Revista Mediação - Número 10

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NÚMERO 10 • ANO III ISSN 1808-2564 revista de educação do colégio medianeira

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Diretor Pe. Rui Körbes, S.J. Vice-diretor Prof. Adalberto Fávero Coordenador Administrativo e Financeiro Gilberto Vizini Vieira Coord. Comunitário e de Esporte Prof. Francisco Alexandre Faigle Coordenação Editorial e Revisão Nilton Cezar Tridapalli Luciana Nogueira Nascimento (MTB 2927/82v) Projeto Gráfico e Diagramação Sonia Oleskovicz Ilustrações Ana Paula Ferreira da Luz Entrevistas Lyane Born Martinelli Colaboraram nesta edição Christiane Denardir, Franco Caldas Fuchs, Geralda Colen, Kleber Klos, João Felipe Gremski, João Paulo Almeida da Silva , Juliana Cavassin, Leandro Guimarães e Liliane Grein, Lucas Feron, Luciane Hagemeyer, Mábile Borsatto, Maria Célia Martirani, Thadeu Guaraciaba de Aquino. Tiragem 2.700 exemplares Papel Reciclato Suzano 90g/m2 (miolo) Reciclato Suzano 240 g/m2 (capa) Número de Páginas 52

EQUIPE PEDAGÓGICA Educação Infantil e Ensino Fundamental de 1ª à 4ª séries Coordenadora Profª Silvana do Rocio Andretta Ribeiro Ensino Fundamental de 5ª e 6ª séries Coordenadora Profª Eliane Dzierwa Zaionc Ensino Fundamental de 7ª e 8ª séries Coordenador Profª Roberta Uceda Vieira Ensino Médio Coordenador Prof. Marcelo Pastre Coordenador de Pastoral Pe. Guido Valli, S.J. Marketing Luciana Nogueira Nascimento

ISSN 1808-2564

revista de educação editada e produzida pelo colégio medianeira

Tecnologia e humanidade, quando uma evita a manifestação da outra João Felipe Gremski ........................................................................................................................ 5

Normalizadoras, reconfiguradoras, melhoradoras A arte dos "Super-Poderes" Mábile Borsatto ................................................................................................................................ 7

Educação, autoconhecimento e tecnologia Lucas Feron ....................................................................................................................................

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Sorria, você está sendo filmado! Geralda Colen ................................................................................................................................

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Autonomia e Educação: um caminho para humanização Kleber Klos ....................................................................................................................................

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Mutum: redescobrindo Miguilim Maria Célia Martirani .....................................................................................................................

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Da Guerrilha Colombiana ao ciberespaço Juliana Cavassin ............................................................................................................................

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A volatilidade das relações Thadeu Guaraciaba de Aquino .....................................................................................................

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O uso do papel reciclado: da teoria à prática da consciência planetária Leandro Guimarães e Liliane Grein ..............................................................................................

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Novas tecnologias aplicadas à educação musical contemporânea Christiane Denardir .......................................................................................................................

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Um pretexto para falar de Döblin Franco Caldas Fuchs .....................................................................................................................

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O pequeno Nicolau Luciane Hagemeyer ...................................................................................................................... Os artigos publicados são de inteira responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a opinião dos editores e do Colégio Nossa Senhora Medianeira. A reprodução parcial ou total dos textos é permitida desde que devidamente citada a fonte e autoria.

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Fraternidade e vida João Paulo Almeida da Silva ........................................................................................................

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CRÔNICA

Ano machadiano — Suje-se, gordo! .................................. 53 BR 476, Km 130, nº 10546 Prado Velho • Curitiba • Paraná fone 41 3218-8000/ fax 41 3218-8040 www.colegiomedianeira.g12.br mediacao@colegiomedianeira.g12.br

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Chegamos à edição de número 10 da nossa Revista Mediação. Reli o primeiro número (o número 0) e vi lá, estampado, no editorial, o desejo de que a revista fosse uma ponte entre os multiformes assuntos ligados à educação e o mundo fora dos limites da escola (mas também dentro deles).

como é que eles conseguem medir essas coisas, li que uma edição atual de um grande jornal contém mais informações do que um homem na Idade Média reunia em toda a sua vida. Só vou perguntar, não ouso responder: isso é fantástico? Isso é assustador?

Ao atingirmos o número 10, é possível supor que algumas pontes foram construídas. Mas o desafio não acaba nunca. É preciso restaurar algumas, conservar outras, construir mais.

Difícil chegarmos a conclusões do tipo absoluto, se a tecnologia é boa ou ruim. Talvez a gente troque o ou pelo e, sempre assumindo o risco de ser acusado de estar "em cima do muro"...

Para esse número 10, escolhemos tratar em vários artigos de um tema que desperta boas discussões, posições que se confrontam, dúvidas que surgem sempre que tomamos um partido: a tecnologia. Ela como o senso comum a definiu - ajuda a nos tornar mais humanos, a desenvolver mais relações com o outro? Afinal, é possível achar um amigo distante por um site de relacionamento... embora aquele que está ao nosso lado às vezes só receba de nós correntes infindáveis e indistintas por e-mail... o exemplo é até bobo, concordo, mas já dá para fazer pensar. Falar que a tecnologia invade grande parte da nossa vida é chover no molhado e repetir clichês. Cabe pensar em que medida essa "invasão" contribui para a construção das relações humanas mais ricas ou cria distâncias mascaradas pelo excesso de informação. Se as informações fossem materializadas em flechas lançadas por arqueiros diversos, haja escudo para proteger nossas cabeças. O que fazer com tudo isso? O Drummond, no seu "Poema de sete faces", olhava o alvoroço da cidade, com as pessoas indo e vindo, e perguntava: "para que tanta perna, meu Deus, pergunta o meu coração / Porém meus olhos / Não perguntam nada". Trocando as pernas pelas informações, é possível pensar na relação entre o homem e seu mundo virtual/real, não? Muito tempo atrás, numa dessas pesquisas de jornal em que ficamos nos perguntando

Enfim, convidamos você a pensar conosco sobre essas imbricadas relações. Mas não guarde suas conclusões a sete chaves. Escreva para nós no mediacao@colegiomedianeira.g12.br. Diga o que pensa sobre esse assunto. Estamos ansiosos por publicar sua carta. Além da relação entre humanidade e tecnologia, falamos ainda de literatura, de autonomia escolar, música, cinema, defesa da vida, consciência planetária. Dois parágrafos mais do que especiais: antes de nascer a revista, em 2004, ficamos nos debatendo a respeito da escolha de um nome significativo para ela. Conversa vai, conversa vem, nenhum nome nos satisfazia. Estávamos a ponto de escolher o "menos pior". Eis que surge José Lorenzatto, que trabalhou no Colégio Medianeira de 1968 até 2007, com uma listinha de uns três nomes datilografados num pedacinho de papel. Entre eles, havia Mediação. Um estalo na cabeça de todos, que acharam o nome simples, forte, significativo para o que queríamos (daqueles nomes que a gente acha fácil de imaginar só depois que alguém pensa nele e nos diz). Em janeiro de 2007, o Lorenzatto nos deixou sozinhos nesse "mundo mundo vasto mundo". Mas seu jeito sereno e sábio ficou, seja no nome da revista, seja no que tentamos fazer de bom pela vida afora. Ao Zé, nossa homenagem. Nilton Cezar Tridapalli

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TECNOLOGIA E

HUMANIDADE,

quando uma evita a manifestação da outra

Que sonho é esse em que as máquinas farão o trabalho do homem e o homem terá tempo disponível para criar, para usufruir de mais tempo livre na vida? Enfim, a tecnologia, como a concebemos, de fato realiza o trabalho de muitos homens. No entanto, o que vemos é uma massa de desempregados ou subempregados. É possível equacionar esse conflito? 5


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Não é preciso ser um leitor assíduo de jornais, nem um telespectador cativo de telejornais para sentir-se informado sobre o quanto a tecnologia está ao nosso redor. Isso acontece pelo simples fato de ela fazer parte de nós, da humanidade, para ser mais geral. A tecnologia anda de mãos dadas com a globalização. Na realidade, ambas não conseguem existir isoladas. Desde as mais complexas reuniões que ocorrem simultaneamente em diferentes partes do mundo até um simples pagamento que pode ser feito sem sair de casa. Tudo evolui concomitantemente, das mais simples até as mais complexas soluções. Um exemplo mais claro dessa relação tecnologia-globalização está na internet. A revolução trazida por esse formidável meio de comunicação está em todas as partes: notícias em tempo real, conversas simultâneas, a possibilidade de conexões que a internet proporciona com toda e qualquer parte do mundo. Olhando de fora, só podemos dizer que a humanidade está mais unida através da internet, a comunicação tomou outro rumo desde o seu aparecimento e esse mundo de informações que se abriu no horizonte só deveria trazer benefícios para a humanidade. A idéia é essa: interatividade, comunicação e muito mais. Mas a situação também deve ser analisada por outro ângulo, com o intuito de fazer um balanço sobre esse instrumento tão fabuloso que é a tecnologia e os problemas que ela pode trazer. Infelizmente, nada que surge de novo para a sociedade traz apenas pontos positivos e isso merece ser observado e discutido.

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Diminuição da necessidade de mão de obra. Junto com os avanços trazidos pela tecnologia vem um progressivo aumento no número de demissões devido à substituição da mão de obra pela tecnologia. Esse é na verdade um problema antigo, que vem desde a revolução industrial, quando máquinas, por mais mais rústicas e menos práticas que fossem, substituíam um elevado número de trabalhadores por apenas um, aquele que a controlaria. Hoje a situação é semelhante, mas com um agravante: além das máquinas já serem substitutas do homem em vários aspectos, a tecnologia atual faz esse trabalho de forma ainda mais acelerada e com uma maior produtividade, sendo cada vez menos necessária a presença de um ser humano para operar equipamentos. E é essa a expectativa da empresa: produzir mais, lucrar mais e assim prosperar. Como resultado, demissões devem acontecer. É importante ressaltar, sem qualquer visão sádica, que máquinas não precisam de salário nem de férias. Um problema colateral resultante dessa mecanização trazida pela tecnologia é a pobreza, o aumento do subemprego e a exigência de uma qualificação maior para o pouco de mão de obra que ficou à disposição, depois de todo esse processo. Um meio de se evitarem tais problemas está em uma palavra: sustentabilidade. Com um planejamento de médio e longo prazo, o governo pode abrir um leque de opções para a sociedade que, sem isso, pode vir a se tornar vítima e não beneficiária da tecnologia. Dentre os vários exemplos que podem ser mencionados para resolver essa "bagagem" de defeitos que a tecnologia traz consigo, está a abertura de novas áreas de trabalho em setores nos quais é imprescindível a presença de mão de obra, como é o caso da construção civil. Além disso, políticas de incentivo para pequenos e médios empresários devem ser feitas, pois são essas empresas que geram muitos empregos e soluções nas mais diversas áreas. Outro assunto que traz muitas questões, em especial nos dias de hoje, é o meio ambiente. Não é necessário muito esforço para perceber o quanto a tecnologia, ou melhor, o desenvolvimento da


tecnologia da forma como acontece traz riscos ao meio ambiente. O mais lamentável é que líderes das principais nações do mundo estejam interessados apenas no lado financeiro que essa tecnologia traz para as suas nações e que, enquanto um lado cresce e se desenvolve, o outro, no caso o meio ambiente, se deteriora a cada dia que passa. Aqui temos mais um exemplo para usar a palavra que agora considero o centro dessas considerações, a sustentabilidade. Os avanços trazidos pela tecnologia demonstram pouca preocupação com a preservação do meio ambiente. Falta para as nações mais "desenvolvidas" (e vale lembrar que, junto com esse status, vem também o de maiores poluidoras do mundo) se organizarem e utilizarem a tecnologia sem afetar o meio ambiente. O final dessa história compromete, e muito, o futuro da nossa humanidade. É mais um exemplo de como a tecnologia, criada em princípio para tornar nossas vidas mais práticas, pode se voltar contra nós, devido ao excesso de ganância e falta de comprometimento para com o nosso planeta. É a Terra voltando-se contra a humanidade, em resposta à agressividade com que a tratamos. Ela responde à altura: aquecimento global (que comprovadamente trará inundações nas mais variadas partes do mundo), efeito estufa, falta de água potável, furacões, tsunamis, entre tantas outras alterações. A nossa única esperança nessa questão é que a própria tecnologia possa ser utilizada, senão para resolver, pelo menos para minimizar os seus próprios efeitos. Muitos outros exemplos podem ser citados para esclarecer melhor o quanto algo considerado fundamental, como a tecnologia, pode acabar nos prejudicando. É de extrema importância uma análise mais profunda quando relacionamos tecnologia e humanidade. As relações entre uma e outra não fogem do contexto, e no momento, nós, como humanidade, não estamos tratando a tecnologia de uma forma correta, pois a vemos apenas como algo prático, sem maiores conseqüências e sem observá-la num contexto mais amplo, o de um desenvolvimento entrelaçado com a sustentabilidade.

João Felipe Gremski, 21 anos, é ex-aluno do Colégio Medianeira e atualmente é estudante do 3º. ano do curso de Biologia da Universidade Federal do Paraná.

TECNOLOGIA, TRABALHO E DESEMPREGO - UM CONFLITO SOCIAL ANTÔNIO VICO MANAS E JAYR FIGUEIREDO DE OLIVEIRA Editora Erica A proposta desta publicação é envolver o leitor nas discussões referentes ao trabalho, ao desemprego e à tecnologia, bem como analisar os impactos das mudanças do mercado de trabalho na carreira profissional. São abordados os conceitos e as evoluções com uma visão filosófica, etimológica, epistemológica e histórica dos termos trabalho, tecnologia, emprego e desemprego; os diversos modelos de processos de mudanças que influenciam o mundo do trabalho; comparações significativas entre o emprego e as inovações tecnológicas no pensamento econômico (desemprego, crescimento econômico e inovações tecnológicas que influenciam de forma direta e indireta no processo do desemprego); e finalmente a globalização tecnológica e a exclusão digital (um dos fortes indicadores de desemprego) no mundo do trabalho.

TRABALHO E TECNOLOGIA DICIONÁRIO CRITICO ANTÔNIO DAVID CATTANI Editora Vozes Este dicionário crítico apresenta referenciais de análise das novas relações entre trabalho e tecnologia.

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NORMALIZADORAS reconfiguradoras

melhoradoras A arte dos

"SUPERPODERES" Por Mábile Borsatto

Que as artes se apropriam devorando novas possibilidades de linguagem para sua expressão todos já sabemos. No entanto, muitas vezes o uso irrefletido de aparatos tecnológicos pode limitar mais do que expandir potencialidades de comunicação. De que maneira podemos pensar na tecnologia (palavra cheia de sentidos) como uma boa interlocutora da dança? 8


Então o que você quer? Mudar a humanidade? Não, alguma coisa mais modesta: que a humanidade se transforme, como ela já fez duas ou três vezes. (Cornélius Castoriadis)

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Em tempos de uniformização do pensamento, individualismo, solidão na multidão, stress e violências bestiais, a tecnologia entra na vida das pessoas alimentando e desorientando corações. A relação entre a humanidade e os grandes inventos que ela mesma criou é muito instigante. Ou é uma antítese ou um paradoxo. A tecnologia está sempre evoluindo, já a espécie... Será que realmente sentimos saudade dos bons e velhos tempos em que fomos apresentados ao tal Cabral? Tudo era tão simples naquela época. A intenção aqui é levantar a discussão de como a tecnologia influencia no corpo cênico, no corpo do artista que dança e expressa conhecimento através de sua manifestação artística. Essa discussão é apenas o ponto de partida de alguns dilemas apresentados pela tecnologia contemporânea. Os desdobramentos desse tema servem como reflexão interessante para os artistas da dança, que têm o corpo como seu principal objeto artístico. O diálogo da dança com a tecnologia é significativo e é tendência mais que confirmada nesse hibridismo da contemporaneidade. Nesse ato de dançar envolvendo tecnologias, "essa tal" tecnologia estabelece relações que podem tanto limitar quanto multiplicar as relações que a dança pretende estabelecer.

Um tema atual e questionador, pois: será que a dança e seu objeto de estudo, o corpo, estão precisando de suportes e extensões para comunicar suas idéias? Acredito então na dança que é construída na rede de relações capaz de dialogar com as novas tendências tecnológicas que possibilitam enxergar as modificações desestabilizadoras e positivas que isso traz para a arte. Isso revela uma tecnologia que se desdobra na arte e uma arte alimentada de tecnologia, o que enriquece o movimento comunicativo entre os participantes (autor e espectador) e gera a ressignificação de idéias e conceitos pré-estabelecidos. Há complexidade no ato de dançar e ela busca a não separação de conceitos e ações. A dança é pesquisa do corpo. Não devemos ter pudor de usar tudo aquilo que seja necessário para que ele consiga manifestar idéias com mais propriedade. E essa investida na conversa entre arte e tecnologia requer um tratamento estético vinculado aos créditos que damos para o que pretendemos comunicar. Marshal McLuhan já dizia que "a perspectiva imediata para o homem ocidental, letrado e fragmentado, ao defrontar-se com a implosão elétrica dentro de sua própria cultura, é a de transformar-se rápido e seguramente numa criatura profundamente estruturada e complexa, emocionalmente consciente de sua total interdependência em relação ao resto da sociedade". As tecnologias fazem parte da construção da humanidade, mas faz-se necessário que o acolhimento desse bombardeio robótico seja crítico, capaz de compreender sem entusiasmos exagerados os lugares e posições de cada um. Na dança, acredito que essa conversa com outros tipos de comunicação entra como possibilidade de ampliar a rede de diálogos com o mundo enquanto dançamos. Capacidade de relação, trans-

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formação do fazer artístico, consciência sincronizada com corpo-máquina, e então autonomia para exibir todo conhecimento produzido entre dança e tecnologia. Isso tem a ver com o trânsito entre arte e ciência, e com os interesses de aproximação que sempre existiram de ambas as partes; porém, diante da urgência atual, esse diálogo apresenta-se escancarado a nossos olhos. Assim, a ciência parece validar o uso tecnológico nas produções em arte. Tal uso tecnológico entra em ação como normalizadora-reconfiguradora-melhoradora das relações entre indivíduo-tarefa-ambiente e público-obra-espectador. É importante ressaltar que as melhorias e os avanços não garantem sucesso e felicidade artística, por isso é tão necessário que o uso de tais tecnologias seja tão pesquisado quanto o próprio estudo de movimento realizado na dança. Dança/público/RELAÇÃO/ambiente tecnológico. Tudo isso funcionará como um sistema que se reorganiza constantemente para adaptar e transformar as informações. Vivemos em constante

transformação, atingidos e atingindo tudo e todos que nos cercam. Sujeitos-objetos em sua coexistência mudam a todo instante, capturam tendências, registram feitos em tempo real. É Dança como processo contínuo que ocorre nos trânsitos entre o aperfeiçoamento e a destruição por artefatos tecnológicos colocados em prática. Essa dança que se propõe a desenvolver tais argumentos acredita que é nessa relação entre o fora e seu constante movimento com o dentro que se criam diálogos capazes de entender esse sistema de signos que a dança é, sua capacidade de instigar a compreensão de uma idéia. Pensando exatamente sobre isso, Christine Greiner avisa que "falar em co-evolução significa dizer que não é apenas o ambiente que constrói o corpo, tampouco o corpo é que constrói o ambiente. Ambos são ativos o tempo todo. A informação internalizada no corpo não chega imune". A idéia de humanidade não se contrapõe à de natureza tecnológica e não deve ser entendida aqui como abandonada. A integração entre humanidade e tecnologia, entre ser e fazer, entre dança e ambiente está entrelaçada, já que o indivíduo funciona de maneira sistêmica, como explica Jorge de Albuquerque Vieira em seu livro Teoria do Conhecimento e Arte: formas de conhecimento - arte e ciência uma visão a partir da complexidade. Desta forma, a dança se apresenta e se conserva também de maneira complexa, no jogo de sua corporeidade e na dinâmica relacional que se realiza em seu contexto multidimensional, com diferentes potencialidades e possibilidades. Uma ação transformadora do implícito no explícito, resultante dos processos reflexivos gerados de auto-organização. A arte híbrida dos humanos nos permite perceber que não existe limiar que possa classificar a tecnologia utilizada na própria arte como boa ou ruim. Entretanto, relações humanas e tecnológicas confusas, sem questionamentos, merecem atenção frente ao uso exagerado e pouco reflexivo da tecnologia no universo artístico. Argumentos que se sustentam na noção de progresso são vazios de investigação e permitem um julgamento que apenas favorece um presentis-

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mo/futurismo, sem levar em conta que o passado é também fundamental para o desenvolvimento de uma pesquisa. "A arte, e, no caso, a Dança, não é meramente uma expressão artística no sentido trivializado que essa expressão costuma receber, não é um devaneio de pessoas sem 'praticidade' ou ainda um produto supérfluo diante de concepções mais 'objetivas'. É uma manifestação de complexidade e de evolução, é um reflexo de valores mais elevados, que a humanidade tem tentado vivenciar. É assim a tentativa de efetivação de formas elevadas de sobrevivência, formas essas, sabemos, bastante inacessíveis à maioria dos seres humanos, mas potenciais em todos eles." É o que nos diz novamente Jorge Albuquerque Vieira. Acoplamento estrutural denomina a relação de sistemas que precisam da presença de outros sistemas para seu funcionamento. Espaços íntimos e abertos, espaços públicos e privados. Na relação humanidade e tecnologia, percebemos e construímos um corpo-ambiente irremediavelmente ligado em interação. Estar consciente sobre nossa existência e sobre as técnicas e tecnologias que cercam o mundo não é somente um sinal de evolução como espécie, mas sim um alerta sobre nossa responsabilidade como seres conscientes.

O CORPO: PISTAS PARA ESTUDOS INDISCIPLINARES CHRISTINE GREINER Editora Annablume Este livro é voltado para auxiliar aqueles que iniciam seus estudos sobre o corpo. Conciso e objetivo, apresenta uma completa e atualizada série de referências sobre o assunto, fugindo da obviedade irritante da qual padece boa parte das introduções temáticas. Christine Greiner, professora de pós-graduação da PUC/SP, mapeia desde as pioneiras obras com enfoque filosófico e histórico até as tendências recentes dos chamados estudos culturais (cross-cultural studies). Também apresenta os debates voltados à estética e à política do corpo, às experiências artísticas e questões ligadas à saúde (cirurgia plástica, próteses e distúrbios da alimentação), entre outros tópicos discutidos em disciplinas específicas como antropologia e sociologia. Enfim, traz um panorama que certamente instigará o leitor a prosseguir em seus estudos sobre o corpo, tema tão caro às diversas culturas da humanidade.

Seja como for, minha sugestão é: Use com responsabilidade.

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O HOMEM-MÁQUINA: A CIÊNCIA MANIPULA O CORPO ADAUTO NOVAES (ORGANIZADOR) Companhia das Letras

Mábile Borsatto é a mais nova professora de Dança do Medianeira. Formada em Bacharelado e Licenciatura em Dança pela FAP (Faculdade de Artes do Paraná), é também pesquisadora em Dança Contemporânea e criadora-intérprete do Grupo de Dança da FAP.

Filósofos, cientistas, artistas e estudiosos - brasileiros e estrangeiros - discutem as relações entre ciência e corpo, para refletir sobre os limites da experimentação científica e os riscos do predomínio da tecnologia na existência humana. Reunião de ensaios apresentados no ciclo de conferências organizado por Adauto Novaes em 2001.

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EDUCAÇÃO,

autoconhecimento

e tecnologia Por Lucas Feron

Em tempos de BBBs, privacidade ameaçada e valores centrados no consumo, o indivíduo está mais distante de si mesmo, esquecendo-se de como algumas reservas de solidão e silêncio podem contribuir para atitudes reflexivas capazes de erigir um ser humano antes do que um consumidor. 12


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A escola nas últimas décadas tem recebido uma carga muito grande, quase exclusiva, de responsabilidade na formação de jovens, tanto em relação à formação humana quanto acadêmica. Essa formação categórica de jovens requer um preparo muito criterioso por parte do corpo docente, que procura orientar os estudantes na vida como seres humanos e profissionais. Cada vez mais a escola ganha espaço e ocupa o dia-adia dos estudantes primários e secundários, isso porque as ruas já não oferecem a segurança para que se usufrua delas, como em algumas décadas atrás. Portanto, a escola carrega nas costas uma grande parte de responsabilidade na formação de seres humanos. Em muitos ambientes de caráter escolar e familiar, uma das idéias que persevera há tempos é a de que a principal meta educacional a ser alcançada por um ser humano é a de projetar o indivíduo para que o mesmo "caminhe com suas próprias pernas". Porém, este "caminhar" exige um esforço muito grande por parte do sujeito que busca tal ideário. Esse ideal do "caminhar com as próprias pernas" é, para muitos pais e educadores, reduzido, por muitas vezes, a tão somente capacitar o "discípulo" para que este tenha condições, em primeiro lugar, de agregar valores materiais, reforçando, temporariamente, a idéia de que tais valores trazem a felicidade. Não raro, observa-se que a conseqüência do efeito desse reforço causa, por vezes, uma crise existencial aguda, formando indivíduos com pouca capacidade para se manter, por exemplo, em silêncio e/ou sozinhos por um certo período de tempo, tendo em vista que tais indivíduos sentem dificuldade de refletir a sós, condição essa que possibilita uma reflexão interna muito grande, indispensável para que possamos crescer como seres humanos. Contrariamente a isso, a condição de buscar constantemente ocupações para o nosso tempo pode ser encarada de forma a escapar da responsabilidade que nos cerca de crescermos, evoluirmos como seres humanos, tendo em vista que diante de tantas ocupações, pouco nos ocupamos re-

fletindo sobre a nossa própria subjetividade. O fato de um indivíduo se encontrar em silêncio e sozinho por certos momentos do dia-a-dia é muitas vezes visto com maus olhos, visto como algo negativo ao ser humano. No entanto, Thomas Edison lembra que "para ter pensamentos lúcidos, um homem deve conseguir períodos regulares de solidão quando possa concentrarse e entregar-se sem perturbações à sua imaginação". "A solidão é tão necessária para a imaginação quanto a sociedade é sadia para o caráter", corrobora James Russell Lowell. "A solidão é o ninho do pensamento", diz ainda um provérbio curdo. "As grandes almas vivem hoje na solidão. E é na solidão que Deus espera os homens" (Humberto de Campos). Enfim, exemplos de pensamentos que valorizam momentos de solidão não faltam. Quando perguntamos às pessoas sobre o que elas gostariam de se tornar, ouvem-se habitualmente respostas como: "Ah eu queria ter uma boa casa, ter um bom casamento, ter um emprego bom e um carro legal que já está de bom tamanho". É fácil notar como todos estes itens são encontrados no mundo exterior ao ser humano e também, por que não dizer, que se trata também de um adiamento da felicidade, algo como apenas tornar-se feliz quando conseguir realizar a conquista desses ideais. Observando essa habitual resposta obtida para a pergunta mencionada anteriormente, percebo que a maioria das pessoas possui medo ou não aprendeu a olhar para dentro de si e buscar a satisfação de suas reais necessidades. Falo das necessidades interiores do ser humano, das mais profundas, aquelas que ecoam no fundo da alma e não as que pulsam do lado de fora, no seu exterior. Percebendo isso é que me pergunto por que é tão difícil ouvir diferentes respostas à pergunta que exemplifiquei, algo como: "Gostaria de ser um bom professor e também de entender mais as pessoas". Ou ainda: "Gostaria de ser advogado. Quero trabalhar com as leis de uma forma que pudesse beneficiar realmente as pessoas". Toda essa idéia de educar para o "ter" gera uma frustração interior que reflete na plenitude

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da vida de um ser humano. Quantos jovens reclamam de suas vidas? Jovens que têm a possibilidade de receber uma boa educação formal, mas, de espírito, fazem parte de uma classe muito carente, em que o respeito ao próximo, o amor pela natureza e a compreensão para com as pessoas nem fazem parte de seu cotidiano. A idéia que prevalece na atitude destes carentes de vida interior é muitas vezes apenas a de "tirar vantagem" das situações do dia-a-dia para "se dar bem". Por certo, isso não acontece porque estes jovens nasceram assim, mas sim porque nunca cultivaram seu mundo interior. Lembrando uma máxima que nos diz o seguinte: "para quem não sabe para onde ir qualquer caminho serve", percebemos a grande quantidade de universitários que vivem nesse estado. Percebo isso vendo a quantidade de "matadores" de aula que preferem estar nos bares em frente às faculdades a estar produzindo dentro da sala de aula do curso que eles mesmos escolheram. Por qual motivo matariam tantas aulas? Por muitos. Mas certamente quem trabalha seu mundo interior costuma ser mais assertivo em suas escolhas de vida e sabe por que faz tais escolhas, tem em mente algo mais concreto com relação à direção que busca em sua existência. Mas que direção é essa? Huberto Rohden, filósofo e educador brasileiro, que trabalha em seus escritos sobre ciência, religião e filosofia, escreve muito sobre valor do autoconhecimento na formação do ser humano. Em seu livro Educação do Homem integral, faz a seguinte colocação: Em quase todos os países do mundo, sem excetuar o nosso Brasil, o mundo dos valores é quase totalmente negligenciado; sofre de uma atrofia calamitosa, enquanto o mundo dos fatos está unilateralmente hipertrofiado. E é esse pavoroso desequilíbrio entre atrofiamento da educação e hipertrofia da instrução que provocou a crise da frustração existencial, que agoniza a nossa humanidade. (Huberto Rohden).

É inegável o poder da tecnologia para fomentar principalmente o mundo dos fatos, mundo este que corresponde, na interpretação de grandes pensadores como Albert Einstein e Huberto Rodhen, ao que é exterior ao ser humano. Entretanto, o uso desenfreado de tais tec-

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nologias colabora para o desequilíbrio humano, gerando muitas vezes seres automatizados, incapazes de sonhar, refletir sobre a condição humana, sobre a vida, pensar na própria vida, "viajar na maionese" e, penso, quem não sonha, não viaja, pouco se interessa pela vida. Para estes não sonhadores, parece mais valer ocupar uma posição social de prestígio, zelando por sua própria imagem e mais vale se contentar com tudo e aceitar a vida, poupando-a. Mesmo que para isso seja necessário viver uma realidade de que não se goste muito, porque sempre que começo a sonhar um pouco, o mundo dos fatos chega perto de meus ouvidos, e diz em "tom de amizade" para que eu pare de sonhar e "caia na real", dizendo que é "melhor sempre manter os pés no chão", cuidar com meus sonhos, pois corro o risco de falhar no mundo dos fatos por ter me "libertado" do mundo material e partido em busca de um sentido de vida. Mas e o mundo dos valores? Este sim pode realizar uma pessoa internamente. O mundo dos fatos vive em alternância, desconhece uma conduta de vida constante. O mundo dos fatos costuma trazer a alegria nos finais de semana, nos feriados, no carnaval, quando podemos usufruir o que temos em casa e na conta bancária. Quando estamos fora dessas possibilidades, a alegria não é garantida. Já o mundo dos valores propõe que não sejamos escravos do mundo material, que busquemos ser felizes e constantes em nosso dia-a-dia, para que possamos usufruir de nós mesmos, da natureza, das pessoas e do conhecimento. Nesse sentido, é perceptível que existe uma boa diferença entre a alegria e a felicidade, sendo que a primeira pode estar dentro da segunda. Entretanto, se invertermos a situação e nos perguntarmos se dentro da alegria encontramos a felicidade, talvez surpreendamo-nos com nossa resposta interior. A felicidade é o resultado de um constante cultivo de nosso interior. Ser feliz é conhecer um pouco de si mesmo. Entrar em contato com nosso interior e aprender a nos valorizar por nossas qualidades e aceitar que temos defeitos também. A partir do momento em que estamos ci-


entes disso, podemos escolher entre tentar melhorar ou cruzar os braços. Quem vive apenas no mundo dos fatos geralmente aceita seus defeitos com passividade e pouco se importa se tais atingem o seu próprio dia-a-dia, ou, pior do que isso, se também atingem o próximo. O trabalho do ensino e a prática das artes (música, dança, plásticas, cinema) são muito importantes para o desenvolvimento e a percepção do caráter humano. A arte reativa a vontade de sonhar. A exemplo disso, muitas pessoas, quando ouvem a música de J.S. Bach relatam a sensação de estar no céu ou de estar voando. A arte fornece a chance de sonhar, de voar, de questionar nossos próprios limites. A arte não mente, coloca o ser humano cara a cara com a vida, trabalhando como se fosse um espelho da alma humana, levando o homem a contatos muito mais próximos com seus sentimentos, levando-o a uma autocompreensão maior e possibilitando o contato com o infinito, aquilo que não pode ser tocado, mas pode ser sentido. No entanto, vale lembrar que para sentir isso é preciso também muito trabalho e muita busca. Quando estamos alegres é fácil explicar o motivo da alegria. Agora, quando a situação envolve a tristeza, a resposta fica mais difícil de ser encontrada. Parece que ela está mais escondida, lá no fundo, e, muitas vezes, não sabemos como chegar até lá porque só sabemos do superficial. Consigo curar uma fome de estômago com uma boa refeição, mas a fome de espírito, não sei como fazer, parece que nem sei do que ela precisa, isso porque não aprendemos a nos sentir e, também, a nos entender através de mecanismos tecnológicos. A educação de um ser humano não pode ter como único pilar a instrução e a tecnologia. Ela precisa, também, de autocompreensão, de coragem, de caráter, de ética, de sonhos, enfim, educação é uma via de mão dupla em que os mestres vêm na contramão compartilhando o que podem, mas a estrada de cada um é única, e para construí-la de forma sólida e verdadeira precisamos de um cultivo interior constante em nosso dia-a-dia.

