Revista Mediação - Número 07

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NÚMERO 7 • ANO II ISSN 1808-2564 revista de educação do colégio medianeira

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Diretor Pe. Raimundo Kroth, S.J. Vice-diretor Prof. Adalberto Fávero Coordenador Administrativo e Financeiro Gilberto Vizini Vieira Coord. Comunitário e de Esporte Prof. Francisco Alexandre Faigle Coordenação Editorial e Revisão Nilton Cezar Tridapalli Luciana Nogueira Nascimento (MTB 2927/82v) Projeto Gráfico e Diagramação Sonia Oleskovicz Ilustrações Marcelo Cambraia Sanches

ISSN 1808-2564

revista de educação editada e produzida pelo colégio medianeira

Ambiente Inteiro Francisco Carlos Rehme ............................................................................................................................. 4

Consumo: bem me quer, mal me quer Valesca Giordano Litz. ................................................................................................................................. 8

Arte e Consciência Planetária Nilton Cezar Tridapalli ................................................................................................................................. 12

História e Meio Ambiente Rodrigo Pelais Banhoz ................................................................................................................................. 17

Fotografias Arquivo Medianeira Colaboraram nesta edição Adalberto Fávero, Claudio Adriano Piechnik, Francisco Carlos Rehme, Gladis Tridapalli, Luciana Nogueira Nascimento, Marcelo Cambraia Sanches, Nilton Cezar Tridapalli, Pe. Hilário José Kochhann S.J., Pe. Raimundo Kroth S.J., Rodrigo Pelais Banhoz, Valdemiro Ruppenthal, Valesca Giordano Litz Tiragem 4.000 exemplares Papel Reciclato Suzano 90g/m2 (miolo) Reciclato Suzano 240 g/m2 (capa) Número de Páginas 52 CTP Edições Loyola Impressão e Acabamento Edições Loyola EQUIPE PEDAGÓGICA Educação Infantil e Ensino Fundamental de 1ª à 4ª séries Coordenadora Profª Silvana do Rocio Andretta Ribeiro Ensino Fundamental de 5ª e 6ª séries Coordenadoras Profª Eliane Zaionc Ensino Fundamental de 7ª e 8ª séries Coordenador Prof. Marcelo Pastre

O corpo: um sistema relacional Gladis Tridapalli ............................................................................................................................................ 22

Que venha o aquecimento global, já comprei meu aparelho de ar condicionado! Cláudio Adriano Piechnik ........................................................................................................................... 28

Um, outros ou muitos? Valdemiro Ruppenthal ................................................................................................................................. 31

Formando Autonomias Solidárias Adalberto Fávero .......................................................................................................................................... 31

Entrevista: André Trigueto. Mundo sustentável Nilton Cezar Tridapalli ................................................................................................................................. 42

Amazônia: Vida e missão neste chão Pe. Hilário José Kochhann SJ .................................................................................................................... 46

Poeta poetinha da natureza Luciana Nogueira Nascimento ................................................................................................................... 52

Ensino Médio Coordenador Profª Roberta Uceda Vieira Coordenador de Pastoral Pe. Guido Valli, S.J. Centro de Espiritualidade Pe. Hilário José Kochhann, S.J. Comunicação e Marketing Luciana Nogueira Nascimento Os artigos publicados são de inteira responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a opinião dos editores e do Colégio Nossa Senhora Medianeira. A reprodução parcial ou total dos textos é permitida desde que devidamente citada a fonte e autoria.

BR 476, Km 130, nº 10546 Prado Velho • Curitiba • Paraná fone 41 3218-0000/ fax 41 3218-8040 www.colegiomedianeira.g12.br www.colegiomedianeira.com.br mediacao@colegiomedianeira.g12.br

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Marcelo Cambraia Sanches - Professor de Portuguès e Literatura do Colégio Medianeria


Aproveitamos este espaço de contato com o Leitor para agradecer as mensagens enviadas por e-mail, os telegramas, cartas e telefonemas, cumprimentando a direção e os educadores pelos 50 anos do Colégio Medianeira. Registramos algumas mensagens e nomes e entidades representativas que chegaram até nós por ocasião do aniversário de fundação no dia 24 de fevereiro, pois não seria possível publicarmos todas as mensagens. Agradecemos a todos o carinho com a comunidade do Medianeira e a lembrança por nosso cinqüentenário. A todos o nosso abraço que Transforma!

BETO RICHA Prefeito de Curitiba

“Meus cumprimentos e minha admiração à esta instituição que vem formando jovens que fazem a diferença na nossa sociedade. Parabéns a todos que trabalham no colégio e ao senhor (Pe. Raimundo) nosso abraço que Transforma”.

DIREÇÃO DO COLÉGIO SÃO FRANCISCO XAVIER ELEONORA BONATO FRUET Secretária Municipal de Educação EQUIPE DO INTER AMERICANO GLEISI HOFFMANN

ELIZABETH MARIA AGUIAR MAIA Presidente do Conselho Municipal da Condição Feminina

IRMÃS BERNARDINAS Escola Esperança IVANIRA TEREZA GAVIÃO PINHEIRO Coordenadora Estadual do Procon do Paraná

“É motivo de orgxulho para todos nós os 50 anos do Colégio Medianeira. Só se faz opinião com a visão crítica e o debate fundamentado, marcas desta instituição. Como nunca, o Brasil precisa desta referência. Em frente!”. GUSTAVO FRUET Deputado Federal

“Em nome da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, cumprimento Vossa Senhoria e colaboradores do Colégio Medianeira pela significativa data. Que esta exitosa jornada de qualificada

JOSÉ ANTÔNIO ANDREGUETTO secretário Municipal do Meio Ambiente LUIZ BERNARDI superintendente da Receita Federal LUIZ EDUARDO CHEIDA Deputado Estadual LUIZ FERNANDES LITRO Deputado Estadual PAULO ARNS DA CUNHA diretor geral do Colégio Bom Jesus PE. JESUS HORTAL SÁNCHEZ, S.J. reitor da PUCRJ PE. THEODORO PETERS, S.J. presidente da FEI

educação de várias gerações de estudantes, sirva de renovado alento para

SÉRGIO MANOEL MASTECK RAMOS Presidente da FESP

prosseguirem formando pessoas integrais à luz da Pedagogia Inaciana”. PE. MARCELO FERNANDES DE AQUINO, S.J. Reitor

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VITOR HUGO RIBEIRO BURKO diretor presidente do IAP WANDA SANTI CARDOSO DA SILVA juíza presidente do TRT

Caro leitor leitor,, escreva para a revista Mediação enviando seus comentários sobre as matérias e artigos lidos aqui. Não deixe de participar participar.. Mande sua mensagem para nilton@colegiomedianeira.g12.br ou mediacao@colegiomedianeira.g12.br


...antes que seja tarde demais O Colégio Nossa Senhora Medianeira completou 50 anos de fundação no dia 24 de fevereiro de 2007. O ano passado foi tempo de discussão para discernir um foco que nos ajudasse a dar significado e renovado compromisso às nossas comemorações. Optamos pelo tema do ambiente, da biodiversidade, da consciência planetária, tendo a pessoa humana como valor central e, ao mesmo tempo, sua responsabilidade em defender a vida nos diversos espaços em que vive. A discussão sobre estes e outros temas correlatos estão na ordem do dia no mundo inteiro. Uma urgência inadiável perpassa o teor dos debates. Se não reagirmos com rapidez, decisão e sabedoria, pagaremos caro pela nossa indiferença. Adriana Imperato, em seu artigo na revista “Mundo Jovem” (n. 373, fev 07) escreve com convicção: “Se cada um dos jovens desse país tomar para si um pouco dessa tarefa de acreditar na defesa do meio ambiente, isso vai dar um novo sentido para nossa vida. É preciso, sim, ter um pouco de radicalidade. É preciso, sim, que o jovem tenha grandes paixões... A gente precisa sair dessa zona de conforto em que todo o mundo está acomodado...”. O desafio que Adriana lança para os jovens se aplica para todos, especialmente para as instituições educativas. Somos convocados a repensar nossas relações e compromissos (ou não com-

promissos) a partir de novos paradigmas. Tomar consciência dos desafios que o mundo atual nos lança dramaticamente não é suficiente. Urge mobilizar mentes e corações para novos debates e projetos de ação em defesa da vida, articular iniciativas, avaliar ações e apreciar resultados. S. Inácio, por experiência própria, sempre acreditou que pessoas bem formadas nas artes e nas ciências, animadas pelo dinamismo de mais vida, podem fazer um bem maior. A Revista Mediação, do Colégio, especialmente com esta edição comemorativa, quer contribuir nesta direção através dos diversos artigos e abordagens. Parabéns aos editores e articulistas. Diz a bíblia em Gn 2,7: “O Senhor Deus formou o homem do pó da terra, soprou-lhe nas narinas o sopro da vida...”. Sopro, na bíblia, tem a ver com espírito e dinamismo de vida em toda a sua simplicidade e complexidade. Daí nasce a convicção de que o homem é parte da enorme rede de vida que se estende pelo universo afora e tem a missão irrenunciável de fazer do mundo um espaço de comunhão. Pela falta de compreensão desta força inicial e sempre atual, muitos estragos, talvez irreversíveis, já foram feitos ao nosso ambiente. Podemos reagir com coragem e sabedoria, mas sem esquecer de que é preciso pagar a conta... antes que seja tarde demais. Boa leitura.

Pe Raimundo Kroth, S.J. Diretor do Colégio Medianeira

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Ambiente

INTEIRO

Por Francisco Carlos Rehme

Em tempos de perspectivas sombrias sobre o ambiente do planeta, é, antes de tudo, importante conhecer (e sentir) melhor o que falamos quando pronunciamos a palavra “ambiente”. 6


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O que você considera “ambiente”? A) Mata Atlântica B) Centro da Cidade C) Região Metropolitana D) Mata das Araucárias E) Todas as anteriores

A resposta é única e plural: alternativa E, que contempla a todas elas. E vai além... A palavra ambiente – e seu significado – acolhe as vastidões do cosmos e também o pequeno galho da Orelha de Mico, ainda molhado da última chuva, que parcialmente ali encontrou abrigo, desde que os ventos e a idade da árvore o fizeram descer ao chão. Parafraseando Gilberto Gil, no seu belíssimo CD Quanta, o ambiente está no “vasto, vasto vão do espaço até o spin”. Pode ser o bucólico, a ombrófila hiléia, as serenas pradarias, cujo ritmo é embalado pelas toadas dos ventos, mas pode ser também o ruidoso cruzamento das marechais, bem no centro de nossa ensandecida metrópole curitibana, vigiado permanentemente pelas altas e frias sentinelas de vidro fumê e cimento, das noites não muito negras e crispadas pelas luzes dos faróis dos veículos. Pode ser ainda a estreita e tortuosa ruela, que não se sabe onde finda nem onde começa e que está lá, na mesma cidade, porém já não mais em seu centro, numa das dezenas de favelas, anônima no palco urbano, como é anônima a vida dos que nela moram. O ambiente inclui o nervoso e apressado ritmo das fábricas, daquelas que ainda empregam – e sugam – a força humana, a aparente calma dos vilarejos aéreos e enlameados do mangue, cujas pulsações são embaladas pelo vai-e-vem da maré – que ora traz, ora não, o peixe, o caranguejo, o óleo dos porões dos navios e muitas, muitas garrafas de vidro com suas mensagens. É toda a gente do mar que pede socorro, gente de ossos e

de cartilagens, de escamas e de tenazes, de couraças, de corais calcários e a gente de pele, carne, sangue e consciência, ainda... Está no intangível, a pátria da quimera, o não lugar dos utópicos, a miragem do sedento na árida areia. Está no recôndito desconhecido, a terra ignota, o outro lado da lua, as tripas vulcânicas da Islândia e naquele lugar que se pensa que não existe, mas está lá, semi-oculto pela neblina num cantinho do mapa, e que pode ser a Tasmânia ou a Transilvânia. O paradoxo do ambiente – ou a sua onipresença – é que ele está lá e está aqui, a menos de uma palma do nariz, por vezes tão próximo que não se vê, se embaralha, se rejeita e reserva ao lugar-comum. Mas, pode ser a terra do desde sempre, noite-a-noite, dia-a-dia, aquela regada pelas nossas lágrimas – quisera não tenhamos secado a fonte –, chão, água e ar de nossas emoções cotidianas que não seriam capazes de fazer um leitor virar a página de tão triviais, mas que nos são caras. Pois caras são as

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aventuras, tramas do nosso diário drama, que alisam ou encrespam o ninho que temos no peito, tecido pelas fibras do miocárdio. De sorte que não me cabe, nem me é possível, dar um veredicto a respeito do conceito de ambiente. Convém não encerrá-lo, de modo a algemá-lo aos grilhões da arrogância; nisso é preferível deixá-lo à deriva, mesmo correndo o risco de encalhar nos bancos de areia das relativizações intermináveis. Embora não seja o mesmo que ambiente, mas estão nele inseridas, a paisagem e suas diferentes visualizações estão de forma tão rica traduzidas nas palavras do escritor português José Saramago, em seu livro As pequenas memórias, que só podem mesmo ser acolhidas nesse texto: A criança que eu fui não viu a paisagem tal como o adulto em que se tornou seria tentado a imaginá-la desde a sua altura de homem. A criança, durante o tempo em que o foi, estava simplesmente na paisagem, fazia parte dela, não a interrogava, não dizia nem pensava, por estas ou outras palavras “Que bela paisagem, que magnífico panorama, que deslumbrante ponto de vista!” Naturalmente, quando subia ao campanário da igreja ou trepava ao topo de um freixo de vinte metros de altura, os seus jovens olhos eram capazes de apreciar e registrar os grandes espaços abertos diante de si, mas há que dizer que sua atenção sempre preferiu distinguir e fixar-se em coisas e seres que se encontrassem perto, naquilo que pudesse tocar com as mãos, naquilo também que se lhe oferecesse como algo que, sem disso ter consciência, urgia compreender e incorporar ao espírito (escusado será lembrar que a criança não sabia que levava dentro de si semelhante jóia), fosse uma cobra rastejando, uma for-

miga levantando ao uma pragana de trigo, um porco a comer do cocho, um sapo bamboleando sobre as pernas tortas, ou então uma pedra, uma teia de aranha, a leiva de terra levantada pelo ferro do arado, um ninho abandonado, a lágrima de resina escorrida no tronco de pessegueiro, a geada brilhando sobre as ervas rasteiras. (...)”

a r

De qualquer modo, vale, ainda que de forma redundante, fazer eco ao jargão que, embora seja tantas vezes repetido pelos engajados nas c a u sas ecológicas, pelos verdes e pelos maduros também, verte um sentido profundo, pleno de significado: não queremos meio-ambiente, queremos um ambiente por inteiro! E aí, embora associemos a esse clamor a idéia de maior rigor na conservação e preservação de certos locais, na verdade, ele deve ir além, incluir as questões sociais: a habitabilidade e as condições de habitabilidade, a eliminação de todas as fomes: de alimentos, de educação, de trabalho, de aspiração na vida. Afinal, quem não lembra da célebre canção dos Titãs, “Comida”, que diz que “a gente não quer só comida, a gente quer saída para qualquer parte...”? O ambiente por inteiro é o que pertence à sábia, caprichosa e experiente engenharia da natureza e nela se inclui a nossa sociedade, muito mais jovem e às vezes, ao menos aparentemente, consciente e conhecedora das nuances e da inventividade do sistema Terra.

Francisco Carlos Rehme (o Chicho) é geógrafo, professor da 6ª série do Ensino Fundamental e da 3a. série do Ensino Médio no Colégio Medianeira. Especialista em Geografia Física – análise ambiental, pela UFPR, em Currículo e Pratica Educativa (PUC-Rio) e mestrando em Geografia pela UFPR.

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AS PEQUENAS MEMÓRIAS

ÉTICA DA VIDA

JOSÉ SARAMAGO Editora Companhia das Letras

LEONARDO BOFF Editora Sextante

Em As pequenas memórias, José Saramago põe em prática o antigo projeto de compor um relato autobiográfico. São histórias familiares, ora alegres ora dilacerantes, sobre os primeiros quinze anos de vida do escritor. Quando escrevia ‘O memorial do convento’, livro que lhe deu notoriedade mundial, José Saramago começou a pensar num relato autobiográfico. Levou mais de vinte anos elaborando o projeto, cujo resultado são estas ‘Pequenas memórias’. O livro cobre os primeiros quinze anos de sua vida, do nascimento, em 1922, na aldeia da Azinhaga, Ribatejo, aos estudos na escola industrial de Lisboa, de onde sairá serralheiro mecânico. Relembra o convívio com o avô camponês, homem sábio e analfabeto, com quem aprendeu a cuidar dos porcos e observar a via Láctea. Fala da mudança para Lisboa, onde o pai vai trabalhar como guarda da segurança pública, e a família provinciana passará a morar em quartinhos de bairros populares, sempre no último andar, de aluguel mais barato. Em Lisboa, o menino tímido torna-se um adolescente contemplativo, que não perde os filmes do cine Piolho, na Mouraria. É bom aluno, mas interrompe cedo os estudos, devido a dificuldades financeiras da família. Saramago permaneceu muito ligado ao menino que foi, e surpreendeu-se com a profusão de lembranças que guardava da infância e adolescência.

Este livro apresenta uma série de textos nascidos de debates e fóruns realizados por Leonardo Boff no Brasil e no exterior. Seu fio condutor é a esperança latente de uma transformação da sociedade que seja capaz de estabelecer um modo de organização mais justo e de promover em nós a consciência necessária para iniciarmos uma nova etapa em nossas vidas. As graves crises pelas quais estamos passando suscitam dúvidas a respeito de inúmeras questões: da ecologia à ética, da espiritualidade à política. Todos esses debates trazem à tona novos paradigmas que podem dar sentido à fase planetária que vivemos atualmente. O desejo de encontrar uma saída em meio a esse turbilhão de conflitos é a única forma de sairmos ilesos do processo de globalização. Mas as crises são purificadoras, e do caos pode surgir uma nova ordem, mais alta e integradora. Com uma visão holística e um acentuado senso de dignidade e responsabilidade, Leonardo Boff discorre sobre esses temas e nos estimula a tomar uma posição crítica diante de lamentáveis fatos da nossa realidade. Adotado pela Universidade de São Francisco, nos Estados Unidos, Ética da Vida é um livro fundamental para o nosso tempo, não só porque traz profundas reflexões sobre a trajetória da humanidade, mas principalmente porque indica recursos e caminhos viáveis para a construção de um mundo melhor e de um futuro mais promissor para todos nós.

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CONSUMO:

bem me quer, mal me quer

Por Valesca Giordano Litz

Mesmo antes de se conhecer – literalmente – por gente, o homem faz uso do meio em prol do seu desenvolvimento. No início, tudo bem, usar a massa cinzenta para usar o que a natureza oferece. Mas, e se o homem também é Natureza? E agora, que continuamos consumindo, mas percebemos que estamos também nos consumindo? 10


E

Estamos em Paris, na Belle Époque. Para enfeitar o chapéu que completa o adereço das elegantes e as protege dos raios de sol, nenhum enfeite é bonito ou colorido demais. Para seguir a moda, os chapeleiros se entusiasmam com as penas púrpuras de reflexos ondulados da íbis, uma ave pernalta do vale do Nilo. Naturalmente, ignoram que esse pássaro pertence a uma cadeia alimentar que existe há muito tempo: a íbis se alimenta de pequenos répteis, cuja alimentação é composta por

batráquios que, por sua vez, comem gafanhotos. Certamente, eles não imaginam que, querendo satisfazer a mania fugaz da capital francesa por essas penas vermelhas, vão acabar provocando fome no Egito. E de fato. Com a perseguição da íbis, cresce a população dos répteis. Os répteis devoram as rãs, deixando os gafanhotos sem predador: os insetos vão destruir as culturas de cereais e espalhar a miséria entre os camponeses. Essa história singular, lembrança de uma antiga aula, ilustra a inacreditável complexidade das interações entre o homem, os objetos que ele concebe e a natureza. (Haverá a idade das coisas leves. Thierry Kazazian)

O trecho acima nos faz um alerta sobre a inter-relação das coisas – consumo x diminuição de recursos – alterando os ciclos naturais e o ambiente. Quase nunca nos damos conta de que uma simples pena colorida para enfeitar chapéus pode estar gerando grandes danos para o planeta, o ambiente e, conseqüentemente, a nós mesmos. Recorrendo ao desenvolvimento da humanidade, desde os seus primórdios, podemos constatar como o homem foi interferindo no meio em que vive, transformando seu bem mais precioso: a natureza. Durante o Paleolítico, que se estendeu até cerca de 10.000 antes da nossa era, as primeiras invenções revolucionárias foram cria-

das: machado, enxada, lança, arco, domesticação do cão. Também nesse período houve a descoberta do uso do fogo e de como produzi-lo. Até então, a humanidade caminhou de forma semelhante e o impacto sobre o ambiente era muito reduzido. O Período Neolítico trouxe a primeira revolução tecnológica, quando a economia predatória deu lugar à economia produtiva, com o surgimento da agricultura e da criação de animais. Desenvolveram-se as primeiras cida-

des. Essa nova fase trouxe a irrigação e o desenvolvimento de culturas permanentes, a invenção da roda, do barco à vela, da metalurgia e da escrita. O homem entrava, oficialmente, para a História! Mas, nem todos os homens acompanharam o mesmo ritmo... e o planeta começou a ser compartilhado de forma diferente pelos inúmeros grupos que se espalharam pelo mundo. A população começou a crescer, alguns impactos sobre o ambiente começaram a ser sentidos, mas ainda era uma interferência localizada e de forma muito lenta. Nas sociedades antigas, a agricultura era a principal atividade econômica. O campo constituía o espaço da produção, enquanto a cidade era o espaço da circulação e consumo de mercadorias, da política, das artes e da ciência. Na região do Crescente Fértil, Egito e Mesopotâmia, a sociedade era sustentada pelo trabalho dos camponeses. Grécia e Roma utilizaram o trabalho escravo para produzir suas riquezas e manter o sustento da sociedade. A agricultura também foi a base econômica da sociedade feudal na Idade Média, na Europa Ocidental. O trabalho servil foi explorado para sustentar os senhores feudais e seus exércitos, além do clero.

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Ao longo dos séculos, os avanços técnicos foram muito lentos, os impactos sobre o ambiente pouco relevantes e sempre localizados. Isso se deu até, praticamente, o início dos tempos modernos. As plantations – trabalho escravo, monocultura em grandes propriedades, para o mercado europeu – surgiram durante a expansão colonial européia, a partir do século XV, e passaram a fazer parte do Novo Mundo. A ganância e a possibilidade de en-

O sistema econômico ocidental é baseado na demanda de bens industrializados constantemente renovados e na exploração dos recursos naturais da Terra. Se esse modo de vida fosse adotado em todos os continentes, precisaríamos hoje de dois planetas e meio para satisfazer as necessidades de recursos natu-

riquecimento, num mundo orientado pela economia capitalista, começou a transformar o ritmo da natureza de forma cada vez mais intensa.

rais. Essa imagem se torna ainda mais significativa hoje, quando os países ditos emergentes legitimamente ambicionam alcançar um nível de vida equivalente aos países ricos.

A Revolução Industrial transformou radicalmente as relações entre o campo e a cidade. As cidades é que forneciam as condições necessárias para o nascimento da indústria: mão-de-obra e mercado consumidor e infraestrutura para o funcionamento das fábricas. Surgiram a máquina a vapor, a eletricidade e o motor a combustão. Porém, isso começou a trazer alterações ambientais de grandes proporções e de dimensões planetárias. A fábrica passou a produzir, mas o homem não se deu conta de suas sobras venenosas: poluição do ar e da água, derrubada das florestas, esgotamento do solo.

Pois é, o homem evoluiu, criou, inventou, dominou e subordinou a natureza aos seus interesses e ao seu prazer. Mas se esqueceu de que, durante essa corrida para o desenvolvimento e o progresso, produziu também muita sujeira e muitos resíduos e que a natureza não tem condições de processar isso tudo.

Após a Segunda Guerra Mundial, os impactos ambientais foram aumentando, trazendo conseqüências consideráveis sobre a natureza e a qualidade de vida. Em 1972, com a realização da Conferência das Nações Unidas sobre o Homem e o Meio Ambiente, em Estocolmo, o alerta foi dado. Era preciso debater as questões sobre ambiente e desenvolvimento. Nos últimos trinta anos, percebeu-se que a sociedade como um todo, aos poucos, vem se conscientizando; porém, o que se

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vê de fato é que os cenários de degradação do ambiente são cada vez mais complexos e preocupantes, muitos de caráter irreversível e planetário.

A descoberta e o uso de novas fontes energéticas sempre acompanharam o homem em sua evolução: trabalho braçal, uso de ferramentas, do fogo, dos ventos, da água, dos animais, da madeira, do carvão, das máquinas, do petróleo, do sol, da energia nuclear. O homem não se deu conta suficiente dos danos que causa ao ambiente: aquecimento do planeta, inundação de extensas áreas, poluição, acidentes nucleares, chuva ácida, devastação de florestas e desertificação. A espécie humana é o resultado de duas variáveis: os seres humanos são seres da natureza e são também seres so-


ciais. Os seres humanos transformam a natureza para seu uso e, ao fazer isso, transformam também sua própria natureza humana, criando técnicas e cultura material. Assim, as relações entre sociedade e natureza sempre são dialéticas: há trocas, há ganhos; porém, perdas também podem ocorrer. E nesse relacionamento homemnatureza, ambos estamos perdendo. É preciso mudar! O modelo de progresso definido pelos países ricos é insustentável ecologicamente. É preciso pensar também no desenvolvimento sustentável na concepção dos bens e serviços. E esse verdadeiro desafio planetário exige uma evolução maior: a passagem de uma sociedade de consumo para uma sociedade dita de uso. Nossa sociedade precisa dar um enorme salto para tecer um novo vínculo entre o homem e a natureza, desenvolver uma consciência planetária e agir na melhoria de um mundo viável e sustentável.

Valesca Giordano Litz é professora de História no Colégio Medianeira, nos 1º e 3º. anos do Ensino Médio. É também autora do livro Colégio Medianeira 50 anos – um abraço que transforma, em parceria com o jornalista Levis Litz. É graduada em História pela UFPR, com especialização em Atualização Pedagógica pela UFRJ.

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HAVERÁ A IDADE DAS COISAS LEVES: DESIGN E DESENVOL VIMENT O SUSTENTÁVEL DESENVOLVIMENT VIMENTO THIERRY KAZAZIAN Editora Senac É uma reflexão sobre os objetos que invadem nosso cotidiano e pesam no meio ambiente, que poderiam ser leves e duráveis. Propõe o ecodesign: desenvolvimento de produtos e serviços planejados de forma sustentável desde sua concepção até sua reciclagem.

PEGADA ECOLÓGICA E SUSTENTABILIDADE HUMANA GENEBALDO FREIRE DIAS Editora Gaia Para melhor situar o leitor, o termo “pegada ecológica” foi criado pelo suíço Mathis Wackernagel, especialista em desenvolvimento comunitário, e pelo professor canadense William Rees, da Universidade de Brittish Columbia, Vancouver, USA. Versa sobre o impacto humano na natureza. Mostra, por exemplo, quanta terra e água são utilizadas para produzir tudo o que uma pessoa consome, seja alimento, energia, meios de transporte, vestuário e outros bens materiais ou intangíveis que sustentam um determinado estilo de vida. Wackernagel e Rees estabeleceram como parâmetro para medir o consumo e a absorção do lixo que este gera a disponibilidade de solos produtivos no mundo em relação ao volume da população. Hoje, o ser humano necessita de 1,3 hectare de terras produtivas. Um japonês tem uma pegada ecológica de 5,5 hectares. Logo, para se manter, apropria-se de hectares de outros. O crescimento da população tem elevado o consumo a níveis cada vez maiores, ultrapassando os limites daquilo que se poderia considerar, no mínimo, aceitável. Com base no estudo de uma área do Distrito Federal que registrou nos últimos quinze anos um acentuado crescimento populacional, uma rápida expansão urbana e um complexo espectro de degradação socioambiental, Genebaldo Freire Dias expõe de maneira clara e didática como o metabolismo dos ecossistemas urbanos, moldados por nosso próprio estilo de vida, pressiona os recursos naturais de maneira globalizada. A população cresce, o consumo aumenta, as florestas encolhem, algumas espécies são extintas, o solo produtivo é degradado, as reservas de água diminuem, a pesca desaparece, os rios se estreitam, os gases-estufa aumentam, surgem novas doenças e a humanidade, conseqüentemente, se estressa. 13


ARTE e CONSCIÊNCIA

Planetária

Por Nilton Cezar Tridapalli

A relação entre consciência planetária e arte pode parecer distante e um pouco forçada. Mas tudo depende da forma como entendemos cada um desses termos. Talvez eles sempre tenham sido muito próximos. 14


C

CENA 1

No início de 2007, veio ao Brasil o filme Babel, do mexicano Alejandro González-Iñárritu, aquele mesmo de Amores Brutos e 21 gramas, não sei se você viu. Um empresário japonês, em férias pelo Marrocos, presenteia seu guia com um rifle de caça. O rifle de caça é vendido a uma família do interior do Marrocos – cenário inóspito, árido – e cai nas mãos de dois meninos que ficam brincando de atirar. Acertam um ônibus de turistas americanos, mais precisamente uma mulher que está em viagem com o marido tentando reconstruir o casamento e apagar a dor do filho que morreu. O casal tem mais dois filhos que estão nos Estados Unidos sob a guarda da empregada que, por sua vez, precisa ir ao casamento do filho no México, mas se vê impedida pelo fato novo do tiro levado pela mãe das crianças. Muitos mundos, várias realidades, minimundos diversos, distintos e interligados. Da metrópole japonesa (o empresário japonês e sua filha surda-muda com sérios problemas afetivos) ao deserto no Marrocos (o casal de americanos, o drama da família dos meninos que atiraram no ônibus, o incidente diplomático, a histeria norte-americana em torno do terrorismo) à fronteira EUA-México (a empregada, os dois filhos do casal americano, o casamento no México, a dura relação na fronteira). Dramas individuais, dramas coletivos. A leve brisa da asa da borboleta que vai gerando o tufão.

CENA 2 Foi em 2005 que o último romance do britânico Ian McEwan chegou ao Brasil. Ele se chama Sábado. Henry Perowne é um neurocirurgião abastado que divide seus dias entre o trabalho (no qual é exímio perito) e os pequenos prazeres que a vida da classe média alta londrina pode proporcionar. Jogos de

squash, Mercedes prateada, casa suntuosa, teses sobre todos os problemas políticos do mundo. A trajetória deste “sábado”, no entanto, vai sofrendo bruscas interrupções, vai sendo atritada com elementos intrusos, desde o avião em chamas que o personagem vê logo ao se levantar (e o temor por novos ataques terroristas vem à tona), passando por manifestações de rua, até discussões políticas com a filha poeta, até ainda o súbito assalto à casa. O savoir penser asséptico e descompromissado dá lugar a situações reais de choque (mais do que enfrentamento) da realidade que se impõe.

CENA 3 A banda paulistana Karnak tem três cds, já se dissolveu mas também já anunciou sua volta. Em meio a esse vaivém, vem deixando um trabalho notável, que mistura humor e reflexão de um jeito tão “natural” quanto misturar feijão com arroz. São diversas letras embaladas por uma música que consegue ter forte influência sobre o próprio modo de dizer/cantar as coisas da vida, do mundo.

O Mundo O mundo é pequeno pra caramba Tem alemão, italiano e italiana O mundo filé milanesa Tem coreano, japonês e japonesa O mundo é uma salada russa Tem nego da Pérsia, tem nego da Prússia O mundo é uma esfiha de carne Tem nego do Zâmbia, tem nego do Zaire O mundo é azul lá de cima O mundo é vermelho na China O mundo tá muito gripado O açúcar é doce, o sal é salgado O mundo caquinho de vidro Tá cego do olho, tá surdo do ouvido O mundo tá muito doente

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O homem que mata, o homem que mente Por que você me trata mal Se eu te trato bem? Por que você me faz o mal Se eu só te faço o bem? Todos somos filhos de Deus Só não falamos as mesmas línguas Everybody is filhos de God Só não falamos as mesmas línguas Everybody is filhos de Ghandi Só não falamos as mesmas línguas

Conflito, diversidade, tristeza e alegria.

CENA 4

Oscar Oiwa é um artista plástico paulista, de origem japonesa, que vive e trabalha em Nova Iorque. Em sua extensa produção, encontram-se séries inteiras preocupadas em pensar, pelo meio plástico, as questões do mundo – o caos serie, o suburban serie, city serie, war serie, ecology serie. Apenas um exemplo é a tela Coliseum, integrante da sua ruin serie. Nas palavras do próprio artista: Coliseum retrata o grande circo existente na atual sociedade global baseada na força da mídia. Se

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muito antigamente, na época da política do pão e circo, ‘todas as estradas levavam a Roma’, creio que hoje podemos dizer em relação à mídia ‘todas as ondas levam às principais capitais do mundo’. Qualquer notícia irrelevante que ocorre em New York é transmitida ao vivo mundo afora, mas um acidente envolvendo centenas de vítimas em países periféricos nem sequer aparece nas notas dos principais jornais do mundo.

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Um diretor mexicano, um romancista inglês, um músico brasileiro, um artista plástico brasileiro de origem japonesa morando em Nova Iorque. Os exemplos são aleatórios. Há gente fazendo arte em todos os cantos do mundo. E arte de naturezas e artifícios diversos. Do cinema ao romance à canção ao quadro – e à dança, ao teatro etc etc – o que passeia por sobre esses suportes diferentes? O que se discute na tela do cinema, nas palavras do livro, no fone de ouvido, nas cores de um óleo sobre tela? O que se tenta jogar aos nossos sentidos, à nossa razão? Aparentemente, parece ser uma “forçação de barra” enorme discutir arte e consciência planetária, tentando aproximar tais termos. Primeiro porque muitos defenderão a autonomia da arte, dizendo que ela não está a serviço de uma pedagogia de moral única destinada a dar lições de consciência ecológica (e estarão cobertos de razão). Em segundo lugar, muitos acharão os exemplos acima escolhidos a dedo para se encaixar no argumento, porém existem inúmeros outros exemplos de arte que não discutem consciência planetária, mas “apenas” focam questões “meramente” subjetivas, não estabelecendo pontes com o mundo social, centradas somente em conflitos individuais. “Ah, não me venha com esse papo; só porque virou moda falar de ecologia, agora também querem dar um jeito de distorcer a inutilidade útil da arte para fazê-la caber dentro de um molde e servir a um propósito didático?”.

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Bem, talvez um dos maiores ensinamentos da arte seja a capacidade que ela tem de mostrar que não existem caminhos únicos para a resolução de problemas, não existem modos únicos sequer de enxergar os problemas. Quanto mais longe de propor resoluções únivocas a conflitos diversos, quanto mais distante do discurso arrogante de detentora das soluções, quanto mais longe do panfletarismo superficial e porta-voz de ideologias sectárias, mais a arte é arte. Os exemplos dados no início desse texto são de obras que discutem questões contemporâneas. Porque arte não é mera viagem, porque cinema, porque leitura não são apenas formas de matar o tempo enquanto o próprio tempo é que nos enterra (aliás, essa frase é do Machado de Assis). Eles são mais do que meros passatempos, mais do que entretenimento que reforça nossas visões já cristalizadas e nossos preconceitos diante do mundo. Uma obra – seja ela um filme, um livro, uma canção, um quadro etc – está aí para propor conflitos (de todos os tipos), para propor atritos dentro da arena de debates que cada tipo de arte e suporte possui. O que está em jogo no filme Babel não é uma construção linear que mostra que a soma das partes A e B vai desembocar inequivocamente em um C. A e B já são o resultado de inúmeras forças desencadeadas por infinitas ações humanas e acasos imponderáveis... o mundo ligado e sofrendo as conseqüências de atos praticados a milhares de quilômetros de distância. Se consciência planetária também é relacionamento humano, então a arte sempre tratou desse assunto. Do trabalho até a casa confortável, passando pelo clube e viajando dentro de uma Mercedes, podemos, sem nenhuma responsabilidade, fazer inúmeras digressões absolutamente descomprometidas sobre a vida em sociedade. Criamos nossas teorias, nos sentimos inteligentes e voltamos pra casa, pro conforto, pro aconchego, pensando no que fazer de gostoso para o jantar... há lição de

moral aí? O protagonista de Sábado não é uma marionete a serviço de um narrador que quer manipular e levar o leitor a um pensamento único no final. Ele joga fatos, provoca choques, faz o protagonista sair de sua zona de conforto e encontrar outros tipos de/da vida real. O autor joga tudo isso dentro de sua arena. E nós não assistimos aos conflitos passivamente. Nós vamos percebendo nuances, suspendemos a leitura para fazer com que aquele mundo invada o nosso mundo particular, converse com ele e acrescente outros e novos elementos. Babel discute a interligação do mundo, seja pelo acaso, seja por atos voluntários mas sem controle das conseqüências. Com humor, a canção “O mundo” nos diz que, apesar de vivermos em uma torre de babel, “Everybody is filhos de God, everybody is filhos de Ghandi”, a única diferença é que “não falamos as mesmas línguas”, o que pode ser entendido em seu sentido literal (cada parte do mundo fala sua língua), ou em seu sentido mais figurado (um mundo que realmente não se entende, tem não apenas sua língua própria, mas, com ela, carrega diferentes formas de pensar, de viver e de se relacionar, gerando conflitos resolvidos pelo diálogo ou irresolvidos pela guerra... e os exemplos não faltam). Se falamos metaforicamente que a obra de arte oferece a seu público uma “arena de embates”, propondo conflitos a serem pensados pelo espectador, a tela de Oscar Oiwa leva essa metáfora para a realidade de sua criação. Coliseum é, por excelência, arena de conflitos. Ruínas circundam a arena e, no palco, no centro do coliseu, o mapa-mundi. É o mundo se digladiando e sendo apenas assistido por ruínas? É o mundo que está sendo vilipendiado e é servido como espetáculo a ser visto, como se não fôssemos todos participantes dos seus conflitos, como se não fôssemos geradores de seus problemas? É a velha história: “vou me atrasar, caí num engarrafamento”. Não seria mais justo afirmar: “vou me atrasar, estou contribuindo para formar um engarrafamento”?

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Afinal, somos ou não somos participantes do mundo? E tudo isso que está aí, nesses quatro exemplos de produção artística, tem ou não tem a ver com consciência planetária? Pode ou não pode desencadear reflexões sérias a respeito de nosso papel e responsabilidade diante de tudo o que o mundo é, incluindo nós mesmos, o outro e tudo o que existe de bom e de ruim? Consciência planetária é também cuidar da planta, não pisar na grama, não jogar papel no chão, só que vai mais longe. É poder perceber que esse planeta é uma conjunção orgânica e dinâmica de forças naturais, humanas e artificiais – e é o elemento humano o responsável por essa ligação entre as instâncias naturais e artificiais, é ele o responsável por esse diálogo que até agora vem gerando inúmeros benefícios e problemas para a vida na terra. Que os benefícios sejam maiores do que os problemas e que as pessoas (todas elas, todos nós) possam(os) ter uma estadia feliz enquanto estivermos hospedados nesse planeta, e que também seja possível deixá-lo ainda melhor para os futuros passageiros dessa nave.

Nilton Cezar Tridapalli trabalha no Departamento de Arte e Cultura do Colégio Medianeira. É também co-editor da revista Mediação. Formado em Letras pela UFPR, é estudante de Cinema e Vídeo na Faculdade de Artes do Paraná, especialista em Leitura de Múltiplas Linguagens pela PUCPR e mestre em Estudos Literários (UFPR).

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KARNAK (CD) Banda: Karnak Disco de estréia da banda paulista, que mistura estilos diversos, com letras inteligentes e música refinada.

SÁBADO IAN MCEWAN Editora Companhia das Letras Sábado conta todas as horas de um dia na vida de Henry Perowne, neurocirurgião londrino altamente conceituado. A data é 15 de fevereiro de 2003. O dia de folga do médico será abalado por dois acontecimentos paralelos, um público e outro privado – no centro de Londres se prepara a maior manifestação popular já vista na cidade, com 1 milhão de pessoas nas ruas para contestar a invasão iminente do Iraque; ao mesmo tempo, um banal acidente de trânsito envolvendo seu carro e o de um homem com graves problemas neurológicos – problemas que Perowne conhece como poucos – trará conseqüências graves para o médico e sua família. Embora ele tente ver o mundo pela lente da razão e da lógica científica, o incidente fará explodir forças brutais que desafiarão suas certezas e todo o seu modo de vida. Ao apresentar ruas e bairros de Londres com notável realismo visual e sensorial, Ian McEwan retrata com agudeza um momento em que o impacto dos atentados do 11 de Setembro em Nova York repercute na consciência dos ingleses, despertando a compreensão de que sua sociedade é vulnerável.


HISTÓRIA

e

Meio Ambiente Por Rodrigo Pelais Banhoz

Os campos do conhecimento humano não param de se ampliar, a fim de abraçar questões próprias do tempo presente. É o caso da recente preocupação da História com o Ambiente, que busca entender alguns caminhos percorridos pela História que fizeram chegar ao complicado cenário contemporâneo no que diz respeito à relação entre o homem e o seu meio.

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C

Como um grandioso e complexo mosaico, a História figurava soberba entre as ciências no século XIX. Angariava a atenção de seus contemporâneos a cada ladrilho cuidadosamente disposto no grande painel da História nacional. De ilustre papel, lançava-se ao nobre ofício de construção da memória de um Estado que se reconhecia delineado havia tempos. Em alguns cantos, seu romantismo resgatou o nacionalismo de seu berço medieval; em outros, sua cientificidade se encarregava de trazer à tona a verdade sobre os eventos pretéritos que permitiram o advento de seu presente. Quase imperceptível, seu artífice, o historiador, aos poucos delineava imagens sobre o passado. Eram grandes heróis elevados sobre seus cavalos, aclamados pela genialidade de seu governo, vitoriosos em razão de suas habilidades como estrategistas, lamentados por sua morte precoce, dignificados pela pureza de suas virtudes. E, diante desses mosaicos, ficavam todos a auscultar os fatos do passado, narrados ao pé do ouvido pelo historiador, quem os dispunha cronologicamente de modo a resgatar o sentido dos eventos numa imutável linha do tempo.

Há tempos, entretanto, esse modelo de História não mais provoca o impacto de outrora, tampouco responde aos anseios das comunidades a que se dirige. Os limites de uma pretensão à objetividade absoluta no discurso historiográfico foram tecidos no princípio do século XX, assim como erigiram-se obstáculos à percepção do passado apenas em seu aspecto político, com seus grandes heróis agentes da História. A produção do conhecimento historiográfico foi revolucionada! Novos objetos de estudo foram delineados, seus temas diversificados, seus métodos aprimorados – especialmente por meio do diálogo com as demais ciências –, sua noção de tempo histórico al-

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terada e, especialmente, ocorreu a percepção de variados agentes da História, verdadeiros construtores de sentido e de seu próprio caminho em diversos campos da realidade. O presente cedeu lugar à construção de outras imagens sobre o passado, e, pouco a pouco, os mosaicos oitocentistas perderam seu brilho, desgastados pelas transformações do tempo. Ganhou realce uma de suas inovações: a compreensão de que a construção do conhecimento historiográfico depende do intelectual que se dispõe a produzi-lo. Embebido em seu próprio contexto histórico, o historiador, como qualquer outro ser humano, está imerso num conjunto de valores e crenças do qual partilha e do qual muitas vezes não consegue se dissociar quando empreende tentativa de compreender as sociedades humanas ao longo do tempo. Faz escolhas para compreender esse passado: o tema a abordar, as fontes a selecionar, os métodos apropriados para a compreensão dessas fontes, e até mesmo as perguntas que dirige ao passado são animadas pelas questões de seu tempo. O presente foi ressignificado: não mais inibe os eruditos do passado, que antes preferiam se esconder de suas demandas em tempos remotos, atrás dos elmos e escudos de seus heróis, mas estimula a participação desses cientistas no seio da sociedade em que vivem, por meio do conhecimento que produzem. O presente, assim revisitado, não é apenas o lugar de um futuro desconhecido pelos agentes históricos do passado e que os historiadores explicam por meio das permanências e transformações pelas quais passaram as sociedades humanas, mas é o lugar privilegiado da formulação do conhecimento historiográfico, que pode e deve servir para a releitura crítica do passado, pois fornece novos métodos e novos olhares sobre o objeto da História. No testemunho de Le Goff, um iminente historiador contemporâneo, encontra-se o princípio motor dessa revolução historiográfica: “O presente me interessa antes de tudo como cidadão, como homem do presente, mas diante dos acontecimentos, dos


fenômenos (...), minha reação é a de um historiador, (...) esclarecer o presente pelo passado e o passado pelo presente”. Nesse sentido, o historiador e seu tempo travam relações concretas e dessa simbiose nascem interpretações e respostas de valor inestimável para a melhor compreensão e a construção de estratégias de atuação no presente. Foi dessa preocupação que ganharam voz agentes históricos antes negligenciados, desde trabalhadores imersos em modos de produção determinados até pessoas que estavam à margem até mesmo dessas categorias. Dentre as várias inovações no campo historiográfico, ocupa especial lugar a recém nascida história ambiental, cujo surgimento exemplifica a importância desse diálogo entre o historiador e seu tempo, bem como a própria suscetibilidade do conhecimento historiográfico de sofrer mutações de acordo com o contexto em que é produzido. Os estudos voltados para a produção de conhecimento sobre as relações do homem com o meio ambiente surgiram em plena década de 60, ainda não agrupados em torno de uma nova corrente historiográfica, mas resultados de um contexto histórico de contestação espontânea, não institucionalizada. Ainda que tímida e de pequenas proporções, foi uma reação aos efeitos da política desenvolvimentista empregada pelos EUA e demais países fortemente industrializados após a 2ª Guerra Mundial, período de delicada reordenação das potências mundiais em virtude da falência do modelo de exploração imperialista e da consolidação de tendências não capitalistas de organização infra-estrutural, como o socialismo. O desenvolvimentismo, especialmente apregoado pelo governo norte-americano, apresentava o capitalismo industrial como forma de organização mais aprimorada, que os países atingiriam após o cumprimento de uma cartilha detalhada, dentro da qual o domínio da tecnologia era fundamental, sempre legitimado pelas conquistas científicas, apresentadas como fruto de uma prática neutra, distante das contingências políticas.

O salvacionismo tecnológico era especialmente dirigido a países que ainda não apresentavam, ou ainda em pequena escala, o domínio desse conhecimento, países para quem foi criada especial denominação: 3º Mundo e subdesenvolvido. O otimismo desenvolvimentista seguia seu rumo aprimorando a produção, gerando incontáveis riquezas capitalistas e não medindo esforços para que a tecnologia empreendesse a exploração do meio ambiente segundo seus interesses. Paralelamente, entretanto, algumas críticas iam se delineando, apontando com maior clareza suas fragilidades. Canções como “Mercedez Benz”, entoada por Janis Joplin, fizeram parte de um imaginário estudantil de contestação, que acabou eclodindo em movimentos estudantis em várias partes do globo no final da década de 60, que se erigiam também contra a modernidade tecnológica e a mercantilização da sociedade. Foi a década da publicação do bombástico estudo de Rachel Carson, intitulado Primavera Silenciosa, no qual a bióloga americana apontava os efeitos a médio e longo prazo do uso de inseticidas nas plantações, enquanto os EUA se vangloriavam da alta produção agrícola, resultado do uso desses inseticidas. A partir do final da década de 60, o amadurecimento desses ideais de contestação se intensificou face ao desvelar de diversos outros efeitos danosos ao meio ambiente provocados pela ação humana, como foi o caso da contaminação da Baía de Minamota, no Japão, a chuva ácida, a deterioração da camada de ozônio e o efeito estufa. Surgiram desde organizações não governamentais, como a WWF e o Greenpeace, até a institucionalização das ações em defesa do meio ambiente, com a celebração da Conferência de Estocolmo, em 1972, com a presença de 113 países preocupados em rever o modelo desenvolvimentista. Nessa Conferência, foi criado o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, cujos desdobramentos remontam à elaboração de pareceres importantes no sentido de preservação ambiental, tal como na década de 80 o estudo intitulado “Estratégias de conser-

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vação mundial” e os resultados obtidos a partir dos estudos da Comissão Brundtland, dos quais resultou a criação e sistematização do conceito de desenvolvimento sustentável. Assim, em plena simbiose com seu tempo histórico, surgiu, de maneira mais sistematizada, nos EUA, a História Ambiental, cuja denominação se deve ao labor de historiadores norte-americanos, em 1977, reunidos em torno da fundação da Sociedade Americana de História Ambiental. A compreensão de seu passado recente explicaria os problemas ambientais atuais, já que, ao largo de um século, desde a expansão para o oeste, o território americano estava ocupado e povoado, organizado administrativamente, registrado pela cartografia e ambientalmente prejudicado. Isso porque a incorporação de extensas áreas ao capitalismo industrial levou a uma apropriação e exploração intensa e descontrolada dos recursos naturais dessas regiões. A relação entre historiadores e natureza, entretanto, não foi exclusiva dos norte-americanos; existem, inclusive, interpretações que relegam a origem da História Ambiental aos estudos de Fernand Braudel. Bem verdade, origens à parte, existem alguns estudos muito interessantes na área, como é o caso da História do Clima empreendida por Emmanuel Le Roy Ladurie. Nessa pesquisa, o autor comparou as conclusões dos cientistas americanos – que estabeleceram a tendência climática a partir dos anéis que se formam nas árvores – ao estudo das variações nas datas de colheitas de uvas em várias partes da Europa para determinar os períodos de expansão e depressão econômica entre 1500 e 1700. O ambiente acadêmico brasileiro também se debruça sobre essa perspectiva historiográfica, a exemplo do historiador e professor da UNESP Paulo Henrique Martinez, quem propõe a releitura e redirecionamento dos estudos consagrados de História do Brasil à compreensão da relação entre homem e natureza. Longe de perpetuar os mitos de uma natureza intocada, e de levantar a bandeira na defesa de um desenvolvimento sustentável com a única finalidade de aprimorar os sistemas exploratórios do capitalismo vigente, Martinez

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propõe uma inserção do meio ambiente na História do Brasil por meio da compreensão dos mecanismos de exploração engendrados ao longo do período colonial brasileiro, especialmente a partir da análise do Antigo Sistema Colonial, do qual resultou não apenas a ampliação de mercados consumidores de produtos manufaturados e da contribuição para o processo de acumulação primitiva de capital na Europa, mas, concomitantemente, a montagem de um sistema de apropriação capitalista, que, sem custo ou a custo reduzido, desencadeou uma exploração desmedida, em território brasileiro, de árvores e plantas, peles de animais, salitre, ouro e diamantes. Desse modo, a preocupação em incluir o meio ambiente nas hipóteses historiográficas, recolhendo a contribuição de diversas outras ciências, é, hoje, imperativa e se alastrou nos meios acadêmicos de muitos países. Das especificidades contextuais das diversas sociedades que compõem o mundo, uma certeza criou raiz, a de que os efeitos da relação entre homem e natureza desconhecem as fronteiras políticas estabelecidas entre nós, e que estudá-las não é apenas recolher no passado os fragmentos da sociedade, da cultura, da economia e da política – dimensões da infinita criatividade humana face às suas necessidades reais e imaginadas –, mas, também, e, fundamentalmente, o estudo comprometido de um pesquisador cidadão preocupado em descobrir as interações entre essas dimensões, sombreadas pelas grandes árvores da floresta, acalentadas pelo calor do sol, nutridas e banhadas pelas águas dos rios. Eis uma primordial demanda do presente. De um passado de devastação, quando entre os cacos dos mosaicos da História via-se apenas a insossa cor da argamassa que erigiu impérios, para um presente de reconstrução de uma História da qual depende nossa sobrevivência. Rodrigo Pelais Banhoz é professor de História do 2º. Ano do Ensino Médio no Colégio Medianeira. Fez graduação e mestrado em História pela Universidade Federal do Paraná. É também formado em Direito pela Universidade Tuiuti do Paraná.

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ARMAS, GERMES E AÇO JARED M. DIAMOND Editora Record Neste livro, Jared reúne um cruzamento de descobertas conjugando arqueologia e epidemiologia com história e geografia. Para o autor, é óbvio que fatores ambientais e geográficos moldaram o mundo moderno Com isso esclarece como e porque as sociedades humanas dos diferentes continentes seguiram caminhos de desenvolvimento diversos e explora as razões da dominação e submissão. Armas, Germes e Aço derruba teorias racistas e mostra que a superioridade da Europa e da Ásia se deve às suas respectivas geografias, mais propícias ao cultivo da terra, à domesticação de animais e ao trânsito de informações. O livro mostra, ainda, como a história e a biologia podem dar suporte uma à outra para produzir um profundo entendimento da condição humana.

HISTÓRIA & NATUREZA REGINA HORTA DUARTE Editora Autêntica No mundo em que vivemos, a questão ambiental tornou-se um dos mais relevantes impasses a serem enfrentados pela humanidade. A história, ao se voltar para o tema de forma sistemática e minuciosa, cumpre um importante papel. O vigor e a promessa dessa nova perspectiva é o fato de que ela poderá servir prioritariamente à vida e, mais que à sua mera conservação, ela poderá constituir-se em prol da afirmação de sua abundância, ligando-se ao tempo presente e aos homens presentes. Sumário - Os historiadores em diálogo com seu tempo - sociedade, natureza e história – História e História Ambiental.

HISTÓRIA AMBIENTAL NO BRASIL PAULO HENRIQUE MARTINEZ Editora Cortez O que é um Laboratório de História e Meio Ambiente? Há alguma relação entre a colonização portuguesa na América e a devastação ambiental no Brasil? Como estudar a História do meio ambiente, na escola e na universidade? Este volume pretende refletir sobre essas perguntas. Nele existe um esforço de articulação do ensino, da pesquisa e da extensão cultural que a universidade pode oferecer aos brasileiros neste início de século. Anunciado como um problema no futuro da humanidade, o meio ambiente poderá ser compreendido pelas suas dimensões no passado? No Brasil, educação, cidadania, sustentabilidade ambiental e desenvolvimento humano não poderão ser encontrados sem a colaboração dos historiadores, na pesquisa e no ensino de sua disciplina.

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O CORPO: um sistema relacional

Por Gladis Tridapalli

“Vida, mundo, sentidos? O corpo é o lugar onde isso se dá. Não temos um corpo, algo de que nos apropriamos, moldamos, formatamos. Somos inevitavelmente nosso corpo em ação no mundo. O corpo é o lugar da existência”. 24


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O corpo nunca esteve tão na “moda” como agora. A saúde e a beleza desse corpo estão em foco e são grandes alvos de conquista. É preciso ter um corpo malhado e enxuto para estar de “bem consigo mesmo”. E o jeito para isso é apostar na última geração de cremes, nos tratamentos e cirurgias estéticas. É urgente esticar o tempo, enganar a idade e conquistar uma barriga “tanquinho”. É!? É seguir a cartilha das revistas especializadas no “ramo”: dietas-relâmpagos e exercícios que podem ser feitos em qualquer lugar e em pouquíssimo tempo. Nada contra a busca pela qualidade de vida. Contudo, muitas vezes, o que está embutido nessa busca de bem estar é a idéia do corpo ideal: o corpo que está na tv, na capa da revista, o eternamente jovem, magro, perfeito, feliz, desejável. Corpo ideal, O CORPO, um tipo exclusivo, em que a velhice ou as “estranhezas” são evitadas, a não ser, é claro, quando elas são acolhidas como mais um nicho de mercado. Lógica capitalista! Equívoco provocado e intencional: o corpo é transformado em mais um produto de consumo. E, diga-se de passagem, bem rentável. A busca pela saúde e bem estar desse corpo é uma busca individual, solitária e se faz quase que inteiramente pela aquisição de algo que vai solucionar “problemas” nesse corpo. Corpo cabide. Se não tem, coloca, se tem demais, tira, se está feio, maquia. Se está caindo, puxa. E por aí se segue comprando, comprando, comprando de tudo um pouco: roupas, apliques, idéias, desejos. O que interessa aqui não é demonizar o mundo em que vivemos ou as táticas de mercado, mas sim apontar para as questões de que a vida e também o corpo possuem uma dimensão maior do que a que estamos acostumados a ver, sentir e saber. Hugo Assmann diz que é necessária “uma inversão sensorial para ressignificarmos a vida diária e que nos-

sos sentidos não se reduzem a uma espécie de janelas aferentes do mundo. Eles são também interlocutores eferentes, criadores do seu mundo dentro de um mundo já dado”. Vida, mundo, sentidos? O corpo é o lugar onde isso se dá. Não temos um corpo, algo de que nos apropriamos, moldamos, formatamos. Somos inevitavelmente nosso corpo em ação no mundo. O corpo é o lugar da existência. Nas aulas de biologia e química, no colégio, estudei o quanto o corpo é um grande sistema. Ainda lembro do desenho no formato de teia com cores diferenciadas que pintavam os caminhos de relação entre os ossos, músculos, órgãos, glândulas etc e todas as complexas seqüências e conseqüências: o humor tem a ver com tal substância química, a depressão com a falta de outras, um hormônio “x”, quando não produzido, interfere em tal órgão e assim infinitamente. Infinitas relações e trocas entre o dentro e fora do corpo, entre o todo e as partes, entre o genético e o adquirido culturalmente. Hoje, sob a luz da teoria geral dos sistemas, a dança vê o corpo também como um sistema. Sistema entendido por Avenir Uyemov como um agregado (m) de coisas (qualquer que seja sua natureza), que “será um sistema S quando por definição existir um conjunto de relações R que venham partilhar propriedades P. Sistemas que são regidos pelos chamados parâmetros sistêmicos: ambiente, autonomia, permanência, composição, conectividade, coesão, estrutura, funcionalidade, organização e complexidade”. Parece uma teoria difícil. Mas não é, pois nos relacionamos com ela para perceber algumas coisas, dentre elas, duas: a primeira é que a noção de sistema pode ser estendida para a compreensão de qualquer fenômeno da vida, seja ele biológico, social, geográfico e até mesmo as situações mais comezinhas do cotidiano. Existem sistemas de todas as ordens, dos mais simples ou complexos. A

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segunda, derivada da primeira, é que, reconhecendo a qualidade sistêmica e complexa da realidade, passamos a entender que tudo depende de tudo. A organização, bem como a estrutura, coesão e composição dependem da rede de conexões que as coisas do mundo estabelecem entre si. Essas redes de conexões podem ser mais ou menos complexas. Sistemas são compostos por sistemas menores que são os subsistemas que, por sua vez, estão conectados entre si e também com o sistema geral, em mútuas trocas e contaminações. O cérebro, por exemplo, é um sistema muito complexo, que se torna um subsistema do corpo. Para Morin, um sistema não é feito de partes ou constituintes, mas de ações entre unidades complexas, de interações. O organismo não é feito de células, mas pela ação das células. Interação vem de “relação entre”, e isso inclui mais de um. O corpo é, então, um sistema relacional que comunica quem somos e que carrega a experiência que não é apenas a individual, de um ou de outro e sim dos processos evolutivos da humanidade, do planeta, das trocas com o ambiente. Nosso corpo, por exemplo, levou bilhões de anos para ser assim como ele é. Bilhões de anos de negociações entre esse corpo e o ambiente. Processos de adaptações, seleções, transformações, que não acabam em nós. A nossa existência está intimamente ligada à existência e à evolução do universo. Parece grande demais, né? Presunçoso pensar que carregamos em nosso corpo os

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processos evolutivos da espécie? Vejo como mais responsabilidade, ou melhor, co-responsabilidade e cuidado com todos os seres vivos ou não vivos, e com o que vem antes e virá depois, pois todos fazemos parte da mesma trajetória evolutiva, que é a da espécie humana e de todas as espécies. Espécie humana! Uma entre as inúmeras espécies. Não a única, nem a melhor ou especial. Não temos ou não deveríamos ter, como espécie humana, a desfaçatez de exercer mais direitos sobre a natureza, pois não somos separados dela. E quem nos deu esses direitos mesmo? O nosso cérebro e poder de pensar? Para Christine Greiner, não interessa mais pensar na cultura como oposição da natureza, mas sim ter consciência da pluralidade de culturas nas diferentes espécies. Consciência? Consciência das relações e interdependência entre seres humanos e não humanos, entre os processos vivos e não vivos. Consciência dos entrecruzamentos entre cultura e natureza, da conversa ininterrupta entre as realidades próximas e as aparentemente distantes de nós. O pequeno pode ser feito para gerar o grande e o grande pode ser revisto no pequeno. A consciência planetária não se resume às grandes questões como o desgaste da camada de ozônio ou o fim da água no planeta. Ela também pode ser experimentada nos pequenos atos cotidianos. O chuveiro que fechamos mais cedo, o lixo que separamos também são planeta. Cada ação, com mais ou menos intensidade, reverbera e altera o todo e o todo volta a rever-


berar nas partes e essa quem sabe seja a complexidade do mundo: a interdependência e incessante contaminação. Jorge Albuquerque lembra que “a história de um sistema vivo é a história dos ambientes por ele elaborados e que todo homem reflete, com maior ou menor clareza, as relações que ocorrem entre ele e seu ambiente”. Clareza é reflexão e percepção ampliada; mais uma vez, consciência, ação. Existe mais vida na terra do que supomos imaginar, mais cores que nossos olhos são capazes de captar, mais histórias que conseguimos ouvir.

Gladis Tridapalli é professora e coreógrafa de dança do Colégio Medianeira e do Curso Superior de Dança da Faculdade de Artes do Paraná (FAP). Pesquisadora e colaboradora da Casa Hoffmann – da Prefeitura de Curitiba. Formada em dança pela Faculdade de Artes do Paraná (FAP), é especialista em Dança Cênica pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e mestranda em Dança pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

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O CORPO: PISTAS PARA ESTUDOS INDISCIPLINARES

REENCANTAR A EDUCAÇÃO RUMO À SOCIEDADE APRENDENTE

CHRISTINE GREINER

AUTOR: HUGO ASSMANN

Editora Annablume

Editora Vozes

Este livro é voltado para auxiliar aqueles que iniciam seus estudos sobre o corpo. Conciso e objetivo, apresenta uma completa e atualizada série de referências sobre o assunto, fugindo da obviedade irritante da qual padece boa parte das introduções temáticas. Christine Greiner, professora de pósgraduação da PUC/SP, mapeia desde as pioneiras obras com enfoque filosófico e histórico até as tendências recentes dos chamados estudos culturais (cross-cultural studies). Também apresenta os debates voltados à estética e à política do corpo, às experiências artísticas e questões ligadas à saúde (cirurgia plástica, próteses e distúrbios da alimentação), entre outros tópicos discutidos em disciplinas específicas como antropologia e sociologia. Enfim, traz um panorama que certamente instigará o leitor a prosseguir em seus estudos sobre o corpo, tema tão caro às diversas culturas da humanidade.

Trata-se de uma ampla análise filosófico-pedagógica, visando basicamente reaproximar o processo da aprendizagem com a própria vida. Isso significa reencantar a educação. Apresenta um glossário de novos termos em educação com indicações para sua aplicação prática e um debate sobre o tempo.

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Aos 50 anos a gente tem uma certa experiência de vida e já pode usar esta experiência para transformar a realidade que nos cerca. Uma nova Consciência Pessoal e Planetária é possível cada vez que nos damos conta de nosso papel como parte do ambiente e cada vez que usamos nossa racionalidade e nossa afetividade para nos enxergar no outro e agir em favor dele e do meio em que vivemos e do qual fazemos parte. Mas para fazer parte e fazer nossa parte, não precisamos esperar mais 50 anos. Nossa hora de transformar é agora. E um abraço é uma boa maneira de começar. Abrace a vida. Abrace um sonho. Abrace o futuro, abrace o nosso ambiente. Abrace.

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Que VENHA o aquecimento global, já comprei meu aparelho de AR CONDICIONADO! Por Cláudio Adriano Piechnik

Últimos relatórios sobre a condição do planeta mostram o quanto o ser humano precisa ser mais humilde e fraterno, entendendo que é parte do planeta e não o seu senhor absoluto. 30


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Agora é pra valer! Jornais televisionam 24 horas por dia. As agências de notícia berram sem parar: o clima mudou! Vejam só! Já havia sido falado, mas ninguém acreditou. Agora as notícias são frenéticas e pasmem: as previsões eram reais! Eu, como reles mortal, sentado em minha poltrona confortável, em frente à minha TV de 29 polegadas, me sensibilizo diante de tanta desgraça alheia. Tomara que isso tudo não chegue aqui. Enfim, já é quase meia noite. Vou tomar meu banho e dormir porque amanhã trabalho cedo. Que cansaço! E agora, quem vai pagar o preço? Quem desafiará as leis da Física e sairá da inércia? Estamos fadados a ser meros coadjuvantes nesta história. Na nossa história sobre o planeta Terra. Mais do que uma reflexão sobre educação ambiental, estamos sendo desafiados a quebrar paradigmas que sustentam nosso modo de viver e produzir. Nosso modo de pensar. Nosso modo de agir. Nossa rotina. E que rotina! Nosso consumismo, nossos dissabores com a política, nosso afastamento da vida comunitária, nosso calar, nossa indiferença, nos-

so isolamento nunca foram tão intensos quanto vemos neste momento de desafio. Não se finja de cego, surdo e mudo. Como disse uma vez Karl Marx, “a perda das ilusões a respeito de uma situação é a primeira condição na qual se necessita de ilusões”. Não basta incorporar o “modo de ser avestruz”, tentando fugir da realidade, comprando aparelhos de ar condicionado, fazendo de conta que nada existe fora de nossas paredes. Ao pensarmos sobre as relações entre nós, seres da mesma espécie, e nas rela-

ções entre o homem e a natureza, somos obrigados a retornar aos alicerces que fundamentam nossa história: retornamos à condição de parte da natureza. Sim, esta mísera locação na qual somos mais uma espécie dentre tantas outras. Somente mais uma dentre tantas ameaçadas. Porém com uma condição existencial diferenciada. Somos conscientes, e, graças à consciência humana, somos tão resistentes às idéias sobre nossa origem e evolução: fazemos parte de uma rede complexa e interdependente, mas podemos deixar de fazer parte. Como resultado deste processo turbulento, ficamos inertes frente a este dilema existencial e nos sentimos impotentes frente a problemas ambientais avassaladores de proporções globais como os que vivemos agora. E agora? O que fazer? Longe de receitas baratas, precisamos pensar, precisamos pesquisar! A força motriz de nossa consciência nos impele a solucionar este problema. Uma das estratégias mais interessantes é a pesquisa. E pela pesquisa podemos mudar e sonhar com mudanças profundas, globais. Segundo Fritjof Capra, “a alfabetização eco-

lógica significa uma mudança do paradigma cultural que regeu as relações entre os seres humanos e a natureza (...). Esse câmbio cultural só é possível pela conversão moral das atitudes de consumo e convivência vigentes.” O cuidado com a natureza só será ecologicamente eficiente se transformar o modo de ser e estar do próprio ser humano. Nós humanos devemos viver dentro das mesmas limitações em que vivem outras espécies e o respeito pela vida e diversidade humana é compatível com o respeito pela diversidade biológica. A natu-

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reza tem um valor estético e espiritual tão essencial para todos os seres vivos que transcende o valor econômico. Interdependência, reciclagem, parceria, flexibilidade e diversidade são palavras básicas que regem os princípios da ecologia. Incorporar estas palavras em nossas concepções de mundo e nossas ações individuais nos ajudará em nossa transformação para deixarmos de ser meros espectadores destes fenômenos globais. A incorporação destas cinco palavras poderá refletir em processos humanos, também globais e necessários como a educação, a administração e a política. Estas

cinco palavras nos desafiam diariamente e foram as grandes responsáveis por diversos eventos que marcaram a história humana. Contemplar os seus significados deve ser nosso primeiro passo frente a uma atitude de mudança e atitude.

Cláudio Adriano Piechnik é biólogo, com MBA em Sistema de Gestão Ambiental (PUCPR) e mestrado em Biologia Celular e Molecular (UFPR). É professor de Biologia do Terceiro ano do Ensino Médio no Colégio Medianeira.

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NÃO VERÁS PAÍS NENHUM IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO Editora Global Ficção que descreve como será a cidade de São Paulo no futuro. O autor conta a vida de Souza, um paulista que vive no meio do caos da cidade, destruída pelos avanços tecnológicos, onde não há água, verde, vida saudável e muito menos liberdade. Um clássico da literatura brasileira, esse romance assume ares proféticos... o tema do aquecimento global já está presente nesse romance essencial da Literatura Brasileira.

O AQUECIMENTO GLOBAL – CAUSAS E EFEITOS DE UM MUNDO MAIS QUENTE Autor: Fred Pearce Editora: Publifolha O livro analisa os problemas causados pelo aquecimento global, examina o seu impacto no clima, nas paisagens e nos ecossistemas, e discute medidas capazes de resolver essa tragédia ambiental.

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UM,

Por Valdemiro Ruppenthal

outros ou muitos?

Mais do que lidar com a frieza dos números, a Matemática é um modo de pensar e de propor mudanças para problemas da humanidade. Quer apostar? 33


A

Antes de tudo, estimado leitor, analisando e pensando um pouco mais a respeito deste título, sobre o que, afinal, ele poderia tratar? Numa primeira investida, não parece ser um artigo sobre Língua Portuguesa? Ou Matemática quem sabe? Que possibilidade ou idéias poderiam ser desenvolvidas tendo como recurso estas três palavras? Neste artigo, por sugestão do que vem expresso no título, tentarei buscar refletir sobre questões sociais, tomando, em especial, o tema da fome a partir de conceitos matemáticos, passando, por fim, sob um olhar e uma reflexão um pouco mais ligados à teoria da complexidade. Inicio, portanto, descrevendo um pouco alguns aspectos do meu desenvolvimento pessoal na ciência matemática. Quando criança, nos primeiros dias de escola, quando fui alfabetizado naquilo que denominamos números, realizava atividades relacionadas ao identificar, ao representar e ao associar. Junto a isto, criava um código ou símbolo para estabelecer o 1, 2, 3 e assim por diante como uma conceituação própria do aprendizado da Matemática. Algum tempo depois, já aprendendo as primeiras operações básicas, pelo raciocínio, conseguia perceber coisas como 1, 4, 7, 10,..., 58. Nesta escrita (1, 4, 7, 10,..., 58), uma das primeiras idéias que aparecem é que temos, do primeiro até o quarto elemento, dados contínuos, sendo que, em seguida, quando das reticências, em função da lógica estabelecida, isto nos leva a concluir que o número 58 é o vigésimo elemento nesta sucessão de números. Finalmente, ainda um pouco mais adiante, na minha vida, se a seqüência fosse 2, 6, 18 e assim por diante, já percebia que o próximo número seria o 54, pois se trata de uma sucessão que denominaríamos progressão e que só estudei, na época, quando estava no que hoje corresponde ao nível de Ensino Médio. Estes são apenas alguns exemplos, na verdade, que ilustram como a mente humana se

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desenvolve a partir de um olhar numérico e da própria Matemática. O primeiro exemplo dado é o mais básico e a sua lógica é a da formação dos números. O segundo, por sua vez, recai numa progressão aritmética e, o último, em uma geométrica. Estes e tantos outros conhecimentos, sejam os de matemática ou de outras áreas, para a espécie humana, têm sido objetos de algumas das dúvidas, questionamentos e teorias as mais diversas. É dentro deste espírito, usando a matemática como uma ferramenta, que vou utilizar o tema da “fome” como o centro disseminador da minha reflexão. Thomas Malthus, um famoso economista, tinha formulado o seguinte princípio: “As populações crescem em progressão geométrica ao mesmo tempo em que as reservas alimentares para elas crescem apenas em progressão aritmética”. Charles Darwin, em 1858, no seu livro A Origem das Espécies, se apropriou das idéias de Malthus e as usou para justificar o que talvez, ainda hoje, muitos usam para justificar a Fome. Darwin esclareceu que diante de tal princípio, em que fica evidente a desproporção entre as duas progressões (veja nos exemplos acima, em que o quarto número da primeira seqüência é 10 – ou seja, indica os alimentos – e o quarto número da segunda, que indica a população, é 54. Existe aí, portanto, uma grande desproporção, pois só o vigésimo elemento da primeira seria 58). Esta exemplificação evidencia e leva à teoria darwiniana de que os indivíduos terão que se empenhar numa luta pela vida em que os mais fortes ou aptos sobreviverão (seleção natural) em detrimento de muitos outros. Da maneira como foi exposto o pensamento acima – observando-se apenas a relação entre os números e a forma conclusiva lógica tirada, e olhando-se somente sob o aspecto matemático –, parece ser algo muito coerente e que serve verdadeiramente de justificativa quanto ao que se observa hoje em relação à fome. No entanto, se ficássemos presos somente a uma prática deste tipo de ma-


temática, estaríamos caindo em armadilhas nada justificadas e muito controvertidas. Para poder dar um embasamento um pouco melhor, conceituar fome, neste instante, parece ser essencial. A fome irá se instalar quando não existir o alimento para um ser vivo. Por outro lado, mesmo que ele se alimente, mas a quantidade for inferior às necessidades mínimas necessárias, segundo o que os estudos recomendam – ou seja, 2240 calorias diárias –, também existirá fome. No Planeta, atualmente, a cada 3,5 segundos, morre um ser humano vítima da fome. Ou seja, sob um enfoque matemático, teríamos cerca de 20 mortes por minuto, 1200 por hora e cerca de 28 mil por dia (sendo 11 mil de crianças), o que dá, num ano, cerca de 10 milhões de pessoas. Somente números? Você parou para pensar neles? É possível levantar algum questionamento? Dos cerca de 6 bilhões de seres humanos existentes em 2003 no planeta, segundo a FAO, 842 milhões são os que passam fome. A maior concentração dos famintos está na Ásia e na Área do Pacífico, com 70% do total, cerca de 526 milhões de pessoas. Na China, por exemplo, são 164 milhões. A segunda maior concentração está na África com 25% e, na América Latina e Caribe, são 53,6 milhões de pessoas. No Brasil, existiam, em 2003, cerca de 32 milhões de pessoas passando fome e outros 65 milhões que se alimentavam de forma precária. Os trabalhadores rurais, de 1985 a 1996, diminuíram 23% e hoje temos cerca de 77% da população vivendo em cidades e muitos de forma precária e em favelas. A concentra-

ção de terras, como uma explicação para o fato da fome, mostra a existência de propriedades com mais de 2000 hectares que passaram de 10.977 em 1992 para 27.556 em 1998, o que evidencia o aumento do número de grandes fazendeiros e, portanto, muitos outros vivendo na miséria. Finalmente, números são somente números ou indicam algo diferente para nós? Números são dados que mostram uma realidade muito objetiva. Como estes são, na sua maior parte, dados por demais estatísticos, convém que observemos um pouco melhor aqueles que são sobre seres humanos e vidas, fazendo deles uma reflexão um pouco mais detalhada e diferenciada. Ano após ano, diariamente, nos sinaleiros, especialmente nas grandes cidades, não tem aumentado a quantidade de motos que circulam entre os carros e que querem chegar antes no sinaleiro para arrancar e realizar o mais rápido possível o seu serviço? Você alguma vez já parou e se perguntou se esta situação não tem relação direta, quem sabe, com as 200 maiores empresas multinacionais do mundo que controlam 28% do comércio mundial, 70% dos alimentos que circulam pelos mercados, que oferecem somente 1% dos empregos planetários e que só compram as mercadorias se forem de grandes produtores? Será que, também, não há nenhuma relação quando pegamos as 4 pessoas mais ricas do planeta que têm juntas mais riqueza do que outros 600 milhões de pobres? Além disto, se pegarmos as 250 pessoas mais ricas e que chegam a um patrimônio de US$ 1 trilhão, então é preciso somar 2,5 bilhões de

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pessoas pobres para se ter o equivalente ou que, finalmente, os 358 mais ricos têm mais renda do que a metade da população planetária, ou seja, 3 bilhões de pessoas? No Brasil, por sua vez, temos 24 milhões de pessoas miseráveis, 30 milhões de pobres, 60 milhões de quase pobres, 50 milhões de classe média e apenas 2 milhões de ricos; ou seja, sabe-se, igualmente, que o 1% dos mais ricos possuem tanta riqueza quanto os 50% mais pobres. A riqueza da iniciativa privada é de cerca de R$ 2 trilhões. Os dados acima, por isto, evidenciam uma das maiores concentrações de riqueza planetárias. Quando o índice de concentração chega a 1 – segundo o índice Gini – temos o pior quadro. Serra Leoa, a campeã de concentração de riqueza, vem com 0,63; a Republica Centro Africana e a Suazilândia têm 0,61 e, finalmente, o quarto pior índice é o Brasil, com 0,60. O crescimento da desigualdade social, ao nível de planeta, é algo que deveria nos preocupar enormemente. Em 1913, os 20% mais ricos e os 20% mais pobres, em termos de riqueza acumulada, estavam numa relação de 11 para 1. Em 1960, pulou de 30 para 1; em 1994, saltou de 86 para 1 e, finalmente, em 2000, chegou a 90 para 1, o que evidencia o modelo concentrador. O DIEESE, em 1970, já havia alertado que, quanto menor a renda do trabalhador, maior é a porcentagem que este irá comprometer com a alimentação. Por isto, quem ganhava naquela época o equivalente a 3,1 salários mínimos comprometia 48% da renda e 80% desta alimentação acabava sendo de açúcares, farináceos e derivados; ou seja, uma alimentação precária que resultaria em fome mais tarde. A fome, portanto, não pode ser dissociada de riqueza, pobreza, emprego, salário, concentração de renda, de terras e produção de alimentos, entre tantos outros temas que poderíamos citar.

