Revista Mediação - Número 16

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ISSN 1808-2564

revista de educação editada e produzida pelo colégio medianeira

Diretor Pe. Rui Körbes, S.J. Vice-diretor Prof. Adalberto Fávero Coordenador Administrativo e Financeiro Gilberto Vizini Vieira

Uma copa na África Francisco Carlos Rehme .................................................................................................................. 5

Coord. Comunitário e de Esporte Prof. Francisco Alexandre Faigle Coordenação Editorial Nilton Cezar Tridapalli Luciana Nogueira Nascimento

A outra face da tecnologia Guilherme Dal Moro ......................................................................................................................... 9

(MTB 2927/82v) Revisão Nilton Cezar Tridapalli Projeto Gráfico e Diagramação

A história dentro de casa Henrique Witoslawski ...................................................................................................................

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Sonia Oleskovicz Ilustrações Marcelo Cambraia Sanches Colaboraram nesta edição Adalberto Fávero, Diego Zerwes, Francisco Carlos Rehme, Guilherme Dal Moro, Henrique Witoslawski, Marcelo Gorges, Marcelo Weber, Mauro M. Braga, Nilton Cezar Tridapalli, Susane Martins Lopes Garrido, Ulisses Candal Sato Tiragem

Intervalos, funções, matemática e terremotos Marcelo Gorges .............................................................................................................................

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A era de ouro do rádio 2.0 Uma crônica sobre podcasts Ulisses Candal Sato ......................................................................................................................

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3000 exemplares Papel Reciclato Suzano 90g/m2 (miolo) Reciclato Suzano 240 g/m2 (capa) Número de Páginas 52

EQUIPE PEDAGÓGICA Educação Infantil e Ensino Fundamental de 1ª à 4ª séries Coordenadora Profª Silvana do Rocio Andretta Ribeiro

Da vista de meu ponto ou do Haiti, da política e dos pontos de vista Adalberto Fávero ..........................................................................................................................

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É pra polemizar? Então tá... ... debatendo os direitos humanos em Cuba, a mídia e a política externa brasileira... Mauro M. Braga .............................................................................................................................

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Ensino Fundamental de 5ª e 6ª séries Coordenadora Profª Eliane Dzierwa Zaionc Ensino Fundamental de 7ª e 8ª séries Coordenadora Profª Roberta Uceda

A inclusão sócio-digital: preâmbulos e o caminho da educação a distância Susane Martins Lopes Garrido .....................................................................................................

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Ensino Médio Coordenador Prof. Marcelo Pastre Coordenador de Pastoral

O acorde secreto de Leonard Cohen Diego Zerwes ................................................................................................................................

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Pe. Guido Valli, S.J. Coordenador de Midiaeducação Nilton Cezar Tridapalli Assessoria de Comunicação e Marketing Luciana Nogueira Nascimento

Diversidade cultural e mundialização Nilton Cezar Tridapalli ...................................................................................................................

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CRÔNICA

Empadas de queijo Os artigos publicados são de inteira responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a opinião dos editores e do Colégio Nossa Senhora Medianeira. A reprodução parcial ou total dos textos é permitida desde que devidamente citada a fonte e autoria.

Linha Verde • Av. José Richa, 10546 Prado Velho • Curitiba • Paraná fone 41 3218-8000/ fax 41 3218-8040 www.colegiomedianeira.g12.br mediacao@colegiomedianeira.g12.br

Marcelo Weber ...............................................................................................................................

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Política e mídia: ligando os pontos O que poderia ter em comum a história do sobrenome de sua família, a relativização do discurso contra Cuba, a visão que o mundo recebe sobre o Haiti, as eleições que se aproximam e a Copa na África? Tudo está impregnado de histórias e de História, sejam as oficiais, sejam as oficiosas – muitas vezes mais dignas de confiança. Conhecer a si mesmo – como sujeito particular ou como parte de um coletivo – e ao outro – seja esse outro um indivíduo ou uma nação – nos faz ampliar a perspectiva, nos desloca do nosso ponto de vista limitado e nos faz perceber o mundo de modo mais amplo, mais rico. Todos esses temas, se discutidos com seriedade, podem nos fazer, no mínimo, questionar discursos únicos que rondam por aí e, de tão repetidos, se cobrem com o manto da verdade. O que poderia haver de comum entre as mudanças que ocorreram entre a era das ondas do rádio e a era do rádio sem onda, a inclusão sócio-digital, a diversidade/unilateralidade cultural e a suposta neutralidade tecnológica? Todos esses temas desvelam – ou seja, “tiram o véu” – a transformação e a importância das mídias. Aquele negócio de que mídia é “apenas” um meio, um veículo neutro de transmissão de informações não parece se sustentar. Por trás das inovações, muitas intenções, às vezes claras, muitas vezes obscuras. Por outro lado, o humano, que LIDA controla essas mídias, é capaz de usá-las de modo criativo e solidário. Ou seja, o velho embate entre os interesses de mercado – por natureza egocentrado – e as ações altruístas aparece por aqui. Mas, espere um pouco. Na resposta à primeira

pergunta, falamos que o império do discurso único poderia ser destronado. Isso também vale para a análise das mídias. Mas, espere mais um pouco. Na resposta à segunda pergunta, falamos da parcialidade das mídias e do jogo de forças entre o seu uso para fins de mercado e para fins de compartilhamento. Se mídia constrói discurso, então ela também está relacionada ao grupo da primeira pergunta! Enfim, como você já deve ter percebido, tudo pode se relacionar com tudo. Trata-se de uma urdidura que, por um ou vários fios, vão se enredando e tecendo algo em comum – comunicação. Ah, quer saber o que mais esses temas têm em comum? Todos eles estão nesse número 16 da revista Mediação. Ainda trazemos explicações matemáticas sobre os tantos terremotos que têm afligido vários cantos do mundo e o mundo de um modo geral (tudo se comunica, lembra?). Também analisamos um pouco o fenômeno da canção “Hallelujah”, do escritor, compositor e cantor Leonard Cohen, cuja canção já recebeu mais de 200 versões. Os dilemas existenciais do ponto de vista da ficção literária e uma receita culinária sempre digna de respeito fecham nossa edição. Quer arriscar o que esses últimos temas têm em comum? Escreva pra gente: midia-edu@colegiomedianeira.g12.br. Confira on-line as outras edições da revista e visite nosso blog. Está tudo lá em http:// midiaeducacao.wordpress.com. Aquele abraço.

Nilton Cezar Tridapalli

mediacao@colegiomedianeira.g12.br 4


Uma

na

COPA

テ:RICA Por Francisco Carlos Rehme

Entre belezas, mazelas e estereテウtipos, eis que veremos uma Copa do Mundo de futebol no continente africano. 5


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Devo dizer, no intuito de dar uma pista sobre o que deve discorrer o tema, que sou daqueles que aguardo com muita expectativa – e mais ainda, nostalgia – uma copa do mundo de futebol. Aprecio programas televisivos de debates, do tipo “loucos por futebol”, em que há uma mágica alquimia na fusão da história, da geografia com o chamado “esporte bretão”. Aprendi a gostar de geografia também desse jeito e, de quebra, a gostar da história do futebol. E já não era sem tempo: oitenta anos depois da primeira Copa do Mundo e depois de dezoito edições, eis que o continente africano sedia o principal evento futebolístico. Bem sei que os argumentos puramente econômicos, muitos dos quais cheiram a capitalismo mofado, depõem contra a capacidade estrutural de algum país da África em promover o campeonato. Tais “teses” trazem em seu bojo o mesmo conteúdo preconceituoso e autojustificável dos que se apregoavam nos séculos XV, XVI, XVII (e por aí afora), quando os europeus sentiam-se com o dever “cristão” e “humanista” de levar a “civilização” ao “continente selvagem”. Isso significava garantir a legalidade e, mais do que isso, florear um violento processo de colonização continental e de escravização de inúmeras nações. Do Cabo da Boa Esperança ao Estreito de Gibraltar e de Dacar à Península da Somália, a África é bastante extensa: três europas, mais de uma vez e meia a América do Sul. O número de estados se equivale ao europeu, aproximadamente meia centena. A grande maioria desses países é absolutamente desconhecida pelas pessoas de nossa cidade. Só irão aparecer no Jornal Nacional se houver uma grande tragédia, uma guerra civil, por exemplo. Ou se, na copa, aprontar alguma zebra – animal que, aliás, é natural das savanas africanas. Estados são tantos e, quanto às na-

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ções? Incontáveis, multiplicadas entre o Índico, o Atlântico e o Mediterrâneo. Uma rica coleção de línguas, músicas, danças e cores. Embora as escolas raramente nos contem, a gloriosa história das civilizações africanas não se resume ao Egito dos faraós ou à Núbia, vizinha meridional da terra da esfinge. As ruínas de Zimbabwe, no país que há apenas 35 anos pode ostentar esse nome*, atestam uma florescente cultura. Nas áridas terras do Sahel, que hoje compõem o mais dramático cinturão da fome, da miséria e do esquecimento por parte do resto do mundo, havia imponentes cidades de adobe no Mali e na Mauritânia. