trata-

início a um processo de reflexão,

sobre atividades e experiências

-se de uma experiência na qual

que parte do diálogo da natureza

significativas.

os estudantes puderam expressar

ras nacionais e das fronteiras das Províncias e Regiões1 ”.

suas opiniões e propostas de ação

da rede e das problematizações

No âmbito dos projetos fede-

da Congregação, para avançar no

rativos, se dá prioridade às ativi-

desenvolvimento de uma estraté-

dades que se dirigem a partir da

gia de comunicação coerente com

FLACSI com um enfoque institu-

a missão da FLACSI, de ser um

cional. Isso implica trabalhos de

corpo latino-americano que con-

convocatória permanente às ati-

“#TodosSomosTierra” e “Somo-

tribui, a começar pela educação,

vidades, apoio técnico e reuniões

sHermanosdelosRefugiados”, que

e que serve de ponte para apro-

virtuais, elaboração de texto on-

tiveram uma resposta bastante

ximar as comunidades educativas

-line com atualização dos projetos

positiva e permitiram um avanço

de todo o continente e projetá-las

e newsletters.

na construção de uma visão de re-

para o mundo.

O terceiro âmbito que se faz

Por essa razão, o Direciona-

frente a um fenômeno de alcance global como é o caso da migração forçada. Igualmente, aconteceram os concursos no Instagram:

gião e de mundo dos estudantes.

mencionado é o de contribuir

Assim, buscando instâncias de

2018-2020

para a consciência global. Trata-se

encontro para a reflexão, trans-

da federação estabelece a co-

de um desafio recente, em que a

formação e ação conjunta para

municação como uma estratégia

FLACSI se faz interlocutora direta

a reconciliação integral, a partir

transversal a todos os programas

dos estudantes, ao ser a federa-

da FLACSI se criou uma linha de

e projetos federativos. Da mesma

ção um meio para projetá-los ao

comunicação: “FLACSI jóvenes”,

mento

1

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que promovam a solidariedade

Contamos com uma agenda

missão e ir mais além das frontei-

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Esse desafio e esse chamado nos levaram a diversas iniciativas

Estratégico

CG 36, D. 2 “Un gobierno renovado para una misión renovada”, n. 8. Compañía de Jesús.


A Federação Latino-Americana Colégios Companhia A Federação Latino-Americana dede Colégios dadaCompanhia dede de A Federação Latino-Americana de Colégios Companhia A Federação Latino-Americana de Colégios da da Companhia Jesus (FLACSI) é uma organização internacional sem finslucratilucratiJesus (FLACSI) é uma organização internacional sem fins Jesus (FLACSI) éé uma internacional sem fins lucratide Jesus (FLACSI) umaorganização organização internacional sem vos, subordinada à Conferência de Provinciais da Companhia de vos, à Conferência Provinciais da de vos, subordinada à Conferência de Provinciais da Companhia finssubordinada lucrativos, subordinada àde Conferência deCompanhia Provinciais da de Jesus na América Latina (CPAL). Companhia Jesus na América Latina (CPAL). Jesus naJesus América Latina (CPAL). nadeAmérica Latina (CPAL). A FLACSI é formada por 92 instituições educativas, jesuítas A FLACSI é formada por 92por instituições educativas, jesuítas ee e A FLACSI é formada 92 instituições educativas, jesuítas A FLACSI é formada por 92 instituições educativas, jesuítas inacianas queque têmtêm ensino infantil, fundamental e médio. inacianas fundamental e médio. inacianas que têm ensinoensino infantil,infantil, fundamental e médio. e inacianas que têm ensino infantil, fundamental e médio. Todas estão agrupadas em 13 Províncias da Companhia de de Todas estão agrupadas 13 Províncias da Companhia Todas estão agrupadas emem 13 em Províncias dadaCompanhia de Todas estão agrupadas 13 Províncias Companhia de Jesus, queque correspondem a 19apaíses. correspondem 19 países. Jesus, que correspondem aa19 Jesus, Jesus, que correspondem 19países. países.

140.000 140.000 140.000 10.000 10.000 10.000 Alunos AlunosAlunos

Professores e e e Professores Professores Acompanhantes Acompanhantes Acompanhantes

9292 92

Colégios Colégios Colégios

1919 13 1313 Países Países Países

Províncias Províncias Províncias Jesuítas Jesuítas Jesuítas

Fundação FLACSI: FLACSI: Fundação FLACSI: 2001 setembro 5Fundação 5 setembro 20012001 5 setembro

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que integra as diferentes linhas de

apostólico tão variado em cultu-

trabalho da Cidadania Global que

ra, lugares do mundo e situações

levam adiante tendo a federação

diversas. Unidos através de uma

como ponto inicial. Realizam-se pu-

comunicação interna efetiva, se

blicações na página do Facebook e

faz possível que comuniquemos

no perfil do Instagram (@flacsijo-

melhor a mesma mensagem aos

venes) com o objetivo de repre-

demais ”.

sentar experiências de formação no Horizonte da experiência Humana Integral.

Contudo, a principal aprendizagem desta experiência é que importa muito o conteúdo da

FLACSI Jóvenes tem facilitado

mensagem e como transmiti-la.

aos estudantes um conhecimen-

Nos encontramos trabalhando em

to mais profundo da realidade

um âmbito de grande relevância

do continente latino-americano,

social. A comunicação está cha-

para constituir-se em atores com-

mada nos últimos anos a ter um

prometidos com a transformação

papel-chave para a transforma-

das estruturas que produzem

ção da sociedade global em que

injustiça.

vivemos.

Da mesma maneira, contribui para que “se nos comunicarmos bem, fazemos vivo este corpo

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Javier González é chileno, publicitário de profissão, é formado em Sociologia pela Universidad Alberto Hurtado de Chile e em Gerência Social Inaciana pela Pontificia Universidad Javeriana de Colombia. Desde 2013 é o responsável pelas Comunicações da Federação Latino-americana de Colégios da Companhia de Jesus (FLACSI).

Recomendações Comunicação Não-Violenta Marshall B. Rosenberg | Editora Ágora Manual prático e didático que apresenta metodologia criada pelo autor, voltada para aprimorar os relacionamentos interpessoais e diminuir a violência no mundo. Aplicável em centenas de situações que exigem clareza na comunicação: em fábricas, escolas, comunidades carentes e até em graves conflitos políticos.

O poder da empatia Roman Krznaric | Zahar Um antídoto poderoso para esses tempos de individualismo e uma ferramenta eficaz para uma vida melhor a empatia tem o poder de curar relacionamentos desfeitos, derrubar preconceitos, nos fazer pensar em nossas ambições e até mesmo mudar o mundo. Nesse livro, o filósofo e historiador da cultura Roman Krznaric sustenta que, ao contrário do que pensamos, não somos eminentemente autocentrados, pois nosso cérebro é equipado para a conexão social.

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Manuel Castells: o mago da sociedade em rede Pensador fundamental para entender os nossos tempos de conexão e informação ininterruptas, Castells escrutina, ao longo de toda a sua obra, as relações espelhadas entre o sujeito e a internet. Por Miguel Angelo Manasses

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Manuel Castells Oliván, mundialmente conhecido como Manuel Castells, é um sociólogo que nasceu em Hellín, uma pequena cidade espanhola pertencente à província de Albacete, em 09 de fevereiro de 1942, e que a partir da década de 1970 iniciou uma forte e consistente produção bibliográfica, primeiramente no campo da sociologia e, posteriormente, nas tecnologias de informação e comunicação, que o fizeram ser o maior expoente da era da informação e das sociedades em rede do planeta. Castells começou a escrever a sua história na juventude quando, em 1958, iniciou a sua graduação em Direito e Ciências Econômicas, na Universidade de Barcelona. Porém, nesse período a Espanha era governada pelo ditador

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Francisco

Castells

pela Universidade de Paris, em

fazia parte do grupo de jovens

1967, e no mesmo ano tornou-se

que protestava contra o regime

professor assistente de Sociologia

distribuindo, em cinemas e nas

na mesma universidade pela qual

ruas da capital da Catalunha,

se pós-graduou Doutor.

folhetos

Franco,

que

e

denunciavam

o

governo franquista.

Na década de 1970, Castells tornou-se marxista, contribuin-

Por sua militância política con-

do destacadamente para a então

tra a ditadura espanhola acabou

chamada Sociologia urbana mar-

perseguido e mudou-se para Paris, em maio de 1962, em virtude de um exílio político. Dois anos mais tarde formou-se em Direito e Ciências Econômicas pela Universidade de Paris e, no ano seguinte, obteve o diploma de Ciências Sociais do Trabalho, também pela Universidade de Paris. Nos anos seguintes, Castells investiu em sua pós-graduação, tornando-se

xista, ressaltando a importância dos movimentos sociais na rápida transformação urbana que ocorria na época, além de fundamentar o conceito de consumo coletivo defendendo que os locais de consumo da cidade, que também reproduzem a força de trabalho, são os que têm mais força política dentro dos conglomerados urbanos.

Mestre em Sociologia, pela Escola

Durante a década de 1970 até

Prática de Altos Estudos de Paris,

a primeira metade da década de

em 1966; Doutor em Sociologia,

1980, Castells escreveu sólidas


obras a respeito de movimentos sociais, ocupações de espaços urbanos, poder, lutas de classes e crises econômicas. Em meio às suas pesquisas em movimentos sociais, ele finaliza o segundo Doutorado, desta vez pela Universidade de Madrid. Foi também na mesma década, mais precisamente em 1979, que ele se tornou professor catedrático de Sociologia, na Universidade da Califórnia. Entretanto, ainda em meados da década de 1980, Castells promoveu uma guinada em seu pensamento científico e suas pesquisas aproveitando-se de seus sólidos conhecimentos em economia para estudar como as tecnologias de informação e comunicação - que surgiram na época e estavam em franco desenvolvimento, fenômeno este que segue se desenvolvendo até os dias de hoje - redefiniram a superestrutura econômica mundial. Em 1988, tornou-se professor catedrático em Sociologia da Universidade Autônoma de Madrid. Após consolidar suas pesquisas a respeito das tecnologias de informação e comunicação, em 1996, Castells lança o primeiro livro da sua trilogia mais famosa, A era da informação: economia, sociedade e cultura, intitulado A era da informação: a sociedade em rede; seguido do segundo volume, lançado em 1997, chamado A era da informação: o poder da identidade; e, por fim, em 1998, a obra intitulada A era da informação: fim do milênio.

Nessa trilogia, Castells afirma que as novas tecnologias de informação e comunicação se tornaram protagonistas na nova ordem econômica mundial pós-industrialização, na medida em que se desenvolveram e se baratearam, permitindo assim o surgimento de grandes conglomerados empresariais de caráter transnacionais. Obviamente, isso também provocou uma mudança nas relações de trabalho, com a exigência de profissionais cada vez mais qualificados para ocupar as novas vagas que surgiram, aumentando a competição por esses cargos.

nos Estados Unidos, Castells dei-

Além disso, Castells analisou a crise que a sociedade em rede provocou no seio de instituições centrais da sociedade como família, costumes e igreja, além da dissolução de estados como a União Soviética, bem como a formação de blocos econômicos, financeiros e políticos como a União Europeia. A trilogia A era da informação abriu caminho para que Castells se transformasse no primeiro grande sociólogo do ciberespaço e o cientista de comunicação mais lido no planeta.

em 2004; Ordem de Santiago,

Após discutir a sociedade em rede e seus múltiplos efeitos, em 2001 Castells lançou outra grande obra intitulada A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade, na qual se debruçou sobre os efeitos causados pela internet e sua cultura, já que, para ele, a internet revolucionou a comunicação mundial. Em 2003, após 24 anos de docência

Academia de Ciencias Econó-

xou a Universidade da Califórnia e retornou para Barcelona. O século XXI marcou o reconhecimento acadêmico mundial de Castells, em virtude de toda a sua produção acadêmica, composta por 26 livros, além de outros 22 que foi coautor e editor, e incontáveis artigos, resenhas, papers e apresentações. Entre os principais prêmios e homenagens recebidos destacam-se: Ordem de Artes e Letras, do Governo Francês, em 2002; Prêmio Ithiel de Sola Pool, da Associação Americana de Ciência Política, da Presidência de Portugal, em 2004; Cruz de Sant Jordi, do Governo da Catalunhã, em 2004; Ordem Gabriela Mistral, da presidência do Chile, em 2005; Prêmio Nacional de Sociologia e Ciência Política da Espanha, em 2008; Medalha Erasmus, da Academia Europeia, em 2011; Prêmio Holberg, do Parlamento da Noruega, em 2012; Prêmio CGLU - Cidade do México -Cultura 21, em 2014; além de ser membro das academias europeias, desde 1994; Real micas y Financieras da Espanha, desde 2005; Britânica, desde 2006; Mexicana de Ciências, desde 2010; Americana de Políticas e Ciências Sociais, desde 2011; e do Colégio St. John’s, em Cambridge, desde 2013. Além disso, Castells recebeu 18 doutorados Honoris Causa da América do Norte, América Latina, Ásia e Europa.