Lucas de Vargas Feron é ex-aluno do Colégio Medianeira e cursa o 5º período de Educação Musical na UFPR. É professor da Fundação Solidariedade, patrocinada pela Volvo, e das escolas Trilhas e Talento Musical. Também atua como instrumentista, tendo conquistado o 3º lugar no concurso latino americano Rosa Mística de interpretação violonística em 2006 e recebido em 2007 o prêmio de menção honrosa no mesmo. Integrante do quarteto de violões de artes da UFPR.

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A INVENÇÃO DA SOLIDÃO PAUL AUSTER Editora Companhia das Letras Neste livro de memórias, o autor americano Paul Auster alia seus notáveis talentos de poeta, tradutor, ensaísta e ficcionista. As recordações da infância e dos primeiros anos como escritor se entremeiam com uma profunda reflexão sobre a paternidade, o acaso e a literatura. Paul Auster parte, primeiro, de sua experiência como filho e, depois, como pai, para indagar a fundo a natureza do legado que, sem escolher, herdamos e transmitimos, de geração a geração. Construído na forma de um mosaico poético de fragmentos, o livro alterna recordações pessoais com argutos comentários sobre literatura, pintura e filosofia.

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Por Geralda Colen

"Sem dúvida, o nosso tempo prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser." Ludwig Feuerbach (1804-1872) (in: "Prefácio da segunda edição de A essência do cristianismo") 16


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O mandamento "Sorria, você está sendo filmado" nos leva a refletir sobre a onipresença dos meios de registro e de comunicação de imagens na cultura contemporânea e as implicações de seu uso nas relações entre as pessoas. Sua aparente simplicidade revela, sob um olhar mais inquiridor, o quanto é emblema de nossa época: a obsessão de tudo registrar, de tudo ver, de sempre ser visto do melhor ângulo, no caso, sorrindo. Nas últimas décadas, os avanços tecnocientíficos ampliaram significativamente as possibilidades de registro e processamento de informações (som, imagem, escrita) e de conexão entre diferentes meios e suportes técnicos (computador, televisão, rádio, telefones, câmeras). A expansão desse ramo da economia evidencia-se no crescente acesso a esses bens e serviços para uma expressiva massa de consumidores, dos que podem comprá-los e dos que podem desejá-los, que passam a identificá-los como sinais de "ser moderno". Não é incomum ver crianças solicitando aos pais a compra de um novo celular porque traz junto filmadora e máquina fotográfica. Ou ficar em suspenso em conversas e encontros, entrecortados por paradas para fotografar, ao som de: "de novo, não ficou legal", "ah! Só mais uma... essa vai ficar boa", "vou apagar essa foto, ficou horrível". Sinal dos tempos... diria meu avô, para quem lembrar dos tempos idos e vividos se dava na cadência de uma conversa (de poucas palavras e muitos silêncios) com os seus contemporâneos, quando ainda não eram classificáveis como pessoas da "melhor idade". Naquele tempo também não eram cobrados de atividades físicas que os fizessem parecer personagens de propagandas de banco, de cartões de crédito ou de alimentos saudáveis, sempre vestidos com roupas esportivas e sorridentes.

Por que a vida é AGORA (Propaganda de cartão de crédito)

Entre a saudade e o temor do saudosismo, afinal aqueles tempos também eram duros e confusos, vivenciamos nas últimas décadas essa inflação do olhar (no sentido da vigilância) e da visibilidade (no sentido da busca pelo olhar do outro). Uma possibilidade é pensar que as pessoas mudaram e passaram a demandar novos "brinquedos" para registrar suas memórias, marcadas agora pelo cuidado com a sua imagem, para si mesmo e para o olhar do outro. Não seria incompreensível, portanto, a crescente escalada de vendas de obras de marketing pessoal, frisando como um mantra a importância da auto-imagem, da auto-ajuda, da auto-estima. Muito menos seria exagerada, conforme Malu Fontes, a analogia que apresenta o homem contemporâneo como Narciso que substituiu o lago pelos espelhos gigantescos das academias e dos shoppings centers. Outra possibilidade é pensar a velocidade com que o acesso a esses equipamentos aconteceu, gerando uma identificação de seu uso com o parecer ser moderno que se desdobra em novas formas de comunicação, de sociabilidade e, principalmente, de forte presença da imagem na relação dos indivíduos com o mundo, com o outro e consigo. Essa presença se materializa (palavra perigosa) na fotografia digital, nos dispositivos de vigilância, nas webcams, nos fotologs, nos blogs. Mais que presença da imagem, essas formas de se fazer ver e de ser visto carregam novos sentidos para a intimidade e para o que se entendia por "público" e "privado". As técnicas e seus artefatos não podem ser entendidos se deslocados de seu tempo. E, para ousarmos algumas inferências sobre as mudanças que vivemos, faz-se inadiável avaliar o quanto as novas tecnologias alteram nossas concepções de tempo e de espaço. É notável a aceleração do tempo da comunicação, da criação e da descartabilidade de mercadorias, idéias e memórias sobre as coisas, os lugares e as experiências. Vivemos a impressão e a pressão da simultaneidade que embaralha para nós (os quase da "melhor idade") as fronteiras entre o real e o virtual, presos que estávamos a concepções bem

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fixadas de passado, presente e futuro, organizadoras de nossas experiências, de nossas memórias e de nossas utopias. Espaços indiferenciados (do shopping center, das infovias, das salas de bate-papo), tempos transformados em instantes, dados transformados em bits que viram informação (cores, gráficos, textos, músicas, fotografias, filmes) pela eletricidade, tudo isso contribui para a perda do sentido de continuidade, de duração, e para a sensação de efemeridade, de tudo aqui, agora, muito e, já foi.

Na época da Internet, a felicidade está por um fio. Também as relações entre as gerações se reconfiguram na voragem desse nosso tempo, sendo notável a perda de peso da experiência dos mais velhos (experiência mesmo, no sentido de memória do vivido e do sabido) e a incerteza de se representar o futuro como projeto. No lazer midiatizado, predomina a tendência à simplificação e aceitação acrítica e não reflexiva de cada mensagem, o que explica a formação de repertórios culturais para públicos cada vez mais heterogêneos, porém homogeneizados pela valorização da superficialidade e identificados com o ordinário da vida das celebridades emergentes.

Todavia, porque era uma fotografia, eu não podia negar que eu tinha estado lá. Roland Barthes

O mais sintomático desse nosso tempo, porém, é a privatização da existência, descolada dos coletivos que geravam pertença e sedimentavam memórias coletivas - vizinhança, sindicato, partido, emprego da vida toda, associações. Com obsessiva responsabilidade por si mesmos e vivendo formas diferentes de solidão e de desenraizamento, muitos indivíduos passam a encenar a sua própria vida: tudo re-

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gistrar, filmar, fazer ver, enfim, tornar pública a vida privada. Nesse sentido, Hannah Arendt afirmava que a ampliação da esfera privada não a transforma em pública, pelo contrário, significa que a esfera pública refluiu. É como se afirmasse no imaginário coletivo a idéia de que, se não podemos mudar o mundo nem a história, podemos pelo menos, mudar nosso corpo, nossa imagem e a visão que os outros têm dele. Cuidando para evitar as generalizações típicas de uma visão apocalíptica sobre a cultura contemporânea, podemos falar da constituição de uma memória-reality show que nos comprime a descartar e banalizar tudo, já que sempre precisamos acumular o evento mais recente. Assim, a capacidade de memória das máquinas (computadores e câmeras) é recurso técnico que ora instiga o desejo de tudo registrar, ora realiza o desejo de se fazer ver dessa pessoa, cuja "persona" é o que ela faz ver, seja selecionando as melhores imagens, seja montando um retrato de si pelos gostos reais ou imaginários que agradariam a um suposto interlocutor, ou, no pior dos casos, corrigindo esse retrato com as técnicas de computação. O uso dos weblogs e webcans e das câmeras digitais inauguram a possibilidade de cada um ser sua própria mídia e criar seu próprio público.

ICQ - sigla aproximada de "I seek you" Cada vez mais se evidencia a substituição do espetáculo das celebridades (que ocupava bastante tempo dos mortais que nunca seriam famosos) pela espetacularização da realidade ordinária, de todo mundo, de todo dia. Em tempos não tão distantes, ao escolher um fato para fotografar conferia-se a esse fato a condição de acontecimento, e sobre ele se construía um enredo, uma narrativa, um suporte material de memória. Pensando no nosso tempo, se tudo deve ser registrado, vale então dizer que se todo fato é acontecimento, nenhum o é efetivamente. Constitui-se um eterno presente, um presente amorfo. Percebe-se, portanto, uma recusa de deixar


passar o tempo e fruir a experiência da lembrança, ilustrada no pensamento de Susan Sontag quando afirma que: "Tirar uma foto é participar da mortalidade, da vulnerabilidade e da mutabilidade de outra pessoa (ou coisa). Justamente por cortar uma fatia desse momento e congelá-la, toda foto testemunha a dissolução implacável do tempo" (Susan Sontag).

Eu tenho pressa e tanta coisa me interessa, mas nada tanto assim. (Kid Abelha)

Entre a urgência da vida e o desejo de eternizar o presente, o registro dos acontecimentos nos coloca diante da certeza de que memória e esquecimento são constituintes de nossas experiências. Eco nos alertava que recordar é selecionar. Nesse sentido, nossa sociedade, em seu afã de expandir a memória das máquinas, pode não se dar conta do quanto as experiências e memórias de pessoas, grupos, cidades, nações e etnias vem se desagregando. Nunca fomos tão capazes de registrar as experiências e os feitos humanos, e nunca foi tão veloz o apagamento de línguas, costumes e memórias. A quantidade de museus criados nas últimas décadas é índice dessa estetização e mercantilização das imagens do passado.

nossas ações com os jovens com quem convivemos e trabalhamos. Nossa vida é tecida em uma trama tão densa que mesmo milhares de instantâneos não poderiam retratar, porque subjacente ao que aparece existe uma memória entrelaçada com a de um lugar, uma família, um país, uma história. É nessa fonte profunda que se enraízam os vários planos que constituem nossa identidade. Foram as vivências e experiências dos que vieram antes de nós que nos inseriram no mundo dos humanos. Não podemos ter mudado tanto que os artefatos de memória e de comunicação falem por si mesmos e tenhamos quase nada a dizer para os que vieram depois de nós.

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Você pode ler o texto "Uma leitura do culto contemporâneo ao corpo", de Malu Fontes, em w w w. c o n t e m p o r a n e a . p o s c o m . u f b a . b r / v4n1_pdf_jun06/MFontes-leitura-v4n1.pdf

Geralda Colen é formada em História pela UFMG. É supervisora pedagógica da 5ª. série ao Ensino Médio e professora de História no Colégio Medianeira.

O mesmo alerta vale para pensarmos o sentido de

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VANILLA SKY DIREÇÃO DE CAMERON CROWE David Aames (Tom Cruise) é um playboy que tem sua vida modificada após sua amante, enciumada, atirar-se com o carro de um viaduto com ambos dentro. Ele sobrevive ao 'acidente', mas fica com o rosto totalmente desfigurado - é quando realidade e fantasia começam a perturbar toda sua existência. Recebeu uma indicação ao Oscar, na categoria de Melhor Canção Original (Vanilla Sky).

BLADE RUNNER - O CAÇADOR DE ANDRÓIDES DIREÇÃO DE RIDLEY SCOTT Deckard (Harrison Ford) é um Blade Runner, um policial que caça e extermina replicantes, humanos criados artificialmente. Seu desejo é sair da corporação, mas tem que adiar sua decisão quando passa a procurar quatro novos da raça, que Deckard deve procurar em um ambiente sujo e hostil. A dúvida é: quem é realmente humano e quem pode ser replicante num lugar como este?

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BRILHO ETERNO DE UMA MENTE SEM LEMBRANÇAS DIREÇÃO DE MICHEL GONDRY Jim Carrey interpreta Joel, um marido magoado por sua esposa tê-lo deletado (literalmente) de sua memória. Inconformado, resolve retribuir na mesma moeda e procura o Doutor Howard Mierzwiak para passar pela mesma experiência. No decorrer da operação, Joel percebe que, na verdade, ele não quer excluir Clementine de sua vida, e sim manter bem viva em sua memória os momentos em que estiveram felizes. A partir de então, ele enfrenta uma incrível luta dentro de sua própria cabeça para que essas memórias continuem vivas dentro de si, em mais uma loucura sensível de Charlie Kaufman.

Outras indicações de leitura: Leia o conto Funes, o memorioso, de Jorge Luís Borges (disponível em http:// paginas.terra.com.br/arte/ecandido/ mestr108.htm)


AUTONOMIA e EDUCAÇÃO: um caminho para a

humanização Por Kleber Klos

Em vários setores da sociedade, mas sobretudo na educação, um ideal alardeado por todos na formação do aluno é o ideal da autonomia. Nesse artigo, você poderá entender melhor qual o sentido da palavra, assim como pensar sobre caminhos possíveis para que o processo de autonomização seja presença constante na vida de todos.

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Embora a educação para a autonomia seja anunciada como categoria fundamental de diversos movimentos pedagógicos há pelo menos um século, não se pode dizer hoje que a educação para ela tenha se realizado satisfatoriamente. Na verdade, a escola atual não tem sido uma instituição que privilegia e promove de fato a autonomia dos seus principais atores (alunos e professores). Embora correndo o risco da generalização, pode-se afirmar com Paulo Freire que, na maioria das escolas, [...] o professor ensina, os alunos são ensinados; o professor pensa, e alguém pensa pelos estudantes; (...) o professor estabelece uma disciplina, os alunos são disciplinados; (...) o professor escolhe, impõe a sua opção, os alunos submetem-se; (...) o professor confunde a autoridade do conhecimento com a sua própria autoridade profissional, que o opõe à liberdade dos alunos; (...) o professor é o sujeito do processo de formação, enquanto os alunos são simples objetos dele.