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O sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, já na década de 80 lançou a campanha da ação pela fome. A CNBB, em 1995, lançou o “Mutirão Nacional” pela eliminação da fome. O governo Lula, em 2003, lançou o programa “Fome Zero”. Diante de tantas tentativas, ao longo do tempo, existe alguma solução? Qual? Sabemos que, de 1980 até 1996, no Brasil, a área plantada reduziu-se em 2% e a população aumentou 34%. Este tipo de informação não é o que Darwin havia previsto já naqueles tempos e que realmente está se confirmando sob um enfoque mais catastrófico ainda? Ora, ao longo dos anos, no Brasil, reduziram-se os empréstimos e reduziram-se os trabalhadores rurais. Porém, o grande eixo de discussão é o que se passou a plantar neste período, ou seja, basicamente grãos como soja, milho e trigo, a monocultura, sendo este o modelo em que o agro negócio apareceu como moda, produzindo-se um produto de exportação e que mais serve para alimentar o gado de alguns países do que para matar a fome das pessoas. Sabe-se hoje que dos 8,5 milhões de hectares que são cultivados no Brasil, utilizandose apenas 20% do desperdício que ocorre, anualmente, seria perfeitamente possível saciar a fome existente no país, o que contraria a tese de Darwin. Parece que é o momento de, então, apontar alternativas, possibilidades, ou seja, elaborar tentativas de encontrar soluções. Uma das mais polêmicas não seria avançar maciçamente nos transgênicos, tão em modo atualmente e, com isto, ter alimentos abundantes para todos? Na verdade, se continuarmos com o modelo que atualmente está em pleno vigor (o sistema capitalista, o agro-negócio – e é por isto que usamos o “um” no título, o individualismo, onde reina a lei de mercado), a fome tenderá a se agravar ainda mais.


Achamos que uma solução bem mais viável seja a Agro-ecologia, ou seja, devemos buscar políticas que substituam o trigo e a soja pela agricultura familiar, dentro de um processo de diversificação da produção. Além do estímulo aos pequenos, é preciso pensar seriamente em formas diversas, como a troca, por exemplo, e em como encaminhar estes alimentos aos grandes centros consumidores, isto é, elaborar estratégias de transporte e comercialização mais justos.

elementos da realidade, significa compreender melhor o contexto em que vivemos. Na medida em que sejam buscadas novas formas de paradigmas, mudando a nossa maneira de pensar e atingindo uma maior consciência, nosso destino, nossa evolução parece ser possível. É preciso construir uma expressão coletiva que se reflita em ações que gerem conseqüências para aquilo que o Planeta Terra deseja.

Discutir o problema da fome, portanto, passa pela questão de quantidade, de qualidade, de variedade e de acesso ao que se produz a todos os seres humanos em todos os momentos. É por isto que usamos o “outros ou muitos” no nosso título.

Compreendemos que, cada vez mais, se faz necessário mudarmos fundamentalmente os valores. Devemos passar para uma visão sistêmica, que mostre as relações, a conexidade com a teia da vida, a interdependência, a flexibilidade, a diversidade e a sustentabilidade, o que nos permite gerar princípios e reformulações a partir de discussões locais e globais sobre outras possibilidades diferentes destas que geram a fome. Propostas como um dia mundial contra a fome, da consciência planetária, mudanças na atuação das Nações Unidas, mudanças nos acordos, nas convenções e protocolos internacionais, culpabilidade e punição de líderes empresariais que interferem negativamente no cosmos são apenas alguns dos exemplos fundamentais.

Uma alternativa mais consistente – quando de um modelo concentrador de rendas e terras –, através de programas governamentais desenvolvidos, nos tem mostrado que é possível avançar na distribuição da riqueza. O “Bolsa Família” e os programas associados, por exemplo, fizeram cair em 21% a desigualdade no Brasil, de 1995 até 2004. Isto é suficiente? Chegaremos a um ponto de maior equilíbrio social executando apenas isto? Achamos que convém, como educadores que somos, propor uma educação que aponte para mudanças de modelo. Se não soubermos nos desprender da visão mecanicista, cartesiana, fragmentada e linear com base no sistema capitalista e na lei de mercado – muito presentes no nosso modo de atuar – para outras formas com maiores fundamentações, não teremos muita chance. Uma das possibilidades muito difundidas é a visão holística e a ecologia profunda. Documentos como a “Carta da Terra”, em que se busque um código de ética planetário, em que se afirma uma declaração universal sobre a proteção ambiental e o desenvolvimento sustentável. Assim, a fome, finalmente, poderá ser substituída pela VIDA. Uma reflexão acerca da vida, tendo presente a fome, a pobreza e todos os demais

Se compreendermos que a fome é apenas uma parte de uma complexa estrutura viva de relações, então isto requer de nós que sejamos capazes de elaborar diretrizes e princípios mais gerais para toda a humanidade e toda a teia viva em que a conservação ambiental, a cooperação social e a solidariedade econômica sejam algumas das referências mais significativas que podemos apontar. Valdemiro Ruppenthal é professor de Matemática do 2º. e 3º. anos do Ensino Médio no Colégio Medianeira. É formado em Matemática (Unisinos/ RS) e especialista em Currículo e Práticas Educativas (PUCRJ).

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UMA VERDADE INCONVENIENTE

ENSAIOS: ECOLOGIA URBANA

AL GORE

AZIZ AB’SABER, ROBERTO ROMANO, NICOLAU SEVCENKO E OUTROS

Editora Manole O novo livro do ex-vice-presidente americano Al Gore, Uma Verdade Inconveniente: o que devemos saber (e fazer) sobre o aquecimento global, faz parte de seu projeto de conscientização ambiental, que inclui palestras ao redor do mundo, em que são apresentados dados incontestáveis sobre a crise climática provocada pela ação do homem no planeta, além do documentário Uma Verdade Inconveniente. Um aviso global, de grande repercussão nos EUA e no mundo político. A obra apresenta, de forma didática e envolvente, o resultado de toda uma vida dedicada à questão ambiental, cada vez mais inadiável. Com base em pesquisas realizadas por especialistas e instituições de renome, e compilando dados e exemplos no mundo inteiro, Al Gore produz uma obra eficaz de alerta sobre o aquecimento global. Narra também parte de sua trajetória de vida, focando os pontos-chave que o fizeram voltar a atenção para o ambiente. Uma Verdade Inconveniente esteve presente na lista de best-sellers dos EUA e venceu o Quills 2006, prêmio literário apoiado pela Reed Business Information e pela NBC, na categoria Histórias, Atualidades e Política.

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Editora Lazuli No prefácio deste Ensaios, Ecologia Urbana, o professor e escritor Renato Janine Ribeiro observa que os assuntos do livro perguntam por um “futuro no qual estamos, todos, imersos.” Escreve ele: “Não dá mais para pensar políticas para a sociedade sem, também, definir políticas para a natureza. (...) É que estamos todos envolvidos nisso. Não dá para resolver o problema de uns sem lidar com o que prejudica os outros.” A idéia de ecologia urbana registra o homem como habitante das metrópoles e sua necessidade de repensar esse seu novo habitat, em contraposição àquela vida rural levada por nossos antepassados no Brasil de sessenta anos atrás – a essa época, cerca de 69% da população se encontrava no campo; hoje esse número é de apenas 19%. Mas se a metrópole trouxe melhorias na qualidade de vida ao brasileiro – a expectativa de vida passou de 33,6 anos em 1900 para 68,6 anos em 2000 –, agora ela coloca questões importantes como a cidadania, a solidariedade e mesmo a felicidade. Com as novas tecnologias, somadas ao aumento de violência nos centros urbanos, o indivíduo cada vez mais é levado a viver dentro de seu microcosmo, de sua casa, cortando passeios, privando-se assim a uma convivência social que acima de tudo ajudou a gerar a feição da sociedade moderna. Tem-se a impressão de que o modelo chegou à exaustão, necessitando de uma urgente reformulação.


Formando

autonomias

SOLIDÁRIAS

CONSCIÊNCIA PLANETÁRIA

AMBIENTE

Por Adalberto Fávero

Nascido em 1957, o Colégio Medianeira comemora 50 anos reafirmando seu compromisso educativo, elegendo a consciência planetária e o ambiente como motes para a caminhada de reflexão e ação. 39


A

A década de 50 foi marcada no país por uma proposta desenvolvimentista que pretendia afirmar ser possível um passo rápido e gigantesco rumo ao primeiro mundo, o que servirá de lema a inúmeras outras experiências posteriores no país.

nhia de Jesus, em parceria com a comunidade local em suas conquistas e em seus maiores momentos de crise, além da crescente participação de leigos em seus quadros e na adesão ao mesmo sonho de fazer educação com Excelência Humana e Acadêmica.

Viviam-se o pós-guerra e um sentido de nacionalismo forte e cultivado por apelos populares diversos, firmados em indústrias nacionais de substituição de mercadorias, na posse de nosso subsolo com suas riquezas energéticas (“O petróleo é nosso...”), no Movimento de Educação de Base, na abertura do país ao capital externo como forma de desenvolvimento rápido, no início da cartelização da indústria e do mercado, no confronto político entre esquerda e direita...

Na vertente de excelência constante na história do Colégio, nos últimos 20 anos, seguindo a tradição e proposta da Companhia de responder às exigências de seu tempo no local onde se insere, desenvolveu-se um projeto pedagógico e uma experiência de formação permanente, com as raízes nas Características de Educação da Companhia e no Paradigma Pedagógico Inaciano e com as mãos, cabeças e pés mergulhados no tempo de transições que se vivem e em Curitiba, com suas características de cidade que vai se tornando metrópole, atraindo moradores do interior e de outros estados em busca de qualidade de vida.

Enfim, uma década de contradições e desafios com necessidades sempre mais emergentes e exigentes. O Paraná sofria mais um desbravamento com migrações de São Paulo e Minas Gerais para o norte, atraídas pela terra boa e pela cultura do café. Curitiba iniciava sua trajetória para se tornar de fato o pólo de governo e de unidade do estado. Os desafios de uma cidade/capital multiplicavam-se desde a área de saneamento, passando pela moradia e saúde e desembocando na educação. Foi nesse contexto e no centro de uma cidade com organização de educação pública precária (quanto à escassez de escolas) que nasceu o Colégio Nossa Senhora Medianeira, como uma alternativa fundada na larga experiência da Companhia de Jesus no campo da educação pelo mundo inteiro, no Brasil e nos estados vizinhos como Santa Catarina, Rio Grande do Sul, São Paulo e Minas Gerais. Essa história, com início oficial em 27 de Fevereiro de 1957 (embora a trajetória de sua construção e viabilização tenha se iniciado três anos antes) foi sendo construída pelas décadas seguintes com a força da Compa-

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Nesse mundo e nesse lugar é que se foi gestando uma proposta pedagógica inserida no processo de mudança sem seguir as modas passageiras; assentada nas mais atualizadas discussões sobre educação, ensino e aprendizagem; fiel à defesa no trato do conhecimento com profundidade e como meio de leitura permanente da realidade; comprometida com o sonho de sociedade e pessoa crítica, comprometida, criativa, sensível ao outro, justa e competente; sabedora de que só há excelência acadêmica se existir igual excelência humana e viceversa; baseada numa visão dialética de conhecimento, das relações e da formação de seus alunos e educadores... Esse projeto construído com diretividade garantiu características de ser coletivo e pessoal, transitar pelo local e pelo global, primar pela educação geral sem descuidar do específico, superar uma leitura apenas inter e/ou pluridisciplinar para afirmar uma proposta transdisciplinar, baseada da visão de contexto macro/micro, utopia/sonho de pessoa e sociedade desejada, concepção de conhecimento, visão de educador e de educando...


Com esse compromisso permanente de caminhar abrindo caminhos, no decorrer dos anos 90 optou-se por uma concepção dialética de complexidade como raiz de nosso currículo, julgando ser essa a ferramenta mais atualizada e capaz de ajudar a dar conta das exigências formativas nesse novo/atual tempo. Essa concepção fundamenta-se na reconstrução da história do conhecimento, do sentido do tempo e do espaço, na reconstrução da temporalidade, na perspectiva de verdade relativa a seu tempo e espaço, na vertente da incerteza e imprevisibilidade como elementos constitutivos da realidade e do conhecimento... Como parte dessa história e agentes de um processo que não pára e que exige sempre outras respostas é que se chegou à estruturação de um Projeto Sistêmico capaz de incluir todos os setores e pessoas da escola no mesmo caminho, na mesma organização e no mesmo sonho. Foi dentro de tais passos e demandas que se deu início ao Planejamento Estratégico para os próximos anos, incluindo nele a comemoração dos 50 anos de História na e com Educação do Colégio Medianeira em Curitiba. É em decorrência desse caminho, desse trabalho, dessas opções, desse sonho de educar para o nosso tempo com competência acadêmica humana, da busca permanente de inovação e inserção, da fidelidade a uma visão de mundo baseada na complexidade e do compromisso da leitura permanente da re-

alidade e suas exigências que se optou por assumir o Ambiente Û Consciência Planetária como referência para essa comemoração.

TEMA O ambiente, a consciência planetária e a biogenética serão temas centrais nos debates e embates das próximas décadas. Comumente, o foco desses estudos e discussões tem se restringido a uma reflexão puramente ecológica (cuidados com as árvores, plantas, animais, água...), ou à defesa do mito da natureza intocada ou, ainda, à idéia do desenvolvimento sustentável (um jeito que o mercado achou para garantir a exploração desenfreada dos recursos naturais). Curitiba tem se pautado pelo esforço de ser reconhecida como cidade ecológica e nessa vertente explora os doze metros quadrados de árvores por pessoas através da manutenção de seus parques e plantio de árvores pela cidade afora. Esse é um ícone de um jeito de construir a cidade, como também o são as ruas da cidadania, os faróis do saber, as praças étnicas... os ícones ajudam a construir uma leitura de cidade boa de morar e, ao mesmo tempo, uma cidade moderna, bonita, cosmopolita e globalizada. É fato para nós que pensar em ambiente (como para vários cientistas, Ongs e outros grupos diversos) precisa estar profundamente centrado no homem, na pessoa humana, na qualidade de vida, na reciprocidade entre as pessoas, na preocupação com a multiplicação de flanelinhas e vendedores nos nossos semáforos, na violência crescente como expressão da falta de esperança e perspectiva de vida para milhares de cidadãos dessa cidade e desse país. É intransferível a nossa responsabilidade frente ao planeta e diante das demandas por esgoto, por água para todos, pela despoluição dos rios, pelo destino do lixo absurdo produzido pela cidade e pelo mero depósito em aterros sanitários, pelo absurdo de centenas

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de pessoas vivendo com os restos desse lixo, pela miséria não humana a que são submetidos aqueles que são atraídos para nossa cidade sob a imagem de qualidade de vida criada pela propaganda; pelas mortes crescentes, diárias e não noticiadas em nossas periferias... A consciência planetária implica essa responsabilidade e o desenvolvimento do compromisso com as pequenas e as grandes atitudes e iniciativas, pois toda ação pessoal ou coletiva no nosso micro-cosmo de ação educativa ou em nossas casas interfere de maneira irreversível no planeta. Pensar o ambiente como fio condutor de nossa comemoração dos 50 anos do Colégio Medianeira implica, por isso mesmo, festejar o aniversário de uma história de compromissos com os vários momentos históricos do país e da cidade, porém exige com não menor veemência e urgência responder a esse momento atual com inventividade e inserção na nossa cidade e na vida de nosso país e nosso planeta. A sociedade atual tornou-se plural, ágil na informação, acessível a todos pelos meios de comunicação, sensível à diversidade de gênero e cultura (tanto na construção da diversidade quanto na criação e manutenção dos preconceitos), rápida no tempo... Por outro lado, a privatização da vida e das relações está matando as instituições antigas, os movimentos sociais, a sensibilidade com o outro, a reciprocidade entre as pessoas, o valor da vida de todos e de cada um... As mortes viraram estatísticas, a barbárie ultrapassa qualquer fronteira conhecida, as pessoas são facilmente descartáveis e a fome de tantos deixou de ser tema relevante até pela insistente propaganda de comida em abundância nos meios de comunicação. Não podemos apenas afirmar a importância das árvores de nossa cidade ou seus parques étnicos ou de lazer diário. Faz-se sempre necessária uma inserção na vida da cidade com o intuito de reconhecer seus avanços e pensar alternativas significativas para