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Castells esteve no Brasil mais de 20 vezes, desde 1968, participando de conferências, palestras e seminários, além de atividades de assessoramento institucionais e empresariais e em 1999 recebeu a medalha de honra concedida

pela Universidade de São Paulo. A última visita de Castells ao Brasil foi para participar da Conferência #FSM15 anos, dos movimentos por outra globalização aos movimentos sociais em rede, e Conexões Globais Cidades Democráticas, do Fórum Social Mundial de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, em janeiro de 2016. Atualmente, Manuel Castells está com 76 anos, mora em Barcelona, na Espanha, e se mantém ativo do ponto de vista acadêmico realizando palestras a convite de

instituições educacionais, organizações civis, empresas das mais diversas áreas e governos ao redor do mundo.

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Miguel Angelo Manasses é graduado em Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade Tuiuti do Paraná (2004) e mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2010). É professor da PUCPR, produtor de rádio e TV da Paraná Educativa e já fez parte das redações do portal Paraná Online e do jornal Tribuna do Paraná.

Recomendações Redes de indignação e esperança Manuel Castells | Zahar Manuel Castells examina os movimentos sociais que eclodiram em 2011 - como a Primavera Árabe, os Indignados na Espanha, os movimentos Occupy nos Estados Unidos – e oferece uma análise pioneira de suas características sociais inovadoras: conexão e comunicação horizontais; ocupação do espaço público urbano; criação de tempo e de espaço próprios; ausência de lideranças e de programas; aspecto ao mesmo tempo local e global.

Ruptura Manuel Castells | Zahar Neste livro, o autor lança seu olhar sobre a crise econômica que se prolonga em precariedade de trabalho e desigualdade social; o terrorismo fanático que impossibilita a convivência e alimenta o medo; a permanente ameaça de guerras atrozes como forma de lidar com conflitos; as inúmeras violações aos direitos humanos e à vida.

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O ENSINO e a APRENDIZAGEM integral da

língua estrangeira A língua estrangeira é um chamado para conhecer o outro e sua realidade. Em vez de transformar o idioma em um instrumento de exclusão social, cabe à escola fazer dele uma ferramenta de interação. Por Alessandro França Quadrado mediação

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relevância da ampliação do ensinonaprendizagem da língua estrangeira nas escolas de educação básica. A história do ensino da língua estrangeira na educação básica envolve idas e vindas em termos de valorização e prestígio no cenário nacional. Nesse sentido, a trajetória do ensino de línguas estrangeiras no Brasil, especialmente em nível secundário, confunde-se com a história da educação no país (CHAGAS, 1979). Ao longo de seu percurso, esse componente curricular sofreu sistemáticas reduções tanto no espaço ocupado nas escolas regulares, quanto em sua importância dentro de seus currículos. Dessa maneira, reformas educacionais, novas leis de diretrizes e criação de parâmetros curriculares atenuaram a notoriedade da língua estrangeira na educação básica ao longo de anos, muito frequentemente em virtude de uma propalada falta de condição para que ela se efetivasse. Sendo assim, em nome de um suposto árido contexto no Brasil, preferiu-se recuar diante do desafio que se impunha, a ter que se construir políticas efetivas e detalhadas para que se condicionasse seu ensino nas escolas de educação básica. Em contrapartida, enquanto restrições e supressões ocorriam, multiplicavam-se as escolas de idiomas que cumpriam e ainda cumprem o papel de preencher os espaços deixados pelo ensino regular obrigatório, porém, sem possibilitar a universalização de acesso às línguas estrangeiras, re-

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servado, dessa maneira, a camadas específicas da população. Todavia, nesse panorama, tanto escolas regulares de educação básica, quanto especializadas apresentavam lacunas em seus processos. Por um lado, aos que dependiam do estudo nas escolas de educação básica, faltava o ensino instrumental pleno das habilidades de comunicação em uma língua estrangeira: fala, escrita, leitura e compreensão auditiva. Por outro lado, aos que tinham a condição econômica de frequentar cursos livres de idiomas faltava a discussão mais ampla das implicações de se estudar uma língua estrangeira. Faltava-lhes a abordagem da língua não apenas sob o ponto de vista de um consumidor passivo, mas como forma de reconhecimento de uma cultura diferente da sua e não por isso superior ou melhor qualitativamente. Desse modo, apesar das carências de ambos os lados, um processo de ensinonaprendizagem integral, crítico e consciente de línguas estrangeiras encontra meios para desenvolver-se mais plenamente nas escolas de educação básica. Sob essa óptica, Donnini, Platero e Weigel (2011, p. 15) defendem que o ensinonaprendizagem de línguas esteja ancorado nessas escolas, pontuando que “a política e os objetivos de uma escola especializada de línguas não são, a priori, os mesmos da escola regular”. Segundo as autoras, isso ocorreria em virtude de que “o grande desafio da educação contemporânea – propiciar a realização de proje-

tos pedagógicos coletivos, a partir dos quais as barreiras disciplinares sejam transpostas a fim de evitar a fragmentação do conhecimento – não ecoa, necessariamente, nas formas de organização do ensino de línguas estrangeiras em escolas especializadas”. (idem) Nesse viés, uma proposta de aprendizagem integral da língua estrangeira não poderia, portanto, prescindir de um contexto sistêmico de educação capaz de descompartimentalizar o conhecimento da língua, abrindo-o à inter-relação entre as diferentes ciências de um mesmo currículo, assim como entre educadores de formação diversa, algo que somente poderia ser suscitado amplamente no contexto das escolas de educação básica. Fazendo-o, não somente a escola regular proporciona a aprendizagem das habilidades linguísticas de outro idioma – desde que respeitados condicionantes estruturais para tal – como também, mais importantemente, amplia o alcance que o processo de ensinonaprendizagem de línguas tem em termos de potencialização de dois de seus aspectos centrais: a. o desenvolvimento de uma consciência/competência intercultural; b. a educação para a cidadania global. II Aspectos centrais do processo de ensinonaprendizagem da língua estrangeira no contexto da educação básica. No desenvolvimento de uma consciência intercultural e na educação para a cidadania global reside, possivelmente, o eixo central da abordagem curricular da língua


estrangeira no contexto da educação básica.

valorização em detrimento de sua própria língua ou cultura.

A dinâmica desse eixo tende a influenciar, de maneira geral, na transformação paradigmática da educação em si, substituindo um modelo centrado excessivamente nas necessidades do mundo laboral, de aspecto tecnicista e conteudista, para um “modelo educacional capaz de promover a formação em valores como compaixão, tolerância, solidariedade, cuidado e empatia para com outros povos, culturas e outras espécies vivas do planeta”. (SANTOS, 2006, p. 31).

Além disso, nesse mesmo viés, segundo Vera Lucia Harabagi Hanna (apud LUNA, 2016, p. 117) o desenvolvimento de uma competência intercultural “proporciona a docentes e discentes chance ímpar de combinar o conhecimento cultural ao desenvolvimento de competência comunicativa no exercício de línguas estrangeiras”.

Para que isso se viabilize, é essencial o desenvolvimento de uma consciência/competência intercultural. Segundo Suzana Ferreira Paulino (2009), o desenvolvimento desta consciência implicaria reconhecer que há outras representações da realidade no mundo, sendo que tudo aquilo que é aparentemente certo e melhor, pode não o ser para outros povos. Segundo a autora, essa consciência previne a universalização dos conceitos culturais, reconhecendo e respeitando identidades diferentes das suas, proporcionando convivência em harmonia e a tolerância cultural. Para Paulino, quando estudantes têm consciência intercultural, existe discernimento acerca da própria identidade, bem como daquela pertencente ao povo cuja língua está sendo abordada, ocorrendo o respeito a ela, contudo, sem haver super-

Destarte, o processo de ensinonaprendizagem integral de uma língua estrangeira deve ocorrer de forma a proporcionar a seu estudante o exercício daquilo que Clarissa Jordão (2004) chama de cidadania planetária, ao fazer uso da língua para agir no mundo e não para difundir e propagar modelos. Nesse sentido tem-se a abordagem de uma língua estrangeira não mais para servir e alimentar uma lógica mecanicista, imperialista ou meramente instrumental da língua, mas como elemento de estudo crítico e reflexivo do contexto planetário bem como local. É nesse ponto que o estudo de uma língua, centrado no projeto pedagógico de uma instituição de educação básica, pode proporcionar a superação de um modelo educacional tradicional que possua “dificuldade em lidar com as complexidades, incertezas, pluralidades, desigualdades, contradições, falhas, a autocrítica e o agonismo das relações horizontais com o Outro”. (ANDREOTTI et al., apud LUNA, 2016, p. 138).

Todo este cenário remete ao segundo aspecto central do processo de ensinonaprendizagem integral de uma língua estrangeira no contexto da educação básica: a educação para a cidadania global. De acordo com relatório da UNESCO (2015, p. 14) cidadania global refere-se mais frequentemente ao “sentimento de pertencer a uma comunidade mais ampla e à humanidade comum, bem como de promover um “olhar global”, que vincula o local ao global e o nacional ao internacional. Também é um modo de entender, agir e se relacionar com os outros e com o meio ambiente no espaço e no tempo, com base em valores universais, por meio do respeito à diversidade e ao pluralismo. Nesse contexto, a vida de cada indivíduo tem implicações em decisões cotidianas que conectam o global com o local, e vice-versa”. Nessa perspectiva, o estudo de uma língua estrangeira constitui-se em lente que possibilita a visão autêntica sobre contextos culturais diversos – inclusive sobre o próprio contexto – ao mesmo tempo que proporciona ao estudante maior autonomia na leitura de realidades, evitando-se a dependência de observações indiretas mediatizadas por intermediários outros que, com seus referenciais e conhecimentos prévios, acabam por aplicar suas próprias lentes historicamente construídas a um objeto de estudo alheio. Desse modo, o conhecimento acerca da língua estrangeira é

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condição sine qua non para que os estudantes do século XXI possam aperfeiçoar “a observação, a análise, a interpretação do que fazem os outros povos” (STALLIVIERI apud LUNA, 2016, p. 171), bem como desenvolver com maior fluidez o “pensamento crítico, a capacidade de arguir efetivamente, o respeito pelo outro, a cooperação e a busca de resoluções conjuntas para problemas comuns”. (idem) Diante dessas considerações, em um panorama contemporâneo de conflitos mundiais pautados pela intolerância, (re)construção de muros e fechamento de fronteiras aos “diferentes”, enfatiza-se o grande pano de fundo do protagonismo do processo de ensinonaprendizagem integral da língua estrangeira na escola de educação básica. Tal processo teria sua centralidade na formação de sujeitos com clareza acerca do que seria uma ética interculturalmente referenciada, mediatizados pelo desenvolvimento contínuo e efetivo de suas habilidades em língua estrangeira, com vistas à potencialização de uma atuação cidadã transformadora globalnlocal.

