Revista Mediação - Número 15

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Diretor Pe. Rui Körbes, S.J.

ISSN 1808-2564

revista de educação editada e produzida pelo colégio medianeira

Vice-diretor Prof. Adalberto Fávero Coordenador Administrativo e Financeiro Gilberto Vizini Vieira Coord. Comunitário e de Esporte Prof. Francisco Alexandre Faigle

Coordenação Editorial e Revisão Nilton Cezar Tridapalli Luciana Nogueira Nascimento (MTB 2927/82v) Projeto Gráfico e Diagramação Sonia Oleskovicz Ilustrações Ulisses Candal Sato Fotografias Arquivo Medianeira e autores Colaboraram nesta edição Adalberto Fávero, Claudia Furtado de Miranda, Cristina Graeml, Fabiano Pinkner Rodrigues, Geraldo Vieira de Magalhães, José Vanderlei Dissenha, Juliana Cavassin, Levis Litz, Luciane Hagemeyer, Luiz Carlos Heleno, Luiza Pacheco, Lyziana Dela Bruna Hiroki, Marcelo Pastre, Marcelo Webere e Ramon José Gusso. Tiragem 3.000 exemplares Papel Reciclato Suzano 90g/m2 (miolo) Reciclato Suzano 240 g/m2 (capa) Número de Páginas 52

Brincadeiras de criança Geraldo Vieira de Magalhães ........................................................................................................................ 5

Lendo em outras frequências: O Clube da Leitura Luciane Hagemeyer ....................................................................................................................................... 7

Quem é essa tal de Sociedade Civil? Ramon José Gusso ........................................................................................................................................ 11

O caminho de Peabiru José Vanderlei Dissenha ............................................................................................................................... 15

Dicas para você estudar nossa Língua Portuguesa... Fabiano Pinkner Rodrigues ............................................................................................................................ 19

Enem 2009 - apresentação oficial das principais mudanças Marcelo Pastre ................................................................................................................................................ 22

Enem: nem zero nem cem Adalberto Fávero e Claudia Furtado de Miranda ......................................................................................... 25

EQUIPE PEDAGÓGICA Educação Infantil e Ensino Fundamental de 1ª à 4ª séries Supervisora Juliana Heleno Coordenadora Profª Silvana do Rocio Andretta Ribeiro Supervisora de 5ª a Ensino Médio Claudia Furtado de Miranda Ensino Fundamental de 5ª e 6ª séries Coordenadora Profª Eliane Zaionc Ensino Fundamental de 7ª e 8ª séries Coordenadora Profa. Roberta Uceda Ensino Médio Coordenador Prof Marcelo Pastre Coordenador de Pastoral Pe. Guido Valli, S.J.

Há quatro décadas o mundo começou a mudar Cristina Graeml ............................................................................................................................................... 32

A pedagogia do Teatro do Oprimido e a formação do sujeito Juliana Cavassin ............................................................................................................................................. 34

Na terra dos Leprechauns... Nas Irlandas... Levis Litz ......................................................................................................................................................... 39

O dono da morte Luiz Carlos Heleno .......................................................................................................................................... 45

Silêncio Sépia Luiza Pacheco .................................................................................................................................................. 47

Na parede uma lembrança

Coordenador de Midiaeducação Nilton Cezar Tripadalli

Lyziana Dela Bruna Hiroki .............................................................................................................................. 48

Comunicação e Marketing Luciana Nogueira Nascimento

Croquete de posta branca Marcelo Weber ................................................................................................................................................ 49

Os artigos publicados são de inteira responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a opinião dos editores e do Colégio Nossa Senhora Medianeira. A reprodução parcial ou total dos textos é permitida desde que devidamente citada a fonte e autoria.

Linha Verde • Av. José Richa, 10546 Prado Velho • Curitiba • Paraná fone 41 3218-8000/ fax 41 3218-8040 www.colegiomedianeira.g12.br mediacao@colegiomedianeira.g12.br

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Um convite para pensar Natal, presentes, matrículas, material escolar e uniforme, médico, dentista, Ano Novo, férias e... vestibular! Não necessariamente nesta ordem, milhares de assuntos ou tarefas ocupam a mente da grande maioria das pessoas nesta época do ano. A rotina, quase que automática, nos faz cumprir as tarefas uma a uma, deixando uma sensação de satisfação que talvez alguns confundam com felicidade. A melhor parte fica por conta da tomada de decisão. Não precisamos mais escolher presentes de Natal, eles são escolhidos, ou melhor, "impostos" pelos milhões de comerciais impressos, televisivos, virtuais ou megavisuais dos outdoors. "Eu já sei o que eu quero..." é uma das frases mais pronunciadas nesta época do ano. E ela se aplica não só aos presentes de Natal, mas a todas as outras escolhas ou decisões que temos que tomar. A escola dos filhos, por exemplo, com exceção dos muito pequenos (por enquanto), é escolhida pela criança ou adolescente de acordo com a decisão da maioria dentro do grupo de amigos e amigas ou pelos anúncios higienizados e impecáveis das instituições de ensino. E o que dizer dos resultados de vestibular? Os números milagrosos, e superfaturados, impressionam e seduzem qualquer mortal desavisado. Mas basta fazermos as contas para entendermos que não

batem número de vagas com número de aprovados. Teríamos que criar pelo menos o dobro das vagas nas universidades e faculdades para abrigar os calouros de todos os centímetros/colunas dos anúncios de jornais. Para engrossar esta vitrine que facilita todas as nossas escolhas, surgiu o Enem, como os infalíveis produtos de comercial dos filmes de Jerry Lewis - basta usar uma vez e todos os seus problemas estarão resolvidos. Será? Aqui entra nosso convite para pensar! Fugir das fórmulas prontas, do marketing sedutor e "enganoso", da "preguiça" de refletir e analisar por um lado nos dá um trabalho extra, por outro nos dá uma satisfação verdadeira quando alcançamos um resultado esperado ou sonhado, nos dá a sensação de autores de nossa própria história, de senhores de nossas escolhas. Poder acertar ou errar por opção consciente e refletida é um direito de todos nós e um dever quando somos responsáveis por escolher para uma terceira pessoa. Fica aqui o convite para ler, pensar e refletir e não só isso. Nesta edição de Mediação, vamos viajar, conhecer pessoas, ampliar nosso conhecimento sobre o mundo que nos cerca e seus mistérios. E como não poderia faltar, nossa odisseia gastronômica continua. Confira e nos escreva. mediacao@colegiomedianeira.g12.br

Luciana Nogueira

mediacao@colegiomedianeira.g12.br CHICHO, Porque você me recomendou, li seu texto do Mediação. O que dizer? Que aquilo é pura poesia? A um poeta?! Direi, então, que se trata de um romance... de um romance seu com as palavras que você escolhe tão bem, e com a viagem do conhecimento que você tanto preza em apreender para poder rapidamente dividir. Lendo, senti-me voltar atrás no tempo e rejuvenesci eras. Vi, ali, muito mais do que a imagem do firmamento que você retrata com tanta competência: vi a sua alma jovem, íntegra,

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incansável na busca da perfeição e de uma nova superação. Tudo, em sua crônica, é intencional, dosado, calculado... de uma beleza lenta, progressiva, que não quer se esgotar, como um gol de pênalti. Seu pensamento flui com a naturalidade de quem seleciona batatas numa feira livre para nos presentear depois com um delicioso soufflé. Parafraseando Raul Seixas: alguns de nós somos estrelas, você é uma constelação. Parabéns, e um abraço fraterno. LINCOLN HARTMANN (sobre o texto “Memórias de um pretenso caçador de estrelas cadentes”, publicado em Mediação nº 14)


BRINCADEIRAS DE CRIANÇA

Por Geraldo Vieira de Magalhães

Às vezes, temos uma tendência de substituir uma prática por outra mais “moderna”: mas será que elas se excluem? Não seria possível fazer as novas brincadeiras eletrônicas conviverem com as boas e velhas corridas de pé descalço, entre outros brinquedos?

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Muitos desconhecem, pois lhes fogem à época. Outros tantos já não se lembram, pois se perderam no tempo. Não poucos, embora à distância, ainda as guardam na lembrança: as brincadeiras de criança... As enormes áreas eram testemunhas de muitas alegrias, e as ruas proporcionavam não só o caminhar, mas também o brincar. Os grandes quintais eram concorridos, com todas as opções que ofereciam, e suas frondosas árvores eram fontes inesgotáveis de recursos, para o balanço, a casa, o esconderijo... Locais para diversões não faltavam, proporcionando possibilidades para as mais diversas brincadeiras, como as de roda, a bandeirinha, a amarelinha, o pique e muitas outras...

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Os pais não tinham lá tanta preocupação com o andar de bicicleta, de patinete ou de carrinho de rolimãs.

Geraldo Vieira de Magalhães é psicólogo (CRP 08/06392). gvm.vieira@terra.com.br

Mas os espaços tão amplos foram diminuindo. Os veículos tomaram conta das ruas e os grandes quintais cederam lugar aos mais variados tipos de imóveis. Em paralelo, o setor tecnológico ampliou o seu negócio. A TV, cada vez mais adentrou os lares, proporcionando um novo tipo de lazer. A comodidade oferecida encontrou apoio ante a gradativa redução dos espaços. E aquelas brincadeiras, tão sadias e colaboradoras ao desenvolvimento infantil, foram sendo deixadas de lado, esquecidas...

BRINCADEIRA DE CRIANÇA

Surgem os jogos eletrônicos, nas mais variadas formas e o computador cada vez mais aperfeiçoou essa modalidade de diversão. E assim lá se vão muitas horas frente a esses estímulos audiovisuais.

Editora Larousse Júnior

Embora as vantagens, por um lado, existam, há, por outro, desvantagens, como a falta de contato com as coisas da natureza, como o sol e o ar puro, além do refúgio na individualidade e o favorecimento às disfunções metabólicas, como a obesidade e outras situações nocivas à saúde. Energia artificial é necessária, inovações tecnológicas de lazer devem ser estendidas à infância, mas não se pode esquecer da força natural, da energia que nasce e cresce dentro de cada criança e que precisa ser libertada, desenvolvida... Criança necessita de integração, socialização, movimentação e espaço, dar asas à sua imaginação. E, para isso, nada melhor do que incentivar, proporcionar e preservar algo que lhe é tão peculiar e inerente: as suas próprias brincadeiras. Espontâneas, criativas, naturais, elas são elementos importantíssimos para um crescimento saudável e, consequentemente, uma vida mais feliz. (Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br)

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ANNA CLAUDIA RAMOS

O bom de ser criança é brincar de qualquer coisa que dê na telha: princesa, pirata, caubói, jogador de futebol... Opa! Minha tia disse que só menino pode jogar futebol! Será? O livro de Anna Claudia rompe preconceitos e mostra que não há brincadeira de menino e brincadeira de menina. O que existe, e é gostoso, é brincadeira de criança.

RITUAIS E BRINCADEIRAS VERA BARROS DE OLIVEIRA

Editora Vozes Esta obra mostra como os rituais e brincadeiras auxiliam na formação da personalidade e no desenvolvimento saudável do ser humano, em todas as fases da vida. Contribui, desta forma, para a formação, manutenção e preservação dos processos cognitivos, afetivo-emocionais e socioculturais. Baseado em recentes pesquisas no campo da Psicologia e da Educação, este é um texto escrito de forma didática destinado inicialmente a profissionais de Saúde e Educação.


Lendo em outras

frequĂŞncias:

O CLUBE DA

LEITURA

Por Luciane Hagemeyer

Veja como as teorias da leitura podem contribuir para embalar instigantes e animados encontros de jovens leitores. E como um clube da leitura consegue despertar o debate para a literatura e por meio da literatura. 7


Seria mais fácil fazer como todo mundo faz sem sair do sofá, deixar a Ferrari pra trás seria mais fácil, como todo mundo faz o milésimo gol sentado na mesa de um bar... Outras frequências, Engenheiros do Hawaii

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Este artigo não está aqui para tentar convencer ninguém a respeito da importância do ato de ler. Até porque parece que ler não é mais fundamental. Pelo menos é o que está escrito na revista Galileu deste último mês de outubro. De acordo com Pierre Bayard, professor de literatura da Universidade de Paris, e Daniel Pennac, escritor, “ler um livro da primeira à última página não é necessariamente uma virtude”. Concordo. Jamais leria um livro de astrofísica do início ao fim. Talvez não passasse nem do índice. No entanto, o professor Bayard, em seu livro Como falar dos Livros que Não Lemos?, afirma que “ser culto é ser capaz de se orientar rapidamente em uma obra, e essa orientação não implica sua leitura integral”. O que a revista não diz, no entanto, é que para atingir este “nível” de cultura, não existem atalhos. Ninguém chega ao milésimo gol sem entrar em campo, sem fazer muita bola rolar.

Mas ainda não li o Bayard. Estou interpretando o que “alguém” escreveu sobre seu livro. Este “alguém” registra que para o autor em questão “a leitura passa por meios-termos como deixar o livro fechado, ouvir falar sobre ele, percorrer suas páginas...”. Concordo, afinal quem dá conta de ler tudo o que há para ler? No entanto, este é “um tipo de leitura”, entre tantos outros possíveis. E diz também que a luta do escritor Daniel Pennac é pelo direito à não-leitura. Equívoco do articulista: Pennac afirma que não precisamos ler aquilo que não nos interessa. Daí a concluir que não precisamos ler nada já é outra coisa. Para finalizar, o redator do artigo propõe um teste: “experimente discutir com seus amigos Ulisses, de James Joyce. Provavelmente todos terão uma opinião formada, ainda que nenhum deles tenha lido de cabo a rabo o romance”. Que maravilha! Todos são capazes de fazer uma resenha crítica sobre Ulisses! Não precisamos ler nada. Basta ouvir falar sobre os livros ou ler coi-

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sas deste tipo, que saberemos o que é necessário saber. Seremos cultos. “Livre-se das velhas ideias!” Esta é a chamada. Acredito que leitores de verdade sejam aqueles que leem voluntariamente e sempre. Aqueles que leem uma grande variedade de materiais. Confiam em si mesmos como leitores. São considerados “leitores” em relação aos demais. Leem para estar informados sobre uma série de assuntos. Leem para satisfazer curiosidades e se sentirem recompensados por compartilhar outras experiências. Leem para expandir seu mundo para além do aqui e do agora. Colecionam livros e sabem reconhecer seus favoritos, pois já os leram mais de uma vez. Recomendam leituras para os outros. Conversam com os outros sobre o que leem. Conhecem autores, gêneros e estilos variados. Analisam, criticam, ponderam. Estabelecem conexões entre a leitura e suas experiências de vida e de leitura. Sim, precisamos nos livrar das “velhas ideias”, pois “todos nós” fazemos “tudo” isso desde criancinhas. Não precisamos de mais nada, este ideal já foi atingido. E superado. O longo caminho que leva à capacidade “de se orientar rapidamente em uma obra”, em que “essa orientação não implica sua leitura integral”, como afirma Bayard, parece já ter sido percorrido por todos nós. O fato é que a leitura, como os demais valores que tomamos para a nossa vida, nunca foi nem nunca será uma unanimidade. Sim, pois há pessoas que simplesmente não gostam de ler, assim como há pessoas que não gostam de futebol, o que causa, sem dúvida, espanto um pouco maior. Mas então, qual é o problema? Existe algum mal nisso? Ler, se informar, ter o que dizer, são coisas que, acredito, ainda têm lá o seu valor. Na prática, dá para perceber que a piazadinha até acha legal, mas