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seus cidadãos e, mais especificamente, para os que atuam no processo educativo da instituição e para seus alunos. Há vida em abundância na cidade. Vidas que vivem e vidas que morrem. Vidas humanas desperdiçadas por outros humanos guardados em seus lares – fortalezas protegidas da violência e do mau cheiro da rua e da falta da beleza estética dos pobres mortais. Há morte de rios. Belém, que significa “nascimento”, na nossa cidade é sinônimo de água morta e poluída. Beléns de raças e fontes diversas são mortos todo dia e não ocupam espaço na estatística da vida e nem do consumo desenfreado. Nesse cenário de mortes e nascimentos é que desejamos nos situar para afirmar nossas convicções inegociáveis de compromisso com a vida das pessoas, da cidade e do planeta através da educação. Qual o sentido da vida humana nesse contexto? A terra sempre significou a mãe de todas as coisas para os nativos do continente latino-americano. A terra-mãe de todas as raças e de todas as vidas. A terra não escolhe cor, sexo, sabedoria ou idade: acolhe todos os povos, as línguas, os homens, os animais, as plantas, os insetos... num ecossistema gestado em milhões de anos mais ou menos seletivos. No momento em que o homem deixou de perceber a terra como mãe de todas as vidas, raças e credos é que se iniciou a agressão à natureza viva, aos demais seres vivos e aos seus semelhantes humanos. A falta de qualquer sentido de transcendência e desse sentido da terra que transcendia ao mero lugar de estadia e exploração gerou destruição dos recursos naturais, tornou o homem lobo do próprio homem, acabou com a reciprocidade dos seres humanos entre si e dos seres humanos com todas as formas de vida. Essa falta de sentido gerou fundamentalismos diversos, xenofobias “racionalmente”


justificadas, ataques com o poder absurdamente destruidor das armas, suicidas não convencionais na luta contra os impérios, mortes convencionais e não convencionais. Gerou até mesmo, além de outras tantas, a bomba asséptica que destrói apenas os seres vivos e deixa os prédios e construções em pé: a bomba de nêutrons. Por isso mesmo, um novo conceito de respeito à vida exige profundo sentido sistêmico para a natureza; exige a reconstrução do sentido de reciprocidade entre os seres humanos; exige a reconstituição da relação com a mãe terra; exige reumanização da tecnologia, da pesquisa genética, da comida rápida de cada dia, do núcleo familiar à mesa; exige a possibilidade da comida, da vida digna, do direito de moradia e da saúde; exige beléns de águas puras e novos nascimentos. Exige, inequivocamente, uma concepção sistêmica que trata as várias formas de vida e a terra como elementos em interação e interdependência constantes entre si. A inserção nessa luta e perspectiva nos coloca, enquanto colégio e instituição com responsabilidade social, dentro de um espaço

AS TRÊS ECOLOGIAS

definido: a cidade. Uma cidade que cuidou de sua aparência e de sua imagem externa, porém não lembrou o suficiente de seus bairros e rios. Esqueceu bastante de sua gente e de como vivem. Cresceu e expandiu para milhões de habitantes sem condições ideais de estrutura de transporte, de esgoto, de creche, de posto de saúde, de moradia, de cultura e de cidadania, como tantas outras metrópoles. Enfim, desejamos afirmar especificamente nessas atividades e comemorações dos 50 anos os seguintes valores: respeito à natureza, à vida, às relações de reciprocidade; inserção local (cidade) frente à globalização das relações; comunhão com a terra; responsabilidade social com as comunidades com quem se tem parceria e com o “Fé e Alegria”; compromisso inegociável com a defesa ética da vida, da justiça e da dignidade humana. Adalberto Fávero é Vice-Diretor do Colégio Medianeira; é formado em Filosofia, Teologia e História, com pós-graduação em Filosofia da educação (PUCPR) e em Currículo e Práticas Educativas (PUCRJ). É mestrando em educação pela PUCPR.

(Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br)

TERRA-PÁTRIA

FELIX GUATTARI

EDGAR MORIN E ANNE BRIGITTE KERN

Editora Papirus

Editora Instituto Piaget

O autor registra nessa obra três ecologias: a do meio ambiente, a das relações sociais e a da subjetividade humana, manifestando sua indignação perante um mundo que se deteriora lentamente. Propõe também reinventar maneiras de ser no interior do casal, da família, do trabalho e da cidade.

Edgar Morin e Anne Kern debatem conceitos como comunidade, pátria, universalismo, nação, identidade, ecologia e política. São elementos fundamentais para compreender a complexa rede social contemporânea. Com linguagem fluente, os autores enumeram os erros cometidos na história e propõem correções de rumo subordinados a uma consciência humanística.

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André Trigueiro

Mundo

SUSTENTÁVEL André Trigueiro é jornalista com Pós-graduação em Gestão Ambiental pela COPPE/UFRJ, Professor e criador do curso de Jornalismo Ambiental da PUC/RJ, autor do livro “Mundo Sustentável – Abrindo Espaço na Mídia para um Planeta em transformação” (Editora Globo, 2005), Coordenador Editorial e um dos autores do livro “Meio Ambiente no século XXI”, (Editora Sextante, 2003). Desde 1996 vem atuando como repórter e apresentador do “Jornal das Dez” da Globo News, canal de TV a cabo onde também produziu, roteirizou e apresentou programas especiais ligados à temática socioambiental. Pela série “Água: o desafio do século 21” (2003), recebeu o Prêmio Imprensa Embratel de Televisão e o Prêmio Ethos - Responsabilidade Social, na categoria Televisão. Pela série “Kioto: O protocolo da Vida” (2005) recebeu o título de “Hours Concours” no Segundo Prêmio CEBDS de Desenvolvimento Sustentável”. E pela série “A nova energia do mundo” (2005) , recebeu o Prêmio Nacional de Conservação e Uso Racional de Energia 2005, oferecido pela Eletrobrás e pela Petrobrás. Cobriu pela Globo News, as Olimpíadas de Sidney (2000), a as Copas do Mundo na Coréia do Sul e no Japão (2002) e na Alemanha (2006), e as eleições para a presidência dos Estados Unidos (2004). É comentarista da Rádio CBN (860 Kwz) onde apresenta aos sábados e domingos o quadro “Mundo Sustentável”.Presidiu o Júri da VI e da VII Edições do Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental de Goiás.

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Mediação - O senhor poderia explicar ao nosso leitor quais são suas idéias a respeito do termo “Consciência planetária”? André Trigueiro: É a consciência de que pertencemos a um conjunto de fenômenos interligados e interdependentes que configuram a vida no planeta. O meio ambiente começa no meio da gente. Cada pequeno gesto ou ação repercute na teia da vida e, nesse sentido, somos responsáveis diretos pelos principais impactos que ameaçam a vida nesse planeta: aquecimento global, desertificação do solo, escassez de recursos hídricos, produção monumental de lixo, entre outros problemas que ocorrem em escala global, tem em comum o fato terem surgido num cenário de absoluta falta de consciência planetária.

A maior parte da população brasileira vive em centros urbanos e ainda associa ecologia apenas com zona rural ou com florestas. Portanto, sente-se afastado e pouco responsável pela idéia de preservação. Que argumentos podemos utilizar para incluir também o homem urbano nessa discussão? André Trigueiro: A natureza presta serviços fundamentais à humanidade sem receber por isso nenhum pagamento. No meu último livro (“Mundo Sustentável”, Ed. Globo, 2005) menciono o estudo produzido pela organização não governamental Conservation International, o qual revela que se não houvesse mais florestas e a regulação do clima tivesse que ser obtida por meios artificiais, o custo desse serviço alcançaria a fabulosa cifra de 3,8 trilhões de dólares. Na verdade, a maioria de nós é analfabeta ambiental. O grande ambientalista José Lutzemberger afirmava que o “homem moderno, predominantemente urbano, nasce e se cria em ambiente artificial” e que “não somente o ambiente em que vivemos nos predispõe à alienação diante do mundo vivo, mas toda a filosofia de vida, nossa ética convencional, encontra-se em oposição fundamental às leis da vida”. A saída para esse impasse civilizatório é a educação. Ou mudamos o nosso olhar sobre o mun-

do, nos reconhecendo como parte do processo em que a vida se resolve, ou replicaremos o modelo suicida que promoverá a exaustão dos recursos fundamentais à vida.

Ultimamente, muito se tem usado a expressão “desenvolvimento sustentável”, que carrega consigo a idéia de que é possível gerar renda e desenvolvimento sem devastar a biodiversidade. Mas, ao mesmo tempo, não podemos nos esquecer de que vivemos em um modo de produção capitalista, de natureza predatória. O senhor crê ser possível harmonizar essas duas aparentes contradições? André Trigueiro: Não há paz na sociedade de consumo. A publicidade excita os sentidos na direção do consumo do não necessário, exaurindo os recursos naturais não renováveis, e agravando o cenário de desigualdade social. Segundo dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), 20% da humanidade consomem 80% dos recursos naturais (matéria-prima e energia). O desenvolvimento só será sustentável onde não haja consumismo, e os recursos possam ser consumidos de forma consciente e racional. Sinceramente, não sei se alcançaremos esse estágio evolutivo sem dor e sofrimento. A História demonstra que a privação e o flagelo são muitas das vezes poderosos recursos “didáticos”, que aceleram processos de aprendizagem da humanidade. Seria ótimo se pudéssemos alcançar um novo modelo de civilização sem dissabores coletivos. Mas precisamos acelerar o passo. Um estudo recente da organização ambientalista WWF afirma que já estamos consumindo 25% a mais de recursos do que o planeta é capaz de prover. Se a Terra fosse uma empresa, estaria operando no vermelho. Isso não é sustentável.

Biodiversidade e consciência planetária são temas relativamente novos e muitas vezes ainda passam longe de muitas escolas que apenas retransmi-

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tem conhecimentos congelados e já sistematizados. Como o senhor acha que a escola poderia incorporar esses novos temas à sua grade curricular e à sua agenda de discussões? André Trigueiro: Venho participando de seminários com professores e educadores e essa questão sempre vem à tona. Escrevi um texto para o já mecionado livro “Mundo Sustentável” chamado “Educando para um novo olhar, comunicando para um novo saber” que sintetiza o meu pensamento sobre essa questão. Entendo que a verdadeira educação é dinâmica e acompanha a evolução dos acontecimentos ajustando conteúdos em favor da melhor compreensão de uma realidade que é igualmente dinâmica. Professor que não se recicla, que não atualiza seus conhecimentos, que não está aberto para os novos cenários desafiadores impostos por um mundo em constante transformação, não consegue cumprir sua importantíssima função social. O momento exige a atualização das grades curriculares na direção de uma nova ética planetária onde estejamos conscientes de que, se não corrigirmos o rumo, desapareceremos enquanto espécie. A educação que não remete à atitude, é estéril. A educação que não estimula uma nova cidadania, que poderíamos chamar de ”cidadania ecológica planetária”, onde todos nos sentimos potencialmente construtores ou predadores da vida, falha na sua premissa básica de preparar o aluno para a realidade que o espera. Não basta saber que é preciso mudar, tem que fazer diferente. E rápido.

Em 2007, a CNBB elegeu a Amazônia como grande tema de sua Campanha da Fraternidade. Em que medida isso pode contribuir para difundir cada vez mais a consciência ecológica em seu sentido amplo e também para provocar ações efetivas de mudança individual e coletiva? André Trigueiro: Discutir os rumos da Amazônia significa discutir os rumos da humanidade. É, portanto, um exercício de visão sis-

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têmica. Esta região, que corresponde a quase metade do território brasileiro, concentra o maior estoque de água doce do mundo, a maior floresta tropical úmida, e um dos maiores patrimônios da biodiversidade. As árvores ”suam” vapor dágua e produzem nuvens que são transportadas para pontos distantes até se precipitarem na forma de chuva. Destruir a amazônia significa mudar o ciclo da chuva; alterar o curso e a qualidade das águas; destruir a diversidade biológica e todos os remédios e vacinas que o biotecnologia deixará de conhecer e pesquisar; liberar CO2 para a atmosfera agravando o efeito estufa; mudar o clima da Terra. A expansão da fronteira agrícola - principalmente soja - e da pecuária estão dizimando enormes áreas de floresta sem que isso produza riqueza no longo prazo. Chico Mendes foi assassinado porque defendia a exploração da floresta “em pé”, ou seja, de forma sustentável, quando se retira sementes, frutos, raízes, folhas e até madeira sem destruir a floresta. Ela continua existindo, gerando mais emprego e renda. Irmã Dorothy foi assassinada em 2005 no sul do Pará defendendo a mesma coisa. Vários sacerdotes ligados à Comissão Pastoral da Terra (CPT) estão ameaçados de morte por sojeiros,madeireiros e pecuaristas na Amazônia por defenderem a exploração sustentável dos recursos da floresta. Por tudo isso, a Campanha da Fraternidade 2007 poderá ajudar muito no esclarecimento desse temas em favor de uma melhor compreensão do que é a Amazônia e o que está acontecendo naquela região.

Confira, do entrevistado, o site www. mundosustentavel.com.br E o programa “Mundo Sustentável”, na rádio CBN (90,1), aos sábados e domingos – você pode também os programas pela internet, a qualquer hora, na página http:// cbn.globoradio. globo.com/cbn/ (procure, na seção “boletins”, o programa “Mundo Sustentável”).


MUNDO SUSTENTÁVEL: ABRINDO ESP AÇO NA MÍDIA P ARA UM PLANET A EM TRANSFORMAÇÃO ESPAÇO PARA PLANETA ANDRÉ TRIGUEIRO Editora Globo Num cenário de crise ambiental sem precedentes, cultivada nas entranhas de um modelo de desenvolvimento que vem exaurindo numa velocidade assustadora os recursos naturais do planeta, com impactos negativos sobre a qualidade de vida da população, não basta denunciar o que está errado. É preciso sinalizar rumo e perspectiva, dar visibilidade às soluções sustentáveis que fertilizam o campo das idéias para a semeadura de um novo tempo, de um novo projeto de civilização. Estas são as questões abordadas em Mundo Sustentável, livro do jornalista André Trigueiro. A obra reúne uma seleção de artigos, entrevistas e comentários do jornalista veiculados na Rádio CBN, no canal a cabo Globo News, no jornal O Globo e no site Ecopop. Alguns dos principais temas da atualidade – aquecimento global, água, biodiversidade, consumo irracional dos recursos naturais, lixo, energia, meio ambiente nas cidades – aparecem em lugar de destaque, com a preciosa colaboração de especialistas convidados pelo autor para comentar os assuntos abordados. O livro apresenta soluções para vivermos num mundo auto-sustentável, procurando despertar a sociedade para a importância do debate de questões que estão intrinsecamente relacionadas ao modelo socioeconômico em que estamos imersos. Um bom exemplo do enfoque proposto por André é o capítulo a respeito do lixo, assunto que atinge a todos, que apresenta nitidamente o impacto de nossos hábitos cotidianos sobre o meio ambiente, e as perspectivas de uso inteligente dos resíduos como fonte de matéria-prima e energia. Cada leitor poderá identificar como, através de pequenas ações, podemos nos sentir agentes da mudança em favor de um mundo melhor e mais justo.