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Alessandro França Quadrado é sempre aluno do Colégio Medianeira Graduado em Arquitetura e Urbanismo pela UFPR, possui Licenciatura em Língua Portuguesa e Inglesa pela UTP, Especialização no Ensino de Línguas Estrangeiras Modernas pela UTFPR e Mestrado em Gestão Educacional pela UNISINOS no Programa de Mestrado Profissional da turma especial da Rede Jesuíta de Educação. Atuou como professor de Língua Inglesa por mais de 20 anos em cursos de idiomas e em escolas de educação básica. Atualmente é Orientador de Aprendizagem do 9º ano do Ensino Fundamental no Medianeira.

DONNINI, Lívia; PLATERO, Luciana; WEIGEL, Adriana. Ensino de língua inglesa. São Paulo: Cengage Learning, 2011. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 56ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2018. JORDÃO, Clarissa Menezes. A Língua Inglesa como “commodity”: direito ou obrigação de todos? Coimbra, Portugal: VIII Congresso Luso-AfroBrasileiro de Ciências Sociais, 2004. Disponível em: https://www.ces.uc.pt/lab2004/inscricao/pdfs/ grupodiscussao32/ClarissaJordao.pdf. Acesso em 16 de outubro de 2018. LEFFA, Vilson José. Por um ensino de idiomas mais includente no contexto social atual. In: LIMA, Diógenes Cândido (Org.). Ensino e aprendizagem de língua inglesa: conversas com especialistas. São Paulo: Parábola Editorial, 2009. _____. Aspectos políticos da formação do professor de línguas estrangeiras. In: LEFFA, Vilson José (Org.). O professor de línguas estrangeiras: construindo a profissão. 2.ed., Pelotas: EDUCAT, 2008. LUNA, José Marcelo Freitas de. (Org.) Internacionalização do currículo: educação, interculturalidade, cidadania global. Campinas, SP: Pontes Editores, 2016.

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Recomendações Pigmaleão George Bernard Shaw | L&PM A peça Pigmaleão, de Bernard Shaw (1856 – 1950), conta a história de Eliza Doolitle, uma vendedora de flores ambulante na Londres do início do século 20. Sua linguagem é uma afronta à língua inglesa, seu vocabulário, paupérrimo e de baixo calão, e sua pronúncia, uma desgraça. Um eminente fonético impõe a si mesmo um desafio: reeducá-la e fazê-la passar por uma dama da sociedade. Mas esse será apenas o início dessa comédia deliciosa em que Shaw denuncia as diferenças sociais e de classe.

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Onde está a

verdade na

era das

? Pós-verdade, hiper-realismo, fatos alternativos. Todos esses conceitos são tentativas de compreender um fenômeno que está cada vez mais presente no ambiente virtual e também no off-line. Para escapar da enxurrada de notícias falsas, é preciso compreender o cenário que permitiu que elas se alastrassem. Por Jonatan silva mediação

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edição de 11 de maio de 1975 do jornal Notícias Populares (NP), que integrava o Grupo Folha, anunciava em letras garrafais o nascimento do bebê-diabo, uma versão tupiniquim do Bebê de Rosemary, o clássico de Polanski. A história, que teria acontecido em um hospital em São Bernardo do Campo (SP), permaneceu na capa do tabloide por semanas, detalhando o “parto incrivelmente fantástico e cheio de mistérios” da criança de “aparência sobrenatural”.

nos suscetíveis ao absurdo. Em Sapiens: uma breve história do mundo, o escritor israelense Yuval Noah Harari – que há poucos anos vivia como um anônimo professor da Universidade de Jerusalém, em Tel Aviv – observa que o homem só deixou de ser insignificante, em comparação com os outros animais, quando desenvolveu capacidade de criar narrativas. Nem sempre verdadeiras ou críveis. “Nossa linguagem singular evoluiu como um meio de partilhar informações sobre o mundo. Mas as informações mais importantes que precisavam ser comunicadas eram sobre humanos, e não sobre leões ou bisões. Nossa linguagem evoluiu como uma forma de fofoca”, ressalta.

acontecendo”, comentou em entrevista ao jornal espanhol El País, “nunca tínhamos vivido de forma tão acelerada.”

A Onde está a

O andamento das mudanças está intimamente relacionado às formas como a sociedade dispara informações. O sintoma desse processo, aponta o jornalista britânico Mathew D’Ancona, em seu livro Pós-verdade: a nova guerra contra os fatos em tempos de fake news, é a falta de compromisso com a profundidade e autenticidade da informação. Em paralelo correm o descrédito da mídia e o desprezo pelo factual. “No cerne dessa tendência global está o desmoronamento do valor da verdade, comparável ao colapso de uma moeda ou de uma ação”, explica. A consequência desse cenário é a enxurrada de notícias falsas que povoam a internet em uma sobreposição pouco nítida e que o ensaísta e arquiteto Guilherme Wisnik, em texto escrito para a revista Piauí, chama de “nublamento”.

verdade na

A manchete surgiu de uma informação desencontrada. O repórter da Folha de S. Paulo, Marco Antônio Montadon, fora avisado do nascimento de uma criança com chifres e rabo, e foi ao hospital averiguar. A questão não tinha nada de paranormalidade – tratava-se, na realidade, de má-formação. Montadon não perdeu a viagem e transformou a história em uma crônica de terror. Impressionados – e vislumbrando um “furo de reportagem” – José Luiz Proença e Lázaro Campos Borges, secretário de redação e editor de Polícia, pediram ao jornalista que o relato fosse reescrito, à guisa de uma matéria. O caso do bebê-diabo – uma das primeiras fake news de grande alcance no Brasil – fez com que a tiragem do Notícias Populares passasse de 70 mil para 150 mil exemplares. Ninguém, além do NP, havia noticiado aquele nascimento. Quatro décadas mais tarde, homens e mulheres não se tornaram me-

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era das

“Guerra é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força.” George Orwell, em 1984. O fenômeno de desdém pelos fatos não é exatamente atual. Harari argumenta que o surgimento de mitos e lendas, como justificativa para qualquer coisa superficialmente inexplicável, foi fundamental para que os povos e tribos se mantivessem unidos em torno de um mesmo interesse. A diferença, acredita o professor, é a velocidade com que as mudanças acontecem. “[O mundo] está mudando de uma forma tão rápida que é cada dia mais difícil entender o que está

Isso explica o porquê pósverdade foi escolhida, em 2016, como a palavra do ano pela Oxford Dictionaries, departamento da Universidade de Oxford responsável pela publicação do dicionário e que, anualmente, escolhe uma palavra de língua inglesa para “resumir” e representar os doze meses.

?

*** A opacidade das redes sociais e suas bolhas tem como contraponto o hiper-realismo prometido pela web. É possível


caminhar pelas ruas das maiores cidades do mundo sem colocar os pés em solo estrangeiro. Museus e galerias permitem um tour virtual sem sair da frente da tela do computador ou celular. Clássicos da literatura, filosofia ou medicina estão ao alcance de um clique. Vive-se a ironia de ter tudo e não vivenciar praticamente nada. A verdade deixou de ser primordial. O viés de confirmação – tendência de um sujeito acreditar em uma informação que dialogue diretamente com suas convicções – nunca pareceu tão atuante nas tomadas de decisões. D’Ancona enxerga, sob esse prisma, o surgimento de uma “indústria bilionária de desinformação”, cujo objetivo-mor é a “propaganda enganosa e a falsa ciência”. Movimentos recentes se voltaram contra verdades que, até pouco tempo atrás, eram indubitáveis: a) contra vacinas – alegando que seria causadora de autismo, quando o contrário está cientificamente

(com)provado; b) defendendo o “terra-planismo”; c) negando as mudanças climáticas.

“ ( ) nossa linguagem singular evoluiu como um meio de partilhar informações sobre o mundo. Mas as informações mais importantes que precisavam ser comunicadas eram sobre humanos, e não sobre leões e bisões. Nossa linguagem evoluiu como uma forma de fofoca.”

Yuval Noah Harari em Sapiens Wisnik não tem um discurso mais otimista. Ele busca as palavras de Walter Benjamin – no clássico A Obra de arte na era da reprodutibilidade técnica – para explicar o fenômeno atual da falta de assombramento do

sujeito que, em 2019, busca incansavelmente uma “uma espécie de supernitidez do involuntário, da revelação inconsciente”. É preciso estar conectado e bem informado – e aí, o conceito é vago e discutível –, porém, em todo esse processo, onde está a leitura e interpretação das informações e dos dados despejados diariamente sobre nós? Para Harari o cenário não tende a ficar menos apocalíptico. O escritor enxerga um futuro próximo no qual será possível “hackear” os seres humanos. Em uma metáfora criada pelo filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, em No Enxame: perspectivas do digital, estar atrás de uma tela de computador, celular ou tablet transforma homens e mulheres em integrantes de um grande coletivo, como um enxame. Existe, segundo o pensador, um sentimento de pertencimento, entretanto, esse pertencer é fruto de um torpor crítico que não permite pensar e refletir sobre aquilo que está visualizando e compartilhando. O “penso, logo

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existo”, de Descartes, foi – com o perdão do trocadilho – descartado para que os fatos alternativos fossem alardeados sem protestos. Esse processo de torpor e falta de empatia, descrito por Han, é o gatilho para reações de intolerância e violência. Em certa medida, o extremismo passa a ser uma demanda popular, uma espécie de alternativa à justiça. O sociólogo Sergio Adorno, em entrevista ao jornal Nexo, observa a violência como uma marca social. Parte da condescendência é originária da atuação falha do Estado em prover políticas públicas que ofertem ao cidadão, ao menos, a sensação de segurança. Há “ferrugem sobre o metal da verdade”, explica D’Ancona, e uma obsessão por fatos que justifiquem pontos de vista. Quando um discurso borra as linhas que separam o real e o imaginário é chamado de hiper-real, e que, de acordo com o autor, faz parte da “intrincada prosa

pós-moderna”. As agências de checagem, empresas especializadas em confrontar dados e informações veiculados na grande mídia e ditos por celebridades e políticos, são o contraponto ao desmoronamento da confiança pública em noticiário, e da verdade, em certa medida. O emaranhado narrativo, contudo, não é de agora. Em Sapiens, Yuval Noah Harari identifica que, durante a Revolução Cognitiva (entre 30 mil e 70 mil anos atrás), uma organização social convivia em razoável harmonia até ter 150 membros. A partir desse número o grupo se desmembrava em outros. 150 pessoas – ou sapiens, como se refere o autor – era também alcance de fofocas e rumores propalados naqueles dias. “Ainda hoje, um limite crítico nas organizações humanas fica próximo desse número mágico. Abaixo desse limite, comunidades, negócios, redes sociais e unidades militares conseguem se manter principalmente com base em relações íntimas e no

fomento de rumores. Não há necessidade de hierarquias formais, títulos e livros de direito para manter a ordem”, escreveu o professor. O colapso da realidade dá vida àquilo que George Orwell imaginou em 1984: a Polícia do Pensamento, cuja atribuição é punir os crimideias, o ato de pensar contra a autoridade do Grande Irmão. Pela receita de D’Ancona para escapar dos grilhões cibernéticos e (des)informacionais, o melhor ainda é o pensamento crítico e compreender a web como um não-lugar – sem deixar de lado que o grande conjunto de zeros e uns são um ambiente vigiado e pouco hermeticamente fechado.

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Jonatan Silva é formado em Jornalismo e pósgraduado em Marketing Digital. Trabalha como jornalista e assessor de imprensa no Colégio Medianeira e colabora com o jornal Rascunho e o portal A Escotilha. É autor do livro O Estado das coisas.

Recomendações Podcast | MedCast #2 – Fake news Para escutar o episódio, acesse: http://bit.ly/fMedCast-Fake-News O segundo episódio do podcast criado pelo Colégio Medianeira discute como as notícias falsas são criadas e interferem no cotidiano das populações. No programa, os professores do Ensino médio Carlos Rizzi e Fabiano Pinkner conversam com Miguel Ângelo Manassés, professor de Jornalismo da PUCPR.

Homo Deus: uma breve história do amanhã Yuval Noah Harari | Companhia das Letras A partir de uma visão original de nossa história, o autor combina pesquisas de ponta e os recentes avanços científicos à sua conhecida capacidade de observar o passado de uma maneira inteiramente nova. Assim, descobrir os próximos passos da evolução humana será também redescobrir quem fomos e quais caminhos tomamos para chegar até aqui.

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UMA VIAGEM CRIATIVA Uma expedição ao Peru revela o contraponto entre uma sociedade informacional – amparada em aplicativos e gadgets – e os povos indígenas que vivem – muito bem, por sinal – alheios a essa realidade tecnológica e virtual. Por Hugo Eduardo Meza Pinto e Wagner Roger

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á uma grande revolução acontecendo rapidamente nos negócios e nos modos de aprendizagem que deixou de ser imperceptível. Nos negócios por exemplo, muitas atividades iniciaram, de forma densa, suas migrações para a internet. Agências de banco? Daqui a poucos anos serão raridade, assim como taxis tradicionais ou corretoras de imóveis, dentre outras.

H

Grande parte dessas alterações econômicas se dá pela inserção, cada vez maior da tecnologia e inovação no mundo dos negócios. Uma das tecnologias que está provocando mudanças significativas na economia é a Inteligência Artificial (IA). Acredita-se que ela será capaz de ser inserida em quase todos os serviços que lidam com internet e aprendizagem. O as-

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sunto referente a IA esteve entre os mais frequentes do Mobile World Congress, principal feira do setor de tecnologia desse ano de 2018. Segundo os executivos da empresa IBM, haverá mais criação do que destruição de empregos com a inteligência artificial, com um atenuante: nenhuma profissão do mundo não será atingida. Se isto acontecer, há perguntas para serem respondidas: – Que tipo de educação as escolas e universidades estão tendo para encarar esse novo mundo? – Como esses conhecimentos podem chegar a pessoas menos favorecidas? A primeira questão requer uma

introspectiva

pedagógi-

ca de quem lida com o ensino-

-aprendizagem, requer também um grande senso crítico para aceitar que o ensino foi uma das áreas mais afetadas pela tecnologia e que os modos de aprendizagem mudaram significativamente. Os alunos têm mais autonomia e os professores deixaram de ser os únicos transmissores de conhecimentos na sala de aula. Esta questão é polêmica, envolve valores antigos e já estabelecidos que estão sendo “disruptados”. Procurando responder à segunda questão, nós da Amauta - Inteligência Educacional, fomos para o Peru, em março de 2018. Levamos óculos de Realidade Virtual (VR) e alguns robôs para fazer demonstrações sobre o impacto de novas tecnologia na educação, especificamente em comunidades indígenas da região da Selva Central do Peru.


Antes disso, demos uma passada no deserto de Ica, para conhecer o “Cañón de los Perdidos”, um cânion descoberto por acaso, há 12 anos por uns engenheiros que, mesmo com GPS, se perderam, daí o nome sugestivo. Como a Amauta é uma empresa destinada também ao desenvolvimento de atividades ligadas à economia criativa, fomos fotografar o deserto. Passeamos por aquela imensidão de areia e pedras, passamos por onde um dia era mar. Vimos algumas ruínas pré-incas, também exploramos alguns buracos causados, aparentemente, por meteoritos há muito tempo. Sem estrada, com um bom Jeep e um motorista experiente, chegamos ao cânion para apreciar a sua beleza e refletir como a tecnologia pode ajudar a divulgar e preservar lugares como esse. Depois dessa viagem inspiradora, fomos para Chanchamayo, na região central do Peru. Para chegar lá, subimos pela estrada a 4.800 metros sobre o nível do mar. Era para passar mal, por falta do oxigênio, mas graças aos “deuses incas”, não sofremos nada. Bem, no cume, encontramos Juan, um vendedor de habas, favas fritadas com sal. Ele foi tão simpático que até fez umas caretas que foram captadas pelas lentes do Wagner Roger.

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Descendo a serra, as mudanças de clima, da vegetação e das características culturais foram perceptíveis. Em Chanchamayo, visitamos duas tribos indígenas. A primeira foi a tribo Shipibo Rama Shawan, que estava migrando da Amazônia peruana para a região de Chanchamayo. Por ser uma tribo errante, as crianças não estudavam. Elas aprendiam a língua shipibo-conibo de geração para geração. As mães, principalmente, são as encarregadas de educar as crianças, os pais estavam a cargo de procurar um lugar para fixar a tribo. O primeiro contato das crianças dessa tribo com a realidade virtual foi fantástico. Pela primeira vez elas puderam apreciar o mundo dos dinossauros por “dentro”. Elas pediam para repetir a experiência, até o cacique da tribo ficou empolgado. Parecia ser o primeiro encontro com uma tecnologia com essas características. – Já pensou se pudéssemos ver o nosso meio, nossos animais e nossas paisagens? Refletiu o cacique. A experiência durou tanto quanto a bateria dos celulares duraram. Era impossível dizer não para as criancinhas cheias de vontade de experimentar e aprender sobre esse novo mundo. Saímos satisfeitos dessa comunidade com a promessa de voltar com equipamentos para eles.

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No dia seguinte, fomos visitar outra comunidade indígena, uma tribo Ashaninka. Ah a maravilhosa internet e sua capacidade democratizadora! Numa sala de aula com crianças indígenas dessa tribo, levamos, além dos óculos de Realidade Virtual, um robô do Star Wars, o BB-8, comprado nos Estados Unidos, com comando bluetooth via app do celular. A ideia era mostrar o avanço da robótica e suas implicações no aprendizado. No início da palestra, percebia-se os olhos curiosos das crianças, percorrendo todos os cantos do palco da aula. Após uma breve introdução, colocamos os óculos de VR, com a certeza tola de que ninguém saberia do que se tratava, e perguntamos: – Crianças, vocês sabem o que é? Silêncio total. Colocamos os óculos e mostramos para eles como são utilizados.

– É sobre Realidade Virtual? Perplexos, perguntamos: e o que é Realidade Virtual? Ele disse: alguma coisa relacionada à Internet? É a deixa que esperávamos para falar sobre o assunto e, de como eles iriam aprender melhor sobre várias coisas. Como uns magos que tiveram seus segredos descobertos, apelamos para o nosso robozinho de última geração. Tiramos ele da mochila e perguntamos: - Sabem o que é isso? Silêncio total. Tiramos o celular prontos para mostrar a magia, quando aquele menino levantou a mão de novo e disse: – É do Star Wars! Olhamos para ele e perguntamos, de onde ele conhecia, ele disse:

Continuamos com a pergunta:

– Internet, de onde mais?

– Alguma ideia?

Aproveitamos o menino para

Prestes a dizer o que é, uma criança, do fundo da sala, levanta a mão e diz:

ser o nosso ponto focal. A partir desse momento foi a nossa ponte com os outros meninos.

Foram as duas horas mais compensadoras que um educador poderia ter. Moral da história: 1. Não há lugar no mundo em que um professor não deixa de aprender. 2.Professor, nunca ache que seu conhecimento é único. Saímos com a obrigação de voltar, levando também óculos de VR e robôs para a aprendizagem. Já estamos em contato com as professoras dessa tribo para ampliar projetos educativos com uso de tecnologia. Depois dessas gratas experiências, fica claro para nós que a tecnologia, utilizada de forma construtiva, é uma grande aliada para a disseminação de ensino e conhecimentos. Como professores, defendemos o mantra:

“A tecnologia nunca substituirá professores, mas, professores que usam adequadamente tecnologia, podem substituir professores que não usam.”

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Hugo Eduardo Meza Pinto Economista, Doutor pela USP, professor universitário, avaliador do MEC para cursos de Ensino Superior e associado da empresa Amauta - Economia Criativa. contato@amauta.com.br Wagner Roger Fotógrafo, Designer, educador Medianeira, membro do coletivo artístico Circo Ótico, associado da Amauta - Economia Criativa. www.wagnerroger.com

Recomendações Roube Como Um Artista Austin Kleon | Rocco Verdadeiro manifesto ilustrado de como ser criativo na era digital, “Roube como um artista”, mostra – com bom humor, ousadia e simplicidade – que não é preciso ser um gênio para ser criativo, basta ser autêntico. O livro é baseado numa palestra feita pelo autor na Universidade do Estado de Nova York que em pouco tempo viralizou na internet.

Merlí (Série) Direção: Eduard Cortés | 60 min. (cada episódio) Merlí Bergeron (Francesc Orella) é um professor de filosofia nada convencional, que precisa reorganizar sua vida pessoal enquanto tenta de todas as formas mostrar para as pessoas a importância da filosofia. Para alguns parentes e colegas de trabalho, no entanto, ele é motivo de escândalo. Para seus alunos e seu filho, Merlí é uma inspiração.

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A Sala de aula:

a raiz do professor Entre tantas experiências dentro do Medianeira, a que mais gratifica Claudia Furtado de Miranda é estar em sala com os estudantes. Muito mais que mediadora do conhecimento, a professora se faz interlocutora dos Por Jonatan Silva jovens às raias da vida adulta. mediação

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fácil reconhecer a professora e orientadora pedagógica Claudia Furtado de Miranda nos corredores do Medianeira. Com um sorriso que esquadrinha o rosto e uma voz que preenche os poucos espaços vazios de uma escola, é praticamente impossível encontrá-la desacompanhada. Se não for um grupo de estudantes – ou sempre-alunos –, há de ser algum professor. Às vezes é mais fácil se comunicar por meio de sinais – agendando a conversa para depois – que conseguir desenrolar o assunto na hora. A simpatia preenche a sua agenda.

É

Quando Claudia chegou ao Colégio, por volta de 1992, após deixar um currículo por intermédio do marido – que era livreiro e trabalhava nas tradicionais feiras do Medianeira –, sua acolhida foi quase inesperada. Pouco depois de ser aprovada nas entrevistas – uma sabatina que tinha à frente o professor José Lorenzatto –, Claudia descobriu que estava grávida. Entre a alegria da gestação e o susto de ter que desistir da posição que acabara de conquistar, a professora ligou para explicar a situação e já se colocar à disposição dali a 12 meses. A chamada caiu na mesa de Lorenzatto. “Você fez a entrevista”, disse com o tom sereno e rouco de sua voz, “nós gostamos e já fechamos compromisso. Você entra neste ano”. Ladeada por pilhas de papéis, livros e cadernos que decoram sua mesa, Claudia não faz o tipo que não se emociona. “Eu me apaixonei pelo colégio”, fala – consciente de que o passado

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ainda é presente. A sua primeira disciplina seria Organização Social e Política Brasileira (OSPB), o último resquício do generalato. Apesar das tensões da redemocratização, a professora conseguiu transformar as incertezas em alimento para a aula. “Em 1988 foi aprovada a Constituição e em 1993 teve o plebiscito para escolher sistema e forma de governo. Foi muito interessante. Mesmo trabalhando com Educação Moral e Cívica, como já era um período de abertura, deu para fazer um plebiscito interno com os alunos. Nós estudamos sistema, forma de governo e fizemos uma votação. E o resultado dos estudantes foi o mesmo que ocorreu no plebiscito. Quer dizer, era uma amostragem dessa realidade”, recorda.

Como foi a sua trajetória aqui no Medianeira?

A partir desse momento, começaria a construir uma carreira acadêmica, que desembocaria no doutorado, e a constituir uma nova família. Para conhecer melhor a vida e a trajetória da educadora, leia o bate-papo com Claudia Furtado de Miranda. O

Eu fiz magistério, então, a minha formação no Ensino Médio foi para ser professora da Educação Infantil ao Fundamental. E eu já era professora. Quando eu entrei na faculdade eu já dava aula e a minha ideia foi seguir uma licenciatura – e eu sempre gostei de História. Eu tive uma professora excelente no

resto é história.

Eu cheguei, dei aula de OSPB até a disciplina acabar em 1993. E aí, eu assumi História para a 7ª série – hoje, 8º ano –, depois fui trabalhar com 5ª e 6ª séries – atualmente, 6º e 7º anos – e para o Ensino Médio. No Medianeira eu dei aula em quase todas as séries. Mais tarde, eu assumi a supervisão de História e, em 2001, a Direção me convidou para a função de Orientadora Pedagógica no antigo primário, da Educação Infantil à 5ª série. E eu fui com a cara a e coragem. Na verdade, eu voltei às bases e fiquei lá por quase 10 anos. Por que a sua escolha pela História?


meu Terceirão, que me ajudou a tomar essa decisão. E tem uma outra coisa: essa foi uma opção por gosto, mas também foi uma escolha por falta de opção. O maior pecado que é feito dentro de uma escola de magistério é o descaso na formação do aluno com relação aos conhecimentos gerais. Havia um descaso muito grande na nossa formação voltada às Ciências Naturais e Exatas. Eu não tinha condições de passar em um vestibular dessas disciplinas e nem de acompanhar [as aulas] porque a minha formação foi muito rasa – mas não a capacidade de aprender. [Os professores] acabaram limitando uma vontade de fazer Biologia, Química, Física por parte de quem estava fazendo magistério e queria seguir carreira de licenciatura.

muito preocupados com questões ambientais e sociais, e também com o seu projeto de vida. Os passos que eles dão estão voltados a essa esperança. Ao longo da minha trajetória profissional eu vi isso no jovem. O que talvez mude é que, na década de 1990, tínhamos um jovem voltado muito mais às questões de construção de um país. Algo muito interessante nessa época é que o jovem estava participando da política pela primeira vez e junto com os seus pais pela primeira vez. Eu, por exemplo, votei para presidente ao mesmo tempo em que meu pai votava.

Eram duas gerações que se encontravam em uma mesma perspectiva de política, de que era possível fazer um país melhor – e eu acho que ainda é. O jovem de hoje tem muita informação e é multitarefa, consegue fazer várias coisas ao mesmo tempo – e eu diria que com qualidade. Essa coisa que dizem de que só tem dispersão não é verdade. Eu acho que eles lidam muito mais com a informação, com a tecnologia e com as buscas, e que contribuem no estudo e na formação. É um jovem que tem essa cultura essa procura, mas com outra visão de mundo.

Sempre foi um agravante a ideia de que a mulher tem que trabalhar menos porque tem que criar filhos – e na minha geração isso era forte – e a maior parte dos professores dessas disciplinas eram homens, então, havia sim um descaso com as normalistas. Acaba que isso reduz também a opção [de escolha de um curso]. Pensando nestes dois cenários – o de quando você chegou ao Colégio e o atual –, o que muda no estudante? É difícil dizer, são tempos muito diferentes. Eu costumo dizer: o que esses alunos têm em comum? Eu acho que o jovem tem desejo de mudança e de transformação, ele tem uma esperança que é própria da juventude. Essa esperança continua. Você vê os estudantes

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Qual a consequência da falta do pensamento crítico? A manipulação. A falta de conhecimento leva à manipulação. É o contrário do que se diz. É a falta de conhecimento que leva à manipulação. Eu acho que o julgamento e a tomada de decisão são únicos e de cada pessoa, a partir de seu contexto social, familiar, suas leituras. A escola tem que dar bagagem para que essas diferentes leituras de um mesmo fato possam ser discutidas com os alunos. Não é papel da escola ensinar uma única visão de mundo ou não ensinar nada a respeito da realidade em que a gente vive. Você acha que o jovem está sabendo ler o mundo com criticidade? Sim, ele lê. Eu sou radicalmente contra dizer que essa geração é alienada. Porque não é. Eles leem o mundo e a realidade. A maneira de se posicionar é que, talvez, seja diferente. Eu acho que nem dá para ficar comparando época. Hoje, por exemplo, a maioria dos movimentos estão na internet. Nesses mais de 25 anos, muita coisa aconteceu. Que momento você destaca como fonte de grande emoção? Foi emocionante sair da Fase I, quando me convidaram a assumir o Serviço de Orientação Pedagógica (SOP) do 6º ano ao Ensino Médio. A saída de lá foi muito emocionante, a gente se afeiçoa e sabe tudo. Eu sabia até o jeito de o professor escrever, não precisava nem assinar o nome. E nessa época fizeram uma despedida e eu me acabei de chorar. Foi mui-

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to difícil me desgarrar, e emocionante. Eu senti que o apego não era só meu, mas também dos professores. O segundo grande momento foi voltar para a sala de aula. Quando eu assumi [o SOP] do Fundamental II e do Médio, eu fiquei uns dois ou três anos sem dar aula. Aí, eu pedi para ficar em um único setor e voltar a lecionar. Por que esse desejo de voltar para a sala de aula e essa fissura de estar na frente das turmas? Essa é a minha raiz. Inclusive, eu vou sair de volta. Já sei que vai ser uma tristeza enorme. Nessa trajetória, eu fiz mestrado e agora estou fazendo o doutorado, e eu vou precisar de tempo para estudar. A minha raiz é a sala de aula e é o que eu acho que faço de melhor. É aquela coisa: eu entro na sala eu não tenho nenhum problema. É impressionante. Eu me envolvo tanto com os estudantes, sacando como eles estão. E não lembro se tenho alguma coisa para fazer aqui fora como SOP ou acontecendo em outro lugar. Esse é o meu berço. A gente percebe que você tem um vínculo muito forte com o estudante, mesmo aquele que já saiu do Medianeira. Qual o segredo para esse estreitamento de relações entre professores e estudantes? Não tem segredo. Isso é experiência. Eu acho que essa é a principal função do professor. Não é só ministrar conhecimento, passar, passar, passar… Tem que conhecer o aluno, ter voz e

ser o sujeito da sua aula. Isso não quer dizer que ele tem que participar sempre. Tem estudante que é mais quieto. A grande sacada é respeitar o aluno. Eles são pessoas que estão ali como você. Para que essa sala de aula dê certo, essas pessoas têm que se sentir envolvidas e se respeitar. Independentemente se gostam ou não da disciplina. Tem estudante que é das exatas, mas que lê, estuda, pergunta e respeita. E você vai ver que, durante o ano, esse estudante vai se envolvendo. Se o estudante não gosta da disciplina, o que a gente vai fazer para que ele passe por ela estudante? Dar aulas para o Terceirão significa lê-los também em um momento de decisão que nem sempre é fácil, porque eles são muito novos. Acho que a função de um professor no Terceirão – não que nas outras séries não seja – é ouvi-los. O estudante de fase final da Educação Básica precisa ter muitos interlocutores e os professores precisam ser esses interlocuto res. Os jovens estão escolhendo a sua profissão assim como nós escolhemos. E que momento engraçado você pode compartilhar? Meu Deus, todos os dias têm algum momento engraçado. Eu já caí na sala de aula, já vim com os sapatos trocados. Essas são coisas de Claudia. Os alunos riem, mas com o tempo passam a conhecer o jeito de cada professor. Tem os apelidos também. Todo ano tem um diferente. Claudinha, Claudineia… (risos).


Qual o perigo de não estudar História? O perigo de não estudarmos História é a alienação. A História é a raiz do que a gente é. Você faz parte de um país, de uma nação que tem História. A consersação da memória é fundamental. Nós vivemos em um país com pouca memória histórica e com um descuido imenso com o nosso patrimônio histórico – sejam monumentos, nas construções, mas esse patrimônio enquanto documento. Nós temos o Museu Nacional1 que pegou fogo. Isso já tinha acontecido em outros centros de arquivo e de memória. Aqui em Curitiba o arquivo público pegou fogo. Você tem um descaso na consersação da História. E isso não está só na falta de medidas do governo, isso vai muito além. Os nossos centros de memórias históricas estão se

desfazendo porque isso não é prioridade. Nunca foi. Você teve a escravidão e deixa queimar os arquivos dessa época. A História não lida com achismo, ela é uma ciência. E se é uma ciência, trabalha com fatos e comprovação. Ninguém inventa uma história como uma narrativa. Tem método científico de investigação, tem comprovação de fontes, tanto fontes históricas e documentais quanto fontes vivas que são os depoimentos. É um trabalho muito sério de quem construiu a História pela análise dos movimentos históricos e seus documentos. Como o estudo da História, e analítico sobre o mundo, ajuda na formação de um cidadão global? Nunca um fato está isolado em si mesmo. O regime militar brasileiro, por exemplo, você tem que

analisar sob o contexto da América Latina e o contexto de uma Guerra Fria. Você tem um movimento da história local que está sempre ligado com o movimento da história global. É o macro e o micro. Isso é inseparável. Se tem um movimento de reabertura política no Brasil, tem um movimento de reabertura na América Latina, numa mesma década, você tem um movimento de reabertura no mundo com o fim da Guerra Fria – a queda do muro de Berlim e a fragmentação da União Soviética. É o mundo procurando espaços mais tolerantes e menos ditatoriais. O que estava acontecendo no Brasil em maio de 1968? A passeata dos cem mil. E, ao mesmo tempo, o que estava acontecendo no mundo? Você tem a Primavera de Praga, que é o primeiro questionamento ao regime socialista

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da União Soviética. Você vê o movimento na França, que começa dentro de uma universidade, mas se espalha por todo o grupo de trabalhadores. E tem o movimento de contracultura nos Estados Unidos, questionando, inclusive a Guerra do Vietnã. E o Brasil está dentro desse conjunto. Perceba como são essas conexões. E o aluno precisa entender isso. O meu jeito de explicar é assim: eu sempre mostro o conjunto e vou por partes. Quando eu termino um dado período his-

tórico, eu junto tudo de novo. Eu mostro aquele fato local cercado por diferentes fatos que estão acontecendo no mundo e que são importantes para entender tudo. No final, eu junto tudo e vou para a primeira aula, que é um mapa. Não é para entender de uma vez. Você pega uma questão da Federal: ela não vem única. Caiu agora, na UFPR, exatamente uma aula que eu dei: o ano de 1968 no mundo. Se eu não tivesse dado essa aula, eles não teriam dado conta.

E como fica o professor quando percebe que uma aula dada de um jeito muito pessoal foi o substrato para uma questão do vestibular? É muito bom. Na hora os alunos vêm: “ai, Claudia aquela questão”. Caiu na PUCPR também uma questão sobre o Fiscal do Sarney2 , e eu tinha acabado de explicar para eles.

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Recomendações Lugares Comuns (2002) Adolfo Aristarain | 112 min. A vida de um professor universitário argentino muda radicalmente depois que ele é obrigado - por decreto - a se aposentar. Ao lado de sua mulher, com quem forma um casal apaixonado e dedicado, viaja para a Espanha. Na volta, procura uma nova ocupação mudando-se para uma fazenda.

A Amiga genial Elena Ferrante | Biblioteca Azul O livro – o primeiro da Série Napolitana – é narrado pela personagem Elena Greco e cobre da infância aos 16 anos. As meninas se conhecem em uma vizinhança pobre de Nápoles, na década de 1950. Elena, a menina mais inteligente da turma, tem sua vida transformada quando a família do sapateiro Cerullo chega ao bairro e Raffaella, uma criança magra, mal comportada e selvagem, se torna o centro das atenções.