às vezes diz que é chato, demora, ler é ter que ficar um tempão se dedicando a apenas uma coisa só e eles têm que conversar com muita gente pelo MSN, baixar umas músicas, estudar para a prova, fazer uma pesquisa no Google e ainda assistir àquele programa da Nickelodeon. Realmente, parar tudo por causa de um livro, só se for muuuuito bom, como aquela série da Stephanie Meyer. E se eles entraram para o Clube de Leitura? Afinal, o que eles vão ganhar com isso? As crianças, os jovens, todo mundo é um “ser de vontade”. No entanto, cada um tem a sua maneira de sentir a realidade. Todos estão mudando o tempo todo, passando por novas experiências, envelhecendo, lidando com diferentes emoções e sentimentos. As rodas de leitura que são realizadas no Clube priorizam as questões que os alunos formulam a respeito não só a partir dos livros que leem, mas também daquilo que vivem. Imagine esta cena: se você der uma espiadela nos encontros semanais, verá grupos de cinco ou seis pessoas conversando de modo entusiasmado sobre os capítulos que leram nos dias anteriores ao encontro. Se observar mais de perto, verá que cada um deles possui alguns dados escritos que envolvem o registro de conclusões pessoais, a razão da identificação com um ou outro personagem, a síntese do que foi lido, as previsões para os próximos capítulos, uma lista de elementos comparativos e contrastantes, as relações de causa e efeito que entremeiam a narrativa, dados que são fruto de relações de inferência, descrições de cenários e personagens de acordo com as imagens mentais produzidas. Ficção e vida real. Em um mundo repleto de “informação”, o clube da leitura está aí para ajudar na construção de um discurso pessoal mais autêntico, na desconstrução de ideias pré-concebidas e das fórmulas de comportamento. O papel de cada leitor pode ser alterado a cada encontro, dependendo da obra escolhida. Na partilha de ideias, cada um é responsável por fornecer subsídios e assistência para os demais. Deste modo, os leitores mais tímidos são provocados a participar das conversas. Suas motivações, valores e objetivos são promovidos ao assumir o papel que lhes cabe no grupo, tanto

ao expressar ideias que os outros não haviam pensado, como tendo a chance de ouvir, falar e discutir sobre os livros. Além disso, no Clube da Leitura, os alunos desenvolvem as habilidades sociais necessárias para o convívio em grupo, ampliam sua capacidade de estabelecer relações e de apreciar a literatura de maneira estética. A proposta do Clube da Leitura procura ir além da aprendizagem sobre a literatura (oferecer complemento ao estudo da matéria didática que a grade curricular da escola oferece), pois se apresenta centrada na ampliação das dimensões que envolvem a aprendizagem por meio (ampliar o conjunto de estratégias de compreensão de leitura e das habilidades do pensar) e da literatura (pois pretende enfatizar a formação de sujeitos leitores e pesquisadores por meio do contato com obras literárias e sua leitura integral, individual e partilhada, intensiva e extensiva). Ok. Os integrantes do Clube da Leitura não sabem quem é James Joyce. Ainda. Não ouviram falar de Ulisses, nem de Os Dublinenses, e também não sabem nada sobre o personagem Stephen Dedalus. Não têm uma opinião formada sobre estas obras. Talvez isso demore anos. Mas já entraram em campo e estão a caminho do milésimo gol, ou melhor, do milésimo livro... *A proposta do Clube da Leitura foi incorporada pelo Departamento de Arte e Cultura do Colégio Mediameira no ano de 2009. Tratase de uma oficina oferecida como modalidade extracurricular (junto às demais atividades do setor, como dança, teatro, artes plásticas, cinema e vídeo), sendo atualmente ofertada a todos os alunos da 3ª. à 6ª. série (4º. ao 7º. ano) do Ensino Fundamental, das 18h às 19h 40min, duas vezes por semana. O projeto foi um dos finalistas da edição 2008 do Prêmio Vivaleitura, uma iniciativa do Ministério da Educação (MEC), do Ministério da Cultura (MinC) e da Organização dos Estados Ibero-americanos para Educação, a Ciência e a Cultura (OEI). O Prêmio Vivaleitura faz parte do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL). (Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br)

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Luciane Hagemeyer é professora do Ensino Fundamental, formada em Letras Português/Inglês pela UFPR, com pósgraduação em Currículo e Prática Educativa pela PUCRio e mestre em Estudos Literários pela UFPR. É responsável pelo projeto do Clube da Leitura.

COMO FFALAR ALAR DOS LIVROS QUE NÃO LEMOS? PIERRE BAYARD

Editora Objetiva Neste ensaio, Pierre Bayard trata uma questão comum no dia-a-dia - como falar dos livros que não lemos? Numa mesa de bar, numa reunião em família ou numa roda de amigos é preciso ter noções dos assuntos em pauta para não passar vergonha. Bayard considera o ‘não-leitor’ uma figura tão importante como o devorador de livros.

COMO UM ROMANCE DANIEL PENNAC

Editora Rocco Em ‘Como um romance’ Pennac questiona, através da recriação ficcional do ambiente de uma sala de aula, a razão de os jovens não gostarem de ler. Baseado em suas próprias experiências como professor, ele ensina e aí reside todo o charme do livro - como recuperar nos alunos o gosto pela leitura, um ato esquecido neste fim de século dominado pela comunicação em massa. Acima de tudo, Pennac quer mostrar que o ato de ler é um ato de prazer e não de obrigação.

UM RETRA TO DO ARTIST A QUANDO JOVEM RETRAT ARTISTA JAMES JOYCE

Editora Alfaguara ‘Um retrato do artista quando jovem’, romance de estreia do escritor irlandês publicado em 1916, é o despertar intelectual de um dos personagens literários mais célebres. Semiautobiográfico, o livro conta o processo de transição do jovem Stephen Dedalus para a maturidade e o autoconhecimento. Ele deseja profundamente ser um artista, mas, primeiro, precisa vencer as forças que reprimem sua imaginação - as convenções da sociedade. Nesta obra, Joyce apresenta o uso sistemático do monólogo interior - desde o primeiro capítulo somos introduzidos na mente de Stephen Dedalus e convidados a acompanhar seus pensamentos, reações e os processos psíquicos de sua consciência. Trata-se de um dos primeiros exemplos da técnica narrativa do fluxo da consciência. ‘Um retrato do artista quando jovem’ reflete a profunda relação de amor e ódio que o autor manteve durante toda a vida com sua terra natal, Dublin, e com a cultura que o formou.

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? CIVIL

QUEM É ESSA TAL DE

SOCIEDADE

Por Ramon José Gusso

Volta e meia ouvimos essa expressão: sociedade civil organizada. Mas às vezes nos falta preencher essa expressão com um sentido teórico capaz de nos fazer ver com mais clarividência as suas várias implicações e nuances na vida das pessoas. 11


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O conceito de sociedade civil parece algo ambivalente, difícil de apreender. É um conceito utilizado genericamente por todos e em qualquer circunstância. Lembro um colega que em um evento participativo, quando foi indagado sobre o seu vínculo (a quem representava), diante do constrangimento de representar somente a si mesmo, visto que todos ali representavam alguma instituição, um movimento social ou uma ONG, preferiu dizer que era representante da sociedade civil organizada. Mas quem é a sociedade civil? Assim, para não cairmos em constrangimentos ou em erros teóricos, é fundamental termos claro a quem nos referimos quando genericamente utilizamos este conceito, ou seja, quais grupos, quais interesses em jogo e quais projetos políticos estão representados.

Segundo Evelina Dagnino (2004), o conceito de sociedade civil assume uma forte centralidade no Brasil principalmente a partir da década de 1990, quando há uma confluência perversa entre dois projetos divergentes e antagônicos de sociedade. Por um lado, há uma maior ampliação dos princípios e experimentações democráticas, como Conselhos Gestores, Conferências e Orçamentos Participativos e por outro há a emergência do projeto neoliberal que busca diminuir o papel do Estado e transferir funções para a sociedade civil. A confluência perversa é que para os dois projetos de sociedade é necessária a existência de uma sociedade civil dinâmica, ativa e propositiva. É perverso também porque, nos dois projetos, os referenciais discursivos são os mesmos, porém com significados distintos para participação, sociedade civil, cidadania e democracia (Dagnino, 2004). Enquanto uma visão mais democrática de sociedade civil está ligada à cidadania, à conquista e ampliação de direitos por meio da política, a outra leitura de sociedade civil utiliza-se das mesmas palavras para despolitizar o

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seu sentido semântico, ao reduzir cidadania à solidariedade, ação política coletiva às ações individuais, a luta por direitos à inserção no mercado. Reduz também sociedade civil e movimentos sociais ao Terceiro Setor ou, muitas vezes, a Organizações não Governamentais. Para uma melhor compreensão deste debate, é necessário resgatar algumas concepções a respeito do conceito de sociedade civil. Uma das primeiras definições de sociedade civil foi apresentada por Gramsci. Para o autor marxista, a sociedade está dividida metodologicamente em sociedade civil e sociedade política, o que caracteriza a noção de estado ampliado (Liguori, 2003). A sociedade civil representa o espaço em que são formulados e difundidos os valores morais, a cultura e a ideologia de classe. Essa é composta por diversas organizações, tais como associações sindicais, políticas e culturais. Aqui a dominação de classe se faz não pela coerção, mas pela produção de consensos ideológicos e direção política, o que caracteriza a hegemonia (Costa, 2002). A sociedade política, para Gramsci, representa o conjunto de instituições que impõe coercitivamente a dominação de classe, tais como: sistema judiciário, administrativo e policial. A junção entre sociedade civil e sociedade política forma o Estado. Assim, o Estado é o conjunto de instituições pelas quais uma classe exercerá seu domínio coercitivo e direção intelectual e moral. Para Gramsci, as classes disputam a hegemonia; assim, a luta de classe se realiza tanto na sociedade civil como na sociedade política. A transição para o socialismo se daria antes da conquista do poder ou do governo, começaria com a luta para construir uma nova hegemonia ou novo consenso ideológico na sociedade civil, o que caracterizaria a “guerra de posição”. Assim, a passagem para o socialismo pressupõe a conquista de espaços políticos de formação de consensos em conjunto com a luta institucional (Nogueira, 2003. Duriguetto, 2007). A inovação teórica colocada por Gramsci é, portanto, a divisão da superestrutura em sociedade civil e sociedade política, enquanto a infraestrutura continua inalterada, formando assim o modelo tripartite gramsciano: mercado, sociedade civil e sociedade política (Costa, 2002).


Outro modelo interpretativo sobre a sociedade civil é apresentado por Cohen e Arato (1994), a partir do referencial teórico de Habermas. Para os autores, assim como em Habermas, a sociedade se apresenta em um modelo tripartite, entre sociedade civil, Estado e mercado. Esse modelo apresenta certa autonomia entre as partes, o que caracterizaria, portanto, lógicas diferenciadas entre o mundo da vida (sociedade civil) e o sistema (Estado e mercado). O mundo da vida seria composto por três componentes estruturais: a cultura, a sociedade e a personalidade, o que permite aos atores – por meio de processos comunicativos – partilharem uma tradição cultural, que é reconhecida de forma subjetiva por todo o participante, formando identidades individuais e sociais. Assim, cada cultura cria suas instituições responsáveis por normatizar, transmitir, reproduzir, integrar e socializar determinadas tradições e identidades. Cohen e Arato (1994) colocam que a estrutura jurídica desenvolvida é condição de existência de uma sociedade civil, pois permite que haja a liberalização e mediação das partes. Assim, à sociedade civil pertencem os direitos de reprodução cultural – liberdade de pensamento, imprensa, expressão e comunicação; os direitos de integração social – liberdade de associação e reunião e os direitos de socialização – privacidade, intimidade e inviolabilidade do indivíduo; ao mercado pertencem os direitos de propriedade e contratos de trabalho e ao Estado pertencem os direitos políticos e de bem-estar. Dessa forma, o direito garante a existência de uma esfera pública em que sociedade civil, mercado e Estado são diferenciados, mas estabelecem regras de convívio por meio de uma democracia comunicativa. Porém, quando há penetração da lógica do sistema (poder e mercado) sobre as instituições da sociedade civil, ocorre o que Habermas denomina de colonização do mundo da vida. O caráter negativo da sociedade civil se daria pelo grau de colonização do mundo da vida que acarreta o comprometimento da ação comunicativa. Para Cohen e Arato (1994), este modelo tem vantagens analíticas em relação aos modelos dicotômicos (Estado como esfera pública e sociedade civil como esfera privada), pois complexifica o conceito, tornando-o uma categoria analítica que permite entender as múltiplas relações e influências que ocor-

rem tanto da sociedade civil para o Estado e Mercado ou vive-versa. No entanto, para os autores, esse processo também permite o surgimento de novas organizações na sociedade civil de caráter igualitário e democrático. A regulação jurídica não se impõe exclusivamente como um meio de dominação; assegura também à sociedade civil autonomia, direitos e expansão de um espaço público democrático. Assim, os autores atribuem um papel central para os movimentos sociais na criação e ampliação desse espaço público. Os movimentos sociais possuiriam tanto um papel reativo de defesa diante de processos de colonização do mundo da vida, como de ofensiva (proposição e influência) sobre a lógica do Estado e do mercado. (Costa, 2002). Sérgio Costa chama o modelo de Cohen e Arato de vertente enfática, uma vez que propõe um modelo normativo de democracia e de sociedade civil. O autor apresenta também a vertente moderada em que a sociedade civil seria uma categoria propriamente empírica destituída de princípios político-emancipatórios. Para essa corrente, sociedade civil seria entendida como o conjunto de instituições que formariam o espírito cívico e a consciência coletiva de uma sociedade, capaz de neutralizar tendências desintegradoras advindas pela competição de interesses privados. Tal perspectiva – adverte Dahrendorf apud. Costa – pressupõe uma sociedade civil etnicamente homogênica. No Brasil, o conceito de sociedade civil ganha centralidade durante o regime militar, com função político-estratégica de resistência à ditadura, marcada pela oposição ao Estado e sociedade e, nas décadas seguintes, passa a funcionar propriamente com um conceito analítico-teórico, utilizado para caracterizar a emergência do conjunto de práticas associativas e dos “novos” movimentos sociais no contexto da redemocratização (Costa, 2002; Lüchmann, 2003). Durante a década de 1980, predominavam estudos marxistas, principalmente aqueles voltados à interpretação gramsciana de sociedade civil. Com o aprofundamento da democracia, novas organizações passam a se incorporar à sociedade civil, tais como movimentos sociais temáticos e ONGs; com isso, as estratégias de ação da sociedade civil são reconfiguradas, tais

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de crenças, interesses, concepções de mundo [e] representações do que deve ser a vida em sociedade”. Isto caracteriza a noção de projeto político e significa dizer que os projetos políticos circulam e estão em disputa pela ação desses vários atores: Estado e sociedade civil possuem projetos políticos que podem ora se aproximar, ora se distanciar, gerando tipos de relações conflituosas ou não. Nesse sentido pode-se dizer que também existem disputas pela construção de consensos, o que, numa leitura gramsciana, seria a disputa pela hegemonia. Dessa forma, importa, também, desvelar todos os sentidos e projetos políticos que estão por detrás da utilização do conceito de sociedade civil, evitando, portanto, tratá-lo em um sentido figurado em que supostamente todos os grupos e organizações e seus respectivos interesses estariam agregados de forma homogênea sob o véu da sociedade civil.

ações estão cada vez mais voltadas para o estabelecimento de parcerias e cooperação com o Estado. Essa reconfiguração se dá também graças à nova institucionalidade do Estado, principalmente no que se refere a sua abertura à participação popular, por meio de conselhos, orçamentos participativos e conferências (Lüchmann, 2003; Dagnino, 2004). E, para o entendimento dessa reconfiguração da sociedade civil, novos aparatos analíticos são utilizados, principalmente aqueles inspirados em Habermas (Lavalle, 2003). A definição sobre o conceito de sociedade civil não é uma assunto restrito apenas a pesquisadores, o seu sentido é também disputado e preenchido por outros atores sociais, tais como o Estado, o mercado e movimentos sociais. O que importa compreender nesse debate é que nem o Estado é homogêneo nem a sociedade civil possui o mesmo interesse. Assim afirmam Dagnino, Olvera e Panfichi (2006, pg. 38): a ação política de diferentes sujeitos é orientada por “um conjunto

(Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br)

Ramon José Gusso é bacharel e licenciado em Ciências Sociais (UFPR), mestrando em Sociologia Política (UFSC), bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e membro da Ambiens Sociedade Cooperativa.

NOTA: 1

DEMOCRACIA ADE CIVIL E P ARTICIP AÇÃO DEMOCRACIA,, SOCIED SOCIEDADE PARTICIP ARTICIPAÇÃO

Há evidentemente interpretações de sociedade civil anteriores, como de Hobbes, Hegel, Marx e aquelas produzidas por autores da corrente liberal.

REFERÊNCIAS: ARATO, A.; COHEN, J. Sociedade civil e teoria social. In: AVRITZER, L. (Org.). Sociedade civil e democratização. Belo Horizonte: Del Rey, 1994.

LUCIANA TATAGIBA E EVELINA DAGNINO (ORGS.)

Editora Argos A obra se constitui de uma seleção de trabalhos sobre ‘Sociedade civil e os novos espaços públicos de participação e deliberação’, apresentados no III Congresso da Associação Latino-Americana de Ciência Política, realizado na UNICAMP, em setembro de 2006. Ela é representativa, de certa maneira, de um novo patamar na produção acadêmica sobre essa temática. O conjunto destes trabalhos se caracteriza, em primeiro lugar, pelo abandono do registro celebratório e otimista que marcou a primeira leva de estudos sobre o potencial democratizador tanto da sociedade civil como dos espaços participativos que a abrigam.