O termo "autonomia" deriva dos vocábulos gregos auto (próprio) e nomos (lei ou regra); ou seja, significa ser governado por si mesmo, ter a capacidade de definir as suas próprias regras e limites sem que precisem ser impostos por outro. É contrário a "heteronomia", que significa ser governado por outros. Tampouco se refere à "anomia" em que cada um tem suas próprias regras sem coordenação com outrem. Significa ter responsabilidade com liberdade moral e intelectual. É importante ressaltar que autonomia não é o mesmo que liberdade completa. Segundo Maurício Mogilka, "o termo liberdade significa irrestrição, o estado no qual o agente encontra espaço para agir, pensar e desejar sem contenção ou impedimento, realizando aquilo que lhe é necessário ou aquilo que ele quer". Quem faz o mal age livremente àquela parte dele que não é livre (seus instintos, suas paixões, suas fraquezas, seus interesses, seus medos). Isso diz, por diferença, o que é a auto-

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nomia. É a liberdade para o bem; ser autônomo é obedecer à parte de si que é livre. Segundo o mesmo autor, o termo autonomia está interligado a um poder externo que regula a liberdade e as relações com o mundo natural e social. "Autonomia significa levar em consideração os fatos relevantes para decidir agir da melhor forma para todos." (Constance Kamii). Um agente é autônomo quando suas ações são verdadeiramente suas. Eles (os agentes autônomos) são responsáveis por suas ações. É por isso que a autonomia é o princípio da moral. Autonomia é obedecer ao dever de se governar. Segundo André Comte-Sponville, "a palavra autonomia vale sobretudo como ideal. Não indica um fato mas um horizonte, um processo, um trabalho". A autonomia nunca é dada: ela está por fazer e, sempre, por refazer. Não há autonomia; não há nada mais que um processo, sempre inacabado, de autonomização. Não nascemos livres; tornamo-nos. Lançando nosso olhar para o ambiente escolar e suas reflexões sobre o desenvolvimento da autonomia nas crianças, o anseio é que se tornem capazes de tomar decisões por si mesmas. Por se tratar de algo que se constrói através da interação das pessoas e se estabelece em suas relações, a autonomia suscita incertezas, instabilidade e indeterminação, pois o ser autônomo nunca é completamente previsível. A ação pedagógica para formação da autonomia, segundo Maurício Mogilka, estaria baseada no interesse, na necessidade e na motivação intrínseca da criança. Essa relação aproxima-se de um dos objetivos de uma pedagogia ativa que é o de aproximar o conhecimento e a atividade escolar dos interesses da criança. Logicamente, tais interesses teriam que obrigatoriamente possuir caráter educativo, ou seja, não o que ela deseja e sim o que é bom e importante para o seu desenvolvimento. Nesta ação pedagógica para formação da autonomia, faz-se necessário que os educadores engajados nesta proposta saibam da importância de sua mediação no processo de desenvolvimento da autonomia nos alunos. É preciso ter sensibilidade, respeito à liberdade e consciência dos limites que precisam ser negociados e esta-


belecidos. Limites estes entendidos como restrições, mas também como possibilidade: fronteira e horizonte. A autonomia não existe sem uma relação consciente com os limites. No cotidiano escolar, o professor deverá evitar dois excessos: não ser permissivo; não ser coercivo. Neste ponto, recorro a Paulo Freire para explicitar o que se pretende dizer com esta afirmação: O professor que desrespeita a curiosidade do educando, o seu gosto estético, a sua inquietude, a sua linguagem, mais precisamente, a sua sintaxe e a sua prosódia; o professor que ironiza o aluno, que o minimiza, que manda que 'se ponha em seu lugar', ao mais tênue sinal de sua rebeldia legítima, tanto quanto o professor que se exime do cumprimento de seu dever de propor limites à liberdade do aluno, que se furta ao dever de ensinar, de estar respeitosamente presente à experiência formadora do educando, transgride os princípios fundamentalmente éticos de nossa existência.

É necessário ter clareza quanto aos diferentes aspectos necessários para se perceber o desenvolvimento da autonomia nos alunos. Novamente segundo Mogilka, "a estruturação da autonomia passa por uma etapa na qual é imprescindível o contato com a autoridade, com as necessidades do outro e com os limites que estas necessidades geram. A liberdade pessoal só se realiza quando situada em relação ao contexto e ao outro: isto é a autonomia". É importante ressaltar que autonomia não se atribui a ninguém: cada um tem a própria. As influências sobre a personalidade certamente existem, em todas as pessoas. São elas de índole genética, cultural, decorrente de "doenças", de traumas físicos ou psíquicos. Mas, dentro desta visão de cada pessoa, "de dentro para fora", e não por julgamento de terceiros, cada ser pode sentir-se soberano ao exercer algum tipo de autodeterminação. A educação visa ao desenvolvimento das múltiplas potencialidades humanas, em sua riqueza e diversidade, para o acesso às condições de produção do conhecimento e da cultura. Para tanto, tem que possibilitar, no plano individual, a capacidade de compreensão das relações do homem com a natureza, a cultura e a sociedade.

Isso requer o desenvolvimento da capacidade de observação, identificação, comparação, crítica, generalização e criação face às informações ou fenômenos e experiências imediatas, de modo a permitir a abstração, a construção e a apropriação de conceitos. Trata-se de possibilitar o desenvolvimento da autonomia dos alunos e alunas, e do exercício da liberdade a partir de marcos éticos como a cooperação, a solidariedade e o respeito pelo ser humano, estes sim, fundamentos básicos para a vida em grupo. (Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br)

Kleber Klos é formado em Educação Física pela UFPR. É especialista em Educação Física Escolar pela UGF e mestre em Educação pela PUCPR. É também professor do curso de Pedagogia das Faculdades Santa Cruz. No Colégio Medianeira, trabalha na Orientação de Convivência Escolar da 1ª fase do Ensino Fundamental.

AUTORIDADE E AUTONOMIA NA ESCOLA - ALTERNATIVAS TEÓRICAS E PRÁTICAS JÚLIO GROPPA AQUINO Editora Summus Com as transformações do contexto educacional, o papel dos profissionais da educação tem sido objeto de polêmica e controvérsias. A sala de aula é testemunha da diversidade das práticas educativas. Este livro aborda tópicos como os limites da autonomia e da autoridade docente, o que recuperar e o que abandonar na prática cotidiana etc.

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MUTUM: redescobrindo MIGUILIM Por Maria Célia Martirani

Imagine um autor que escreve um livro. Agora imagine uma diretora de cinema que lê esse livro. E imagine também que ela filtre com lentes de câmeras e de sensibilidade as delicadas nuanças da história lida. O resultado disso pode ser uma aliança cheia de beleza entre os recursos tecnológicos do cinema e a "simplicidade complexa" de uma boa narrativa.

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Os seres que ali habitam compõem essa profundidade cênica, em que a existência tem o peso simples das pedras e a vida depende da criação de animais, do cultivo dos grãos, da terra arada, para que, ao fim de cada dia, apenas seja possível comungar o milagre do pão. Mas, para além da luta difícil pela sobrevivência, na seqüência de um ritualístico e monótono quotidiano, em que tudo se repete e se arrasta, em respeito à exuberância imponente e cíclica daquela natureza, que circunscreve e determina o comportamento de todos, há a figura atípica do menino Thiago (possível símile de Miguilim).

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Em tempos tão atabalhoados como os nossos, em que o uso abusivo de imagens e sons chega ao limite extenuante da hiper-saturação, assistir a um filme como Mutum, de Sandra Kogut, adaptação da obra "Manuelzão e Miguilim", de João Guimarães Rosa, é quase urgente, já que mais que necessário. Trata-se de um sensível e refinado convite à pausa e ao silêncio daquele recorte profundo do sertão de Minas, que, em essência, nos induz à mais difícil das travessias, a um embrenhar-se em nossas próprias matas silenciosas e densas, em nossos sertões de dentro. Talvez, o requinte da fotografia esteja no despojamento e na coragem da câmera que, em movimentos sutis de um estratégico deslize, vai invadindo e desnudando os pormenores daquele imenso e fecundo universo verde, em que tudo emudece estremecidamente, na mesma circunspecção solene e grave das montanhas do lugar. As mínimas sonoridades parecem apenas brotar do cenário, como aguazinhas tímidas, nascentes sussurrantes de algum leito de rio. Surgem ora ou outra, coerentes com as regras desse plano de contenção maior, em que nada grita ou se exacerba exteriormente. Os gritos que existem se sufocam na alma dos personagens, que vivem funda e dolorosamente sua condição de homens sós, perdidos no imenso do sertão, viajantes das mais inextricáveis veredas...

Thiago, além de ser o retrato fidedigno e sensível de muitos meninos daqueles sertões, obrigados a uma perda precoce de inocências, é, sobretudo, o menino considerado "diferente". Seu próprio pai irascível, com quem não consegue se comunicar de modo algum, num achaque de raiva, vocifera: "Esse menino pensa que é diferente de nós!!!" E ainda pede à mãe que diminua os doces, já que, talvez, o excesso de açúcar (além de aumentar a despesa) poderia estar deixando o menino mole, sem a força e a virilidade para os trabalhos árduos da enxada... Mas o que nós, espectadores de Thiago, leitores de Miguilim, teríamos a dizer?! Que, exatamente por isso, por ser "diferente" é que ele é tão capaz de nos comover tanto. Que por causa de seu coraçãozinho açucarado é que palpita uma sensibilidade que o faz ver muito além das aparências das coisas, ver o que ninguém vê e traduzir, por meio da fabulação de histórias, o mundo que o circunda. Interessante perceber o quanto a excepcionalidade da figura desse menino consegue ressignificar o timbre dos silêncios daquele espaço, da gravidade daqueles seres, sem jamais cair no sentimentalismo barato. E consegue essa espécie de subversão por meio de dois elementos, aparentemente, simples: ver e contar. De fato, Thiago-Miguilim é uma criança com sérias dificuldades visuais, apresenta uma miopia comprometedora, que só se revelará ao final da história. E, em decorrência dessa limitação, ele será induzido a outras possíveis descobertas, por meio de uma acurada visão interior que o habilitará, cada vez mais, a ver o que os outros não vêem, pois como sabemos, "os poetas e os cegos podem ver na escuridão"...

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Como conseqüência dessa rica deformidade visual, a partir do momento em que vê com outros olhos, o menino passa a traduzir o mundo, recontando-o à sua maneira. Melhor dizendo, ele reinventa a realidade pela palavra, preenchendo, ludicamente, os vazios de seus conflitos existenciais e de todos com quem convive. E, talvez por isso, em última instância, ele possa ser o símbolo de alguma espécie de salvação. Pois, enquanto tivermos olhos para ver muito além e infinitas histórias para contar, então Sherazade viverá, então nossa humanidade não estará, de todo, perdida... Não é à toa que, num dos momentos mais carregados de dramaticidade da obra, quando o irmão Filipe (na história de J. G. Rosa, Dito) adoece seriamente, por causa do tétano, Thiago passa a lhe contar histórias, como se pudesse, de algum modo, injetar vida na alma do doente que, aos poucos, definha. Esse trecho, mais explícito no livro do que no filme, busca revelar o quanto a narrativa está associada à vida, à renovação; enfim, a alguma possibilidade de salvação. O menino, que está prestes a morrer, pede ao irmão que não pare de lhe contar histórias, as que só ele sabe, porque aquele que as inventa. Pede-lhe, como um moribundo que ainda consegue pedir a extrema unção, em atitude de resistência à morte que está por vir. E é o que acontece. Já em desespero, Thiago-Miguilim conta, inexaurível, as histórias que criara, buscando evitar a morte do companheiro de todas as horas, do melhor amigo, mas não consegue. E, diante de todas as perdas, a morte do irmão é a maior, a mais sentida... Mesmo depois de tudo, as histórias deste pequeno fabulador haverão de prosseguir... Enterrando a caixinha com os objetos e quinquilharias que pertenciam a Filipe, Thiago tenta elaborar a perda, visitando esse pequeno túmulo simbólico, totem capaz de restabelecer algum tipo de vínculo entre os que vivem e os que já se foram. E, como se estivesse diante do irmão, volta a conversar com ele, contandolhe ainda novas histórias, dando continuidade à vida, por meio do fecundo ato de imaginar e de contar.

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Segundo Edward Bond, famoso dramaturgo inglês contemporâneo, perdemos nossa humanidade porque a sociedade que embota nossa capacidade de ver e nos aliena, na base, busca ir "corrompendo nossa imaginação". Ora, uma das principais diferenças de Miguilim, em relação aos demais, em relação a todos nós, é precisamente sua grande capacidade imaginativa. Imaginar para resistir, imaginar para não se corromper, imaginar para continuar vivo e para recontar a vida. Imaginar, enfim, para humanizar. Em meio à parafernália de imagens, que de tão apelativas acabam reduzidas a um inevitável processo de esvaziamento de sentidos; em meio às mais avançadas e poderosas tecnologias que, hoje, estão a nosso alcance, num simples apertar de botão, no limite, o filme Mutum, nesta preciosa releitura da obra de João Guimarães Rosa, parece propor algo simples e essencial. Uma câmera precisa, objetiva e lenta, na valorização dos detalhes riquíssimos de um espaço cênico que quer falar por si, que quer deixar falar o silêncio. Nenhum arroubo espetaculoso, nenhuma acrobacia psicodélica, nem o uso de recursos megalomaníacos 3D de Star-Wars. Poucos atores famosos, misturados a não-atores excepcionais, numa retomada explícita de uma das mais belas expressões da vertente neo-realista do bom cinema italiano, à la De Sica ou Rosselini. Personagens carregados de existência, contidos como diques represados, cujas comportas não precisam se abrir, para deixar ver a tensão que os constitui. Em nenhum momento, o risco fácil de apelos melodramáticos. A comoção brotando desse "mover-se com" a história, sem a lágrima artificiosamente forjada. E a singeleza de uma infância que vai perdendo inocências e amputando sonhos, sem, entretanto, perder o dom da imaginação. O retrato do menino, representante fiel de tantos outros meninos, de tantos outros sertões do tamanho de Mutum, do tamanho de um Grande Sertão, do tamanho do mundo. O menino a bico de pena e toda sua dor: a rejeição do pai, o amor à mãe e ao tio. O menino e Édipo. O menino que sabe que o tio e a mãe se amam. Que sabe e sofre calado... O menino que apanha do pai injustamente. O menino e os irmãos e os outros meninos. O menino e a cachorra Rebeca. O menino e o papagaio. O menino e a pipoca que estoura na panela. O menino e a dor que estoura


por dentro: o inexplicável de tudo e o peso do mundo... O menino e a morte do irmão. O menino e sua metamorfose necessária. O menino e a maravilha de perceber que o Mutum é bonito, quando lhe põem os óculos, instrumento milagroso que, afinal, lhe reabilita a visão (que nunca tivera, mas que aprendera a inventar). O menino que sabe ver além e, mais que tudo, que sabe contar, pois sua humanidade transborda daquela almazinha frágil e desprotegida e vem tocar a nossa que, tantas vezes, já nem sabemos onde está... Um filme brasileiro, selecionado para mostras do Festival de Cannes (em 2007) e de Berlim (recentemente). O "canto e a plumagem" das palavras de João Guimarães Rosa, escritor do microcosmo sertanejo que reverbera, altissonante, na infinitude de todos os universos, nas mãos da cineasta e diretora Sandra Kogut, que teve a ousadia de investir no requinte de uma simplicidade dificílima de executar e alcançar. Voltamos a nós mesmos, nessa viagem de eterno retorno aos nossos sertões. E, sem saber explicar como nem por quê, saímos do ci-

MUTUM DIREÇÃO: SANDRA KOGUT Mutum quer dizer mudo. Mutum é uma ave negra que só canta à noite. E Mutum é também o nome de um lugar isolado no sertão de Minas Gerais, onde vivem Thiago e sua família. Thiago tem dez anos e é um menino diferente dos outros. É através do seu olhar que enxergamos o mundo nebuloso dos adultos, com suas traições, violências e silêncios. Ao lado de Felipe, seu irmão e único amigo, Thiago será confrontado com este mundo, descobrindo-o ao mesmo tempo em que terá de aprender a deixá-lo.

nema com o coração pleno de um certo sentir que conhecemos, mas ao qual fomos nos desabituando. Saímos do cinema de mãos dadas com nossa alma que, inacreditavelmente, ainda parece humana...

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Maria Célia Martirani é escritora, autora do livro de contos Recontando e do inédito Para que as árvores não tombem de pé, a ser editado em breve pela Travessa dos Editores. Pós-graduanda da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, da área de Língua e Literatura Italiana, desenvolve sua pesquisa em torno da obra do escritor italiano contemporâneo Alessandro Baricco, a quem entrevistou, recentemente, em matéria bilíngüe Português-Italiano, na matéria publicada pela Travessa dos Editores, na Revista de Literatura e Arte Etcetera n. 9: Alessandro Baricco: à procura do velho narrador que habita em cada um de nós.

MANUELZÃO E MIGUILIM JOÃO GUIMARÃES ROSA Editora Nova Fronteira As novelas que integram este volume foram publicadas originalmente no livro Corpo de baile, que depois foi dividido em três pelo autor. As duas histórias complementam-se, como um começo e um fim de vida - a constante e dolorosa descoberta do mundo pelo menino Miguilim, de Campo Geral, e o relembrar por vezes também doloroso do vaqueiro sessentão Manuelzão, de Uma estória de amor. A história do menino Miguilim originou o filme Mutum.

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DA

GUERRILHA COLOMBIANA

ao

ciberespaço Por Juliana Cavassin

Inúmeros blogs espocam por todo o universo da internet, tratando dos mais variados temas. Alguns deles abrem a possibilidade para que se debatam questões locais e mundiais sem a passividade dos Meios de Comunicação de Massa tradicionais. Eis um mecanismo que pode ser interessante na democratização das informações.