1

Entre os dias 2 e 3 de setembro, o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, foi destruído por um incêndio. Considerado

o maior museu natural do país, a instituição é peça fundamental para a pesquisa científica no Brasil e no mundo. 2

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É um conjunto de regras para controle de preços no comércio varejista firmada pelo presidente José Sarney.


A mesma moeda? esse dia, resolvi pegar o primeiro trem saindo da estação central de Berna, capital da Suíça, até Mantova, no norte da Itália. A ideia era passar o final de semana nessa cidade para encontrar traços da minha família, sobretudo do pai da minha avó, que em 1896 pegou um navio no porto mais próximo direto para a cidade de Santos e de lá para as fazendas de café do interior de São Paulo e Paraná. Era um tempo em que o governo brasileiro negociava a vinda de estrangeiros (fugindo da pobreza) para mão-de-obra: japoneses, alemães, italianos, suíços, poloneses, ucranianos etc. espalhados em diversas partes do país e, ime-

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diatamente, já eram brasileiros. Somos muitos filhos, netos desses imigrantes, que ao longo do início do século XX vieram inventar uma nova vida, uma nova nação. A fotografia que eu tinha guardada em meu álbum de memória: não era um navio de luxo, e sim o chão do porão da parte mais escura e fria. Deitados uns sobre os outros, com suas vestimentas de sempre, casacos de lã já úmidos de ficarem guardados. Levavam pequenas malas com alguns pertences e pães para passarem a travessia de quase três meses. Crianças chutando bolas de couro na parede do depósito, mulheres e homens rezando o terço, ele olhando com ternura

Por Carlos Machado

para a esposa já grávida de minha avó, passando mal do estômago a cada onda que batia na esperança de chegarem ao Brasil, o país do café, para começar tudo novamente. Os outros parentes vieram apenas depois da segunda grande guerra. E dessa vez, a foto era ainda mais evidente: centenas de milhares de rostos, cada qual com sua história, amontoados na parte de dentro e de fora de dezenas de navios que saíam a cada minuto para cruzar o oceano: católicos, protestantes, comerciantes, artistas, homens, mulheres, crianças. Não se escolhia nem cor, nem credo, nem cheiro. Era como se tentassem levantar o pescoço para

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conseguir respirar pelo lado de fora e deixar o corpo alongando-se para criar raízes em outras paragens. E assim foi, no Brás, no Bexiga, nas fazendas perto das colinas paulistas, nas margens do rio Paraná, das araucárias do Sul, do frio de Curitiba, do calor do Norte, o idioma não era nem um, nem outro, inventaram uma nova forma de falar, aliás, várias formas novas. Deixaram de simplesmente usar a língua portuguesa e passaram a viver em brasileiro. Aprenderam a cantar o hino brasileiro e logo estavam usando verde e amarelo. Aos poucos, tudo que se via pela janela do trem deixou de estar em alemão e passou a ser escrito em italiano. A paisagem foi ficando um pouco mais mediterrânea à medida que nos aproximávamos de nosso destino, a temperatura mais amena, as vozes mais altas. Era como se estivesse entrando no quarto de minha avó: uma cadeira colocada ao lado da porta, a cama encostada na parede com uma cabeceira de madeira talhada, estilo rococó, em cima da penteadeira vários cremes Nívea com seus cheiros fortes e peculiares (Vó, por que usa tanto perfume?), alguns quadros na parede, buona sera, mio caro, come è stata la sua giornata? Pergunta o chauffeur do trem quando desço as escadas com cuidado. Ao me afastar do trem: entre tantas pessoas falando com as mãos, saudades de minha avó e euforia por estar ali, três policiais passam correndo por mim em direção a uma família que tentava se esconder entre os vagões. Do lado de fora, alguns gritavam em francês que isso não era justo, que eles não haviam feito nada, talvez pela cor da pele? Religião? Corte

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de cabelo? Mas, mesmo assim, a correria só acabou quando foram colocados novamente no trem e não puderam descer por ali.

Agora parados nessa praça, cicatriz dentro do peito. Só querem saber se podem ficar, aprender o hino e inventar uma nova língua.

Do outro lado da rua, ainda um pouco assustado com a menina chorando, sem saber se entrava no trem ou corria como seus pais, vejo: guarda costeira italiana de um lado, vários cidadãos sentados no chão de uma praça, do outro. Crianças correndo atrás de uma bola ao lado de uma pequena rua, mulheres estendendo algumas peças de roupas em um barbante entre uma árvore e outra, um grupo de homens conversando em uma língua que não consegui identificar. De longe, os policiais mediterrâneos parados, como se esperassem por algum sinal, algum sonido que os tirasse dessa posição para seguir as regras, quaisquer que fossem. Esses tantos não foram aceitos no porto da Espanha, na Grécia não tinham nem como atracar, pela França foram deixados à deriva até serem resgatados por alguns italianos que se organizaram para ajudá-los. Já estavam morando do outro lado da praça há algumas semanas, me afirma um senhor parado ao meu lado ao perceber minha curiosidade. Não tem emprego. Nem aqui, nem lá. Eles tiveram que sair debaixo dos escombros, depois de um bombardeio ter derrubado o bairro onde moravam, saíram de joelhos rezando pelas igrejas, mesquitas e templos de várias partes do mundo, precisaram levantar o rosto manchado de sangue para respirar e não morrerem afogados entre as ondas do mar Mediterrâneo, foram obrigados a caminhar entre cercas com espinhos que dão choque quando o gado tenta passar dos limites das fazendas.

Pois, sentado em um banco na esquina dessa rua, engasgado pelo que vejo, e ainda procurando vestígios de meu avô (de quando precisou entrar no mesmo navio para fazer o caminho oposto, a fim de inventar uma nova vida, um novo idioma) observo quando dois policiais conversam com um desses homens. Gesticulam com energia, tentando explicar algo para ele. Assim, um dos policiais aponta o dedo para uma direção e acena a cabeça como se confirmasse que ali mesmo, logo ali, era onde ele (e os outros) deveria ir. O homem agradeceu. Estendeu-lhes a mão. O caminho apontava para o mar. Assim que o homem voltou para perto de sua família, os policiais tiraram um objeto do bolso: um tubo, visto assim de longe. Abriram a tampa e despejaram o que parecia ser uma espécie de gel. Álcool. Esfregaram as mãos umas sobre as outras, limparam, passaram um pequeno lenço para tirar o excesso, guardaram o produto de volta no bolso e voltaram a ficar do outro lado da rua, esperando que alguém desse um sinal. comente este artigo: comunicacao@colegiomedianeira.g12.br

Carlos Machado é escritor, professor, cantor e compositor. Publicou os livros A Voz do outro, Nós da província: diálogos com o carbono, Balada de uma retina sul-americana, Poeira fria e Passeios e Esquina da minha rua. Integrou a banda Sad Theory. Em 2008, iniciou carreira solo, rendendo os álbuns Tendéu, Samba portátil, Longe, o DVD ao vivo Longe e outras canções (2012), o trabalho em espanhol Los Amores de paso, Bárbara e DESencontro, seu disco mais recente.


Juventude:

os novos tempos e espaços de aprendizagem Muito mais do que com a sala de aula e os livros didáticos, os jovens aprendem na relação de troca com seus pares e, claro, no contato com tecnologias que proporcionam experiências geradoras de conhecimento e interação. Por Roberta Aparecida Uceda

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partir de minha prática na área educacional com os jovens de Ensino Médio (EM), muitas inquietações me tomavam, principalmente no tocante à maneira como eles têm se relacionado com os processos de aprendizagem, suas motivações, resistências, e a dificuldade da Escola em responder às exigências que a Contemporaneidade tem nos trazido, uma vez que compreender como pensa e aprende o jovem sem considerar o contexto no qual está inserido é uniformizar e criar um rótulo em que se considera apenas um determinado grupo de estudantes. Além disso, as relações desse jovem com o conhecimento, com os desenhos curriculares nas escolas e com as dimensões de espaço e tempo precisam urgentemente ser conhecidas, estudadas e discutidas. Ao mesmo tempo, também é desafio para a escola significar as permanências dos processos e estruturas que se concebe como fundamentais e inegociáveis. Muitos princípios educativos integrantes da formação dos estudantes precisam dialogar com a realidade, mas também precisam ser compreendidos como condição de inserção no contexto da vida, com suas demandas, frustrações, limites e necessidade de se conviver com as adversidades e desafios.

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Portanto, o objetivo da minha pesquisa de mestrado foi analisar a complexidade das juventudes contemporâneas em suas novas relações com o tempo e espaço, com o conhecimento e com a aprendizagem, na perspectiva de motivar a reflexão e a busca

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por pressupostos que favoreçam a reinvenção das práticas pedagógicas no Ensino Médio. Para tanto, no seu referencial teórico, a dissertação realizada apresentou discussões sobre a Contemporaneidade e seus desafios, aprofundou os estudos sobre o perfil do jovem de Ensino Médio na Contemporaneidade, discutiu o conceito de juventude(s) a partir das pedagogias culturais e dos processos de midiatização e apresentou algumas provocações sobre os processos de escolarização que devem ser (re)pensados a partir de suas continuidades, descontinuidades e rupturas. Entre os principais autores estudados destacam-se: Bauman (2001), Harvey (1992), Castells (1999), Costa (2005), Fischer (2012), Masschlein e Simons (2017), Dayrell (1996), Sousa (2014), Severo (2014), Pais (2006), dentre outros. A empiria foi coletada/produzida a partir de dois instrumentos de pesquisa, o questionário e o grupo focal, que propiciaram uma aproximação e escuta dos jovens de Ensino Médio do Colégio Medianeira. O foco no jovem contemporâneo e a busca por compreender suas relações com o conhecimento e com a aprendizagem levam à necessidade de aprofundar características desse tempo e as mudanças geradas no contexto da Modernidade Líquida (Bauman, 2001). Ao se pensar a Educação e o lugar do jovem na Contemporaneidade, há uma alta exigência no encaminhamento dos processos que visam criar graus de consciência e inserção social, desencadeando análises reflexivas que dialoguem e se contraponham ao

paradigma vigente. A tendência do momento é criar posturas cada vez mais individualistas, perdendo a noção de coletividade e alteridade, em que os interesses individuais predominam, exigindo da Escola um arsenal de possibilidades motivacionais que a torne mais atrativa. Ao mesmo tempo, esse mesmo contexto, se analisado criticamente e sob um viés de sociedade que se pretende sustentável, pode provocar comportamentos colaborativos e resgatar princípios de civilidade. O protagonismo juvenil e as novas temporalidades remetem às complexas relações existentes, considerando a fluidez dos processos e a busca por transformar o que está posto para esse jovem em conteúdo escolar, significando as informações recebidas e possibilitando a construção de conhecimento. Dessa forma, a pedagogia em conexão com os estudos culturais permite vislumbrar espaços de aprendizagem que dialoguem com a identidade multifacetada, transterritorial e multilinguística desse jovem. Há que se lembrar que existe um novo tipo de estudante que a escola precisa conhecer e aprender a trabalhar, considerando seus desejos de saber e as subjetivações escolares decorrentes da subjetivação cultural. Pode-se dizer que “ainda não refletimos de forma suficientemente imaginativa sobre como lidar com tais estudantes na


escola, e continuamos nos comportando como se essa juventude, e também uma nova infância, não existissem, não estivessem lá” (COSTA, 2005, p. 5). Fischer (2012, p. 410) alerta para a necessidade de “avançar em novas investigações sobre os modos de entretenimento, lazer e estudo dos jovens, em direta conexão com as múltiplas formas de comunicação e inclusive de leitura de nossos dias”. Os novos espaços de aprendizagem, como os oportunizados pelas mídias digitais, geram um novo tipo de pertencimento para as novas gerações, trazendo uma necessidade de acesso a um aparato tecnológico que responda a essa possibilidade. As novas tecnologias e os saberes construídos historicamente têm levado a transformações culturais e sociológicas de grande relevância, apontando para uma urgente e necessária rediscussão e reorganização das práticas pedagógicas em todos os níveis de Ensino no Brasil, já que a aprendizagem não se restringe à escola, ocorrendo em diferentes espaços sociais regulados pela cultura, ou seja, espaços culturais como espaços de aprendizagem (ANDRADE, 2015). Há que se ter o cuidado de aproximar a escola do mundo do