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COSTA, S. Sociedade civil e espaço público. As cores de Ercília. BH, ed UFMG, 2002. DAGNINO, E. Sociedade civil, participação e cidadania: de que estamos falando? In: En Daniel Mato (coord.), Políticas de ciudadanía y sociedad civil en tiempos de globalización. Caracas: FACES, Universidad Central de Venezuela, 2004. DAGNINO, E., OLVERA, A. J. e PANFICHI, A. Para uma outra leitura da disputa pela construção democrática na América Latina. In: DAGNINO, E., OLVERA, A. J. e PANFICHI, A. (orgs). A disputa pela construção democrática na América Latina. SP: Paz e Terra; Campinas: Unicamp, 2006. DURIGUETTO, M. L. Sociedade civil e democracia. São Paulo: Cortez, 2007. HABERMAS, J. Três modelos normativos de democracia. Lua Nova, Cedec, São Paulo, 1995. LAVALLE, A.G. Sem pena nem gloria, o debate sobre sociedade civil nos anos 1990. Novos Estudos Cebrab, São Paulo, 2003. LIGUORI, G. Estado e Sociedade Civil: entender Gramsci para entender a realidade. in Ler Gramsci, entender a realidade. Rio de Janeiro: International Gramsci society/Ed. Civilização Brasileira, 2003. LUCHMANN, L. H: H. Redesenhando as relações sociedade e Estado: tripé da democracia deliberativa, Revista Katálysis. Florianópolis: ED. UFSC, 2003. NOGUERA. M.A. As três idéias de sociedade civil, o Estado e a politização. In: COUTINHO, N.C. TEIXEIRA, A.P. Ler Gramsci, entender a realidade. Rio de Janeiro: International Gramsci society/Ed. Civilização Brasileira, 2003.


O caminho de

PEABIRU Por José Vanderlei Dissenha

Proporcionando desenvolvimento das cidades bem como um resgate histórico-cultural importante para nosso desmemoriado país, pesquisadores se debruçam sobre o Caminho do Peabiru, que vem se tornando importante ponto turístico.

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Bem antes de o homem branco explorar a América, uma extensa malha viária atravessava a porção sul do continente. O Caminho de Peabiru, que é uma rota milenar que ligava o Oceano Atlântico ao Pacifico e que percorria os países do Brasil, Paraguai, Argentina, Bolívia e Peru, era o tronco principal desta malha viária. Ele tinha extremos nos oceanos Atlântico (em locais que hoje correspondem a São Vicente, litoral norte de São Paulo, e Florianópolis, em Santa Catarina) e Pacífico (em pontos onde atualmente situam-se as cidades peruanas de Tacna, Arequipa e Moquegua). O caminho possui grande importância histórica, pois, entre outras coisas, serviu para as andanças e até grandes migrações de povos indígenas e mais tarde, para a descoberta de riquezas, criação de missões religiosas, comércio, fundação de povoados e cidades.

OS PRIMEIROS EUROPEUS NO CAMINHO DE PEABIRU Aleixo Garcia um português que utilizou o Peabiru, foi o primeiro europeu a fazer contato com os Incas, e a penetrar o interior do Brasil e do Paraguai em busca de um acesso às riquezas desse povo, no ano de 1524, a partir do litoral de Santa Catarina e rumando para oeste, seguindo o caminho traçado pelos índios, chegou à região de Assunção, no Paraguai. Também pelo Peabiru passaram Alvar Nuñes Cabeza de Vaca (considerado o descobridor das Cataratas do Iguaçu) em 1541 e Ulrich Schmidel em 1553. Jesuítas como Pedro Lozano e Ruiz de Montoya também o percorreram em suas missões de catequese aos guaranis. Um século mais tarde, seria também pela via do Peabiru que Raposo Tavares e outros bandeirantes paulistas seguiriam para realizar seus devastadores ataques às missões do Guairá, no atual estado do Paraná.

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Depois de 1630, quando os bandeirantes entraram no Paraná e destruíram as cidades espanholas e as missões dos jesuítas, o Peabiru foi praticamente abandonado. O caminho ainda conseguiu retomar vida no final do século XIX, quando serviu, mais uma vez, para entrada de uma nova leva de homens brancos, os colonizadores pioneiros do interior do Paraná.

RESGATE HITÓRICO E CULTURAL DO CAMINHO DE PEABIRU No inicio dos anos 70, o arqueólogo Igor Chmyz, da UFPR, descobriu alguns trechos de um ramal do Caminho de Peabiru, na cidade de Campina da Lagoa, próxima a Campo Mourão. Ele relatou essas descobertas e até então seus registros eram a única fonte de pesquisa sobre o caminho na região. A partir disso, nada mais se encontrava de registros atuais sobre o caminho. Em 1995, quando era assessora de imprensa da prefeitura de Campo Mourão, a jornalista Rosana Bond iniciou seus estudos sobre o Caminho de Peabiru, a partir de um pedido do prefeito Rubens Bueno. Rosana logo de inicio constatou que tal missão não seria tão fácil, pois fazia anos que existia um silêncio quase absoluto sobre o assunto, tanto nas repartições públicas, quanto nas escolas e na imprensa da região. E os poucos vestígios físicos preservados, a cada ano estavam desaparecendo. Então Rosana Bond visitou cidades como Curitiba, Maringá, Pitanga, Fênix e o vizinho Paraguai, em busca de registros e documentos que contassem a história do Caminho de Peabiru na região de Campo Mourão. Conseguiu documentos e apoio para estender suas pesquisas sobre o assunto, conversou com pesquisadores e chegou a publicar um livro sobre o Caminho de Peabiru (cf. Dicas e Indicações no final deste artigo). O movimento visando resgatar o Caminho de Peabiru do esquecimento logrou êxito em âmbito nacional e mundial, mas na cidade de Campo Mourão, onde esse movimento se iniciou, o tema voltou a cair no esquecimento. O que motivou um pouco esse esquecimento foi a mudan-


ça de Rosana Bond de Campo Mourão para Florianópolis, transferindo para Santa Catarina os contatos com pesquisadores que trabalhavam nos estudos sobre o caminho. Em março de 2004, visando dar sequência ao projeto de resgate do Caminho de Peabiru na região de Campo Mourão e agradecer o apoio recebido em suas pesquisas e trabalhos iniciais na cidade, Rosana Bond reúne sua equipe de trabalho e de pesquisadores e lança, no Teatro Municipal de Campo Mourão, a ideia do pré-projeto turístico e cultural “Caminho de Peabiru: o Compostela da América do Sul”. No evento de pré-lançamento do projeto Caminho de Peabiru, foi definido que os municípios da região deveriam formar grupos pró-Peabiru, para incentivar pesquisas e levantamentos de informações e vestígios do caminho, visando buscar o apoio de empresários e autoridades, convidando-os a aderirem ao futuro projeto turístico em torno do Caminho de Peabiru.

RESGATE DA MEMÓRIA DO CAMINHO DE PEABIRU O Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre o Caminho de Peabiru na Região de Campo Mourão (NECAPECAM) surgiu pela necessidade que seus integrantes viram de resgatar a história do Caminho e de conservar alguns de seus trechos que ainda existem na região. O NECAPECAM faz explorações de estudos e pesquisas semanalmente ou quinzenalmente na região, registra, escreve, armazena dados para a sua pesquisa e para ainda muitas outras que possam interessar. O Núcleo de Estudos e Pesquisas de Campo Mourão sobre o Caminho de Peabiru debruçouse sobre documentos, pesquisas, estudos nas mais diferentes áreas para compreender melhor a história do Caminho, para fazer desse Caminho um projeto turístico como opção econômica de alto alcance social. Esse Núcleo de Campo Mourão buscou atrair não apenas o turismo, mas também atividades para os mais diferentes segmentos profissionais, como o da gestão empresarial, da arquitetura, das enge-

nharias, da arte, oferecendo novas oportunidades de modelos, baseados na cultura, na ecologia, no próprio campo místico, buscando inovar a estrutura das cidades envolvidas, suas edificações, sua comercialização, sua economia e sua rotina. No projeto de resgate histórico, acontecem investigações referentes aos acontecimentos ambientais, econômicos, linguísticos, sociais e culturais que envolveram tanto os índios guaranis como as populações que viveram e vivem ao entorno da rota. Por essa razão, o projeto é grandioso, não apenas na abordagem, mas principalmente em sua extensão. O que se pode verificar é o aumento da autoestima das populações do entorno, da busca das raízes e da identidade dessas mesmas populações. O projeto desenvolvido pelo NECAPECAM também busca uma maior compreensão dos fenômenos ambientais, que sofreram e sofrem com a agressão feita ao meio ambiente pelas desmedidas ações da exploração que os processos colonizadores do século XX provocaram. Durante as peregrinações promovidas pelo NECAPECAM, também são desenvolvidas explorações que colhem informações inéditas e também se conhecem caminhos, matas, documentos, materiais líticos e vestígios naturais em pedras.

PEREGRINAÇÕES As peregrinações são um jeito que o NECAPECAM utilizou para “batizar” os trechos que prepara para um projeto de turismo regional. Uma forma de turismo diferente, que visa à conscientização da preservação dos trechos e da memória do Caminho de Peabiru. Em outubro de 2004, foi organizada em Campo Mourão a primeira peregrinação pelo Caminho de Peabiru. Os peregrinos atravessaram planícies, rios, reservas florestais, serras, cachoeiras, passando por sítios, fazendas, igrejas, escolas e pequenas comunidades que lembram a história da colonização da região. Com apoio logístico de muitos voluntários e acompanhamento de técnicos do IAP – Instituto Ambiental do Paraná –, os peregrinos caminharam o dia todo seguindo a rota original

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do Caminho de Peabiru. O trajeto percorrido pelos peregrinos tinha sido demarcado anteriormente por estudiosos. Após a primeira peregrinação realizada em 2004, outras peregrinações foram organizadas em 2005, 2006, 2007, 2008 e 2009, num total de oito peregrinações em seis anos. Cada uma das peregrinações percorreu um trecho diferente do Caminho de Peabiru na região e em cada uma delas foi feito um trabalho de campo visando estudar um pouco mais a região que seria percorrida. Também foi feito um trabalho de conscientização dos moradores locais sobre a história do Caminho de Peabiru e a importância de se preservar sua história e os pequenos trechos originais ainda existentes. É muito difícil afirmar a rota exata do Caminho, historicamente, mas é possível traçar um roteiro aproximado. Bond (2004) descreve o tronco principal paulista começando em São Vicente e Cananéia, seguindo a direção do rio Tietê, no município de Itu, rio Paranapanema, rio Itararé, nascente do Ribeira do Iguape. Entrando no Paraná, percorria, ainda segundo Bond, Doutor Ulisses, Cerro Azul, Castro, Tibagi, Reserva Cândido de Abreu, Pitanga, Guaraniaçu, Corbélia, Nova Aurora, Tupãssi, Assis Chateaubriand, Palotina, Guairá. O tronco principal catarinense, continua Bond, iniciava-se provavelmente no Massiambu (Palhoça), seguindo por Florianópolis, litoral norte, rio Itapocu, Guaramirim, São Bento, Mafra. Esse tronco principal entrava no Paraná por Rio Negro, Campo Tenente, Lapa, Porto Amazonas, Palmeira, Castro. Esses troncos principais espalhavam-se por ramais, formando uma rede complexa. E é por esses ramais que o NECAPECAM trilha em pesquisas e explorações históricas para definir sua rota turística.

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Os estudos sobre o Caminho do Peabiru empreendidos pelo NECAPECAM na região de Campo Mourão estão contribuindo para dois importantes movimentos culturais: o de levantamento proto-histórico e histórico da região e o de formação de uma rota turística baseada no turismo de peregrinação. Embora as origens e a construção do caminho de Peabiru permaneçam incógnitas, é fato que os guaranis usavam-no como o caminho da busca da Terra sem mal. Isso motiva a que o turismo de peregrinação adquira a característica de retomar tal tradição, ressignificando a proposta. Também instiga os pesquisadores a conhecerem melhor a nação guarani – berço do Guairá. (Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br)

José Vanderlei Dissenha trabalha no Departamento de Pessoal do Colégio Medianeira. É formado em História pelas Faculdades Integradas Espírita e faz Pós Graduação em Ensino de História e Geografia, na Facinter. Desde que conheceu o projeto de resgate do Caminho de Peabiru, passou a estudar o assunto e participou de quatro peregrinações pelo caminho.

Site do Necapecam, com mais informações sobre o Caminho de Peabiru: http://www.caminhodepeabiru.com.br/

HISTÓRIA DO CAMINHO DO PEABIRU – DESCOBERT AS E SEGREDOS D A DESCOBERTAS DA RO TA INDÍGENA QUE LIGA VA O ROT LIGAV ATLÂNTICO AO PACÍFICO

ROSANA BOND


DICAS para você estudar

NOSSA LÍNGUA

PORTUGUESA... MAS NÃO É BEM ASSIM... Por Fabiano Pinkner Rodrigues

O imaginário das pessoas sobre sua língua ainda é o de que ela é apenas um sistema de formas utilizado para a comunicação. Quanto melhor a pessoa domina esse sistema, melhor se comunica, aprende, expõe seus pensamentos.

É comum entre os alunos ouvir que há dificuldades quando o assunto é estudar nossa Língua Portuguesa. Afinal, qual o conteúdo a ser estudado? Em um outro contexto, quando o ensino de língua materna era basicamente o estudo das normas da Gramática Tradicional, determinar o que deveria ser estudado em determinado período, ou para determinada prova, era tarefa fácil. No entanto, a partir das contribuições da Linguística (ciência que estuda as línguas humanas) para o ensino, por exemplo, de português, o olhar sobre nossa língua foi alterado e a Gramática Tradicional foi incorporada a uma série de outros aspectos linguísticos que devem ser estudados, pesquisados, analisados.

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Diante disso, o que pode ser definido é na verdade um comportamento diante dos fatos linguísticos (na oralidade e na escrita) que deve ser exercitado. De forma breve e objetiva, abaixo vão algumas dicas para você que quer, mas não sabe o que fazer quando o assunto é estudar Português! 1. Considere sua língua materna uma realidade complexa que vai muito além do simples “certo” ou “errado”. 2. As normas existentes na língua variam de acordo com o contexto, as pessoas, o espaço, o tempo... 3. A norma que você aprende na escola é uma das várias que você encontra no dia-a-dia. Ela é chamada de norma-padrão e tem como referência a Gramática Tradicional. 4. Os livros “Gramática Tradicional”, “Gramática da Língua Portuguesa”, “Minigramática”, “Curso de Gramática Aplicada aos Textos” e outros mais são, todos, uma espécie de “manual” para o uso da norma-padrão do português. 5. Como já dissemos que o “correto” e o “errado” na língua não é algo tão simples assim, pode-se dizer que a norma-padrão é a forma da língua que tem maior prestígio entre as pessoas. Sua importância está no fato de ela ser a principal referência para a linguagem escrita. 6. É fácil entender que a escrita é fundamental para todos, pois é através dela que podemos ter acesso ao conhecimento acumulado pela humanidade: sua história, ciência, filosofia... 7. Mas, também dissemos que a norma-padrão é uma das diversas normas linguísticas encontradas na sociedade (na escrita e na oralidade). 8. Portanto, para um real domínio da língua portuguesa, é preciso transitar pelos diversos contextos sociais (linguísticos) e suas mais variadas normas... com um olhar investigativo e sem preconceitos. 9. Aí sim você terá um bom trânsito (lendo/escrevendo/ouvindo/falando) entre todos os enunciados, gêneros textuais, verbais e não verbais. 10. Para finalizar... leia, leia, ouça, leia... tudo, de forma ativa-responsiva, investigadora. O res-

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to é consequência. Não é só isso! Mas é um começo de conversa!

PARA VOCÊ ENTENDER UM POUCO DESSA HISTÓRIA COMPLICADA... E SEM FIM! Ensino de Língua Portuguesa: para uma real mudança “O essencial na tarefa de descodificação não consiste em reconhecer a forma utilizada, mas compreendê-la num contexto concreto preciso, compreender sua significação numa enunciação particular. Em suma, trata-se de perceber seu caráter de novidade e não somente sua conformidade à norma” (BAKHTIN-VOLOCHÍNOV, 1999, P. 93).

O ensino de língua materna tem como um de seus objetivos ensinar a norma-padrão. Essa norma está associada à escrita, que é, afinal, um dos objetivos da escola: levar o aluno a dominar a linguagem escrita de sua língua. A forma como esse objetivo será atingido tem ligação com o conceito de norma, de texto, leitura e produção, assim como com a concepção de língua adotada. Teoria e prática precisam, portanto, caminhar em conjunto. No entanto, a preocupação com o ensino de língua portuguesa tem sua atenção voltada mais para as práticas e metodologias adotadas em sala de aula e menos para a parte teórica que sustenta essas práticas. Esse descompasso tem gerado uma realidade de ensino que traz novas práticas, formas de se trabalhar com o ensino de língua portuguesa, mas é carente de clareza e fundamentação teórica. Um breve exemplo: Os programas de educação e, por último, os Parâmetros Curriculares Nacionais, juntamente com os exames de avaliação do ensino, trouxeram para a realidade das escolas um olhar sobre a língua menos “engessado” pelo normativismo da gramática tradicional (GT). A heterogeneidade da língua foi colocada como parte integrante do ensino e as mudanças que ela sofre com o tempo como tópico de discussão. Além disso, o texto passou a ser a base para o trabalho realizado no ensino de língua portuguesa.