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A morte do comandante Reyes, o número 2 das FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) no dia 02/03/2008 foi um marco na história da América Latina e um divisor de águas na minha vida em relação às novas tecnologias informacionais, especificamente a denominada Blogsfera. Desde a época em que era estudante de jornalismo, as Teorias Críticas acerca dos mass mídias me interessavam muito, já que na prática os Meios de Comunicação de Massa nunca foram para mim bem aceitos. Algumas dessas teorias são: a Agenda Setting (que diz serem os próprios meios que escolhem a programação e "manipulam" o gosto do público); a espetacularizão da notícia; a unilateralidade das mesmas; o alcance em massa de programação desprovida de qualidade cujo principal objetivo é o lucro que gera toda a emburrecedora máquina da comunicação. Além do mais, sendo o "quarto poder", a imprensa é peça chave na manutenção do status quo social. Falar de status quo no Brasil é, no mínimo, lembrar da falta de dignidade humana pela ausência de estruturas básicas como saúde, educação, moradia, segurança, trabalho... O que, evidentemente, contribui para a formação de mecanismos paralelos de organização social, como o tráfico. É o poder de uma quase guerra civil não declarada, muito menos analisada, ou sequer exposta por parte dos meios de comunicação. Essa é uma realidade não só de Brasil, mas de toda a América Latina. O caso da Colômbia e das FARC, por exemplo, que agora vem à tona na mídia com as notícias da morte de Reyes, sempre se apresentou como uma massiva avalanche de desinformação contaminada e filtrada pelas agências de notícias norteamericanas. Considero sim as FARC uma organização terrorista, sanguinária e impiedosa; porém, tal como o tráfico no Brasil, é reflexo de problemas que a política oficial não resolve, quando não os gera, e que a mídia os omite ou maquia. Parece-me que poucos conhecem o que se passa na Colômbia desde 1948. Foi a busca por mais informações que me levou ao blog do jornalista Ricardo Soares, cuja página inicial, nesse dia, estampava uma foto dele com o protagonista da história: o comandante Reyes.

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A foto é de um arquivo pessoal da época dele como repórter Esso (junho de 2001) num dos raros momentos de trégua entre a guerrilha e o governo colombiano, quando as FARC entregaram unilateralmente mais de 200 presos à Cruz Vermelha e à ONU como forma de tentar reiniciar negociações de paz com o governo de Pastrana, então presidente da Colômbia. O fato aconteceu em Los Pozos, sul daquele país. O atual presidente Uribe sucedeu Pastrana e a guerra se agravou. Retirei essas informações do próprio blog, bem como outras acerca do que se sucede na Colômbia desde o Bogotazo. Mas o mais interessante dessa descoberta toda não são os dados informacionais, mas sim a forma pela qual estão expostos os fatos, que permite a construção do entendimento de maneira como nenhum meio de comunicação até então possibilitava. As fotos, o relato pessoal do jornalista, os dados gerais e, o mais interessante: as polêmicas discussões na blogsfera com opiniões de entendidos e curiosos sobre o assunto. (Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br)

Estou descobrindo no cyberespaço uma possibilidade alternativa e inovadora de comunicação na qual não estamos apenas tratando de informações, mas também de uma forma de se comunicar e construir múltiplos pensamentos acerca do conhecimento num tempo quase presente, quase como uma metalinguagem. Apesar de muitos problemas ainda (como a pirataria, spams, mal uso por internautas...), os blogs inauguram uma nova era de comunicação entre pessoas transformando-as em leitoras participativas. Ao contrário do que mostravam as Teorias Críticas, me parece que por esse meio é possível não mais receber passivamente a opinião do outro, mas também interferir nas informações, estar mais próximo delas e ser atuante, ainda que virtualmente, na história real. Para saber mais: Blog do Jornalista Ricardo Soares: http://todoprosa.blogspot.com/

Juliana Cavassin é jornalista, ex-aluna e atual Professora de Teatro do Colégio Medianeira e da Faculdade de Artes do Paraná. É mestre em Educação pela PUC/PR e escreve no blog http://tudoazulzim.blogspot.com/

NAVEGAR NO CIBERESPAÇO PERFIL COGNITIVO DO LEITOR IMERSIVO LÚCIA SANTAELLA Editora Paulus O cibernauta coloca em ação habilidades de leitura muito distintas daquelas que são empregadas pelo leitor de um texto impresso como o livro. Por outro lado, são habilidades também distintas daquelas empregadas pelo receptor de imagens ou espectador de cinema e televisão. Conectando na tela, por meio de movimentos e comandos de um mouse, os nexos eletrônicos dessas infovias, o leitor vai unindo, de modo a-seqüencial, fragmentos de informação de naturezas diversas, criando e experimentando, na sua interação com o potencial dialógico da hipermídia, um tipo de comunicação multilinear e labiríntica. Por meio de saltos receptivos, esse leitor é livre para estabelecer sozinho a ordem textual ou para se perder na desordem dos fragmentos, pois no lugar de um volume encadernado com páginas em que as frases e/ou imagens se apresentam em uma ordenação sintático-textual previamente prescrita, surge uma ordenação associativa que só pode ser estabelecida no e mediante o ato de leitura. Que habilidades perceptivas e cognitivas estão por trás desse modo remarcavelmente novo de comunicação? Que operações mentais, perceptivas e sensórias guiam os comandos do leitor quando movimento e 'clica' o mouse?

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VOLATILIDADE das relações

Por Thadeu Guaraciaba de Aquino

"Como se pode comprar ou vender o céu, o calor da terra? Tal idéia é estranha. Nós não somos donos da pureza do ar ou do brilho da água." A Carta do Cacique Seattle, em 1855.

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O século XXI começa depois do período mais transformador na história da humanidade, o século XX. Números expressivos confirmam o fato, a população mundial, em que pesem duas grandes guerras, disparou de um bilhão no século XIX para seis bilhões no século passado, dos quais dois terços com dificuldades sérias de obter água potável e alimentos, reflexo de políticas internacionais excludentes e predatórias. Os avanços não foram meramente tecnológicos, estruturas sociais tiveram seus alicerces abalados radicalmente, ideologias puderam ser confrontadas em todos os seus meandros, e o pós-modernismo da sociedade industrial complexa, embasado na capacidade de destruição maciça em Hiroshima, não perdoa nada nem ninguém. Com seu ácido corrosivo na busca da realidade dos acontecimentos, vai destronando pseudolíderes e falsos atalhos, chegando ao extremo de um cinismo irritante, em que até quem escreve estas linhas corre o risco, por qualquer motivo, como um leve descuido ao expor as idéias, de receber processo judicial. Falando sério, a carochinha só encontra abrigo nos dias de hoje naqueles grupos conservadores que, paradoxalmente, fazem oposição obstinada ao pensamento globalizante e massificador das culturas. Mesmo as crianças que conheço, dispondo de algum recurso e certa liberdade, recebem mais informações que uma vida toda vivida por um cidadão importante do império de D.Pedro II, como alguém já redigiu.

A pressão do coletivo, forçada pela sociedade do consumo sem limites, determina que independente de qualquer coisa, devemos ser felizes, obviamente sem se ater à profundidade ou ao real significado do termo. Como um apanágio legalizado desta obrigação, a indústria do psicofármaco oferece uma gama de drogas salvadoras efetivamente, além

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de suplementos para tudo, porém, infelizmente, o que se constata, junto com os lucros, é o aumento generalizado das enfermidades mentais, a violência e os suicídios nos grandes centros urbanos, mesmo com prateleiras nas livrarias abarrotadas de auto-ajuda com ou sem embasamento. Como isto afeta, ainda que minimamente, a produção, as corporações estudam maneiras de compensar ou reduzir as perdas, através de programas que vão de vídeo games, ioga à sessão de massagens e cochilos nos intervalos rigorosamente ajustados dos tempos e movimentos em fábricas e escritórios. Quem exerce, ainda que esporadicamente, sua capacidade de pensar e agir com sensibilidade sabe que a felicidade resulta de como lidamos com as emoções, a frustração, o prazer, a dor, o sacrifício pelo outro e o sofrimento. Mais do que o gene que carregamos, ela espelhará nossa atitude ante os conflitos éticos e morais da existência, as escolhas que fizemos, os percalços, as realizações, se aprendemos a conviver bem com nós mesmos, apoiamos nosso semelhante e respeitamos a natureza com toda sua implicação. Ressalvo que as dimensões de um ser humano e seu potencial per si ultrapassam longe os conceitos acadêmicos que as ciências, filosofias ou teologias venham a ter sobre ele. Agora, o que mais vem se deteriorando neste turbilhão frenético que atravessamos são os relacionamentos, aqueles que são os maiores responsáveis por nos tornar melhores do que somos, não profissionalmente, muito menos o status, mas como pessoas. Sim, porque como expôs Zygmunt Bauman, em O amor líquido, vivemos o século no qual as relações humanas são fluídas. Certo amigo de adolescência, o Prof. Darelli, me corrigiu a este respeito: - Hoje as relações são voláteis! Ele tem toda a razão, o discurso da sociedade vigente exige que você seja competitivo e a toda prova, esqueça a cooperação para o bem comum, deixe para lá as velhas e sinceras amizades. Portanto, você só vai procurar se relacionar com quem represente alguma importância, seja ela financeira, política, religiosa ou de freqüência na mídia, construindo assim a sua "network" (rede de trabalho), tão autêntica como


certos produtos importados oriundos de quintais espúrios, os "fake" (falso), que falharão quando menos se espera. Com toda nossa parafernália da ciência da informação, multimídias e mecatrônica, a verdade é que mal conseguimos conversar com quem mora conosco. Não raro, o "torpedinho" e o correio eletrônico convertem-se em mensageiros predominantes. Tudo bem, a adaptação a novos tempos torna-se imperativa aos que não pretendem ser devorados pelo anacronismo. Mas, uma sociedade que restringe direta ou indiretamente o que temos de mais importante como espécie e civilização - a possibilidade de compartilhamento do afeto genuíno com a própria família e os amigos - urge ser repensada. O amor descartável e a banalização da violência certamente não oferecem o melhor prog-

nóstico de saída do grande mal-estar que vez por outra paira sobre a bolsa de valores em NY, bem como acima de todos nós outros, simples mortais de um planeta maravilhoso. Planeta este prestes a esgotar seus recursos satisfazendo não apenas as necessidades, mas muitos de nossos desejos mais egoístas e inconseqüentes, uma configuração que parece estar nos levando ao mesmo final dos imaginários e longínquos Krell*.

(Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br) Thadeu Guaraciaba de Aquino é Graduado em Psicologia - UTP, Pós-Graduado em Engenharia Ambiental - UTFPR. Atualmente, trabalha na indústria do petróleo, área de Segurança, Meio ambiente e Saúde.

*Refere-se a um filme de ficção científica, Planeta Proibido (EUA,1959), em que o povo de tecnologia avançadíssima denominado Krell chegou à autodestruição completa por ignorar as pulsões inconscientes do Id.

AMOR LÍQUIDO

VIDA LÍQUIDA

ZYGMUNT BAUMAN

ZYGMUNT BAUMAN

Editora Jorge Zahar

Editora Jorge Zahar

A modernidade líquida em que vivemos traz consigo uma misteriosa fragilidade dos laços humanos, um amor líquido. Zygmunt Bauman investiga nesse livro de que forma as relações tornam-se cada vez mais 'flexíveis', gerando níveis de insegurança sempre maiores. A prioridade a relacionamentos em 'redes', as quais podem ser tecidas ou desmanchadas com igual facilidade - e freqüentemente sem que isso envolva nenhum contato além do virtual -, faz com que não saibamos mais manter laços a longo prazo. Mais que uma mera e triste constatação, esse livro é um alerta - não apenas as relações amorosas e os vínculos familiares são afetados, mas também a capacidade de tratar um estranho com humanidade é prejudicada.

Um compêndio dos efeitos que a atual estrutura social e econômica, com base no que é descartável e efêmero, gera na vida, seja no amor, nos relacionamentos profissionais e afetivos, na segurança pessoal e coletiva, no consumo material e espiritual, no conforto humano e no próprio sentido da existência. Em 'Vida líquida', Zygmunt Bauman volta ao tema da fluidez da existência contemporânea desenvolvido também em outras obras de sucesso do autor - como 'Amor líquido' e 'Modernidade líquida'. Segundo o sociólogo, a 'precificação' generalizada da vida social e a destruição criativa própria do capitalismo suscitam uma condição humana na qual predominam o desapego, a versatilidade em meio à incerteza e a vanguarda constante do eterno recomeço.

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O USO DO

PAPEL RECICLADO:

da teoria à prática da

CONSCIÊNCIA PLANETÁRIA

Por Leandro Guimarães e Liliane Grein

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Dê uma olhada nas correspondências que chegam a sua casa. Quantas dessas empresas já utilizam o papel reciclado? Aqui você vai saber o quanto a utilização desse material contribui para a economia das mais diversas fontes de energia. Use em casa, comente no trabalho. É um belo sinal de respeito ao ambiente.


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Em nosso contexto, já é mais do que sabido que devemos estar alertas para as questões ambientais. A Amazônia continua a ser desmatada em índices absurdamente elevados e a responsabilidade humana perante o aquecimento global fica cada vez mais evidente. Empresas relacionadas com o grande capital e nada ecológicas (apenas geradoras de certificados "ecologicamente corretos") como a indústria dos agrotóxicos, automobilística, de Organismos Geneticamente Modificados e os bancos e instituições financeiras tomaram posse das noções de desenvolvimento sustentável e de responsabilidade social, amplamente divulgados por seus departamentos de marketing e relações públicas, financiando e apoiando atividades discutivelmente consideradas como "ambientais". A partir da compreensão de que mais de 80% da população de nosso país é urbana e da contextualização histórico-social de nosso desenvolvimento, observa-se uma crescente degradação das condições de vida, refletindo uma crise ambiental (reflexo gritante também nas áreas rurais, cuja situação é precária sob aspectos tão preocupantes quanto nas porções urbanas). Isto nos remete a uma necessária reflexão sobre os desafios para mudar as formas de pensar e agir em torno da questão ambiental numa perspectiva contemporânea. Pedro Jacobi, em seus cadernos de pesquisa intitulados Educação ambiental, cidadania e sustentabilidade, cita autores que falam sobre a impossibilidade de resolver os crescentes e complexos problemas ambientais e reverter suas causas sem que ocorra uma mudança necessariamente radical nos sistemas de conhecimento, dos valores e dos comportamentos gerados pela dinâmica de racionalidade existente, fundada no aspecto econômico do desenvolvimento. A necessidade de abordar o tema da complexidade ambiental decorre do processo de reflexão das práticas existentes e das múltiplas possibilidades de que, ao pensar a realidade de modo complexo, precisamos defini-la como uma nova racionalidade e um espaço onde se articu-

lam natureza, técnica e cultura. Devemos ainda efetuar uma profunda reflexão em que esta complexidade ambiental abre uma estimulante oportunidade para que se compreenda a gestação de novos atores sociais que se mobilizam para a apropriação da natureza, para um processo educativo articulado e compromissado com a sustentabilidade e a participação, apoiado numa lógica que privilegia o diálogo e a interdependência de diferentes áreas de saber. Agora, isso também só será possível a partir de valores e premissas que norteiam as práticas sociais prevalecentes, implicando mudança na forma de pensar e transformação no conhecimento e nas práticas educativas. A realidade atual, ainda na esteira do pensamento de Jacobi, exige uma reflexão cada vez menos linear, e isto se produz na inter-relação dos saberes e das atitudes coletivas que criam identidades e valores comuns e ações solidárias diante da reapropriação da natureza, numa perspectiva que privilegia o diálogo entre saberes. E nas palavras de Marcos Reigota, em seu O que é Educação Ambiental: A educação ambiental ainda se encontra na fase inicial do seu projeto de construção de uma sociedade justa, pacífica e sustentável. Entendida [também] como educação política, a educação ambiental deve aglutinar forças, dialogar, aproximar e aprender com os movimentos sociais que se organizam no mundo todo, que são contrários ao modelo político, econômico, social, cultural e ecológico do totalitarismo capitalista.

A educação ambiental não necessariamente abandona o modelo de desenvolvimento econômico, de representação e participação política, bem como os fundamentos político-pedagógicos no cotidiano das instituições escolares e acadêmicas. No aspecto mais amplo da educação ambiental, precisamos perguntar quais são as rupturas teóricas e metodológicas com os paradigmas hegemônicos que têm sido realizadas e quais as possibilidades de construção e sobrevivência de perspectivas teóricas e metodológicas radicais que não contam com o apoio e o poder simbólico das mais conhecidas instituições, universidades, agências de fomento à pesquisa e empresas.

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A partir de uma perspectiva transdisciplinar, que alie as contribuições dos diversos saberes, sensibilidades e vivências, podemos nos garantir um mínimo de competência, digamos, técnica. É necessário pesquisar, estudar, dialogar, ampliar nossos argumentos com base no que há de sólido e pertinente na cultura, nos movimentos sociais e na produção científica contemporânea. É necessário produzir conhecimentos e intervenções pedagógicas que levem em consideração as particularidades e singularidades culturais, políticas, sociais e ecológicas do contexto em que estamos inseridos. Portanto, de acordo novamente com Reigota: A Educação Ambiental por si só não resolverá os complexos problemas ambientais planetários. Mas, ela pode influir decisivamente para isso, quando forma cidadãos conscientes dos seus direitos e deveres. Tendo consciência e conhecimento da problemática global e atuando na sua comunidade, haverá mudança no sistema, que se não é de resultados imediatos, visíveis, também não será sem efeitos concretos.

Não podemos esquecer, entretanto, que quando falamos na adoção e adequação às práticas de educação ambiental, como a adoção de papel reciclado nas atividades do cotidiano das escolas, em casa, nas empresas, enfatizamos um amplo contexto, o da educação para a cidadania, configurando-a como elemento determinante para a consolidação de sujeitos cidadãos. O desafio do fortalecimento da cidadania para a população como um todo (aqui incluímos, portanto, a participação da família, alunos e dos funcionários da escola neste processo), e não para um grupo restrito, concretiza-se pela possibilidade de cada pessoa ser portadora de direitos e deveres, e de se converter em agente co-responsável na defesa da qualidade de vida.

UM BREVE HISTÓRIO DO CONSUMO DE PAPEL A partir da invenção da imprensa, o aumento de consumo de papel na sociedade fez com que aumentasse o número dos conhecidos moinhos

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papeleiros. O fato que deu o grande impulso à fabricação do papel foi, sem dúvida, a invenção da imprensa e a Reforma, com a grande produção e divulgação intelectual que se desenvolveu em todo o período do Renascimento, vinculando a isto a máquina de fabricar papel contínuo. Se o aumento da produção tipográfica por um lado consumia infinitamente mais papel que antes (como no tempo dos copistas), a necessidade de importar acabava gerando, para os países consumidores, uma maior dificuldade em produzir, já que os navios que traziam o papel fabricado de regiões como Flandres ou ainda na Itália, levavam restos de tecidos usados para seus


países. Diversos países chegaram a proibir a exportação de trapos, sem o que a indústria nacional do papel não conseguiria elevar a produção para atender o consumo, sempre crescente. Até o final do século XVIII, a fabricação do papel era totalmente artesanal. (Reginato, 2003) No Brasil, a primeira fábrica de papel surgiu entre 1809 e 1810, associada à vinda da família real portuguesa no Rio de Janeiro. Foi construída por Henrique Nunes Cardoso e Joaquim José da Silva, industriais portugueses. Em fins do século XVIII e princípios do século XIX, a indústria do papel ganhou um grande impulso com a invenção das máquinas de produção contínua e do uso de pastas de madeira. A primeira máquina de fabricação de papel em folha contínua (Fournidrier) surgiu em 1798. Cabe ressaltar que o processo continua sendo utilizado nos dias de hoje. Outras máquinas foram desenvolvidas com o passar do tempo e também continuam a ser utilizadas na fabricação do papel. A tecnologia avançou muito, tornando a produção mais rápida e a escala de produção milhares de vezes maior.

O "PAPEL" DO PAPEL RECICLADO Produzir papel reciclado é uma forma moderna de diminuir os problemas ambientais causados pelo processo industrial de fabricação, além de reduzir o desperdício na utilização dos materiais. Essa é uma nova postura na sociedade, preocupada cada vez mais em reaproveitar materiais já utilizados. Poupando o corte de árvores e

a contaminação ambiental, algumas empresas já conseguem produzir hoje papel reciclado em grande escala, conforme veremos. Sua fabricação pode ser feita de forma artesanal ou industrial. O papel artesanal é uma arte milenar que atualmente tem sido muito utilizada em decorrência do problema mundial do lixo. Esta arte constitui um novo veículo que desperta o potencial criador em todas as idades. A técnica é também fonte de renda, já que o material utilizado apresenta custo quase nulo. Usam-se papéis que seriam jogados fora e elementos descartados pela natureza, como flores, folhas, fibras, que adquirem nova vida (a busca de novos usos e funções para os objetos) transformando-se em papéis que servem à manufatura de cartões, envelopes, convites, cartões de visita, para cobrir caixas, agendas, além de objetos variados feitos a partir da polpa. (Reginato, 2003) A forma industrial geralmente tem seu início a partir do papel descartado que acaba sendo separado do lixo e coletado/vendido para sucateiros que enviam o material para depósitos. Ali, o papel é enfardado em prensas e depois encaminhado aos aparistas, que classificam as aparas e revendem para as fábricas de papel como matéria-prima. Ao chegar à fábrica, o papel entra em uma espécie de grande liquidificador, chamado "Hidrapulper", que tem a forma de um tanque cilíndrico e um rotor giratório ao fundo. O equipamento desagrega o papel, misturado com água, formando uma pasta de celulose. Uma peneira abaixo do rotor deixa passar impurezas, como fibras, pedaços de papel não desagregado, arames e plástico. Em seguida, são aplicados compostos químicos - água e soda cáustica - para retirar tintas. Uma depuração mais fina é feita por um equipamento conhecido por "Centre-cleaners", que separa as areias existentes na pasta. Discos refinadores abrem um pouco mais as fibras de celulose, melhorando a ligação entre elas. Finalmente, a pasta é branqueada com compostos de cloro ou peróxido, seguindo para as máquinas de fabricar papel.

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A seguir, podemos observar alguns dados a respeito do consumo comparativo entre o papel reciclável e o tradicional: MADEIRA: uma tonelada de aparas pode substituir de 2 a 4 m³ de madeira, conforme o tipo de papel a ser fabricado, o que se traduz em uma nova vida útil para de 15 a 30 árvores. ÁGUA: na fabricação de uma tonelada de papel reciclado são necessários apenas 2.000 litros de água, ao passo que, no processo tradicional, este volume pode chegar a 100.000 litros por tonelada. ENERGIA: em média, economiza-se metade da energia, podendo-se chegar a 80% de economia quando se comparam papéis reciclados simples com papéis virgens feitos com pasta de refinador. REDUÇÃO DA POLUIÇÃO: teoricamente, as fábricas recicladoras podem funcionar com reduzidos impactos ambientais comparativos, pois a fase crítica de produção de celulose já foi feita anteriormente. Porém, na realidade destas indústrias brasileiras, muitas acabam então por não fazer muitos investimentos em controle ambiental. Constituem-se de empresas de pequeno porte e que, por sua vez, competem com grandes indústrias - muitas vezes subsidiadas ou com forte presença de capital estrangeiro. CRIAÇÃO DE EMPREGOS: estima-se que, ao reciclar papéis, sejam criados cinco vezes mais empregos do que na produção do papel de celulose virgem e dez vezes mais empregos do que na coleta e destinação final de lixo. A título de exemplo, a maior empresa que vende papel reciclável no Brasil em escala comercial, compra regularmente papel para a reciclagem de cerca de 1.300 colaboradores. As empresas que fabricam este tipo de papel economizam energia e água necessárias e geram empregos em cadeias produtivas anteriormente inativas ou ainda não incluídas economicamente na sociedade. Por fim, notamos conforme citado anteriormente - que tanto produtores quanto consumidores deste tipo de papel colaboram para a redução e, obviamente, queda de desperdício energético.

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Fica evidente, portanto, que a adoção do uso do papel reciclável é parte de uma proposta intrinsecamente ligada com o compromisso de construção de uma sociedade sustentável, sendo esta compreendida como uma sociedade justa, livre dos totalitarismos e do controle dos corações e mentes. A responsabilidade da escola na formação de cidadãos conscientes de sua ação transformadora, de agentes construtores da sociedade, enfatiza assim a educação ambiental (e sua indissociável prática) como um dos pilares de sua proposta. A competência técnica e o compromisso social-político da educação ambiental devem aprofundar e tornar públicas as noções de autonomia, responsabilidade, justiça e a formação de uma sociedade mais fraterna. REFERÊNCIAS FREIRE, M. do S. M. ; AUGUSTO, L. G. da S. ; VIANA, V. P . Reflexões sobre Educação Ambiental. In: Lia Giraldo da Silva Augusto; Lourdinha Florencio; Rosa Maria Carneiro. (Org.). Pesquisa (ação) em Saúde Ambiental. 1 ed. Recife: Editora Universitária UFPE, 2002 JACOBI, P. Educação ambiental, cidadania e sustentabilidade. Cadernos de Pesquisa, n. 118, P.189-205, mar-2003. REGINATO, V. P. Papel artesanal reciclado e papel artesanal de fibras naturais: suporte de preservação ecológica. UNISINOS: São Leopoldo, 2003. ESPECIALIZAÇÃO (Design Gráfico) REIGOTA, M. O que é Educação Ambiental. São Paulo: Brasiliense, 1998. __________. A educação ambiental frente aos desafios contemporâneos; II CONGRESSO MUNDIAL DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL, 2004. In: II CONGRESSO MUNDIAL DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL; RIO DE JANEIRO. Meio digital. REVIVERDE - Instituto Ambientalista da Cidade do Rio de Janeiro. Disponível em < http://www.reviverde.org.br/ >. Acesso em 13 de dezembro de 2007.

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Leandro Guimarães é professor de Geografia do 1º ano do Colégio Medianeira, formado em Geografia pela Universidade Federal do Paraná e mestre em Análise e Gestão de Bacias Hidrográficas pela Universidade Federal do Paraná.

Liliane Grein é estudante de Design Gráfico na Universidade Tuiuti, trabalha no setor de Reprografia e é integrante do Núcleo de Comunicação do Colégio Medianeira.


A ARTE DA RECICLAGEM

MUNDO SUSTENTÁVEL

SÉRGIO DEODATO Editora Horizonte Geográfico

ANDRÉ TRIGUEIRO Editora Globo

Contada no estilo de uma grande reportagem pelo jornalista Sérgio Deodato, a trajetória dessa indústria em expansão e de seus trabalhadores envolve um debate que vai além dos desafios urbanos. Inclui a reflexão sobre os atuais padrões de produção e consumo e sobre o valor que têm os resíduos gerados por eles. Por fim, lança luzes para uma questão urgente, que exige consciência e responsabilidade, essenciais à sobrevivência do próprio planeta.

O QUE É EDUCAÇÃO AMBIENTAL MARCOS REIGOTA Editora Brasiliense

Num cenário de crise ambiental sem precedentes, cultivada nas entranhas de um modelo de desenvolvimento que vem exaurindo numa velocidade assustadora os recursos naturais do planeta, com impactos negativos sobre a qualidade de vida da população, não basta denunciar o que está errado. É preciso sinalizar rumo e perspectiva, dar visibilidade às soluções sustentáveis que fertilizam o campo das idéias para a semeadura de um novo tempo, de um novo projeto de civilização. O livro apresenta soluções para vivermos num mundo auto-sustentável, procurando despertar a sociedade para a importância do debate de questões que estão intrinsecamente relacionadas ao modelo socioeconômico em que estamos imersos. Só a consciência dos indivíduos e a atuação de todos os setores da sociedade pode alterar o cenário em que nos encontramos.

A Educação Ambiental, como perspectiva, pode estar presente em todas as disciplinas. Sem impor limites para seus estudantes, tem caráter de educação permanente. Ela, por si só, não resolverá os complexos problemas ambientais planetários, mas pode influir decididamente para isso, ao formar cidadãos conscientes de seus direitos e deveres.

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NOVAS TECNOLOGIAS

aplicadas à

EDUCAÇÃO MUSICAL

contemporânea Por Christiane Denardi

No ensino da música, o uso de recursos da informática já é bastante comum e se torna mais um importante aliado de professores dessa arte. 40


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No Brasil, a partir da década de 1990, surgem os softwares educativo-musicais, mas sem um aumento significativo da utilização desse recurso na educação musical brasileira, além de escassa pesquisa para criação de tecnologias educacionais voltadas ao ensino da música. Na área das artes, e em especial na educação musical, é comum o pouco contato de professores de música com os recursos tecnológicos. A fonte desta resistência está na crença de que o uso da tecnologia possa substituir o trabalho pedagógico do professor de música. Entretanto, essa atitude pode ser modificada a partir de uma maior divulgação dos fundamentos e ferramentas tecnológicas disponíveis aos educadores musicais com o objetivo de promover o processo ensino- aprendizagem da música. Mas como usar a tecnologia para o desenvolvimento do processo ensino-aprendizagem musical?

plicações no ato de ensinar música. Assim, a escolha do software educativo-musical para o ensino da música é conseqüência da decisão e posicionamento do professor de música, na qual os ambientes e sistemas apóiam sua proposta e encaminhamento metodológico de ensino, possibilitando o processo pedagógico e não apenas uma atividade isolada na totalidade deste processo.

A informática na educação musical prioriza os aspectos teóricos e práticos, tanto de questões técnicas quanto de questões pedagógicas (teorias de aprendizagem) e musicais (concepções de educação musical). Até o momento, as principais teorias de aprendizagem utilizadas na programação dos softwares educativo-musicais são: o behaviorismo, o cognitivismo e o construtivismo. Em relação às concepções de educação musical, as mais referenciadas atualmente são: a tradicional, a progressista e a social.

Atualmente, dentre os mais utilizados, destacam-se os seguintes softwares musicais e educativo-musicais: editores de partitura (para editar, imprimir, gravar e executar partituras musicais, auxiliando em composições e pré-produção, além de digitalizar partituras); acompanhamento (para realizar composições, arranjos e auto-acompanhamento, semelhante aos teclados de acompanhamento automático); seqüenciadores (permite gravar, executar e editar músicas, bem como gravar trilhas de áudio digital junto com a música, ou seja, produzir e compor músicas e pré-produção); gravação de áudio (para gravação múltipla e simultânea de trilhas de áudio digitalizado, gravação multicanal de instrumentos, produção e edição de áudio, engenharia de áudio e produção e acústica musical); síntese sonora (para gerar sons/timbres, ou seja, são sintetizadores virtuais, os quais possibilitam criar e alterar sons, assim como pesquisar e armazenar timbres); programas para treinamento auditivo (afinação, percepção de intervalos/acordes/escalas e ditado melódico e rítmico); programas para teoria e análise musical (teoria e harmonia musical); programas para teoria e prática de instrumentos (posições, improvisações e execuções de diferentes instrumentos); programas de história e apreciação musical (biografia de compositores, estilos musicais e análise de períodos e obras musicais); programa para tutores musicais e programas para a criação personalizada do software para situações específicas de ensino.

Também é preciso considerar a qualidade da tecnologia empregada e a concepção de educação musical atrelada à periodização do desenvolvimento do aluno. O projeto de um software de educação musical inicia-se com a concepção que se tem de homem, educação e mundo e suas im-

Estes programas de música e de educação musical estão classificados de acordo com sua funcionalidade, ou seja, suas características e possibilidades de uso, e podem ser utilizados com ou sem a presença do professor de música. Há diversas formas de um software educativo-musi-

O principal objetivo do software educativomusical é promover um ambiente educacional que seja um recurso facilitador para efetivar o processo ensino-aprendizagem musical. No entanto, é importante que nas aulas de música haja espaço para que os alunos se movimentem entre outros materiais, tais como: instrumentos musicais e recursos audiovisuais, entre outros mais convencionais.