jovem contemporâneo sem perder sua essencialidade, ou seja, sua função nos processos de ensino e de aprendizagem; dessa forma, considerar o tempo presente não pressupõe uma simples “adequação” ao tempo. No contexto da Modernidade Líquida, em que muitas coisas são fugazes, instantâneas e motivadas pelo e para o consumismo, é necessário reforçar o que é inegociável na educação de nossas crianças e jovens. A que deve servir efetivamente a escola? O conhecimento trabalhado precisa ser significativo aos sujeitos envolvidos, tanto para os professores como para os estudantes. Ao ser significativo ao professor, este se revela, se expõe e mostra o sentido da experiência trazida por meio desse conhecimento, traduzindo os desejos, as aspirações e sua concepção de mundo, pessoa e sociedade. Isso traz sentido a quem se relaciona com ele, no caso mais direto no contexto escolar, o estudante, provocando inserções pessoais e coletivas, questionamentos, redimensionando o conhecimento envolvido e dando novos sentidos a ele. Minha dissertação aqui referenciada se propõe a colaborar nesse sentido, ao buscar aprofundar o estudo da complexidade do jovem contemporâneo, em suas novas relações com o tempo/espaço, com o conhecimento e com a aprendizagem. A pesquisa realizada considera também a escuta e o contato mais próximo com questões próprias do processo pedagógico desses jovens, a fim de favorecer a busca de pressupostos norteadores que colaborem na (re)invenção das práticas pedagógicas pela escola. Parto da

ideia de que temos ouvido pouco os jovens, de modo que é preciso perguntar-se: em que momentos se consegue efetivamente colher informações e conhecer sobre o que e como pensam e sentem nossos jovens, tanto em relação às questões pedagógicas como em questões de ordem emocional, cultural e social. A pesquisa que realizei envolveu a escuta de estudantes do Ensino Médio do Colégio Medianeira, por meio de um questionário (aplicado a 158 estudantes das três séries do Ensino Médio) e da constituição de um grupo focal (12 estudantes do Ensino Médio, sendo quatro de cada série), em que três temáticas foram escolhidas como fio condutor das conversas. As temáticas abordaram a respeito da relação e das percepções dos estudantes de EM sobre a escola, sobre como o jovem de EM aprende no contexto atual (aulas, métodos e abordagens relação ensino e aprendizagem) e sobre o uso do tempo pelos jovens de EM e a relação com a internet e a aprendizagem. Sobre a relação e percepções desses jovens a respeito da escola, aspectos como amizade, união e convivência foram muito relevantes, reforçando a importância das relações entre os estudantes, destes com seus professores, além da oportunidade de se conhecerem e estabelecerem vínculos significativos e respeito ao outro e à diversidade. Deram ênfase ao aprendizado oportunizado pela escola, com a possibilidade de conhecer e perceber identificações com as várias áreas do conhecimento e relacionar com a escolha de uma profissão, por mais que reforçassem

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a necessidade da Escola dar mais sentido aos conteúdos estudados, por meio de relações com o dia-a-dia e entre os conteúdos. Destacaram a importância da Escola ao dar sentido para a vida dos jovens, ajudando-os a descobrir suas afinidades e potencialidades. Nas conversas entre e com os estudantes, foi retomada algumas vezes a contradição colocada quando o foco da Escola se torna o vestibular, contrapondo os valores e o sentido do estudo propriamente na vida de cada um. Quando não percebem sentido, indicam um sentimento de tédio com a Escola, com aulas conteudistas, sem relação com o contexto pessoal e coletivo, deixando de ser dinâmicas. Ao analisarem especificamente o contexto do Colégio Medianeira, os estudantes defenderam a proposta de ensino do Colégio, a visão mais ampla sobre Educação e a preocupação com a formação humana, além da acadêmica. Consideraram fundamental o olhar da Escola sobre a construção da base emocional e psicológica dos sujeitos envolvidos, enfatizando sua função social e visão no coletivo. Defenderam maciçamente, ao retomarem a respeito do papel da Escola, a proposta do Colégio Medianeira pela concepção humanista de Educação e exemplificaram com várias propostas metodológicas vivenciadas por eles. O grupo conversou sobre a escolha referente à utilização do tempo feita pela metade dos estudantes ali presentes, para ler e estudar, retomando o sentido e o papel da Escola em suas vidas e o quanto a convivência e as amizades cons-

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tituídas nesse espaço favoreciam seus processos de aprendizagem. A utilização das mídias sociais para eles não apareceu como uma evidência, trazendo uma percepção de naturalização desse recurso, o que já seria propriamente uma forma de vida, sem inferências sobre isso significar “ocupar” ou usar o seu tempo. Estudantes da 3ª série do Ensino Médio revelam maior consciência sobre a importância e a necessidade do estudo no último ano, em função dos Vestibulares e ENEM, como para seu preparo para a vida universitária e profissional. Ao mesmo tempo, evidenciou-se que o estudar significa abrir mão dos prazeres da vida e que conseguem fazer isso de maneira um pouco mais favorável, ao perceber sentido naquilo que estudam. Alguns estudantes indicam ser a 3ª série um momento de muita pressão, muitas responsabilidades e desafios, ao mesmo tempo que consideram o melhor ano de sua vida escolar, ao referenciar as relações com seus pares e também com os professores e com a escola. O maior tempo que ficam no colégio nesse ano, o aumento da carga horária e as demandas dessa série impõem a eles mais trabalho e, ao mesmo tempo, um amadurecimento muito rápido e favorável, criando maiores identificações com as áreas do conhecimento e com as pessoas com as quais convivem. Por vezes fazem referência ao colégio como uma família. Sobre os principais problemas da Escola, os estudantes focaram a discussão no método de ensino e nas formas de avaliação, relacionando as diferentes maneiras de aprender de cada um, dependen-

do do conteúdo e da estratégia utilizada pelo professor. Sobre a avaliação, compreendem que ela é necessária ao processo escolar, porém, que não tem sido a melhor maneira de saber se o sujeito aprendeu. A validação e legitimação de outros meios de avaliação além da prova (principal forma de avaliar os estudantes ainda hoje) são aspectos de destaque nas conversas com os estudantes, enfatizando a urgência da superação desta. Os estudantes do grupo focal chamaram a atenção sobre a importância do professor buscar alternativas para tornar as abordagens mais interessantes e diversificadas, enfatizando que cada estudante aprende de uma forma diferente e isso precisa ser considerado. Por várias vezes repetem o argumento de que as aulas precisam ser mais dinâmicas, se referindo a aulas em que o professor apresenta uma capacidade de estabelecer um vínculo com o conhecimento, que se traduz significativo ao estudante, revelando interação e compreensão sobre a forma de aprender de cada um, olhando suas dificuldades, e bom humor na forma como explica e se relaciona com os estudantes. Ficou evidente que uma aula dinâmica para eles não depende predominantemente da estratégia utilizada, mas sim, da forma como o professor consegue significar a abordagem e estabelecer um vínculo positivo com os estudantes por meio dos conteúdos trabalhados. A fala do professor e a relação que ele revela ter com o conteúdo abordado fazem com que os jovens se interessem. Referendaram a própria geração como “geração preguiça”, destacando o conformismo, a procrastinação


e a acomodação como características muito presentes na maioria dos jovens hoje, deixando claro a falta de motivação nos processos de ensino e de aprendizagem propostos pelas escolas em geral. Ao mesmo tempo que os estudantes criticam alguns processos escolares instaurados há algum tempo, é presente também uma certa insatisfação com a própria forma de vida que levam. As falas de alguns indicaram a necessidade da Escola se reinventar, mas buscando encontrar um certo meio termo entre o mundo digital em que estão imersos desde cedo e as aprendizagens consideradas mais tradicionais, mas que são concebidas por eles como muito importantes ao seu processo de formação. Discutindo a respeito das estratégias metodológicas utilizadas no Colégio Medianeira, os estudantes se posicionaram frente à preferência de vários pelas aulas expositivas, levantando seus prós e contras e indicando como muito importante a retomada dos conteúdos e a realização de exercícios após a explicação do professor, além da realização de tarefas em casa. A defesa dos estudantes sobre a aula expositiva dialogada está relacionada à “obrigato-

riedade” de se manter atento e participar da aula, por mais que indiquem variar de opinião, dependendo do conteúdo abordado e do estilo do professor, havendo aulas em que manter-se atento é um grande desafio. Defenderam o uso de roteiros e esquemas explicativos, debates e apresentações orais, assim como as aulas experimentais, de laboratório e de campo. As atividades em duplas e os trabalhos em grupo foram problematizados por muitos, apesar de considerarem importante e motivador, sendo a questão relacional o aspecto mais difícil e desafiador na condução dessas estratégias. Defenderam videoaulas como uma das estratégias de aprendizagem mais acessadas, complementar às explicações de sala de aula. O trabalho em equipe, os jogos e a competição entre os grupos se revelou favorável e estimulante ao processo de aprendizagem dos jovens estudantes. A manutenção e ampliação das rodas de conversa, dinâmicas e exercícios que trabalham a integração entre as pessoas, a confiança e a solidariedade na turma foram muito defendidos. Sugestões de realização de debates por outras disciplinas foram destacadas, inferindo que uma estratégia que instiga o lúdico pode promover maior adesão e participação do grupo. A alternância de estratégias metodológicas atrai a atenção e o interesse deles, bem como situações em que precisam conversar entre si sobre o assunto estudado, tirando-os da passividade, além da mudança de ambiente, o que alivia a pressão e pode favorecer o interesse dos estudantes. Na conversa final com todo o grupo, foi nítida a necessidade

de haver uma regulação por parte da Escola sobre os processos colocados aos estudantes, como a importância de favorecer o cumprimento de seus objetivos escolares. Nesse âmbito, ficou evidente porque a aula expositiva dialogada foi a mais votada como a melhor forma de aprender, se manter atento e motivado na aula, pois existe um mediador, que é o professor, e este regula os sujeitos aprendentes. Já nos trabalhos em grupo, em que a dispersão por vários motivos se revela maior, exige-se um autocontrole, uma autorregulação mais eficiente por parte deles, e isso para muitos ainda é desafiador. A importância do professor enquanto um sujeito do processo de construção de conhecimento pelos estudantes é muito destacada pelo grupo, enxergando-se a necessidade da ajuda e do cuidado no seu acompanhamento. A respeito da busca dos jovens pela internet, eles apontaram que o acesso às mídias sociais associado ao divertimento e lazer se torna “automático e viciante”, pois ficam horas mexendo no celular ou no computador e não fazem o que deveriam fazer. A dispersão provocada pelo bombardeio de informações com extrema velocidade se reflete em todo processo de aprendizagem, formal e informal, dos jovens de Ensino Médio, gerando cansaço, banalização e dificuldade em se concentrar e aprofundar temáticas relacionadas ao processo escolar. Foi perceptível a inadequação entre o acesso fácil, frequente e rápido que a maioria tem e o contraponto posto pela Escola, ao buscar aprofundamento e análise, que visam favorecer