Ao mesmo tempo, os exames nacionais (ENEM, Saeb...) continuam exigindo o domínio da norma-padrão da língua, do “conhecimento gramatical”, que faz referência ao conteúdo da GT, documento de referência para a sistematização da língua. Esse conteúdo aparece na leitura e interpretação de textos e é cobrado na sua produção. Alguns “itens” foram adicionados ao ensino: coesão textual, coerência textual, progressão dos conteúdos de um texto, adequação linguística. Mas o domínio da concordância, da regência, da colocação pronominal, a conjugação correta dos verbos, a correta ortografia e acentuação das palavras continuam sendo essenciais e refletindo o “real domínio” sobre a língua portuguesa. Ocorre então que, em alguns casos, ainda se vê o trabalho centralizado na GT como realidade do ensino de língua materna. Em outros, uma mistura de texto e gramática tradicional, ou gramática tradicional no texto, que não deixa claro o objetivo ou a concepção adotada de língua e ensino. A falta de clareza sobre que concepção de língua deve perpassar as mudanças adotadas no ensino de língua portuguesa faz com que as mudanças propostas e já existentes se transformem apenas numa “casca” nova que envolve os programas de ensino de língua materna. Aparente-

mente, tem se caminhado para uma mudança significativa no trabalho com a língua portuguesa nas escolas. No entanto, perguntas essenciais para o desenvolvimento de metodologias e práticas de ensino, assim como de exames de avaliação, ainda parecem não atingir de forma devida a discussão linguística e educacional: “O que é que se revela como o verdadeiro núcleo da realidade linguística? O ato individual da fala – a enunciação – ou o sistema de língua? E qual é, pois, o modo de existência da realidade linguística? Evolução criadora ininterrupta ou imutabilidade de normas idênticas a si mesmas?” (BAKHTIN-VOLOCHÍNOV, 1999, p.89). Dessa forma, resgatar a base teórica que originou as mudanças no ensino de língua materna, assim como iluminá-la com novas contribuições, é essencial para que as novas práticas e estratégias não acabem sendo apenas uma variação do tradicionalismo gramatical. Em outras palavras, teoria é tudo! (Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br)

Fabiano Pinkner Rodrigues é professor de Língua Portuguesa do Colégio Nossa Senhora Medianeira. Formado em Letras pela UFPR, é mestre em Educação pela mesma instituição.

POR QUE (NÃO) ENSINAR GRAMÁTICA NA ESCOLA SÍRIO POSSENTI

Editora Mercado de Letras A primeira parte deste livro expõe questões fundamentais relativas à natureza e ao aprendizado das línguas, destacando os fatores internos e externos da variação linguística, a natureza das gramáticas 'naturais', dos 'erros' dos aprendizes ou falantes, e aspectos do funcionamento da língua ligados aos contextos e valores sociais. Defende-se que o aprendizado de uma língua é um processo complexo, mas, ao mesmo tempo, natural; que a escola deve privilegiar a escrita, mas que características da oralidade são cruciais para compreender o processo geral. Na segunda parte, são expostos e exemplificados os conceitos de gramática normativa, descritiva e internalizada, e se apresentam algumas sugestões práticas de como trabalhar em sala de aula a partir da produção do aluno.

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ENEM

2009

apresentação oficial das

principais mudanças

Por Marcelo Pastre

A fim de que se conheça melhor os subsídios teóricos que inspiraram o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), apresentamos uma seleção de documentos oficiais que nos ajudam a esclarecer princípios dessa que vem sendo uma das principais portas de entrada do ensino Superior no Brasil. 22


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Criado em 1998, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) tem o objetivo de avaliar o desempenho do estudante ao fim da escolaridade básica. Todos os alunos concluintes e egressos do ensino médio podem participar do exame, que busca consolidar um modelo de avaliação de desempenho por competência, tendo como referência principal a articulação entre o conceito de educação básica e o de cidadania. O exame também é utilizado como critério de seleção para os estudantes que pretendem concorrer a uma bolsa no Programa Universidade para Todos (ProUni), além de ser utilizada por algumas Universidades como critério de seleção para o ingresso no ensino superior, seja de maneira complementar, inserida nos critérios de classificação, ou substituindo o próprio vestibular. Neste ano, o Ministério da Educação estabeleceu algumas mudanças no Enem, assim como definiu a possibilidade de sua utilização como forma de seleção unificada nos processos seletivos das universidades públicas federais. A proposta de mudanças teve como principais objetivos a democratização das oportunidades de acesso às vagas federais de ensino superior, a possibilidade da mobilidade acadêmica e indução da reestruturação dos currículos do ensino médio. O estabelecimento desta proposta surgiu do reconhecimento da necessidade, importância e legitimidade dos exames de seleção (vestibular) para ingresso no ensino superior no Brasil, a partir do entendimento de ser um instrumento de estabelecimento de mérito, para definição daqueles que têm direito a um recurso não disponível para todos. Porém, os vários exames de seleção das diversas Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) trazem consigo alguns problemas que as mudanças no Enem deste ano buscaram contrapor: descentralização dos processos seletivos que favorecem os candidatos com maior poder aquisitivo – que podem diversificar suas opções de escolha –, assim como a dificuldade de seleção das IFES localizadas em centros menores e

o direcionamento dos currículos do ensino médio das diversas regiões e cidades do Brasil. A alternativa à descentralização dos processos seria, então, a unificação da seleção às vagas das IFES por meio de uma única prova. A racionalização da disputa por essas vagas, de forma a democratizar a participação nos processos de seleção para vagas em diferentes regiões do país, é uma responsabilidade social tanto do Ministério da Educação quanto das instituições de ensino superior, em especial as IFES. Da mesma forma, a influência dos vestibulares tradicionais nos conteúdos ministrados no ensino médio também deve ser objeto de reflexão. A partir da apresentação da proposta de mudanças do Enem em 2009, as IFES tinham autonomia de optar por quatro possibilidades de utilização do exame como processo seletivo: Como fase única, com o sistema de seleção unificada, informatizado e on-line; Como primeira fase; Combinado com o vestibular da instituição; Como fase única para as vagas remanescentes do vestibular. Como instrumento de discussão curricular do ensino médio no Brasil, a nova proposta do Enem buscou desencadear uma discussão entre os conteúdos exigidos para o ingresso na educação superior e habilidades que seriam fundamentais, tanto para o desempenho acadêmico futuro, quanto para a formação humana. Um exame nacional unificado, desenvolvido com base numa concepção de prova focada em habilidades e conteúdos mais relevantes, passaria a ser importante instrumento de política educacional, na medida em que sinalizaria concretamente para o ensino médio orientações curriculares expressas de modo claro, intencional e articulado para cada área de conhecimento. Enquanto exame nacional, o Enem é uma avaliação que procura analisar o aluno nas áreas do conhecimento incluídas na escolaridade básica do Brasil, de forma interdisciplinar e contextualizada em situações cotidianas, numa concepção de desenvolvimento de inteligência e de construção de conhecimento com ênfase na avaliação de competências e habilidades com as quais transformamos informações em novos conhecimentos, e que, reorganizados, permitem a resolução de problemas.

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Desta forma, o Enem busca discutir e questionar processos avaliativos que se caracterizam por uma valorização de um conhecimento diretamente vinculado a um arsenal de respostas a problemas já discutidos e conhecidos, ou seja, a discussão sobre processos avaliativos reféns da memória e do “decoreba”. O objetivo do Enem é a aferição das possibilidades e habilidades cognitivas dos alunos, com as quais eles compreendem fenômenos, enfrentam e resolvem problemas, com argumentação e elaboração de propostas em favor de uma cidadania plena, justa e digna. Assim, o Enem estruturou-se enquanto matriz de referência, com os seguintes eixos cognitivos (comuns a todas as áreas de conhecimento): I. Dominar linguagens (DL): dominar a norma culta da Língua Portuguesa e fazer uso das linguagens matemática, artística e científica e das línguas espanhola e inglesa. II. Compreender fenômenos (CF): construir e aplicar conceitos das várias áreas do conhecimento para a compreensão de fenômenos naturais, de processos histórico-geográficos, da produção tecnológica e das manifestações artísticas. III. Enfrentar situações-problema (SP): selecionar, organizar, relacionar, interpretar dados e informações representados de diferentes formas, para tomar decisões e enfrentar situações-problema. IV. Construir argumentação (CA): relacionar informações, representadas em diferentes formas, e conhecimentos disponíveis em situações concretas, para construir argumentação consistente. V. Elaborar propostas (EP): recorrer aos conhecimentos desenvolvidos na escola para elaboração de propostas de intervenção solidária na realidade, respeitando os valores humanos e considerando a diversidade sociocultural. O novo Enem será composto por perguntas objetivas em quatro áreas do conhecimento: linguagens, códigos e suas tecnologias (incluindo redação); ciências humanas e suas tecnologias; ciências da natureza e suas tecnologias e matemática e suas tecnologias. Cada grupo de testes será composto por 45 itens de múltimpla escolha, aplicados em dois dias.

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Como expressão de aprendizagem ou forma de conhecimento, a situação-problema é a principal estratégia de avaliação do Enem, pois desafia o aluno a mobilizar os recursos no contexto de situação-problema para tomar decisões favoráveis ao seu objetivo ou metas, como um desafio fundamental em nossas relações com pessoas, objetivos ou tarefas. Finalizando, reafirmamos as principais intenções do Ministério da Educação com as mudanças sugeridas e ocorridas no Enem: reformulação do currículo do ensino médio; questionamento sobre o vestibular nos moldes de hoje, que produz efeitos negativos sobre o currículo escolar, voltado cada vez mais ao acúmulo excessivo de conteúdos; sinalização para o ensino médio de outro tipo de formação, mais voltado para a solução de problemas; e o exame unificado como forma de promover a mobilidade dos alunos pelo país, democratizando o acesso a todas as universidades. (Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br) Marcelo Pastre é coordenador do Ensino Médio do Colégio Medianeira. Licenciado em Educação Física (UFPR), é mestre em Mídia e Conhecimento – Engenharia de Produção (UFSC) e doutor em Educação (UNIMEP).

APRENDER NA VIDA E APRENDER NA ESCOLA JUAN DELVAL

Editora Artmed Neste livro, o autor parte da comprovação do escasso êxito da escola para uma proposta de mudança baseada em conhecimentos sobre problemas de aprendizagem, história da educação, desenvolvimento infantil, formas de transmissão de conhecimento, diferença entre aprendizagem escolar e a aprendizagem para a vida, entre outras questões importantes.


ENEM:

nem

zero nem cem Por Adalberto Fávero a Claudia Furtado de Miranda

“Num mundo com tantas novidades tentadoras E com sempre novos começos, viajar é sempre Mais tentador do que a possibilidade de chegada. A alegria está no caminho e não na chegada.” (Zygmunt Bauman)

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O CONTEXTO E O ESPETÁCULO Pensar, desde remota antiguidade, tem sido um exercício sobremaneira dolorido. Nos dias atuais, o reflexo e a rapidez das coisas e dos próximos afazeres atropelam os homens e as mulheres de um tempo sem tempo. Pensar dói um pouco mais! Mesmo que pensar pareça doer nas entranhas a muitos de nós, pobres mortais, seria importante conseguirmos fazer isso sem conclusões antecipadas, sem objetivo definido, sem categorias predeterminadas e sem verdades passadas. Pensar livre! Não precisamos ter sempre algo a dizer sobre tudo e sobre todos para sobreviver, embora devamos ter profundidade ao falar sobre algumas especificidades. Ao menos isso parece necessário termos consistência ao fazê-lo! A atualidade tem escondido as florestas que estão atrás das árvores tão atraentes e vantajosas no jogo permanente em que se confunde o sujeito com a mercadoria. Assim, o fetichismo da subjetividade mata o autor e faz nascer sempre mais o ator que a tudo representa, porém se lhe nega a autoria. Já não pensa e nem cria! Consome! Atua! Na sociedade dos consumidores, as coisas, a mercadoria e o sujeito se misturam para que os primeiros também sejam mercadoria. Nesse caminho, os compradores são treinados pelos homens do marketing a cumprir seus papéis de sujeito; por isso, entra-se na web para comprar um parceiro. Confundemse consumidor e mercadoria! Para que olhar no olho do outro? Os desktops, laptops e celulares permitem magistralmente aos consumidores enterrar suas cabeças nas areias e cultuar a verdade da imagem. Não é mais preciso o exercício doído de pensar e ir além do que o culto coletivo, imagético e midiático proporciona. Afinal, a imagem e sua interpretação dizem tudo. Dispensa pensar e criar! Já tudo está pronto para o consumo! O fetiche!

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A propósito das mercadorias e consumidores, tais reflexões fazem sentido sobre o consumo e o insumo produzido pelas atuais discussões e pressões geradas pelo ENEM. Essa avaliação de caráter nacional, agora com o status classificatório para universidades, situa-se no rol da prova Brasil, das avaliações das escolas americanas e/ou dos exames de proficiência protagonizados pelo Laboratório Latino-Americano de Avaliação de Qualidade da Educação (Llece)... entre outros tantos! Guardadas as especificidades de cada uma, trata-se de avaliações que pretendem medir resultados e qualidade de sistemas educativos e em faixas etárias ou séries específicas. Trata-se de avaliações de “fora para dentro” que não têm por objetivo e nem levam em conta as peculiaridades de cada escola, dos projetos pedagógicos, das condições de trabalho, das estruturas das instituições, das culturas locais, do salário docente, da existência ou não da formação continuada dos professores e assim por diante. Por um lado os sistemas educacionais e as escolas não podem se recusar a ser avaliados além de seus muros, sob pena de perpetuação de mesmices e de passar a vida a cantar loas a seus próprios avanços e projetos. Isso vale menos (talvez) para as escolas particulares, em vista da demanda por alunos e pela concorrência sempre mais antropofágica que enfrentam. A todas não basta olhar o próprio umbigo! Por outro lado, esses mesmos sistemas e escolas ficam à mercê da pressão externa num processo de avaliação de resultados que não levam em conta suas peculiaridades e condições de atuação e intervenção na formação de seus alunos em seus próprios contextos. Na verdade, parece-nos que qualquer avaliação deveria ter em conta três componentes que atuam decisivamente na excelência da/na educação: - o contexto macro, com suas mudanças vertiginosas e as implicações sociais/econômicas/culturais sobre as instituições e seus membros e o contexto micro, no que se refere às regiões, cidades, espaços rurais e cultura interna da própria instituição; - as famílias e a importância e possibilidade que têm de valorizar e inves-


tir na vida acadêmica, as oportunidades/opções que veem para o futuro de seus filhos e a escolaridade que possuem como elemento de influência determinante sobre os mesmos; - os sistemas educacionais e as escolas com suas estruturas, seus projetos pedagógicos participativos ou não, a formação dos professores e a remuneração dos mesmos, o espaço formativo diversificado que oferecem e as possibilidades de parceria que de fato possibilitam com as famílias de seus alunos. Nesse sentido, o ENEM tem o grande privilégio de colocar em xeque o modelo viciado e excludente de acesso à universidade; de colocar a leitura e o raciocínio lógico como referência; de priorizar um espaço de reflexão sobre a mera reprodução; de estabelecer parâmetros claros de uma matriz curricular a ser privilegiada; de privilegiar uma forma reflexiva sobre o meramente técnico... No entanto, os resultados deveriam servir prioritariamente para releitura e estudo interno do ministério, dos responsáveis pelos sistemas educacionais e pelas escolas como elementos e subsídios para a inovação permanente e para realimentações constantes dos processos públicos e privados da formação das próximas gerações. Mesmo ainda optando por supervalorizar as habilidades e competências do fazer! Ora, todo esse processo avaliativo e seus resultados fazem parte de um contexto marcado por um mercado não só competitivo como recheado de opções em tratar a educação como mercadoria e a população como clientes/consumidores capazes de gerar riquezas e investimentos crescentes no mundo dos negócios. De novo, a mercadoria e o consumidor! Avolumam-se nesse meio os dirigentes e gestores em inúmeras funções que são mais tecnocratas que educadores para quem os rankings de escolas significam oportunidades de afirmar sua supremacia e vender sua mercadoria: a educação. Assim, além da classificação pelos resultados obtidos, passou-se a falar em capital social, capital cultural, capital humano, capital integrado... e isso com toda fundamentação econômica e socio-

lógica necessárias para garantir a confiabilidade. Quando se fala em capital, não são mais os educadores e a formação que importam e sim os resultados; não são mais os educadores que decidem e sim o Banco Mundial e OMC e os similares tupiniquins; não há mais sonho de transformação do futuro e de oferecer a essa geração e à que vem depois da nossa um mundo melhor, mais justo, mais igualitário, mais fraterno e de maior paz. Só existem mercadoria e consumidores! Para não dizer que esquecemos ou que o início desse artigo foi apenas um pretexto para um assunto desconexo, importa insistir que os consumidores seduzidos pelo marketing aplaudem e aderem aos pacotes mais bem elaborados e consomem a mercadoria bem embalada: “a educação”. O problema e a solução, nessa direção, não é o ENEM ou qualquer outra prova externa. A questão é como vamos recuperar nossa capacidade de sonhar com o futuro, ressignificar/redignificar a profissão do professor (sem o que não haverá mais e melhor formação intelectual e humana). Parece-nos que tal transformação implicará reeducar nosso olhar para o mundo, para as autorias e para a repolitização (em seu amplo sentido) do ato de ensinar e de aprender e do papel da escola como espaço público de interferência direta, olho no olho, entre adultos e uma geração em formação. Voltar a ser sujeitos, autores e protagonistas! Nesse sentido, o ENEM não vale 0 e nem 100. Pode se transformar em mais uma oportunidade de revalorização da educação e do educador... ou se transformar em outra oportunidade de encher salas de aulas em preparatórios para fazer mais esse Vestibular. Enfim, bastará doravante ver o marketing, os outdoors, a TV ou ler os jornais. Optar apenas por ver a próxima cena! Se contentar em ser plateia e assistir!