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Por HilĂĄrio JosĂŠ Kochhann SJ

A Campanha da Fraternidade de 2007 escolhe um dos mais importantes ecossistemas do mundo para, a partir dele, pensar na realidade brasileira e na realidade da vida do planeta, seu estado atual e as perspectivas para o seu futuro. 48


A

A Amazônia é o tema da Campanha da Fraternidade em 2007, com o lema “Vida e Missão Neste Chão”. Este breve espaço servirá mais para fins de divulgação, de incentivo ao aprofundamento pessoal e em sala como um tema transversal privilegiado neste tempo em que a mudança climática está no topo dos desafios para a humanidade e constitui um desafio para todos, pois “não haverá refúgios climáticos. Todos vão sentir.” O objetivo geral da CF-2007 é “conhecer a realidade em que vivem os povos da Amazônia, sua cultura, seus valores e as agressões que sofrem por causa do atual modelo econômico e cultural, e lançar um chamado à conversão, à solidariedade, a um novo estilo de vida e a um projeto de desenvolvimento à luz dos valores humanos e evangélicos, seguindo a prática de Jesus no cuidado com a vida humana, especialmente a dos mais pobres, e com toda a natureza.” O texto-base se estrutura por meio do método ver-julgaragir e sempre mais acrescido do avaliar e celebrar para impulsionar novas práticas das comunidades e grupos engajados. Quando falamos em Amazônia, vêm à imaginação as vastas florestas e rios serpenteando, a exuberância da natureza em todos os seus matizes. Mas qualquer pessoa pouco mais aberta a ver a realidade, sabe que estes “pulmões” da Terra andaram “fumando” demais! Além do ar, das águas, o fogo fez o seu serviço para acessar grandes porções de terra, em especial para a criação de gado e o cultivo de soja. A economia da Amazônia é suscetível aos mercados nacional e internacional através do processo de globalização que está acelerando a substituição e o empobrecimento das florestas nativas pela agricultura ou pela criação de gado. A ausência do Estado perpetua o processo de ocupação desorganizada da Amazônia e se mantém da seguinte forma: derrubada, extração da madeira, queima, introdução da pecuária extensiva. Em alguns Estados, a fren-

te baseia-se na exploração mineral e mais recentemente a agricultura ganha espaço como principal cultura de exploração da terra. Claro está que, no rastro da abertura de uma estrada, avançam aventureiros e exploradores que se especializaram em grilagem de terras. A necessidade de garantir a vida em todos os sentidos tem impulsionado o surgimento de movimentos sociais e eclesiais em defesa da Amazônia que buscam oferecer resistência e propor alternativas aos ataques sistêmicos do poder político e econômico contra o ecossistema e contra a população nativa. São problemas que exigem uma luta constante no sentido de promover a justiça e a paz. Assim, em meio a toda essa grandiosidade, a maravilha que o mundo e seu mercado tanto exploram e cobiçam está com a circulação dos rios – as veias da floresta – comprometida por tanta extração de madeira e minérios que têm seus dejetos a poluir e contaminar tantos rios. Sabe-se que a mesma exuberância das matas e rios é frágil e hoje está no centro das atenções do paciente Terra dando todo dia seus sinais claros de que cada um de nós precisa fazer algo, repensar onde vive. Como posso melhorar a qualidade do ar que respiramos? Com que posso contribuir para continuarmos a ter água potável suficiente? Como posso me alimentar e consumir de um modo mais humano, digno e responsável por minha saúde e do planeta? A Igreja na Amazônia não deixou de aproximar-se da realidade popular: voltou-se para os pobres, preocupou-se com sua opressão, foi solidária nas suas lutas, o que provocou rupturas com as classes dirigentes e dominantes e gerou mártires. De certo modo, estabeleceu nova eclesiologia, novo modo de viver como Igreja, abrindo espaços para leigos e leigas exercerem, de modo efetivo e concreto, seus ministérios ao lado do clero, do episcopado e dos religiosos e religiosas, alargando horizontes que hoje e no futuro produzirão seus frutos. Para os agentes de pastoral, é necessário preparar a cabeça e o coração, pois pisar o chão da Amazônia sem

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comprometer-se com a sua história – de dor e ressurreição – seria diminuir a força libertadora do seguimento radical de Jesus Cristo. Vera Lúcia, religiosa que atua em Machadinho, numa paróquia de 79 comunidades em Rondônia, destaca a questão da violência em solo amazônico: “No início fiquei profundamente chocada com a questão da violência, porque ali a vida vale muito pouco, se mata por um pedaço de terra, por um pedaço de corda, por uma conta não paga no bar, tudo vale, menos a pessoa humana que já perdeu toda a sua dignidade e, sobretudo, a esperança de um mundo melhor. A maioria dos assassinos ficam impunes, escondidos nas matas (sic), e quando todos esquecem eles reaparecem. Muitas vezes os parentes das vítimas fazem justiça com as próprias mãos, tornando-se assim um círculo vicioso de mor-

ORAÇÃO DA CF-2007 Deus criador, Pai da família humana, Vós formastes a Amazônia, maravilha da vida, bênção para o Brasil e para o mundo. Despertai em nós o respeito e a admiração pela obra que vossa mão entregou aos nossos cuidados. Ensinai-nos a reconhecer o valor de cada criatura que vive na terra, cruza os ares ou se move nas águas. Perdoai, Senhor, a ganância e o egoísmo destruidor; moderai nossa sede de posse e poder. Que a Amazônia, berço acolhedor de tanta vida, seja também o chão da partilha fraterna, pátria solidária de povos e culturas, casa de muitos irmãos e irmãs. Enviai-nos todos em missão! O Evangelho da vida, luz e graça para o mundo, fazendo-nos discípulos e missionários de Jesus Cristo, indique o caminho da justiça e do amor; e seja anúncio de esperança e de paz para os povos da Amazônia e de todo o Brasil.

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Amém.

te; convivemos com esta realidade, pois, como irmãs, toda semana somos chamadas para fazer exéquias (bênção dos defuntos) de vítimas da violência e além do mais temos a missão de consolar famílias simples, gente que freqüenta as Comunidades Eclesiais de Base que assistimos, estas vêem seus filhos ‘colhidos’ antes do tempo.” A CF 2007 tem um aspecto muito prático no tocante a recursos humanos e materiais para a ação evangelizadora em solo amazônico. Manter projetos por lá é mais oneroso até porque as distâncias são maiores e o quadro de pessoal é reduzido e sobrecarregado. Vanildo Filho, jovem jesuíta da Província do Nordeste, participou do Projeto Equipe Itinerante (sub-equipe indígena) na região Amazônica em 2003-2004 e, entre outras impressões da sua experiência, registra: “Sem dúvida, a região Amazônica é uma grande terra de missão. Cobiçada por muitos, cresce a atividade econômica clandestina (madereiras, drogas, armas...). A ganância dos grandes projetos destrói a vocação própria da região como a pesca. A marginalização e exclusão é expresso (sic) visivelmente na realidade indígena, dos migrantes e nos conflitos de terra. O nosso desafio enquanto missionário itinerante é o de apoiar as iniciativas dos próprios locais sem substituí-los, ajudar as experiências locais e isoladas a se abrirem a outros, favorecendo o trabalho em rede.” O apoio e o revigoramento daquela Igreja local tornou-se urgente e requer ajuda de voluntários e missionários de outras regiões do País, além de recursos econômicos e logísticos. É preciso sensibilizar a todos para a questão da Amazônia, conhecer as causas do empobrecimento do nosso povo e ajudar


a expulsar as forças do mal que deixam rastros em tantas situações desumanas que ferem o direito de cidadania de nossa gente. A Evangelização da Amazônia do ponto de vista sócio-transformador visa à promoção integral da pessoa humana, o que implica a defesa da vida em todas as suas formas: a vida humana em perigo, diante da lógica de exploração e a violência, o que exige a defesa dos povos indígenas, dos seringueiros, das populações ribeirinhas; a biodiversidade ameaçada de extinção causada pelo desmatamento desenfreado, trazendo desequilíbrios ambientais e sociais, a biopirataria de material genético e o extravio do conhecimento ancestral das populações nativas para as mãos dos laboratórios estrangeiros; o grande patrimônio nacional da fauna, flora e da ÁGUA, fontes naturais de vida, o que exige atenção à ecologia para preservar o meio ambiente. A CF de 2007 poderá ser um grande momento de trazer a Amazônia para dentro do coração da Igreja no Brasil e de todos os brasileiros; será ocasião também para suscitar iniciativas e ações eficazes de valorização e defesa daquela vasta e ameaçada região brasileira. Antes que seja tarde demais. Carlos Nobre, pesquisador do Inpe, diz em seu artigo na Folha de São Paulo de 03/02/2007: “A queda das taxas de desmatamento dos últimos dois anos traz no seu bojo a esperança de que é factível reduzir a derrubada de florestas para valores próximos de zero, base-

ando o “desenvolvimento sustentável” da Amazônia na recuperação de áreas degradadas. Além disso, é preciso uma profunda transformação, talvez sem paralelo na história da civilização, uma evolução não biológica, mas filosófica e cultural, do Homo sapiens para algo novo, que podemos chamar de Homo planetaris. Essa nova humanidade deve ser guiada pelo conhecimento e pela ciência e ter respeito e solidariedade com os menos afortunados”. Há uma riqueza e abundância de temas, questionamentos que nos competem a todos e podem fazer integrar, ampliar o que cada um como cidadão e instituição já faz de bem em melhoria da qualidade de vida nos espaços da cidade, no local onde vive. Comprometimento com políticas públicas geradoras de inclusão, solidariedade, sobriedade, compaixão, de soluções simples que resgatam a alegria de viver. Devemos fortalecer a troca complementar e cooperativa na certeza de que uma teia de conexões nos envolve por todos os lados, fazendo-nos cooperativos e solidários. Os espaços naturais da região amazônica, apreciados no mundo pela sua biodiversidade, são vitais para o equilíbrio ambiental de todo o planeta. A Terra como organismo vivo pode até reverter o processo de transformação da Amazônia em cerrado se em cada ponto da mesma fizermos nosso dever de casa!

A Amazônia Legal brasileira está formada por dez Estados: Acre, Amapá, Amazonas, Goiás, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins, Maranhão e Mato Grosso. O território compreende 5.030.730 Km2, 59% do território nacional e 65% de toda a bacia amazônica. Tem 11.248 km de fronteiras internacionais, 1482 km de costa atlântica, 22 mil km de rios navegáveis; com 23 milhões de habitantes, dentre os quais 163 povos indígenas, que totalizam 208 mil pessoas, ou 60% da população indígena brasileira.

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EXPLICAÇÃO DO CARTAZ DA CF-2007

Fraternidade e Amazônia “Vida e missão neste chão” Na parte superior do Cartaz, a terra seca e rachada representa a realidade de algumas partes da Amazônia durante a estiagem e adverte que, sem o devido cuidado, toda a região pode ser destruída. A abundante presença da água lembra que a Amazônia é uma importante reserva de água doce no planeta, além de transmitir uma sensação de transparência, força e vitalidade. O elemento principal do Cartaz é a vitóriarégia, conhecida pelos índios como “panela de espíritos”. Considerada um dos símbolos da Amazônia, essa planta é forte e tem raízes profundas que tocam o leito do rio; ao mesmo tempo, é sensível, assim como o povo nativo da região, que sobrevive com muita garra, mas precisa do apoio fraterno de toda a sociedade brasileira. As três flores brancas e amarelas têm extrema relevância no Cartaz, uma vez que representam a Santíssima Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo. Essas flores lembram que a Amazônia é obra de Deus Criador e Providente entregue aos nossos cuidados. A criança representa os índios e toda a comunidade da região, suas crenças, sonhos e esperanças. Seu olhar inocente e o sorriso sutil são um convite à superação das dificuldades e à construção de um futuro melhor para a Amazônia.

Pe Hilário José Kochhann SJ é coordenador do Centro de Espiritualidade do Colégio Medianeira. É bacharel em Filosofia pelo Instituto Santo Inácio (Belo Horizonte/ MG), tem Licenciatura Plena em Filosofia pela Unisinos (São Leopoldo/RS), é bacharel em Teologia pelo ITESC (Florianópolis/SC) e tem especialização em Espiritualidade (Guatemala). (hilariojk@terra.com.br)

Ao mostrar o contraste entre a terra seca e a exuberância da água, o Cartaz chama a atenção para a devastação da Amazônia e o descaso com a vida. Representa a esperança de encontrar uma solução para os conflitos da região com base na solidariedade e no respeito às diferenças.

Saiba mais em:

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www.amazonia.org.br www.cnbb.org.br www.jesuitasamazonia.org


O ENCANTAMENTO DO HUMANO: Ecologia e Espiritualidade NANCY MANGABEIRA UNGER Editora Loyola A Crise que hoje atravessamos é de dimensões planetárias. A palavra “crise” vem do grego Krinein: decidir, discernir. Por isso, nos encontramos diante de indagações de fundo: quem é o ser humano e qual o seu lugar no todo? Como tecer novamente os fios que religam Polis e Cosmos? A responsabilidade que se põe para cada ser humano hoje é de transformação profunda de nossa relação com o planeta Terra. Para que esta transformação ocorra é preciso reencontrar a capacidade humana de maravilhar-se, de encantar-se de vivenciar a presença do extraordinário no ordinário.

VEM, VAMOS COMER: UMA DIET AP ARA JUSTIÇA OGIA DIETA PARA JUSTIÇA,, PAZ E ECOL ECOLOGIA KLAUS TH. FINKAM Editora Paulus Comer envolve corpo e alma. O que comemos e como comemos não é simplesmente uma questão individual de cada pessoa. Tem conseqüências também para o convívio das nossas famílias, comunidades e mesmo para o convívio da humanidade. Comer, então, significa conquistar uma nova dieta para justiça, paz e ecologia.

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Poeta poetinha da

NATUREZA

Por Luciana Nogueira Nascimento

Os bichinhos e o homem Estudante do colégio jesuíta Santo Inácio, do Rio de Janeiro, o “poeta poetinha” Vinícius de Moraes cantou o amor, a paixão, a mulher, o Rio de Janeiro, o mistério, a morte... e deixou uma pontinha de inveja em grandes poetas como Carlos Drummond de Andrade, que disse certa vez: “Vinicius é o único poeta brasileiro que ousou viver sob o signo da paixão. Quer dizer, da poesia em estado natural. Eu queria ter sido Vinicius de Moraes”. (no site www.releituras.com/viniciusm) Casado nove vezes, pai de cinco filhos... também dedicou parte de sua obra à natureza e às crianças. A beleza e singeleza com que descreve a coruja (“Corujinha, corujinha / Que peninha de você / Fica toda encolhidinha / Sempre olhando não sei quê...”), a formiga (“As coisas devem ser bem grandes / Pra formiga pequenina / A rosa, um lindo palácio / E o espinho, uma espada fina...”) ou o gato (“Com um lindo salto / Leve e seguro / O gato passa / Do chão ao muro / Logo mudando / De opinião / Passa de novo / Do muro ao chão...”), encanta gerações desde a década de 70 quando decidiu dedicar sua produção literária e musical aos pequeninos de todas as idades. Luciana Nogueira Nascimento é coordenadora de Comunicação e Marketing do Colégio Medianeira; é formada em Jornalismo pela PUCPR, com pós-graduação em Marketing pela FAE Bussiness Schooll e ex-aluna do Medianeira da turma de 87.

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Vinicius de Moraes / Toquinho Nossa irmã, a mosca É feia e tosca Enquanto que o mosquito É mais bonito É mais bonito Nosso irmão, besouro Que é feito de couro Mal sabe voar Mal sabe voar Nossa irmã, a barata Bichinha mais chata É prima da borboleta Que é uma careta Que é uma careta Nosso irmão, o grilo Que vive dando estrilo Só pra chatear Só pra chatear E o bicho-do-pé Que gostoso que ele é Quando dá coceira Coça que não é brincadeira E o nosso irmão carrapato Que é um outro bicho chato E primo-irmão do bacilo Que é irmão tranqüilo Que é irmão tranqüilo E o homem que pensa tudo saber Não sabe o jantar que os bichinhos vão ter Quando o seu dia chegar Quando o seu dia chegar


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