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níveis mais avançados de aprendizagem, saindo do senso comum. Porém, há um vácuo nessa relação, por mais alternativas que a Escola possa buscar, ainda se mostra necessário compreender como conseguirá aproximar a proposta de Educação do mundo do jovem na Contemporaneidade. Aspectos relativos à atenção aos estudantes e ao cuidado com cada um, nas várias dimensões que o integram, destacando-se aqui a dimensão sócio-emocional-afetiva, considerando-se a rapidez e a fluidez inerentes ao contexto contemporâneo, se revelam urgentes de serem encarados e trabalhados na e pela escola. O mais emergente para o grupo se revelou não ser o método que a Escola e cada professor utiliza, se ele usou roteiro, aula expositiva ou debate, mas o cuidado na forma como faz, como age em relação a cada estudante, às suas dificuldades e potencialidades. Há uma dicotomização entre a função da escola em aprofundar e estabelecer análises mais consistentes sobre os variados tipos de assuntos tratados, relacionando-os com a atualidade e com os conteúdos estabelecidos por meio do currículo de cada série, e a “necessidade imediata”

imposta culturalmente de ter que dar as fórmulas, os macetes para favorecer a aprovação nos exames vestibulares. Portanto, é importante destacar que a contradição não está só na Escola, mas também em nossa própria cultura em relação ao que se quer e à forma como somos “ensinados” a repetir o padrão. Também é enfática a urgência da Escola em estabelecer um diálogo direto com os sujeitos juvenis, oportunizando e ampliando suas formas de escuta. A relação dialógica a ser estabelecida entre os estudantes e a Escola pode se constituir em um processo de engajamento e de construção de pressupostos que favoreçam o repensar dos processos pedagógicos. comente este artigo: comunicacao@colegiomedianeira.g12.br

Referências ANDRADE, Paula Deporte. Pedagogias Culturais: as condições teóricas que possibilitaram a emergência do conceito. 6º SBECE. 3º SIECE. UFRGS, 2015. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de janeiro: Zahar, 2001. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. A era da informação: economia, sociedade e cultura. v.1. São Paulo: Paz e Terra, 1999. COSTA, Marisa Vorraber. Quem são, que querem, que fazer com eles? Eis que chegam às nossas escolas as crianças e jovens do século XXI. In: MOREIRA, Antonio Flávio; GARCIA, Regina Leite; ALVES, Maria Palmira (Orgs.). Currículo: pensar, sentir e diferir (v. II). Rio de Janeiro: DP&A, 2005. DAYRELL, Juarez. Múltiplos Olhares sobre Educação e Cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1996. FISCHER, Rosa Maria Bueno; SCHWERTNER, Suzana Feldens. Juventudes, Conectividades Múltiplas e Novas Temporalidades. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 28, n.01, mar 2012. HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. Edições Loyola. São Paulo, 1992. MASSCHELEIN, Jan.; SIMONS, Maarten. Em defesa da escola: uma questão pública. 2. ed. Belo Horizonte: Autentica Editora, 2017.

Roberta Aparecida Uceda é sempre-aluna Medianeira, formada em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Paraná (1989). Atualmente, é Orientadora de Aprendizagens da 2ª série do Ensino Médio do Colégio Medianeira e professora de Biologia na mesma Unidade de Ensino, onde desenvolve trabalhos de orientação vocacional, coordenação e supervisão escolar. É mestre em Gestão Educacional pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).

PAIS, José Machado. Buscas de si: expressividades e identidades juvenis. In: ALMEIDA, Maria Isabel Mendes. EUGENIO, Fernanda. (orgs). Culturas jovens. Novos mapas do afeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. P. 7-21. SEVERO, Rita Cristine Basso Soares. Enquanto a aula acontece... práticas juvenis (des)ordenando espaços e tempos escolares contemporâneos. Porto Alegre, 2014. SOUSA, Cirlene Cristina. Juventude(s), mídia e escola: ser jovem e ser aluno face à midiatização das sociedades contemporâneas. Tese de Doutorado. Belo Horizonte: UFMG, 2014.

Recomendações Em defesa da escola – Uma questão pública Jan Masschelein e Maarten Simons | Autêntica O livro é um libelo contra a condenação da escola como alheia à realidade ou desconectada dos problemas reais. Para os autores, esse posicionamento contrário às instituições de ensino advém do fato de a escola ser um espaço de reflexão e de transformar o conhecimento e as habilidades em “bens comuns” e, portanto, tem o potencial para dar a todos, independentemente de antecedentes, talento natural ou aptidão, o tempo e o espaço para sair de seu ambiente conhecido, para se superar e renovar o mundo.

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Nó na garganta Black Mirror, série criada por Charles Brooker, é um retrato acachapante dos nossos tempos. Porém, a pergunta que fica é: qual a leitura possível da relação ente realidade e ficção? Por Jonatan Silva

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m abril de 2018, a notícia de que a Linha 4 do metrô de São Paulo utilizaria reconhecimento facial para avaliar a reação dos passageiros aos anúncios publicitários causou espanto, indignação e revolta. A justificativa da ViaQuatro, empresa responsável por administrar a linha, é que a estratégia ajudaria a “divulgar campanhas interativas e expor marcas e produtos, com monitoramento da audiência em tempo real”. Por parte dos usuários do sistema de transporte paulistano, o que mais se escutou foi: “isso é muito Black Mirror”.

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A série de TV, criada em 2011 por Charles Brooker, é um retrato de nossos tempos, escancarando as lacunas morais, o desejo de status e a tecnologia como mediadora das relações sociais. O primeiro episódio da terceira temporada, “Nosedive”, “previu” o sistema de score que a China anunciaria pouco depois. A pontuação nas redes sociais digitais influencia diretamente o seu papel na sociedade off-line. Os benefícios, segundo o roteiro de Brooker, vão de ser convidado para um casamento a poder alugar o modelo mais recente de um carro. No plano do governo chinês, o cidadão que não atingir

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a “pontuação social” sofrerá sanções – como a proibição de viajar de avião – e premiará com “crédito social” aqueles que estiverem bem ranqueados.

lacionamento na era dos aplicativos

O sistema, ainda em fase de teste na China, deve entrar em funcionamento em 2020, mas não é preciso esperar para experimentar o rating system. Quem utiliza aplicativos de transporte, como o Uber, avalia e é avaliado. Os motoristas com notas altas recebem corridas “melhores” – mais longas e mais caras – e os passageiros bem avaliados são direcionados para motoristas equivalentes. Ainda nesse sistema de avaliação por like e dislike, o reality show The Circle, transmitido pelo Channel 4, do Reino Unido, decide quem fica e quem sai do programa de acordo com as avaliações dos próprios participantes em uma espécie de rede social criada para a atração. No caso, os oito concorrentes estão confinados em um prédio e não podem interagir entre si a não ser por essa social media e, portanto, como no Facebook e no Instagram, precisam criar perfis e personas que agradem à audiência e aos congêneres.

ção. Questionar essa lógica, como

“Hang the DJ”, quarto episódio da quarta temporada, explora o re-

de paquera. Ao contrário do Tinder, cujo objetivo é formar casais, a rede social descrita por Brooker estipula a validade daquela relafazem Frank e Amy, protagonistas deste capítulo, é ir contra o establishment. “Se a tecnologia é uma droga – e parece ser mesmo – então quais são precisamente os efeitos colaterais? Esse espaço – entre apreciação e desconforto - é onde Black Mirror [...] está localizada”, explicou Brooker ao jornal The Guardian, “o ‘espelho negro’ do título é o que você encontrará em todas as paredes, mesas, nas palmas das mãos: a fria e brilhante tela de uma TV, um monitor ou um smartphone”. *** Black Mirror é perturbadora, não por apresentar situações impossíveis, mas por maximizar exemplos distópicos do cotidiano. Em “Manda quem pode”, na terceira temporada, a chantagem virtual toma proporções claramente realizáveis. O episódio inaugural da série, “Hino nacional”, é um retrato da crise política – e dos bastidores de quem decide o futuro de um povo – levado ao microscópio.


A falta de habilidade para lidar com o luto, a dor e a rejeição – questão tão presente nos millennials – dá o tom em “Volto já”. Nesse episódio da segunda temporada, uma viúva contrata um serviço que promete trazer o marido falecido de volta do hades por meio de uma avançada tecnologia que reconstrói a personalidade, os gostos e o corpo do parceiro com base nas memórias gravadas no grão. O grão – software que registra a vida das pessoas – é o tema do episódio final da primeira temporada, “Toda a sua história”, e funciona também como leitmotiv da série. Não é absurdo dizer que todos os capítulos de Black Mirror se passam no mesmo universo – para usar uma expressão de Lynch ao justificar o surrealismo de sua obra. A ideia de que a distopia é, necessariamente, uma visão do futuro já não faz mais tanto sentido como antes. O escritor William

Gibson, autor de Neuromancer e o responsável por criar o termo “ciberespaço”, declarou – em entrevista à Vulture – que questão de o que é ou não distopia tem uma relação íntima com o ponto de vista individual ou de determinada comunidade. “Um número razoável de cidadãos dos Estados Unidos vive sob condições que muitas pessoas considerariam distópicas”, afirma, e parafraseia a si mesmo: “a distopia não é distribuída de forma igual”. Jotagá Crema, roteirista da série 3%, enxerga a desigualdade social como um elemento fomentador da distopia. Os diversos contextos sociais que compõem uma cidade formam o cenário perfeito para uma realidade distópica. “As distopias estão na nossa porta. O país é muito desigual. Enquanto muitos vivem no primeiro mundo, uma rua abaixo você tem um apocalipse”, refletiu, durante entrevista ao podcast do jornal Nexo.

*** Outro trunfo de Black Mirror foi reacender o interesse pelas distopias, abrindo espaço para The Handmaid’s tale e The Man in the high castle – a primeira inspirada em um livro de Margaret Atwood e a outra na obra de Philip K. Dick, cuja ficção científica Androides sonham com ovelhas elétricas? deu origem a Blade runner. Para Atwood, a relação do sujeito com a realidade – ou o que entende-se por real – esconde uma questão geracional. Os direitos, aos olhos dos mais jovens, estão estabelecidos como verdades inexoráveis, sobretudo no ocidente. “Se você é mais velho e nasceu num mundo diferente, você viu as lutas que levaram a essas conquistas”, disse a escritora em conversa com a atriz Emma Watson. Não há ineditismo no discurso de Black Mirror – as irmãs Wachowski despontaram na virada do

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milênio com Matrix ao tratar dessa linha tênue. O que chama atenção é a maneira como a sociedade está se configurando e estabelecendo uma realidade alternativa, como em Complô contra a América, em que Philip Roth imagina Charles Lindbergh – que ganhou notoriedade, em 1927, por fazer o primeiro voo transatlântico solitário – como presidente dos Estados Unidos. Conforme escreve Roth, Lindbergh, simpatizante do nazismo, daria outros rumos à Segunda Guerra Mundial.

O interesse pela distopia – mesmo sendo ela, por vezes, apocalíptica – vem do desejo da conjectura. E se…? As respostas nem sempre são óbvias. Mark Twain, em uma lição atemporal, define com coragem, e antecipação, os nossos tempos: “a verdade é mais estranha que ficção, porque a ficção precisa fazer sentido, e a verdade, não.”

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Jonatan Silva é formado em Jornalismo e pósgraduado em Marketing Digital. Trabalha como jornalista e assessor de imprensa no Colégio Medianeira e colabora com o jornal Rascunho e o portal A Escotilha. É autor do livro O Estado das coisas.

Recomendações 1984 Geoge Orwell | Companhia das Letras Winston, herói de 1984, último romance de George Orwell, vive aprisionado na engrenagem totalitária de uma sociedade completamente dominada pelo Estado, onde tudo é feito coletivamente, mas cada qual vive sozinho. Ninguém escapa à vigilância do Grande Irmão, a mais famosa personificação literária de um poder cínico e cruel ao infinito, além de vazio de sentido histórico.

Fahrenheit 451 Ray Bradbury | Biblioteca Azul Escrito após o término da Segunda Guerra Mundial, em 1953, Fahrenheit 451, revolucionou a literatura com um texto que condena não só a opressão anti-intelectual nazista, mas principalmente o cenário dos anos 1950, revelando sua apreensão numa sociedade opressiva e comandada pelo autoritarismo do mundo pós-guerra.

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