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Há um espetáculo sendo tecido que precisa de autoria e excelência crítica e criativa! Na ativa, estão apresentados “mocinhos e bandidos, personagens centrais e figurantes”. Há palcos e plateias! Há caminhos a se caminhar!

MUITAS PEDRAS NO CAMINHO: ENTRE O IDEAL E O REAL Na realidade educacional brasileira, a tendência é que as mudanças de todo o sistema sejam pensadas pelos órgãos governamentais e pelos centros de pesquisa acadêmica de educação. Pode-se até explicitar que nos últimos anos muitas das mudanças no contexto da escola de Ensino Básico se projetou “de cima para baixo”, como é o caso do Ensino Fundamental de 9 anos e, mais recentemente, as mudanças no sistema de avaliação do ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio. Não se trata simplesmente de criticar as mudanças que estão ocorrendo no Ensino Básico, pois a inserção da criança mais cedo na escola e a possibilidade de um ensino reflexivo em que as disciplinas curriculares dialoguem com a realidade social, são elementos centrais para uma educação de qualidade voltada a um maior número de pessoas. A questão que se instaura aqui – e com a qual trabalhamos na primeira parte do texto – é justamente pela pouca consulta e participação dos professores e educadores ligados diretamente à escola nas mudanças e permanências necessárias para o projeto educativo do Ensino Básico. Estes, não raras vezes, veem-se excluídos do sistema decisório e abstraídos dos seus saberes e urgências ligadas ao seu trabalho e à formação de crianças e jovens. Se a criatividade e a criticidade são as principais marcas do conhecimento e dos seus sujeitos de interação, é possível afirmar que não existe um modelo único para a reflexão e o estudo sobre a ciência, a realidade e, muito menos, sobre a Educação. Por si só, a tessitura do conhecimento carrega a dúvida porque não elimina o inesperado e

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as certezas passageiras dos modelos que se dizem inovadores para uma realidade tão diversa e desigual como a brasileira. Nesta direção, como pensar a educação nos meios acadêmicos cercados por métodos definidos e modismos que aprisionam as diferentes possibilidades de criação e inovação? A complexidade da realidade, em qualquer tempo, enfatiza a necessidade política de reconstrução do conceito de emancipação humana no contexto educacional. A concepção de educação que lê esta necessidade, procura emancipar o ser humano (educadores e alunos) do imobilismo em relação à realidade em que vive; e, principalmente, propõe educar/ ensinar para a autonomia intelectual e reflexiva. Neste sentido, emancipar significa formar cidadãos críticos e ativos na construção de um mundo mais justo e igualitário para todos. Eis aqui a importância da escola e de seus educadores, como indica Paulo Freire (1983, p. 40): “a práxis, porém, é reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo”. Ora, importa perceber a crise educacional pela ausência de responsabilização pelo mundo (desigualdade social, crise ambiental, precarização do trabalho, individualismo etc). Esta crise afeta a educação porque os referenciais sociais, políticos e culturais que inspiravam os princípios éticos e de solidariedade estão se esfacelando... ou se transformando! O processo de tessitura do conhecimento implica esforço, dedicação, emoção e prazer – sem cair no reducionismo da motivação pela motivação. Envolve também um processo de avaliação e autoavaliação para que se possa reagir, entender, contestar e reconstruir as múltiplas dimensões do conhecimento acadêmico e social. Ou será que basta refazer um modelo e medir resultados para resolver a questão? É diante destes enfrentamentos e necessidades educacionais que as medidas públicas podem partir, principalmente, considerando as experiências e as necessidades dos educadores e alunos que trabalham nas escolas do Ensino Fundamental e Médio.


A PROPOSTA DE AVALIAÇÃO DO ENEM E A FORMAÇÃO DE ALUNOS E PROFESSORES Qual a relação entre a proposta de avaliação do ENEM e a formação dos professores? Qual a relação com o currículo implantado nas escolas? Que tipo de currículo atende as exigências deste tipo de avaliação? Como os conteúdos são projetados e quais as demandas metodológicas e avaliativas que a escola deve enfatizar no seu dia-a-dia? Estas questões são centrais para que possamos pensar: uma avaliação de caráter nacional pode pressionar para que a estrutura e o currículo da escola mudem? Ou seria mais adequado o contrário? A primazia a ação pela “medição” de resultados é suficiente?

Dar sentido a mensagens ambíguas e contraditórias no contexto em que surgem;

Vejamos o que propõe o ENEM para a seleção dos conteúdos e aprendizagem dos alunos:

Perceber similitudes entre situações, apesar das diferenças que possam separá-las;

Avaliação mais humanizada, com foco na interdisciplinaridade e transdisciplinaridade ó relação entre as áreas do conhecimento.

Reconstruir uma configuração global, um acontecimento ou um fenômeno a partir de marcas e indícios de fragmentos da realidade;

Atenção especial às interpretações de textos diversos: diferentes gêneros literários, gráficos, tabelas, imagens, charges etc.

Capacidade de agir diante do inesperado e do acaso criando situações de aprendizagem e, portanto, de desenvolvimento de suas capacidades cognitivas, relacionais, organizativas e emocionais;

Conhecimento da realidade social (leitura de mundo) por meio das diferentes áreas do conhecimento (disciplinas). O que se pretende evitar é o famoso “decoreba”. Hábito da leitura de jornais, revistas de diversas áreas do conhecimento (pesquisa) e literatura. Conhecimento da história da arte e da arte contemporânea por meio de visitas a museus e exposições do teatro, dança e do acesso à arte plástica, à música e à pintura. A formação dos jovens no Ensino Médio deve priorizar: Capacidade de aprender por si mesmo utilizando os ensinamentos de uma experiência anterior; Compreensão dos elementos centrais e dos periféricos; Capacidade de definir os meios para resoluções de problemas e desafios;

Capacidade para enfrentar, ultrapassar e inovar diante de situações inéditas; Discernimento para reconhecer o impossível do possível e criar possibilidades de ação diante de desafios. Não há dúvida de que a proposta do ENEM reitera a perspectiva da LDB porque destaca algumas exigências fundamentais na formação das crianças e jovens brasileiros: “a difusão dos valores de justiça social e dos pressupostos da democracia, o respeito à pluralidade, o crédito à capacidade de cada cidadão ler e interpretar a realidade, conforme sua própria experiência” (apresentação dos Textos Teóricos Metodológicos, ENEM 2009, p. 5). Esta proposta também pode ser inovadora porque propõe que o currículo e as práticas pedagógicas aconteçam de maneira interdisci-

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plinar e transdisciplinar. Entretanto, um currículo com estas características demanda um espaço e um tempo contínuo de estudo do professor e entre os professores sobre os conhecimentos das diversas áreas e das possibilidades de relações que podem ser estabelecidas com a realidade histórica e social, local e global. Diante disso, poderíamos nos perguntar: como os professores entendem tais conceitos e são orientados no processo de organização dos currículos e da metodologia de ensino? Como estas demandas são analisadas a partir das necessidades e espaços de formação dos professores das escolas públicas e particulares? A elaboração e compreensão de um conhecimento simultaneamente multifacetado e integral devem ser capazes de destacar as grandes interrogações sobre a possibilidade de conhecer e de ensinar a condição humana (ética do gênero humano) e a concepção de ambiente como um sistema interdependente com os demais sistemas, do qual o ser humano faz parte e é por ele responsável. Esta concepção de conhecimento científico e educacional destaca uma visão de mundo complexa obtida pela flexibilização e ultrapassagem das barreiras disciplinares (dialogismo entre disciplinaridade, pluridisciplinaridade e transdisciplinaridade). Em outras palavras, a educação e a formação dos professores precisam criar interdependências com a realidade concreta – dilemas, contradições e desafios – e com as inovações educacionais, considerando, no estudo do contexto educacional, as práticas e os conhecimentos docentes. Daí a necessidade de mais investimento e valorização na formação dos professores, tendo em vista um espaço e um tempo reais para estudo e elaboração de práticas que referenciem um currículo transdisciplinar, visando à melhoria do ensino na escola pública e particular. Ou será que basta um decreto ou uma equipe especializada elaborar o material didático necessário a ser cumprido e tudo fica resolvido? Seria muito complicado que a avaliação do ENEM fosse usada para fins mercadológicos pela escola particular (treino no estilo vestibular para

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as questões do ENEM). Como também, será muito difícil que a estrutura física e pedagógica continue dificultando, em muitas escolas públicas, o desenvolvimento de um ensino de qualidade. Nesta perspectiva, a formação do professor pode ser realizada a partir das demandas estabelecidas pelo próprio ENEM, mas privilegiando o contexto local e regional da escola, e também a reflexão crítica que emana do contexto social e político, priorizando e ultrapassando o contexto de sala de aula e possibilitando a emancipação dos sujeitos envolvidos no processo educativo. Entretanto, para que isto ocorra, é fundamental que as configurações de poder que determinam as possibilidades de autonomia do professorado também se transformem no contexto das instituições de ensino. Não se criam processos reflexivos, criativos e críticos apenas exigindo atores competentes para cumprir os papéis já determinados. Fazemse necessárias a autoria e a participação reflexiva e decisória. Ou não? Um projeto de ensino transdisciplinar inclui a gestão da política e das verbas públicas e a valorização dos saberes e da experiência das pessoas inseridas na cultura local (educadores, alunos, comunidade) como exercício de cidadania, buscando um maior equilíbrio social e econômico. No contexto em que ocorre a formação continuada, os conceitos de autonomia e emancipação podem indicar as possibilidades que são oferecidas aos professores de interferirem em diversos espaços de trabalho (seleção curricular, aprendizagem dos alunos, planejamentos das aulas, preparo para reuniões e seminários de estudos, atendimento às famílias etc), e, portanto, de tomarem decisões no projeto pedagógico da escola. Em decorrência, a autonomia também se projeta como processo de formação continuada quando o professor consegue decidir sobre os rumos da sua carreira profissional. Isto implica uma mudança de atitude que caracteriza a cultura da escola e das políticas públicas para a Educação, tendo em vista o projeto e o processo de formação continuada dos professores e a formação integral e crítica dos alunos. (Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br)


Referências: ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1988. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. MARIOTTI, Humberto. As paixões do Ego: complexidade, política e solidariedade. São Paulo: Palas Athena, 2000. MIRANDA, Claudia Furtado de. A formação continuada de professores: estudos sobre a complexidade nas relações entre aprendizagem e desenvolvimento no contexto escolar. Educere – PUC-PR, 2006.

Adalberto Fávero é vice-diretor do Colégio Medianeira; é formado em Filosofia, Teologia e História, com pós-graduação em Filosofia da Educação (PUCPR) e em Currículo e Práticas Educativas (PUCRJ). É mestre em Educação pela PUCPR. Cláudia Furtado de Miranda é historiadora, mestre em Educação pela PUCPR e supervisora pedagógica do Ensino Fundamental e Médio no Colégio Medianeira.

MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Edição revista e modificada. 3 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. ____. A C a b e ç a B e m - F e i t a : r e p e n s a r a r e f o r m a , r e f o r mar o pensamento, 12 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. MORIN, Edgar & LE MOIGNE, Jean-Louis. A inteligência da complexidade. Tradução Nurimar Maria Falci. São Paulo: Peirópolis, 2000.

A CABEÇA BEM-FEITA: REPENSAR A REFORMA, REFORMAR O PENSAMENTO EDGAR MORIN

Editora Bertrand Brasil Reformar o pensamento para reformar o ensino e reformar o ensino para reformar o pensamento é o que preconiza Edgar Morin. Na linha da reforma do pensamento, ele propõe os princípios que permitiriam seguir a indicação de Pascal- ‘Considero impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, tanto quanto conhecer o todo sem conhecer, particularmente, as partes...’. Esses princípios levam o pensamento para além de um conhecimento fragmentado que, por tornar invisíveis as interações entre um todo e suas partes, anula o complexo e oculta os problemas essenciais; levam, igualmente, para além de um conhecimento que, por ver apenas globalidades, perde o contato com o particular, o singular e o concreto. Eles permitem remediar a funesta desunião entre o pensamento científico- que desassocia os conhecimentos e não reflete sobre o destino humano- e o pensamento humanista- que ignora as conquistas das ciências, enquanto alimenta suas interrogações sobre o mundo e sobre a vida.

AS PAIXÕES DO EGO: COMPLEXIDADE, POLÍTICA E SOLIDARIEDADE HUMBERTO MARIOTTI

Editora Palas Athena O livro apresenta questões da atualidade, como os modelos de pensamento complexo e sistêmico, bem como suas aplicações práticas em áreas como a ética, a política, a administração, o desenvolvimento sustentado, a psicologia do ego e os relacionamentos interpessoais. São discutidos autores como Edgar Morin, Gregory Bateson, Humberto Maturana e Francisco Varela. Trata-se de leitura para quem quer iniciar-se, ou mesmo reciclar-se, em temas como complexidade, pensamento sistêmico, ciência cognitiva não-cartesiana, transdisciplinaridade, biologia da cognição, psicologia do autoconhecimento e habilidades interpessoais.

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HÁ QUATRO DÉCADAS

o mundo começou a mudar

I

Internet para pesquisa, internet para estudo, internet para trabalho, para divulgar currículo e serviços, internet para pesquisar preços, para comprar e vender, internet para o lazer, para reencontrar amigos, para falar com quem está distante, para conhecer gente nova, para economizar telefone, para conversar com vídeo, para postar e para assistir a vídeos, para localizar endereços, para ver mapas... Internet, internet, internet... Alguém que já tenha experimentado viveria sem?

Por Cristina Graeml

A invenção da internet, no início dos anos 70, marcou uma geração, criou novas possibilidades e transformou as relações. O inventor já previa este resultado,há 40 anos. Agora, não é possível viver sem ela...

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Ao questionamento inevitável acrescente-se outro, um tanto quanto perturbador. Como podemos ter atingido tamanho grau de dependência de uma tecnologia que até há pouco simplesmente não existia? Em se tratando de internet parece-me que todas as perguntas impressionam. Volte à pergunta do parágrafo anterior. Releu? Agora impressione-se com a afirmação a seguir. Não importa há quanto tempo você tenha sido apresentado à internet ou qual o uso que venha fazendo desta fantástica rede mundial de computadores, você com certeza conheceu a tecnologia muito, mas muito tempo depois de sua invenção. Duvida? Diga lá: há quantos anos exatamente você visitou um site pela primeira vez? Quando mandou seu primeiro email? Dez anos? Quinze, que seja! Pois a internet acaba de completar 40 anos. Isso mesmo: 40 anos! Embora tenha chegado ao Brasil com duas décadas de atraso, já faz quatro décadas que uma equipe de engenheiros americanos fez a


experiência que passaria a ser considerada o nascimento da rede: uma transmissão de dados entre computadores de cidades diferentes. E nós, adultos de 40 anos, ainda nos surpreendemos com a facilidade com que nossos filhos lidam com a internet, porque para nós esta jovem senhora é uma adolescente! Quer se surpreender de novo? Pois saiba que para o inventor desse fenômeno da globalização a internet ainda engatinha! “We are definitely in the informaLeonard Kleinrock tion era, but in it’s very early stages”, disse-me Leonard Kleinrock em entrevista recente via Skype. Ao ouvir isso do homem que comandou a equipe responsável por aquela primeira transmissão de dados entre computadores a partir de uma central na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, em 02 de setembro de 1969, quase caí dura. Primeiros estágios da era da informação? Como assim? E eu? E você? E todo o resto do mundo, todas as pessoas que já se sentem suficientemente oprimidas pela atual avalanche de informação? Como é que ficamos nessa história? “É mesmo assustador”, seguiu Kleinrock. “Mas preciso dizer com conhecimento de causa que a rede ainda vai evoluir infinitamente. Prevejo para as próximas décadas a internet na ponta de nossas unhas. Isso quer dizer que ela estará em absolutamente todos os lugares: nos carros, nos ônibus, nas ruas, nos eletrodomésticos, nos móveis, em todos os cantos da casa, da escola, do ambiente de trabalho, nos quartos de hotel. Isso já está começando a acontecer. Mas no futuro será uma rede extremamente presente, embora invisível. Poderemos acessá-la quando e de onde quisermos”. Pergunto se nem mesmo ele se assusta com a dimensão que a internet possa tomar. “É assustador também para mim”, responde o engenheiro de seu escritório em Los Angeles. E eu, aqui em Curitiba, sigo atenta às surpreendentes revelações que me chegam pela via virtual. A imagem, serena e nítida, do homem de 75 anos que na semana anterior respondera ao meu despretensioso email com pedido de entrevista, vem acompanhada de um áudio limpo como o de poucas ligações telefônicas internacionais. “Será preciso aprimorarmos nossa capacidade de filtrar o que é realmente útil pra nós e usarmos a rede com sabedoria”. Apro-

veito a resposta e emendo pergunta pertinente ao tema que ele acaba de abordar: “por que o senhor não usa as redes sociais, adotadas por centenas de milhões de pessoas mundo afora? Não o encontrei no Tweeter, nem no Facebook ou no Orkut. O senhor também não está no MSN, ao menos não com seu nome verdadeiro”. A resposta é rápida e objetiva. “Não uso mesmo nenhuma dessas ferramentas. Para mim são perda de tempo. Já passo boa parte dos meus dias conectado. Considero as informações trocadas nas redes sociais pura perda de tempo. Além do mais resta-nos tão pouca privacidade hoje em dia que não sinto a menor necessidade de ser seguido por ninguém. As pessoas tem inúmeras maneiras de me encontrar e me encontram sempre que querem, ainda que fora das redes sociais”. Sou obrigada a concordar. Encontrei o email do professor Leonard Kleinrock com a ajuda de uma amiga que mora em Nova York (avisada de minha busca através de um tweet, de um scrap do Orkut e de um recado no mural do Facebook, redes que comecei a usar por força de curiosidade jornalística, mas que, para mim, tem sido úteis com freqüência cada vez maior). Por algum motivo esta amiga conseguira achar o endereço eletrônico do homem considerado o “pai” da internet no site da UCLA, coisa que eu mesma havia tentado sem sucesso. Fato é que, por mais que almejasse fazer contato com ele, jamais acreditei que pudesse ser atendida com tamanha rapidez em meu singelo pedido intitulado de “interviewer from Brazil”. A resposta de Leonard Kleinrock chegou horas depois, digitada às 3 da manhã em Los Angeles! Ele realmente fala a verdade quando diz que passa a maior parte de sues dias (e noites) conectado e que as pessoas dispõem de incontáveis maneiras de encontrá-lo. Resta-nos encontrar a nós mesmos nesse labirinto da era da informação e saber direcionar nossos passos na rede mundial de computadores, enquanto ela própria ainda está aprendendo a andar! (Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br)

Cristina Graeml é jornalista, repórter do Canal 12, TV Paranaense. É formada pela UFPR e exaluna do Colégio Medianeira.

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a pedagogia do

TEATRO DO

OPRIMIDO e a formação do sujeito Por Juliana Cavassin

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A perda de Augusto Boal em 2009 não significa que suas ideias se perderam. Ao contrário, elas continuam bem vivas e espalhadas por todo o mundo.


A

Augusto Boal (1931-2009) é conhecido como dramaturgo, diretor teatral e político brasileiro. Foi o criador de outra proposta de ensino do teatro, que também busca a formação do sujeito, o método que hoje é conhecido no mundo inteiro como Teatro do Oprimido – T. O. Não é à toa que no ano passado, o brasileiro foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz!

O TEATRO DE ARENA E O SISTEMA CORINGA Nas décadas de 1950 e 1960, Boal participou ativamente do Teatro de Arena em São Paulo, do qual foi um dos fundadores, juntamente com Gianfrancesco Guarnieri, José Renato e Oduvaldo Vianna Filho (Vianinha). O grupo buscava soluções cênicas alternativas para as montagens – uma vez que o padrão dominante da época era o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), que seguia um modelo europeu. Mas além das razões econômicas, havia essencialmente uma preocupação sociopolítica que se expressava na criação de uma dramaturgia brasileira. Assim, a insatisfação com o modelo das relações de produção que caracterizavam as práticas teatrais brasileiras, o estudo em busca de uma nova função social para o teatro, o engajamento político na luta pela construção de uma sociedade socialista no país e a formulação de uma poética teatral genuinamente brasileira levaram ao conjunto de procedimentos de atuação teatral improvisada, com objetivo de transformar as relações de produção material na sociedade capitalista pela conscientização política do público conhecido como Teatro de Arena. O Teatro de Arena criou um teatro de integração das classes trabalhadoras e desfavorecidas, que pretendia dar voz aos oprimidos. Boal foi um participante extremamente atuante nesse grupo, no qual criou um sistema de interpretação para atores chamado de Sistema Coringa. Nele, todos interpretam todos os personagens, revezan-

do-se nos papéis diante da plateia, num exercício de democratização e socialização dos papéis dentro do teatro. Nessa “estrutura de elenco”, atores e atrizes podem interpretar tanto papéis masculinos como femininos, não são distribuídos personagens e sim funções de acordo com a estrutura geral dos conflitos identificados no texto. A ideia, de base socialista, era tirar a “propriedade privada” do personagem. O Coringa tem função polivalente no espetáculo; os atores podem desempenhar qualquer papel, até substituir o protagonista nos “impedimentos” determinados pela realidade realista-naturalista (do modelo europeu e do TBC). A consciência dele é de autor ou adaptador, que se supõe acima e além, no espaço e no tempo das personagens e todas as possibilidades teatrais lhe são conferidas. Ainda compõem o elenco desse tipo de espetáculo o coro e a orquestra coral, com violão, flauta, bateria, instrumentos de corda, sopro e percussão. Algumas montagens muito conhecidas da época foram Eles Não Usam Black-Tie (1958), de Guarnieri, Arena Conta Zumbi (1965), com música de Edu Lobo e Arena Conta Tiradentes (1967-68), ambas de Boal e Guarnieri. A “estrutura” desse tipo de espetáculo é composta por 7 unidades de ação; 1 - Dedicatória: canção, texto, cena, canção e dedicação do espetáculo; 2 - Explicação: quebra na continuidade da ação dramática, em prosa, dita pelo coringa; busca colocar a ação na perspectiva de quem conta; pode conter recursos próprios (slides, poemas, documentos, cartas, notícias de jornal, filmes, vídeos, mapas, refazer, corrigir ou incluir novidades na cena, etc.); apresenta o elenco, a autoria, adaptação, técnicas utilizadas, propósitos do texto, etc.; 3 - Episódio: reúne cenas mais ou menos independentes; 4 - Cena ou lance: Módulos dramáticos que têm fim em si mesmo e contêm ao menos uma variação no desenvolvimento qualitativo da

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ação; dialogados, cantados ou lidos (poemas, discursos, notícias, documentos...); imprimem mudança qualitativa ao sistema de forças em conflito; 5 - Comentários: interligam as cenas e são escritos, preferencialmente, em versos rimados, cantados pelo corifeu, orquestra ou ambos; 6 - Entrevista: não tem colocação específica na estrutura do espetáculo, depende de “ocasionais necessidades expositivas”; utiliza-se de recursos de outros rituais espetaculares como esportes (como nos intervalos dos tempos das partidas em que os cronistas entrevistam a plateia e técnicos); 7 - Exortação: o coringa cobra uma ação da plateia segundo o tema tratado em cada peça. Pode ser em forma de poesia, canção coletiva ou ambos.

DO TEATRO DE ARENA PARA O TEATRO DO OPRIMIDO: Um dos desdobramentos do Teatro de Arena e do Sistema Coringa foi a criação do Teatro do Oprimido, ainda que esse tenha ocorrido circunstancialmente, sem planejamento prévio. Boal foi levado ao questionamento sobre as montagens do Teatro de Arena que seguiam a relação ator/plateia, cuja estrutura parecia “moralizante” e “catequética” (no livro O arco-íris do desejo, o dramaturgo refere-se ao ponto de ruptura entre o teatro de arena e a estética do oprimido). Em 1973, Boal contribuiu com o Alfin (Plano Nacional de Alfabetização Integral), no Peru, período decisivo para trocar a estrutura espetacular (espectador/ator) das montagens do Arena pela política e popular (espect-ator) da Poética do Oprimido. O objetivo do Alfin era alfabetizar o povo na língua materna e ensinar todas as linguagens artísticas possíveis. Utilizando-se do T.O, Boal contribuiu para a alfabetização do Peru e percebeu o teatro concebido como linguagem, capaz de ser utilizado por qualquer pessoa, independente da língua

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e do “talento” para o palco. O Teatro do Oprimido tem inspiração na estética do alemão Bertold Brecht (Teatro épico, dialético e antiaristotélico, que veremos em outro artigo!) e na pedagogia libertadora de Paulo Freire, conhecida como Pedagogia do Oprimido. A premissa é a democratização do palco, que não é mais “estacionamento privativo” dos atores: qualquer pessoa é ator e espectador ao mesmo tempo, daí o binômio spect-ator. O spect-ator não delega poderes aos personagens para que esses pensem ou atuem em seu lugar; é a liberação do espectador da “opressão” imposta pela tradição teatral ocidental. Nessa fase, Boal interessa-se pelo teatro como ação cultural e estético-pedagógica que conduz e ensaia uma revolução política, econômica e histórica nas sociedades humanas. Por isso, quer converter o espectador (passivo) em ator (ativo), ou melhor, em spect-ator, uma vez que é fundamental ver, mas também agir. A essência do Ser Sujeito! Esse processo ganhou metodologia específica composta de 4 etapas: conhecimento do corpo; expressividade do corpo; teatro como linguagem; e teatro como discurso. O conhecimento do corpo é uma sequência de exercícios para conhecer as possibilidades, limitações físicas e socialmente impostas e o potencial expressivo do corpo. Tornar o corpo expressivo é uma sequência de jogos em que a pessoa começa a se expressar intuitivamente abandonando as formas logocêntricas de comunicação e compreensão. Essas duas primeiras etapas podem ser melhor verificadas no livro 200 Exercícios e Jogos para o ator e o não-ator com vontade de dizer algo através do teatro. Nesse livro, Boal propõe exercícios que visam a um teatro libertador, que transforma o ser passivo em ativo, em protagonista do fenômeno teatral, a essência do método do Teatro do Oprimido. O teatro como linguagem é composto da prática teatral improvisada propriamente dita, e divide-se em três etapas: a Dramaturgia Simultânea, o Teatro-Imagem e o Teatro-debate


ou Teatro-fórum. Teatro como discurso são formas dramáticas e teatrais de atuação originalmente formuladas por Boal. São sete: Teatrojornal, Teatro invisível, Teatro-fotonovela, Quebra de repressão, Teatro-mito, Teatro-julgamento e Rituais e Máscaras. Cada uma dessas práticas possui metodologia específica e conferem a essência do T.O.

OUTRAS DIMENSÕES DO T.O. Durante a ditadura militar, Boal foi exilado e nesse período trabalhou em vários países, onde desenvolveu e consolidou o teatro do oprimido. Retornou ao Brasil em 1986, por convite de Darcy Ribeiro (vice-governador do Rio de Janeiro na época), para desenvolver núcleos do Teatro do Oprimido nos Cieps (Centro Integrados de Educação Popular). Por conta desse trabalho, entrou para a câmara dos vereadores do Rio e inaugurou o Teatro Legislativo. O Teatro Legislativo ocorreu entre a década de 80 e 90, quando em revisão crítica às suas ideias, retificou a radicalidade do direcionamento de suas propostas. Por meio dos coringas e do teatro-fórum, o então vereador escutava, através do teatro, as suas bases e, a partir dessas reivindicações, reformulava os projetos de lei apresentados à Câmara de vereadores. O Teatro legislativo encerrou-se junto com o mandato de Boal, que passou então a investigar mais a fundo a função terapêutica do T.O., iniciada no Centre du Théatre de l’Opprimé, em Paris, durante as duas décadas do exílio. O Método Boal de teatro e terapia (também descrito no livro Arco-iris do desejo) utiliza o teatro-fórum e o teatro invisível, que recebem uma nova função instrumental: curar traumas e distúrbios psicológicos ou psicossomáticos das pessoas. No Teatro-fórum, o indivíduo pode se “ver de fora”, quando experimenta contracenar consigo mesmo na pele do outro da cena-terapêutica traumática. No teatro invisível, a pessoa experimenta uma forma idealizada de agir, de acordo com a psicologia de sua vida particular, em um contex-

to real, com auxílio dos coringas, porém sem que as demais pessoas envolvidas saibam que é teatralidade. O que se ensaia no plano potencial passa a existir no plano real. Todas as propostas de Boal visam à libertação dos oprimidos, sejam pessoais, políticas, estéticas ou sociais, a partir do conhecimento da sua aceitação da condição de oprimido, o que sustenta a existência do opressor. Ele perseguiu profundamente esse objetivo, traduziu essas ideias tanto para os exercícios teatrais como para as reflexões sobre teatro e os textos dramáticos, e, por isso, tornou-se tão conhecido, inclusive por meio dos CTOs (Centros do Teatro do Oprimido) espalhados pelo mundo inteiro.

(Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br)

Juliana Cavassin é formada em Educação Artística – Artes Cênicas (FAP) e Jornalismo (PUCPR), com especialização em Fundamentos do Ensino das Artes (FAP) e Mestrado em Educação (PUCPR). É ex-aluna e professora de Teatro desde 2003 do Colégio Medianeira; também é professora do curso de Licenciatura em Teatro da Faculdade de Artes do Paraná (2007) e presta serviços na área de Artes, Educação e Comunicação para várias instituições como SENAC-PR, ITDE e UFPR. Contato: jupalomar@hotmail.com.

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O ARCO -ÍRIS DO DESEJO ODO BOAL DE TEA TRO E TERAPIAS ARCO-ÍRIS DESEJO:: O MÉT MÉTODO TEATRO AUGUSTO BOAL

Editora Civilização Brasileira Esse livro é um conjunto de técnicas terapêuticas e teatrais, adequadas para a análise de questões interpessoais e/ou individuais. O teatro torna-se veículo da análise em grupo dos problemas relacionais e pessoais, usado tanto para o conjunto do Teatro do Oprimido e seus propósitos como terapia em instituições para tratamento psiquiátrico.

JOGOS P ARA A TORES E NÃO -A TORES PARA AT NÃO-A -AT AUGUSTO BOAL

Editora Civilização Brasileira Todo mundo atua, age, interpreta. Somos todos atores. Até mesmo os atores. Teatro é algo que existe dentro de cada ser humano, e pode ser praticado na solidão de um elevador, em frente a um espelho, no Maracanã ou em praça pública para milhares de espectadores. Em qualquer lugar, até mesmo dentro dos teatros. Versão mais completa do já celebre manual de jogos e exercícios do teatrólogo. O livro sistematiza os exercícios utilizados pelo Teatro de Arena entre 1956 e 1971, oferecendo métodos de importância inestimável para o ator e para o homem comum.

MET ODOL OGIAS DO ENSINO DO TEA TRO METODOL ODOLOGIAS TEATRO RICARDO JAPIASSU

Editora Editora De maneira clara e objetiva, essa obra expõe ao leitor os parâmetros educacionais de uma proposta didática para o ensino de teatro a crianças e pré-adolescentes das séries iniciais (1ª a 4ª série), fundamentada nos pressupostos teórico-práticos do sistema de jogos teatrais formulado por Viola Spolin (arte-educadora norte-americana). O livro constitui referência bibliográfica relevante para profissionais da educação interessados em discutir e resgatar o papel e o espaço das diferentes linguagens artísticas, além de fornecer um guia de atividades que pode ser utilizado em sala de aula e para grupos.

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Na Terra dos

LEPRECHAUNS... Nas Irlandas...

Por Levis Litz - texto e fotos

Eis uma prova de como viajar pode ser uma das aulas mais completas da vida da gente!

A CHEGADA

V

Vento, muito vento e frio – e que frio! Foi assim que aterrissei em Dublin, Irlanda. Céu cinzento, nuvens mais ainda e a vontade de voltar para uma cama bem quentinha. Mas, num ânimo que surgiu da sede de aventura, levantei-me do assento, peguei minha mochila e saí da aeronave. Vindo da terra dos Anglos¹ (Inglaterra), cheguei na terra da deusa Ériu² (Irlanda). 1. Os anglos (Angeln em alemão; englas em inglês antigo; anglus em latim) eram um povo germânico que se instalou na Ânglia Oriental, na Mércia e na Nortúmbria no século V d.C. A Grã-Bretanha meridional e oriental foi posteriomente chamada de Engla-lond (“terra dos anglos”, em inglês antigo), de onde England, o termo em inglês para Inglaterra. 2. Na mitologia irlandesa, Ériu, filha de Ernmas, era a deusa epônima, padroeira da Irlanda. Seu marido era Mac Gréine (Filho do Sol). O nome em inglês para Irlanda vem de Ériu e da palavra land (“terra” em germânico, nórdico antigo ou anglo-saxão).