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cal apresentar o conteúdo musical a ser trabalhado; por exemplo: por meio de textos expositivos, exercícios, testes, desafios, apreciações e jogos interativos. Estas atividades podem ser desenvolvidas de forma individual e/ou coletiva. Desta forma, a tecnologia aplicada ao campo da educação musical consiste em uma ferramenta para auxiliar o professor de música na prática do ensino musical, tal qual o quadro-negro, o retroprojetor, o aparelho de som e os instrumentos musicais. A informática não substitui este professor, mas lança um desafio a ele: o de onde e o como usá-la em suas aulas de música. Nesta perspectiva, cabe alertar a urgência em formar professores de música para atuar nessa realidade emergente, bem como consultar profissionais especializados na área de informática, educação e educação musical ao adquirir estes recursos, pois a escolha correta deste material demanda planejamento e conhecimento dos envolvidos. Frente ao exposto, conclui-se que as atividades musicais com software musical e educativo-musical a serem desenvolvidas dependem da tecnologia disponível e do grau de conhecimento musical, tecnológico e pedagógico do

professor de música, bem como da formação inicial e continuada destes profissionais. Nesta direção e rumo aos avanços tecnológicos, o software musical e educativo-musical é um material de apoio e que não substitui o professor de música competente e atualizado, pois uma boa aula de música depende mais da atuação profissional do educador musical do que dos recursos tecnológicos por ele utilizados, ou seja, a tecnologia não é o foco do processo ensinoaprendizagem musical, mas uma ferramenta a mais que possibilita este processo. (Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br)

Christiane Denardi é psicóloga, pianista, pesquisadora e professora de música e ensino superior. Mestre em Educação pela PUCPR, Especialista em Magistério do Ensino Superior e Psicologia Organizacional e do Trabalho pela PUCPR e em Educação Musical pela EMBAP. Tem diversos trabalhos publicados, palestras, oficinas e consultoria nas áreas de Educação, Psicologia e Arte. É colaboradora de revistas e sites educacionais. E-mail: cdenardi@hotmail.com

OUTRAS INDICAÇÕES

A MÚSICA E A CRIANÇA WALTER HOWARD

CARPENTER, R. Technology in music classroom. Los Angeles: Alfred Publishing, 1991.

Editora Summus Um livro bastante atual, abordando o processo educacional como um todo. Não se destina a professores de música, mas sim a todos os educadores, no sentido mais amplo e significativo da palavra. O livro relaciona a música com a leitura, a ginástica, a percepção das cores, a arquitetura e outros campos. Uma obra simples, bela e completa.

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RUDOLPH, T. E. Teaching music with technology. Chicago: GIA, 1996. SWANWICK, K. Teaching music musically. London: Routledge, 1999.


UM PRETEXTO

para falar de

Historisches Museum. Foto: site do Deutsches

DÖBLIN 2007 foi o ano do cinqüentenário de morte do escritor alemão Alfred Döblin

Por Franco Caldas Fuchs

Alfred Döblin (1878 - 1957): um escritor, segundo Günther Grass, "de igual mérito ou maior do que Thomas Mann". 43


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Como vocês bem sabem, comemorar tantos anos de morte ou até da hipotética vida de um artista - "se Zequinha estivesse vivo, completaria hoje 100 anos..." - é sempre um gancho jornalístico. Idiota, muitas vezes, principalmente quando não se acrescenta nada de novo sobre o falecido.

mão, apesar de tarefa hercúlea, tem suas vantagens. Só assim para se conhecer a fundo todo o universo criativo de Alfred Döblin.

O indivíduo no caos da metrópole Berlim Alexanderplatz apresenta os descaminhos de um ex-presidiário que luta para sobreviver na selva da cidade.

Portanto, é com uma certa dose de vergonha que farei uso desse combalido artifício neste texto. Mas como não tenho notícia de novas traduções para a obra do escritor alemão Alfred Döblin, nem ouço falar de adaptações de seus livros para o cinema ou teatro, só me resta falar aqui do seu cinqüentenário de morte. No ano que passou, parece que ninguém, no Brasil, lembrou que Döblin faleceu no dia 26 de junho de 1957. Ao longo de 79 anos de vida, este escritor, médico psiquiatra e intelectual escreveu mais de 30 livros e conquistou a admiração de conterrâneos como Bertolt Brecht, Walter Benjamin, Kurt Tucholsky e Günther Grass. Este último chegou a criar um prêmio literário com o seu nome, o Alfred Döblin Preis, mantido pela Academia de Arte de Berlim.

Traduções são escassas Para aqueles que nunca ouviram falar de Alfred Döblin e talvez depois pretendam procurar por seus livros, é bom que se avise: o que existe de sua obra em português dá para se contar nos dedos. Resume-se ao ensaio O Romance Histórico e Nós (Der historische Roman und wir), ao conto O Assassinato de um Dente-de-Leão (Die Ermordung einer Butterblume), ao relato autobiográfico Viagem ao Destino (Schicksalsreise) e ao romance Berlim Alexanderplatz, sua principal obra. (Saiba mais sobre esses textos em "Bibliografia disponível em português"). E não pensem que as traduções de Döblin são escassas só em língua portuguesa. Basta pesquisar na Internet e no catálogo de bibliotecas do Instituto Goethe para se constatar que em outros idiomas, como inglês e espanhol, também o autor é pouco traduzido. Eis porque estudar ale-

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Cena de Berlim Alexanderplatz na adaptação de Fassbinder. Felizmente, temos a principal e mais conhecida obra de Alfred Döblin traduzida para o português - na versão de Lya Luft, para a Editora Rocco, e na de Sara e Teresa Seruya para as Publicações Dom Quixote. Publicado em 1929, em plena República de Weimar, o romance Berlim Alexanderplatz apresenta a saga do ex-presidiário Franz Biberkopf, que depois de solto procura reconstruir sua vida e andar nos eixos. Nessa história, o autor conseguiu reproduzir com perfeição a atmosfera caótica de uma grande metrópole. Franz está sempre em meio a uma multidão de outros personagens tão humildes e amaldiçoados quanto ele, e um narrador onisciente (sempre irônico!) faz questão de incorporar ao seu discurso - que mescla tanto o alemão padrão como o dialeto berlinense - uma avalanche de informações esdrúxulas, oriundas das mais


Cronologia de Alfred Döblin diversas fontes, como jornais, anúncios ou textos científicos.

1878: Filho de Max Döblin e Sophie Freudeheim, Al-

Para se ter uma idéia, na passagem que descreve como Franz matou sua ex-mulher com uma batedeira, o narrador chega a invocar a lei de Newton de ação e reação para explicar tal fato. Por tudo isso, o livro foi comparado em ousadia ao Ulysses (1922) de James Joyce.

1888: Max abandona a família e vai para os Estados

Adaptações

fred Döblin nasce a 10 de agosto, em Stetting (que nessa época é uma cidade prussiana - a partir de 1945 passa à Polônia).

Unidos com uma moça vinte anos mais nova do que ele. Sophie, Alfred e mais seus quatro irmãos se mudam para a parte leste de Berlim, passando por um período de grandes dificuldades financeiras.

1905-1911: Conclui a faculdade de medicina. Atua

Grande fã de Berlim Alexanderplatz, o diretor alemão Reiner Werner Fassbinder fez uma adaptação do romance para a TV, em 1980, com 15 horas de duração. Antes disso, o livro já tinha sido adaptado para o cinema com um roteiro do próprio Alfred Döblin e dirigido por Phil Jutzi em 1931 - entretanto com duração (o filme tem uma hora e meia) e resultado bem mais modestos. Em 2005, foi a vez de o livro virar peça de teatro. Frank Castorf, diretor da companhia alemã Volksbühne, encenou a obra na Schlossplatz, praça que fica ao lado da Alexanderplatz, em Berlim.

como médico assistente em hospitais e sanatórios, até se especializar como psiquiatra. Também escreve artigos e contos que são publicados na revista expressionista Der Sturm.

1912: Döblin se casa com a estudante de medicina Erna Reiss, com quem terá quatro filhos.

1913: Publica a coletânea de contos Die Ermordung einer Butterblume (O Assassinato de um Dente-de-Leão).

1924: Torna-se presidente da Associação de Escritores Alemães.

1929: Publica seu maior sucesso, Berlim Alexanderplatz.

Ilustração: Wolfgang Peter

1933: Com a tomada do poder pelos nazistas, Döblin, sua mulher e filho mais novo partem para a Suíça e depois para a França.

1936: Döblin adquire cidadania francesa. 1940: Com a chegada de tropas nazistas à França, Döblin e sua família migram para a Espanha e depois para Portugal. De lá, vão para os Estados Unidos. Döblin se instala na cidade de Los Angeles, Califórnia, e começa a trabalhar como roteirista para a Metro Goldwyn Mayer.

1941: Döblin, que havia nascido em uma família judia, converte-se ao catolicismo.

1945: Döblin volta a Paris. Depois, torna-se oficial de cultura do governo francês em Baden-Baden, na Alemanha.

1956: Publica seu último romance, Hamlet oder Die lan(Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br)

ge Nacht nimmt ein Ende (Hamlet ou A longa noite chega ao fim).

1957: Bastante enfermo com o mal de Parkinson, Döblin Franco Caldas Fuchs é jornalista e mantém o blog Francofonia: www.francofonia.blogspot.com

se interna numa clínica em Freiburg. Aos 79 anos, morre na cidade vizinha, Emmendigen, em 26 de junho.

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Bibliografia disponível em português DIE ERMORDUNG EINER BUTTERBLUME (O ASSASSINATO DE UM DENTE-DE-LEÃO) Reunião de contos, publicada em 1913. O conto que dá título ao livro foi traduzido para o português por Marcelo Backes e integra a antologia Escombros e caprichos - o melhor do conto alemão no século XX, L&PM, 2004.

BERLIN ALEXANDERPLATZ. DIE GESCHICHTE VOM FRANZ BIBERKOPF (BERLIM ALEXANDERPLATZ. A HISTÓRIA DE FRANZ BIBERKOPF)

Foto: site da editora DTV (Deutscher Taschenbuch Verlag)

SCHICKSALSREISE (VIAGEM AO DESTINO) Publicado em 1949, é um relato autobiográfico sobre o período em que Döblin viveu exilado. Foi traduzido por Sara Seruya para as Edições Asa, em 1996.

BERLIM ALEXANDERPLATZ Este "romance de metrópole", publicado em 1929, é a obra mais importante e mais conhecida do autor. Foi traduzido para o português pelas Publicações Dom Quixote, em 1992, e pela Editora Rocco, em 1995.

DER HISTORISCHE ROMAN UND WIR (O ROMANCE HISTÓRICO E NÓS)

Artigo publicado em Moscou no ano de 1938. Foi traduzido para o português por Marion Brepohl de Magalhães e pode ser encontrado na Internet em formato PDF.

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ALFRED DÖBLIN Editora Rocco Romance épico que acompanha o crescimento e a industrialização da grande cidade e dos tipos humanos que nela tentam sobreviver, ''Berlim Alexanderplatz'' é uma obra capital do expressionismo literário alemão. Este clássico narra a história da Alemanha - entre as duas grandes guerras - e de Franz Biberkopf, antigo operário da construção civil que acaba de sair da prisão. Ele jura nunca mais se meter em situações escusas, tenta reconstruir sua vida desesperadamente, mas acaba tendo dificuldade de se reintegrar no trabalho. Uma série de decepções com os antigos amigos leva-o à bebida e à descrença nos homens, na sociedade e na justiça, e termina quebrando o juramento.


O Pequeno

NICOLAU

Por Luciane Hagemeyer

Autor do clássico Asterix, René Goscinny fez também outras incursões pelo mundo da literatura. E trouxe dessas viagens uma turma que ainda hoje continua a singrar os mares do tempo encantando adultos e crianças com suas histórias.

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Já faz algum tempo que conheço o Nicolau. Há alguns anos estava na biblioteca do colégio à procura de um livro que pudesse ler para os alunos. Um volume diferente, com ilustrações em preto e branco chamou minha atenção. Ao abri-lo aleatoriamente, escolhi uma de suas histórias, que assim terminava: "O ensaio estava indo muito bem quando, de repente, a professora gritou: 'Chega! Para os lugares! Vocês não irão representar essa peça na festa. Não quero que o Diretor veja isso!' Nós todos ficamos de boca aberta. Era a primeira vez que a gente via a professora castigar o diretor!". Bem, isto aconteceu há exatamente dez anos. Até então, nunca havia ouvido falar de René Goscinny, o autor francês da série de livros sobre Nicolau (e também dos famosos volumes de "Asterix") e muito menos do ilustrador Jean-Jacques Sempé. A partir daí passei a ler para os alunos um episódio do livro por dia. As turmas daquele ano (e do outro e do outro) foram todas fisgadas, assim como eu, pelo narrador-personagem: o pequeno Nicolau. Passado algum tempo e por aquelas razões que até o coração desconhece, esqueci-me de Nicolau. E na incansável batalha para formar leitores (o que parece ser uma característica própria dos professores que trabalham com a Língua Portuguesa), acabei perdendo um grande aliado. Mas como Deus sabe o que faz, dia destes o livro caiu novamente em minhas mãos. E aí experimentei aquela sensação de que, ao reler um livro, [...] vivenciamos a mesma sensação de surpresa e descoberta que da primeira vez, porque lemos coisas que não havíamos lido então. A sensação é a mesma, mas as surpresas e as descobertas são novas, são outras. Como, se o livro era o mesmo? Este é o ponto: um bom livro de ficção não se disfarça apenas uma vez, ele se disfarça quantas vezes for lido por diferentes pessoas ou até pela mesma pessoa em idades diferentes (Gustavo Bernardo, em "A qualidade da Invenção").

A leitura de agora, mais amadurecida (pudera, com mais dez anos de "lida"), talvez tenha me ajudado a perceber com mais clareza quais são os motivos que movem, mobilizam e comovem

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crianças e adultos ao lerem Goscinny: a turminha de Nicolau está longe de qualquer "idealização". E as crianças sabem disto; por isso o reconhecimento é imediato. Porque nas histórias de Nicolau, elas não se apresentam adulteradas: a inveja, o orgulho, a vingança, a preguiça, o medo, a intolerância, ou seja, tudo aquilo que faz a gente bater na madeira três vezes está lá. E o mais incrível: não é motivo de desespero. Nicolau e seus amigos estão na faixa dos seis, sete anos de idade. Goscinny começou a escrever suas histórias em 1959. Podemos imaginar que tipo de escola era aquela enfrentada pelas crianças. Hoje as coisas mudaram. Ou melhor, "algumas" ou talvez "muitas" coisas mudaram, mas... O fato é que depois de quase sessenta anos, a obra conserva a mesma vivacidade. Alguns podem até dizer que isto é porque a escola não mudou tanto assim e por isso as crianças se divertem ao verificar que as personagens burlam certas regras. Mas para mim, o fato é que Goscinny consegue atingir o coração e a mente das crianças porque não as acusa, não as julga nem as critica. Por intermédio de Nicolau, Goscinny nos ajuda a recuperar um pouco da nossa capacidade perdida de falar a língua da Terra do Nunca. Que delícia escutar a voz do esperto e observador Nicolau, relatando peripécias, estripulias, conflitos e até mesmo as angústias vivenciadas por ele e por seus colegas no dia-a-dia. Tudo com muita "pureza". E o que vemos a partir daí? Uma "catarse" sendo operada na mente das crianças e acontecendo bem ali, na nossa frente, quando escutam uma das histórias de Nicolau. Como se explica isto? Arrisco dizer, devidamente amparada por Gustavo Bernardo, que, em literatura, [...] o processo de catarse é, na verdade, o processo do reconhecimento de si mesmo com alguém que há pouco não era, isto é, um processo de produção dinâmica, permanente, infinita, de si mesmo. O leitor não se identifica propriamente com o personagem, mas sim, o personagem é quem oferece ao leitor uma identidade.

É isto que chamamos de experiência estética. Porque literatura é uma forma de sondar a consciência, de exercer aquela liberdade interior tão necessária para saber viver em sociedade. Implica dar ao conhecimento um significado hu-


mano e formativo, sem o qual ninguém se realiza individualmente. E é justamente aí que está também a dimensão ética da leitura. Ao tratar de temas tão presentes nas nossas relações do cotidiano, podemos melhor explicá-los e até mesmo suportá-los, pois reconhecemos que somos seres humanos complexos e deixamos de lado, segundo Ricardo Azevedo, a crença naquele "mundo idealizado regido por normas abstratas e pré-concebidas, onde, a priori, tudo se encaixa, não existem contradições e ambigüidades e tudo faz sentido e tem uma determinada função". E para terminar, algo vem a calhar: o escritor Isaac Singer (falecido em 1991), ao receber o Prêmio Nobel de Literatura em 1978, dirigiu-se em discurso às crianças, enumerando, para tanto, dez motivos: 1. As crianças lêem livros e não resumos ou resenhas. E também não se importam com o que dizem os críticos. 2. As crianças não lêem para encontrar sua identidade. Elas simplesmente são o que são. 3. As crianças não lêem para se libertar do complexo de culpa ou para reprimir suas revoltas. 4. As crianças não precisam da psicologia. 5. Detestam psicólogos. 6. Não tentam compreender Kafka ou James Joyce. 7. As crianças ainda crêem em Deus, na família, nos anjos, no diabo, nas bruxas, nos duendes, na lógica, na clareza, na pontuação e em outras coisas fora de moda. 8. As crianças gostam de histórias sem notas de rodapé. 9. Quando acham um livro chato, dizem que o livro é chato e pronto. 10. Não esperam que o seu autor preferido salve o mundo. Sabem que isso não está ao alcance delas. Só os adultos alimentam essas ilusões infantis. Por este discurso ele deveria ganhar mais um prêmio (com o perdão dos psicólogos). E se pudesse, daria eu também um Nobel a Goscinny.