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TERRA DE GENTE FAMOSA Difícil não lembrar desse país onde foi encenado o meu filme preferido de adolescência: Excalibur³. Berço de pessoas como os escritores Oscar Wilde, George Bernard Shaw e Bram Stoker, dos atores Pierce Brosnan, Liam Neeson, Peter O’Toole, Gabriel Byrne e Colin Farrell. Como os irlandeses interessam-se muito pela música, tanto a tradicional, como também a contemporânea, destacam-se interpretações de Sinéad O’Connor, Shane MacGowan, da banda U2, The Cranberries, The Corrs e James Galway, um flautista clássico.

nhei não haver ticket de comprovante da bagagem que segue lá embaixo, no bagageiro. À frente, 5 horas de viagem entre os vilarejos da Irlanda – cena rural, vegetação rasteira, muitas ovelhas e casas típicas. Dentro do ônibus: um monitor de tv desligado e sem banheiro. “Talvez haja paradas no trajeto”, pensei. Que nada! 5. Galway, também denominada de Gaillimh em irlandês, é uma das maiores cidades da Irlanda, localiza-se na costa oeste do condado do mesmo nome. Sua população é de pouco mais de 70 mil habitantes, cuja história tem registros de cerca de 800 anos, tendo sido a única cidade medieval na província de Connacht.

3. Excalibur é um filme de 1981, dirigido por John Boorman. Trata-se da lenda do rei Arthur e os Cavaleiros da Távola Redonda, escrita por Sir Thomas Malory, mais especificamente sobre a espada do rei, a Excalibur.

CERVEJA FORTE, CAFÉ NEM TANTO! Feliz de estar com os pés firmes no chão da terceira maior ilha da Europa situada no oceano Atlântico, pensei em tomar um café. Ugh! Que decepção, na terra da encorpada cerveja Guinness4, o café era muito fraco! 4. A Guinness é uma cerveja irlandesa cuja história teve início em 1759, quando Arthur Guinness alugou uma fábrica em Dublin, na Irlanda, e começou a produzir sua cerveja. Em 1862, adotou a Harpa irlandesa como símbolo. Com quase 300 anos de história, a cerveja Guinness é produzida com a mesma composição: malte irlandês, água de Dublin, lúpulo e levedura.

COM O DESTINO TRAÇADO Vou para a cidade de Galway5, e, de cara, uma boa notícia: a passagem baixou de 20 para apenas 5 euros, só porque a comprei dentro do aeroporto (não entendi! Mas, se é assim, porque contestar, não é?). Acomodado no ônibus, estra-

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Cidade de Galway

APRENDENDO COM UM MESTRE Galway – razão da minha viagem. Fui convidado para aprofundar minhas técnicas na arte marcial chinesa que mais admiro, o Tai Chi Chuan6. Arte chinesa? Na Irlanda? Pois é! Parece um pouco fora de contexto, mas é simples de entender. Meu professor irlandês, Niall O‘Floinn, e nosso mestre chinês, Wang Hai Jun, vivem aqui na Europa. Assim, nos reunimos para treinar Tai Chi Chuan em Galway e também numa cidade vizinha, Limerick. Nosso treinamento consistiu em 2 horas de manhã, 2 horas à tarde e mais 3 a 4 horas e meia de treino à noite – isso de segunda à sexta. Já aos sábados e domingos, somente 2 horas pela manhã e 2 horas à tarde. Mamão com açúcar. 6. Tai Chi Chuan é uma arte tradicional marcial interna chinesa, com movimentos suaves e contínuos que produzem resultados terapêuticos ao praticante.


ta em seu interior. Também visitei, nas redondezas, o castelo de Kylemore8. Conclui que andar pelo mundo e conhecer os castelos e igrejas antigas é como fazer parte das histórias e segredos guardados pelo tempo.

Praticando Tai Chi Chuan

NAS HORAS VAGAS Logo que cheguei, por coincidência ou sorte, um evento grande movimentava a cidade: era a “Volvo Ocean Race”, que atraiu mais de meio milhão de pessoas de todo o país para Galway. Todas as noites havia apresentações de dança típica irlandesa, shows e muita festa. O povo irlandês é muito amistoso e considerado um dos mais alegres da Europa. A Irlanda, uma ilha com aproximadamente 5,8 milhões de habitantes (incluindo a Irlanda do Norte), tem fortes raízes celtas7 e impressiona também por sua vida social e boêmia. 7. Os celtas organizavam-se em tribos desde a península Ibérica até a Anatólia. Boa parte da população da Europa ocidental pertencia às suas etnias até a eventual conquista de seus territórios pelo Império Romano. Perpetuaram-se até pelo menos o século XVII na Irlanda, pela característica geográfica de seu isolamento, conseguindo, assim, preservar melhor suas tradições. Os celtas exaltavam as forças telúricas em rituais populares, em que a expressão máxima era a Deusa Mãe, cuja manifestação era a própria natureza.

CASTELOS E IGREJAS – CENÁRIOS DE HISTÓRIAS E LENDAS Quando viajamos pelo mundo, ficamos deslumbrados diante dos castelos e igrejas que cruzam nossas vistas. Imaginamos como deve ter sido na época de suas construções e a vida dos que habitavam naqueles locais. Quando apareceu um intervalo em meu treinamento, aproveitei para visitar a Catedral de Galway, muito boni-

8. O castelo de Kylemore é uma das mais românticas construções do final do Século 19. Situase em Connemara, Galway. Originalmente, foi construída por uma família como uma residência particular. Sua construção neogótica, feita de mármore, tornou-se, mais tarde, uma abadia de freiras beneditinas que fugiram da Bélgica na época da 1ª Guerra Mundial.

Espetacular interior da Catedral de Galway e o castelo de Kylemore

NA CAPITAL, DUBLIN Após um longo período de treinamento, fui para Dublin descansar. Lá encontrei uma amiga argentina, Monina, professora de tango e que me ajudou a conhecer a cidade. Ela me levou no Temple Bar9 e num pub, o “Ha’ Penny Bridge Pub”, onde se pode experimentar o entretenimento típico irlandês com música ao vivo, bebida e ótimo ambiente. Ali, assistimos a uma dupla de “violeiros countries” dos Estados Unidos. Um show memorável para a minha última noite na cidade. 9. O Temple Bar é um famoso espaço turístico que se destaca pela concentração de inúmeros bares em que a vida boemia se faz presente e onde pessoas de todo o mundo se encontram.

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O Temple bar, em Dublin

Interior do Ha’ Penny Bridge Pub

O LEPRECHAUN Segundo arqueólogos, a Irlanda é povoada há mais de 9000 anos. É uma terra com muita tradição e os irlandeses adoram contar histórias da região. Tentei acompanhar seus contos regados a muitos copos de Guinness, mas não foi o suficiente a ponto de ver um leprechaun10. 10. Leprechaun é uma figura mitológica do folclore irlandês, também conhecido como Duende ou Gnomo. Pequenos, com estatura entre 30 e 50 centímetros, vivem em bosques ou florestas e são considerados guardiões de tesouros escondidos. São descritos como alegres, traquinas e vestidos à maneira antiga, com roupas verdes, uma cartola e sapatos com fivelas.

res no planeta para conduzir rituais pela paz. Um sioux chamado Arvol Looking Horse teve uma visão para ir à Irlanda e visitar o centro espiritual daquele país. Para revitalizar os lugares sagrados, muitos dos quais com círculos de pedras12, cerimônias foram realizadas com uma fogueira por quatro dias. Porções das cinzas remanescentes dessas fogueiras seriam distribuídas com a intenção de aproximar as pessoas em prol da paz. Um irlandês que estava envolvido como um dos membros do grupo que recebeu os índios, na minha despedida, deu-me alguns gramas daquelas cinzas. 12. Círculos de pedras são antigos monumentos que frequentemente formam um conjunto de pedras dispostas num arco de círculo. O mais conhecido e visitado círculo de pedras britânicos é o de Stonehenge (Inglaterra). Confira na foto abaixo:

O CLADDAGH Numa terra tão fascinante, repleta de simbologia e mistério, o respeito pelo ser humano é evidente. A fraternidade, lealdade e amizade são pontos fortes nessa terra representada pelo “Claddagh11”. 11. O Claddagh é um símbolo cuja origem data de 300 anos. Surgiu numa antiga aldeia de pescadores em Claddagh, aos arredores da cidade de Galway. Seu símbolo é entregue como reconhecimento de amizade sincera e verdadeira.

A FRATERNIDADE EM BUSCA DA PAZ Velhos e respeitados índios de diferentes tribos da América do Norte designaram cinco luga-

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NA OUTRA IRLANDA (DO NORTE), EM BELFAST De Dublin levei um pouco mais de 2 horas, de ônibus, para chegar a Belfast. Mas por que há duas Irlandas? A Irlanda do Norte, em 1921, surgiu como uma entidade política autônoma que ficou sob o domínio do Reino Unido. Na década de 60, tentou-se reformar o sistema, mas houve excessivos confrontos entre os habitantes locais. O Exército Britânico, para “conter os ânimos de protestos”, assassinou treze civis desarmados. Esse trágico evento ficou conhecido como o Domingo Sangrento (Bloody Sunday). O confronto com o IRA – Exército Republicano Irlandês – e uma campanha de violência levaram a Irlanda do Norte à beira de uma guerra civil. Novos siste-


mas de governo foram tentados, mas fracassaram até que em 1998 surgiu o “Acordo da SextaFeira Santa13”. Em 1999, os protestantes aceitaram o compromisso do IRA de entregar armas. Enfim, cresce o otimismo em relação ao processo de paz. 13. O Acordo de Sexta-feira-Santa, também conhecido por Acordo de Belfast, foi assinado em 10 de abril de 1998, tendo sido apoiado pela maioria dos partidos políticos norte-irlandeses. Este acordo tem por finalidade acabar com os conflitos entre católicos e protestantes e garante que a Irlanda do Norte permanecerá ligada ao Reino Unido enquanto sua população assim o desejar.

SITUAÇÃO DE TENSÃO Quando caminhei pelas ruas do centro de Belfast, percebi o benefício que o “Acordo de Belfast” proporcionou para a revitalização da cidade, mas havia ainda resquícios das discrepâncias políticas e religiosas. Há muitos murais14 de protestos. Embora fervorosamente advertido para evitar tal área, quis conhecê-la. Soube de 2 chinesas que foram ameaçadas com facas para saírem daquela área onde estrangeiros eram pessoas não gratas! Com todo cuidado, me preparei para ir lá. Trajado como irlandês, não como turista, caminhei em passos largos como quem já soubesse para onde ia, evitava olhar para os lados. Saí do hotel às 11h da manhã, imaginei ser um bom horário, porque haveria mais movimento nas avenidas. Engano meu, a cada passo em que me “embrenhava” na zona de risco, a tensão aumentava, pois havia pouca gente a pé. Em breve teria que entrar nas ruas secundárias, ainda mais vazias e isso chamaria a atenção. Repentinamente, um carro para a poucos metros de mim, saem quatro irlandeses parrudos. Um deles fica bem no meu caminho. Sem me intimidar, mas pronto para correr uma maratona se necessário, olhei sério para o sujeito e fiz um aceno com a cabeça, ele me fitou, deu um passo para trás e me deixou passar. Continuei, sem olhar para trás, até que entrei na área dos murais. Sem quase ninguém nas ruas, era difícil ser discreto. Notei cortinas se movendo enquanto passava. Parecia coi-

Eis dois murais de forte

sa de filme de terror. Logo avistei um mural e depois outro. E agora, como tirar fotografias incógnito? Titubeei um pouco e, sem opção, comecei a fotografar. Tudo certo, até que, na esquina, dois homens ficaram me observando. Quando um deles se levantou, me antecipei, dei meia volta, caminhei apressadamente até conseguir me distanciar para um local mais movimentado e seguro. Aquele foi o momento mais tenso que passei na terra dos leprechauns. 14. Os famosos murais políticos, quase dois mil documentados, tornaram-se símbolo da Irlanda do Norte, pois representam as diferenças do passado e do presente na região desde a década de 70.

A PARTIDA Após aquela experiência desagradável, passei momentos agradáveis no Botanic Gardens, um dos mais belos parques de Belfast. Aproveitei para conhecer alguns pratos típicos e saborear um pouco do licor da Irlanda, o Bailey´s15 – uma delícia!

Detalhe do belo Botanic Gardens

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15. O Bailey´s Irish Cream é um dos mais famosos e deliciosos licores do mundo. Produzido desde 1974 na Irlanda, consiste numa mistura de natas com uísque irlandês e teor alcoólico que alcança 17%.

LITERATURA, POESIA E HUMOR DA IRLANDA A Irlanda não é fraca, não! Os irlandeses têm fascínio pela literatura. Inseridas em sua cultura, encontramos quatro nobéis de Literatura: George Bernard Shaw, Samuel Beckett ,W. B. Yeats e Seamus Heaney. Um irlandês ganhou o Nobel da Física, Ernest Walton, em 1951. A poesia irlandesa representa a mais antiga poesia vernácula na Europa. Os primeiros registros datam do século VI. Os irlandeses também gostam de rir – e muito! Algumas anedotas curtas mais famosas: “Não faça ao outro o que o outro faria a você, o gosto dele pode não ser o mesmo”. George

gios da arte religiosa medieval. Escrito em latim, o Livro de Kells contém quatro Evangelhos do Novo Testamento. A harpa, um dos símbolos da Irlanda, pode ser vista nos passaportes e selos da República da Irlanda. É baseada numa harpa do séc. XIV, que está agora guardada no Trinity College de Dublin e obteve popularidade como a Harpa de Brian Boru. O dia nacional na Irlanda é 17 de março, que homenageia o padroeiro São Patrício. O trevo de três folhas também é identificado como símbolo da Irlanda, porque se diz que São Patrício o utilizou para explicar a Santíssima Trindade. A cor verde também é a cor mais associada à Irlanda e está presente na bandeira nacional, representando os cristãos do país. (Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br)

Para saber mais www.ireland.com

Bernard Shaw, dramaturgo.

“Os verdadeiros amigos apunhalam-te pela frente”. Oscar Wilde, escritor. “Formei um novo grupo chamado de Alcoólicos Unânimes. Se não lhe apetecer uma bebida, telefone a um dos membros, que virá persuadi-lo”. Richard Harris, ator.

Levis Litz é Professor de Tai Chi Chuan no Colégio Medianeira pela APP. As aulas acontecem às terças e quintas-feiras, das 07h20min às 08h15min. É membro da Galway Chen Style Tai-Chi Academy (Europa) e da International Yang Style Tai Chi Chuan Association (EUA).

Curiosidades Pessoas da etnia irlandesa são comuns em muitos países. Mais de 80 milhões de pessoas compõem a emigração irlandesa que atualmente abrange Inglaterra, Argentina, Austrália, Canadá, entre outros. O maior número se encontra nos Estados Unidos, cerca de dez vezes mais irlandeses do que na própria Irlanda. A Irlanda também é famosa pelo Grande Evangelho de Santa Columba (Book of Kells). Um manuscrito ilustrado feito por monges célticos até o ano de 800. Apesar de estar inacabada, é um dos mais belos manuscritos que sobreviveram desde a Idade Média. É considerado como um dos mais importantes vestí-

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OS PRÍNCIPES DA IRLANDA (COLEÇÃO A SAGA DE DUBLIN) EDWARD RUTHERFURD Editora Record 'Os príncipes da Irlanda' é mais um magnífico épico repleto de amores, batalhas, família e intrigas políticas. Costurando pesquisa histórica e uma incrível capacidade de contar boas histórias, Edward Rutherfurd captura com delicadeza e inteligência a essência do povo irlandês ao longo de onze séculos.


UM CONTO

O DONO DA MORTE Por Luiz Carlos Heleno

V

Vira e mexe matam um, dois, dez, cem. Uma guerra diuturna, silenciosa e perversa, alimentada por tudo que é tipo de descuido. O ponteiro estatístico da taxa de mortandade de jovens – meninos ainda (meninas, bem pouco) – segue virando a vida ao avesso. As garras do tráfico sobre eles, a vida rasa de que é feita seus dias, o destino que não se conta e nem se releva quando desfeito e despedaçado ao som de “pipocos”, como dizem eles, vindos do cano das armas prontas para o disparo ordenado pelos senhores das bocas. Gilliard (assim mesmo, com “d” mudo), dirige um carro emprestado pelas vielas de Vila das Torres, no afã de brecar por momentos o índice dessas mortes que têm prazo certo pra aumentar: 24 horas. Esse o tempo que o dono da boca deu para que “Bugre” – 17 anos – acerte sua dívida com o gerente do “ponto três” da vila. O avô de Bugre, já em desespero, foi quem avisou Gilliard, dizendo que os homens não tão brincando não, e que foram até o bar, armados, encostaram Bugre contra a mesa de

sinuca, falando lento palavra por palavra: aí ô pivete, tu tem 24 horas pra livrar tua carcaça de começar a feder! Depois do aviso, deixaram uma grana com o dono do bar, que é pra ajudar com o novo uniforme do Flamengo, time da vila que vai disputar torneio por esses dias. O cuidado para não ser visto requer olhos e ouvidos atentos. Gilliard avisou os técnicos da Rede de Proteção que iria direto para a vila, que não usaria o veículo do programa, e que teria um bate-papo com alguns jovens do “graffiti” – maneiras de despistar qualquer mensagem que pudesse pôr em risco a vida de Bugre. Estaciona numa rua transversal, desliga o rádio no exato momento em que Rita Lee canta “coisas da vida / e a gente se olha e não sabe se vai ou se fica”, e segue a pé até o Centro de Atividades, avistando do portão o avô de Bugre, um negro ainda forte nos seus quase 75 anos. No salão do centro a conversa é breve: tome a chave, apanhe as coisas, evite demonstrar medo, o carro tá em frente da casa de Jorge, avise dona Cida pra esperar no por-

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tão da Católica, pegue umas bolachas pra viagem, e vá calmo que tudo vai dar certo. O tempo, feito em horas, está demasiado lento para o dono da morte: o prazo estipulado em vias de se cumprir, o fio da navalha em que sobrevive uma espécie de Cronos a engolir jovens num submundo em que o pagamento em dia mantém a morte lenta; o não pagamento atrai a morte violenta. O dono da boca a exigir ou a morte em vida pelo uso da pedra, ou a morte-morte mesmo lavrada a cabo e a pólvora em sentença sumária sem choro nem vela. Pelas ruas da vila a vida se safava em três atos simultâneos e sincrônicos, no correr de minutos preciosos se esvaindo rápido demais: 1 - Bugre passou pelo ponto três para agradecer o prazo dado, e que tava indo agora mesmo apanhar a grana com um amigo da família, sendo logo avistado indo em direção ao Colégio do outro lado da ponte, com a concordância do gerente da boca, que ainda disse: “o meninão que não vacile!”; 2 - o avô de Bugre preparou farnel, juntou roupa e levou até o carro de Gilliard, seguiu até o Centro de Atividades para entregar a chave, e antes de voltar para o veículo passou também pelo ponto três para certificar-se de que tudo estava calmo: faltavam ainda oito horas para quitar a dívida; 3 – Gilliard apanhou a chave, seguiu pela rua inversa a que seguiu o avô de Bugre, e calculou os minutos para que pudessem chegar ao mesmo tempo onde o carro estava estacionado. Dez minutos depois, já ligado o motor, tremeram: estudantes do Colégio ao lado visitavam alguns programas sociais desenvolvidos na vila, quando ouviram tiros na direção da rua central, xingamentos, carrinho de ca-

chorro-quente se espatifando, cães fugindo pelas vielas, início de corre-corre: o avô pensou o pior, Gilliard ficou apreensivo, mas não cedeu à ansiedade – guiou calmo em direção ao Colégio Esperança, pediu passagem a veículos que chegavam para apanhar crianças do turno da manhã, tomou o rumo da Avenida das Torres, e contornou pela antiga BR, no sentido da Universidade Católica, onde Bugre e Cida, sua mãe, aguardavam há alguns minutos. O destino dos três era Santa Catarina: no interior mora uma tia de Bugre, que agora tá quieto no banco traseiro, levando bronca do avô que queria saber por que é que ele tava fumando da pedra maldita. Num restaurante de beira de estrada pararam para o almoço. Bugre estava estralando os ossos da mão quando serviram o comercial para 4 pessoas: salada de alface e tomate, arroz, feijão, e frango ao molho. Gilliard orienta o que tem de ser feito quando chegarem ao destino: procurar o serviço social do município; Bugre se inscrever nas atividades para dependentes químicos; arranjar outro jeito de sobrevivência; e se puder arranjar logo uma casinha pra alugar – vai que o gerente da boca desconfia do paradeiro. De acordo, fecharam a conta do almoço, e seguiram viagem. Dona Cida, olhando a estrada e cantarolando um trecho de canção “aquela nuvem que passa / lá em cima sou eu...”, comenta que nos anos 70 gostava muito de um cantor que se chamava Gilliard: Você também canta? Ela pergunta. Gilliard diz que não, mas confirma que seu nome é por causa desse cantor, que ele nunca viu nem ouviu. Já é noite quando chegam à cidadezinha no estado vizinho: o prazo da dívida pela pedra se esgotou há mais de meia hora. Por hoje, o senhor da morte perdeu.

Luiz Carlos Heleno é escritor e compositor, com prêmios em concursos de literatura no Paraná e em outros estados: Gralha Azul de Literatura, Concurso de Poesias de São José dos Pinhais, Prêmio Publicação Concurso Helena Kolody, Revista Brasiliense de Literatura, Participação em Coletâneas de Literatura em prosa e verso. Possui composições próprias e em parceria com Grace Torres e Ulisses Galeto, integrantes do Grupo Fato, e com Luiz Antonio Fidalgo, compositor paranaense. Já colaborou em diversos jornais e revistas: O Estado do Paraná, Jornal do Estado, Tribuna do Paraná, Revista NÓS (Galiza, Espanha), entre outros.

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SILÊNCIOSÉPIA O cabelo ralo caía sobre a face de Rita, as sobrancelhas estavam sempre arqueadas, como o desenho que suas costas faziam (hoje penso que não conseguia mais deixá-las naturais) e seus olhos – ah, seus olhos! – miravam o mundo com uma tristeza comparável ao banzo dos africanos. Conservava seu ar perdido, de quem, de tanto viver, foi se esquecendo nos anos, foi se deixando nas ruas, foi se apagando nas fotografias. Era a típica imagem do correr do tempo. Sempre sozinha, saía de casa com passos inseguros, lentos, parando todos os dias em frente à padaria de nossa rua. Entrava, conversava alguns instantes com “seu” Joaquim e saía com o embrulho de sempre, pequeno, quase vazio, condizente com seu corpo franzino. Imagino que carregava pãezinhos doces, daqueles que têm creme por cima, que combinam com chá de camomila e uma toalha bordada estendida na mesa. Foi numa dessas ocasiões que, tomada de coragem, entrei na padaria. Aproximei-me, como outra cliente qualquer, ainda indecisa com o que levar, e abri-lhe um sorriso discreto. Ela retribuiu com um olhar doce e um movimento leve dos lábios. Pude perceber que seus olhos não eram tristes como pareciam de longe. Pelo contrário, brilhavam com uma intensidade estonteante, que ao mesmo tempo acalmava. Não sei o que me chamava atenção naquela mulher, parecida com tantas outras por quem passo despercebida. Acho que Rita ainda conservava um feixe de luz em meio a tanta poeira. – Desculpe, não me lembro de você... Havia me esquecido, Rita não me conhecia (nem eu, tampouco). Apresentei-me. Agora sabia meu nome. Foi, aos poucos, nas idas diárias à padaria, sabendo mais sobre mim. Convidou-me para um chá. Bati na porta da casa antiga, a única de madeira, repleta de árvores, que sobrevivera à invasão vertical da Avenida São João. Entrei e senti o peso de décadas sobre mim. Fotos, quadros antigos pendurados nas paredes e um tom de sépia por toda a casa. Estava linda, a Rita. Vestira o que parecia ser seu melhor vestido, todo florido, bordado, penteara o cabelo e até os velhos chinelos havia trocado. Agora puxava-me pelo braço, com um toque leve

Por Luiza Pacheco

de mãos, mostrando a casa. Os quartos dos filhos, o seu, a cozinha e, de volta à sala, colocou-me na cadeira, como uma mãe faz com a filha que há tempos não vê, e me serviu o chá. A conversa durou horas. Acho que mal percebeu que só falamos a seu respeito. Contou dos filhos, cada um com sua família, morando longe, sem qualquer Rita para se preocupar. O marido também já se fora, há dez ou doze anos. Ficamos em silêncio. Eu pensando em Rita; ela, não sei dizer. Queria conhecê-la mais. Saber seus segredos, histórias, vontades, os sonhos que ainda guardava. Ainda me pergunto o motivo de tanto interesse, sem conseguir encontrar muito bem uma resposta. Acho que Rita conservava vida dentro de si. Seus olhos, sua fala o demonstravam. Precisava conhecê-la melhor para entender essa palpitação que a mantinha faiscante mesmo quando as fotografias já amarelavam. Precisava lançar mão de meus traumas e mergulhar dentro daquela mulher, daquela figura de mãe que tanto me intrigava. Rita era um espelho, ainda embaçado, pelo qual sabia que conseguiria me ver. Bati novamente à sua porta. Nada. Repeti-o incontáveis vezes, sempre mais aflita. – Rita? Nada. Entrei. Que me desculpasse, mais tarde, a falta de educação ou meu jeito intruso, não podia esperar mais. Entrei e a casa, impecável como da primeira vez, estava agora repleta de silêncio. Parecia que até os quadros haviam se calado, zelosos por mantê-la nesse estado. Era como se tudo dormisse ao sono leve de fim de tarde. Estava deitada em sua cama, mais linda do que nunca – ainda que usasse o mesmo vestido e os mesmos chinelos da última vez. Não demorei muito para compreender, Rita estava completamente branca... Remédios ao lado da cama. De relance, pude distinguir um para memória e outro para o coração. O que fizera, Rita? Esquecera-se ou lembrara-se do quê? Já não tinha medo. Minha vontade era de segurar sua mão, não de chorar. Rita se fora, eu sabia, e mais rápido do que pudera imaginar. Só restaram em mim, presos na garganta, o silêncio e um estranho tom de sépia.

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NA PAREDE

UMA LEMBRANÇA Por Lyziana Dela Bruna Hiroki

Era um final de tarde, o suor escorria em minha testa, as rodas do meu skate gritavam para descer aquela rampa, porém, a coragem – que já era pouca – com o passar do tempo parecia diminuir. De cima da rampa, avistava o quarteirão inteiro. Do meu lado esquerdo as crianças começavam a sair do colégio Dom Bosco, onde por sinal havia me matriculado no começo do ano por pressão da minha mãe para estudar, porém, nunca cheguei a assistir a uma aula. Sempre me perguntava se a escola da vida não é a melhor. Do meu lado direito, o trânsito infernal tomava conta de uma rua estreita e barulhenta. Foi então que avistei aquela mulher pela primeira vez. Seus cabelos loiros caíam sobre os ombros um tanto curvados naquele momento por conta dos livros que carregava. Ela usava um suéter rosa desbotado e aquelas cores me deixaram completamente fascinado, pois além de linda, ela parecia carregar consigo uma felicidade por mim ainda não experimentada. No transe em que me encontrava, desequilibrei-me na rampa e caí. Logo depois, lembro-me de ter visto várias pessoas a minha volta, algumas gritando para chamar a ambulância, outras apenas me observando, e junto delas aquela mulher de suéter rosa desbotado deferia um olhar assustado em minha direção. Acordei no hospital com a perna quebrada e quatro pontos na cabeça. Durante o tempo em que fiquei de repouso no hospital, por causa dos meus ferimentos, imaginei várias histórias ao lado daquela que dominava meus pensamentos. Sonhava acordado com a possibilidade de com ela me casar, ter vários filhos e por consequência, ser feliz para sempre. Um tanto idiotas esses meus devaneios, eu sei, mas em meu mundo imaginário não existiam problemas, discussões, preocupações, eu o adorava e passava horas nessa vida inventada. Em uma manhã, depois de terem tirado o gesso da minha perna, avistei novamente aquela mulher, e comecei a segui-la. Durante meses continuei nessa busca e descobri que me sentia melhor quando estava perto dela. Outro dia, porém, ela olhou para trás e começou a andar em minha direção, fiquei sem ar, foi quando me disse “oi” com uma voz suave e empolgante. Depois do “oi” que quase não consegui pronunciar direito, ela me perguntou como eu estava depois do aciden-

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te e respondi meio sem graça que eu estava bem. Claudia se apresentou a mim e começou a falar sem parar sobre diversos assuntos, que não me lembro, pois estava prestando atenção em seu rosto perfeito que parecia ser de seda, combinando com seus olhos castanhos claros que ao descer da minha vista encontrava-se com seus lábios pequenos. Só me lembro bem de uma pergunta, aquela que daria um novo rumo à minha vida. Claudia queria saber onde eu estudava, e, sem conseguir mentir, contei que não ia para o colégio. Ela não me deu sermões, nem filosofou a respeito, mas seu ar desapontado me fez sentir vergonha de aos 16 anos ainda ser praticamente analfabeto. No dia seguinte, fui ao colégio estudar pela primeira vez. Ainda estava apaixonado por Claudia, mas começava também a me interessar pela vida na escola. Ao término da aula conversamos novamente sobre outros assuntos. Depois de um tempo, ir para o colégio, conversar com a Claudia, estudar, sair com meus primeiros e novos amigos virou rotina, e com isso todas as minhas imaginações passadas foram sendo trocadas pelo novo e real mundo no qual eu estava vivendo. Porém, não parei de imaginar, pelo contrário, agora tinha tudo que eu queria: uma vida e as minhas novas e mais ousadas imaginações. Foi então que recebi uma notícia triste. Claudia tinha sido atropelada e não resistiu aos ferimentos. Chorei. Não havia nada que eu pudesse fazer para reverter a situação. Hoje, olhando meu diploma de médico na parede, a foto dos meus dois filhos e da minha esposa na mesa do meu consultório, minha família feliz, só tenho a agradecer a presença daquela mulher que me ensinou que a vida não é só uma ilusão. E não adianta viver sem responsabilidade e só na imaginação como eu vivia, pois o melhor da vida é saber que podemos construir belas realidades a partir de sonhos. – Doutor Eric, desculpa interromper, mas a paciente atropelada que o senhor atendeu a pouco acaba de acordar. Gostaria de vê-la agora?

Luiza Pacheco e Lyziana Dela Bruna Hiroki são alunas da 1ª e 2ª série do Ensino Médio do Colégio Medianeira. Os textos foram produzidos na Oficina de Criação Literária, ministrada pela professora de Língua Portuguesa, Eliege Pepler.


CROQUETE DE

POSTA BRANCA ... E a odisseia gastronômica continua...

Por ele, Marcelo Weber

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Dentre os inumeráveis desfrutes que se tem do fogo e da caçarola, não podemos esquecer o prazer alquímico, de transformar alguns restos inexpressivos – sobras aparentemente sem valor, destinadas ao desperdício – em verdadeiros acepipes, fábulas da mesa. A lagarta de mau aspecto se transforma numa linda borboleta, Deus fez luz das trevas, Jesus transformou pedras em pães, mas a mineira transforma o feijão de ontem em tutu. O português faz o arroz doce, e do pão velho faz as migas e faz a rabanada. Os alemães fazem o chucrute. Eu faço o croquete de posta branca e o bolinho de arroz. É que o milagre não é mais exclusividade dos santos. O rouxinol canta na entrada da primavera, o esturjão dá o caviar, a abelha, o mel, a videira, o vinho, e eu posso vos dar o croquete de posta branca. É um pitéu que faz sorrir a viúva em luto. Inspira o poeta. Devolve o juízo ao alienado e a anistia os condenados. Quem come fecha os olhos para concentrar os sentidos todos na língua. E a boca se transforma numa fonte torrentosa de salivas. Ele faz o orgulho do gênero humano, ele é o O CROQUETE DE POSTA BRANCA.

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Para 500 g. de sobras de posta de panela Dois ovos 50 ml Leite Farinha de rosca q.b. Um molho salsinhas Sal e pimenta q.b.

MODO DE PREPARAR:

INGREDIENTES:

CROQUETE DE POSTA BRANCA Passe a posta no moedor de carne duas vezes Misture o ovo previamente batido com salsinha, sal e pimenta e junte à carne Misture com a mão (use luvas cirúrgicas e tenha, nem preciso dizer, as unhas cortadas para que não cortem a luva). Acrescente umas duas ou três colheres de sopa de leite e depois vá colocando farinha de rosca fresca aos poucos até conseguir uma massa mole, mas firme o suficiente para ser modelada na palma da mão. Bata um ovo com pouco de leite e passe os croquetes por aí e depois na farinha de rosca. - Frite-os pelo tempo de um pai-nosso em azeite quente. Escorra-os e deixe enxugar a gordura em papéis próprios para isto.

Reza a lenda que Argus Panoptes, animal fabuloso de 100 olhos, sempre tinha dois abertos. E para tentar fazê-lo dormir, Mercúrio contava histórias e tocava música. Mas isto não foi suficiente para o que monstro dormisse totalmente. Mercúrio lhe deu destes Croquetes de posta branca. Ele fechou então todos os olhos para melhor saborear e teve a cabeça cortada. Hera, com pena do monstro, tirou seus olhos e pôs na cauda do pavão. Homero não conta, mas Odisseu ficou tanto tempo esquecido de Penélope na ilha de Circe por efeito dos croquetes de posta branca que a

rainha fritava e lhe oferecia sempre que o encontrava lacrimoso e triste na praia olhando o mar. Isso lhe devolvia a alegria de viver e desejo de entregar-se aos combates de Vênus com aquela feiticeira. Combina com arroz, purê de batatas, salada de alface, tomate, agrião. É prato para as crianças de dieta mal educadas aprenderem a comer saladas. O expediente de enrolar o croquete com a folha da alface funciona muito bem como engodo para fazê-las aprendizes de saladas... Acredite quem fizer. E ipse dixit...

Marcelo Weber é artista no seu sentido mais amplo, renascentista. Ex-aluno do Medianeira e agora pai de aluna, é autor do Mural do Conhecimento, obra em azulejo em exposição na entrada principal do Colégio.

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