Luciane Hagemeyer é professora de Língua Portuguesa da 3ª. Série do Ensino Fundamental do Colégio Medianeira, formada em Letras Português/Inglês pela UFPR, com pós-graduação em Currículo e Prática Educativa pela PUC-Rio e mestre em Estudos Literários pela UFPR.

O QUE É QUALIDADE EM LITERATURA INFANTIL E JUVENIL LEDA OLIVEIRA (ORGANIZADORA) Editora DCL Difusão Cultural A qualidade da literatura infantil e juvenil é o ponto de partida para a reflexão de conceituados autores brasileiros e portugueses que aqui reúnem seus artigos e depoimentos. Dividido em duas partes, o livro traz primeiro os textos que enfocam a qualidade da literatura infantil e juvenil. Na segunda parte, escritores como Lygia Bojunga, Tatiana Belinky, Pedro Bandeira e Bartolomeu Campos de Queiroz, entre outros, respondem à pergunta que dá nome ao livro. Destinada a professores e demais interessados, a obra pretende servir de referência para o aprofundamento do tema em questão.

Conheça também:

O Pequeno Nicolau no recreio

As férias do Pequeno Nicolau

Novas aventuras do Pequeno Nicolau

O Pequeno Nicolau e seus colegas

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FRATERNIDADE

E VIDA

Por João Paulo Almeida da Silva

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"Escolhe, pois, a vida". Comconta este lema, a Campanha da Quem um conto ganha um Fraternidade de 2008 propõe a todos reflexão ação na busca por ponto! Mas, ae partir deste artigo, realizar algo ao mesmo tempo tãoperceber simples que e complexo como vamos quem conta - ea defesa do direito todos a umamuito vida plena. quemde ouve - ganha mais.


A

Ao iniciarmos mais uma Campanha da Fraternidade, nos deparamos com um dos assuntos mais importantes na atualidade: o amparo à vida. Assunto este expresso no tema "Fraternidade e Defesa da Vida", bem como no lema "Escolhe, pois, a vida". Seguindo o espírito do Documento de Aparecida e a própria narrativa de temas anteriores: Reconstruir a vida (1974), Fraternidade e vida (1984); e nos lemas: Para que todos tenham vida (1984), A serviço da vida e da esperança (1998), Vida sim, drogas não (2001), Vida, dignidade e esperança (2003), Água, fonte de vida (2004) e Vida e missão neste chão (2007), podemos dizer que, ao longo dos anos, a Campanha da Fraternidade foi edificada sempre em favor da vida. Nesse espírito de proclamar a vida, a Igreja objetiva levar toda a sociedade "a defender e a promover a vida humana, desde a sua concepção até a sua morte natural, compreendida como dom de Deus e co-responsabilidade de todos, na busca de sua plenificação, a partir da beleza e do sentido da vida em todas as circunstâncias, e do compromisso ético do amor fraterno". Somos, portanto, convidados diante do individualismo e da fragmentação da vida humana, a proclamar uma vida cristã que só se aprofunda e se desenvolve na comunhão fraterna. Esse parece ser o maior desafio de nossa sociedade em que a qualidade de vida é medida por critérios econômicos, materiais e estéticos. Para Jesus, os valores que constroem a pessoa humana e sua dignidade se resumem no amor, no amor a toda a vida, desde o seu início até o seu declínio. Nas suas múltiplas formas e manifestações, a vida é um bem impagável; cada ser vivo manifesta, à sua maneira, a sabedoria e a insondável providência de Deus Criador. Nesse ideal de plenitude está a defesa de uma totalidade do ser humano, com ênfase na importância do papel da família. Os caminhos de vida verdadeira e plena para todos, caminhos de vida eterna, são aque-

les abertos pela fé que conduzem à plenitude de vida que Cristo nos trouxe. Com esta vida divina, também se desenvolve em plenitude a existência humana, em sua dimensão pessoal, familiar, social e cultural. No contexto atual, os valores da tecnologia proporcionam resultados imediatos e a lei do maior lucro se impõe no mercado dos negócios, sufocando os valores anunciados e vividos por Jesus. Nesta sociedade, o projeto de vida de Jesus se torna descartável; porém, Ele chama a todos para sermos luz que brilha nas trevas (cf. Fl 2,15). A sociedade de hoje é animada pela cultura lucrativa, consumista e individualista, em que o ídolo do lucro, do dinheiro, do prazer individual são o absoluto e o CENTRO da vida. Assume-se uma cultura da banalidade, do descartável, do vazio existencial e sem horizonte transcendente. Nesta cultura, a dimensão transcendente da vida e a experiência religiosa são descartadas. Jesus deixa o Seu legado que orienta a vida para o Absoluto, para o alto, para Deus, Fonte de toda vida e todo bem. Junto a Ele encontra-se a verdadeira alegria e paz. É preciso revestir-se dos sentimentos de Jesus Cristo e assumir Sua proposta de vida na radicalidade (cf. Fl 2,1-11). Neste sentido de promoção da vida, a Campanha da Fraternidade deste ano buscou sua inspiração nos textos de Deuteronômio 30, 19: "Escolhe, pois, a vida" e também no texto do evangelho de João 10, 10: "Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância". Uma vida plena é uma vida que combate as dimensões do mal, expressas nos sinais de morte. Essa promoção da vida é muito bem expressa nos objetivos específicos da Campanha da Fraternidade: 1) Desenvolver uma concepção de pessoa (antropologia integral) capaz de fundamentar adequadamente, sem reducionismos, as ações em defesa da vida humana. 2) Fortalecer a família como espaço primeiro da defesa da vida, através da maternidade e da paternidade responsáveis, do acolhimento aos idosos, doentes e sofredores.

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3) Fomentar a cultura da vida, através da educação, para o desenvolvimento pleno da afetividade, a co-responsabilidade entre homem e mulher, e a solidariedade entre todos. 4) Trabalhar em unidade com pessoas de diversas posições culturais e diferentes religiões na busca da promoção da vida. 5) Desenvolver nas pessoas a consciência crítica diante das estruturas que geram a morte e promovem a manipulação e comercialização da vida humana. 6) Propor e apoiar políticas públicas que garantam a promoção e defesa da vida. 7) Crescer na fé, vivida como amor a Deus e amor aos irmãos, respeitando a sacralidade de cada pessoa, imagem e semelhança de Deus e habitação da Trindade, valorizando todos os elementos de defesa da vida presentes em todas as religiões. A Igreja conclama, com isso, que a vida de todo e qualquer ser humano é preciosa diante dos olhos de Deus, não importando seu estágio. Vamos, portanto, denunciar e renunciar todo o mal que ataca e destrói a vida em suas várias etapas e aclamar o Deus da vida, da vida em plenitude!

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Oração da Campanha da Fraternidade 2008 Ó Deus Pai e Criador, em vós vivemos, nos movemos e somos! Sois presença viva em nossas vidas, pois nos fizestes à vossa imagem e semelhança. Proclamamos as maravilhas de vosso amor presentes na criação e na história. Por vosso Espírito, tudo renasce e ganha vida. Nosso egoísmo muitas vezes desfigura a obra de vossas mãos, causando morte e destruição. Junto aos avanços, presenciamos tantas ameaças à vida. Que nesta quaresma acolhamos a graça da conversão, tornando-nos mais atentos e fiéis ao Evangelho. Que o compromisso de nossa fé nos leve a defender e promover a vida no seu início, no seu crescimento e também no seu declínio. Vosso Filho Jesus Cristo, crucificado-ressuscitado, nos confirma que o amor é mais forte que a morte. Como seus discípulos queremos "escolher a vida". Maria, Mãe da vida, que protegeu e acompanhou seu Filho, da gestação à ressurreição, interceda por nós, Amém!

João Paulo Almeida da Silva é jesuíta, formado em Filosofia pela UNISINOS, desempenha a função de Auxiliar da Orientação Religiosa no Ensino Médio e integra a equipe do Centro de Espiritualidade Medianeira.

Materiais de consulta: Campanha da Fraternidade 2008: Texo-base / Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. São Paulo: Editora Salesiana, 2008. Site: http://www.cnbb.org.br/index.php?op=pagina&subop=189, acessado em 23/02/2008.

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Ano Machadiano SUJE-SE, GORDO! Machado de Assis

UMA NOITE, há muitos anos, passeava eu com um amigo no terraço do Teatro de S. Pedro de Alcântara. Era entre o segundo e o terceiro ato da peça A Sentença ou o Tribunal do Júri. Só me ficou o título, e foi justamente o título que nos levou a falar da instituição e de um fato que nunca mais me esqueceu.

No ano do centenário de sua morte, Machado de Assis permanece uma presença inquietante. Embora ocupe lugar definido e destacado na história da literatura brasileira, sua obra ainda guarda algo de excêntrico e surpreendente que assombrou seus primeiros críticos. Prova disso está na interpretação que sua obra sofreu ao longo do tempo e nas polêmicas que sua veia crítica e sua ironia provocam constantemente, ainda hoje. Joaquim Maria Machado de Assis, cronista, contista, jornalista, crítico, poeta, dramaturgo, novelista, romancista e ensaísta, nasceu no Rio de Janeiro em 21 de junho de 1839. Filho do operário mestiço, Francisco José de Assis e de D. Maria Leopoldina Machado de Assis, viria a tornar-se o maior escritor do país e um mestre da língua. Foi eleito presidente da Academia Brasileira de Letras quando esta foi fundada, cargo que ocupou até sua morte, ocorrida no Rio de Janeiro em 29 de setembro de 1908. Sua oração fúnebre foi proferida pelo acadêmico Rui Barbosa. É o fundador da cadeira nº. 23, e escolheu o nome de José de Alencar, seu grande amigo, para ser seu patrono. Por sua importância, a Academia Brasileira de Letras passou a ser chamada de Casa de Machado de Assis. 2008 foi nomeado, por decreto, o Ano Machado de Assis.

— Fui sempre contrário ao júri, — disse-me aquele amigo, não pela instituição em si, que é liberal, mas porque me repugna condenar alguém, e por aquele preceito do Evangelho; "Não queirais julgar para que não sejais julgados". Não obstante, servi duas vezes. O tribunal era então no antigo Aljube, fim da Rua dos Ourives, princípio da Ladeira da Conceição. Tal era o meu escrúpulo que, salvo dous, absolvi todos os réus. Com efeito, os crimes não me pareceram provados; um ou dous processos eram mal feitos. O primeiro réu que condenei, era um moço limpo, acusado de haver furtado certa quantia, não grande, antes pequena, com falsificação de um papel. Não negou o fato, nem podia fazê-lo, contestou que lhe coubesse a iniciativa ou inspiração do crime. Alguém, que não citava, foi que lhe lembrou esse modo de acudir a uma necessidade urgente; mas Deus, que via os corações, daria ao criminoso verdadeiro o merecido castigo. Disse isso sem ênfase, triste, a palavra surda. os olhos mortos, com tal palidez que metia pena; o promotor público achou nessa mesma cor do gesto a confissão do crime. Ao contrário, o defensor mostrou que o abatimento e a palidez significavam a lástima da inocência caluniada. Poucas vezes terei assistido a debate tão brilhante. O discurso do promotor foi curto, mas forte, indignado, com um tom que parecia ódio, e não era.

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A defesa, além do talento do advogado, tinha a circunstância de ser a estréia dele na tribuna. Parentes, colegas e amigos esperavam o primeiro discurso do rapaz, e não perderam na espera. O discurso foi admirável, e teria salvo o réu, se ele pudesse ser salvo, mas o crime metia-se pelos olhos dentro. O advogado morreu dous anos depois, em 1865. Quem sabe o que se perdeu nele! Eu, acredite, quando vejo morrer um moço de talento, sinto mais que quando morre um velho... Mas vamos ao que ia contando. Houve réplica do promotor e tréplica do defensor. O presidente do tribunal resumiu os debates, e, lidos os quesitos, foram entregues ao presidente do Conselho, que era eu. Um dos jurados do Conselho, cheio de corpo e ruivo, parecia mais que lá se passou, não interessa ao caso particular, que era melhor ficasse também calado, confesso. Cantarei depressa; o terceiro ato não tarda. Um dos jurados do Conselho, cheio de corpo e ruivo, parecia mais que ninguém convencido do delito e do delinqüente. O processo foi examinado, os quesitos lidos' e as respostas dadas (onze votos contra um); só o jurado ruivo estava inquieto. No fim' como os votos assegurassem a condenação, ficou satisfeito, disse que seria um ato de fraqueza, ou cousa pior, a absolvição que lhe déssemos. Um dos jurados, certamente o que votara pela negativa, — proferiu algumas palavras de defesa do moço. O ruivo, — chamava-se Lopes, — replicou com aborrecimento: — Como, senhor? Mas o crime do réu está mais que provado. — Deixemos de debate, disse eu, e todos concordaram comigo. — Não estou debatendo, estou defendendo o meu voto' continuou Lopes. O crime está mais que provado. O sujeito nega, porque todo o réu nega, mas o certo é que ele cometeu a falsidade, e que falsidade! Tudo por uma miséria' duzentos mil-réis! Sujese gordo! Quer sujar-se? Suje-se gordo! "Suje-se gordo!" Confesso-lhe que fiquei de boca aberta, não que entendesse a frase, ao contrário, nema entendi nem a achei limpa, e foi por isso mesmo que fiquei de boca aberta. Afinal caminhei e bati à porta, abriram-nos, fui à mesa do juiz, dei as res-

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postas do Conselho e o réu saiu condenado. O advogado apelou; se a sentença foi confirmada ou a apelação aceita, não sei; perdi o negócio de vista. Quando saí do tribunal, vim pensando na frase do Lopes, e pareceu-me entendê-la. "Suje-se gordo!" era como se dissesse que o condenado era mais que ladrão, era um ladrão reles, um ladrão de nada. Achei esta explicação na esquina da Rua de S. Pedrovinha ainda pela dos Ourives. Cheguei a desandar um pouco, a ver se descobria o Lopes para lhe apertar a mão; nem sombra de Lopes. No dia seguinte, lendo nos jornais os nossos nomes, dei com o nome todo dele, não valia a pena procurá-lo, nem me ficou de cor. Assim são as páginas da vida, como dizia meu filho quando fazia versos, e acrescentava que as páginas vão passando umas sobre outras, esquecidas apenas lidas. Rimava assim, mas não me lembra a forma dos versos. Em prosa disse-me ele, muito tempo depois, que eu não devia faltar ao júri, para o qual acabava de ser designado. Respondi-lhe que não compareceria, e citei o preceito evangélico; ele teimou, dizendo ser um dever de cidadão, um serviço gratuito, que ninguém que se prezasse podia negar ao seu país. Fui e julguei três processos. Um destes era de um empregado do Banco do Trabalho Honrado, o caixa, acusado de um desvio de dinheiro. Ouvira falar no caso, que os jornais deram sem grande minúcia, e aliás eu lia pouco as notícias de crimes. O acusado apareceu e foi sentar-se no famoso banco dos réus. Era um homem magro e ruivo. Fitei-o bem, e estremeci, pareceume ver o meu colega daquele julgamento de anos antes. Não poderia reconhecê-lo logo por estar agora magro, mas era a mesma cor dos cabelos e das barbas, o mesmo ar, e por fim a mesma voz e o mesmo nome: Lopes. — Como se chama? perguntou o presidente. — Antônio do Carmo Ribeiro Lopes. (Fragmento da crônica “Suje-se, Gordo!”, de Machado de Assis. Entre as obras mais famosas do autor estão: Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Iaiá Garcia, Dom Casmurro, Memorial de Aires, Crisálidas, O Alienista, Crônicas de Lélio. A obra de Machado de Assis tem sido traduzida para diversos idiomas e os textos adaptados para televisão e cinema.)


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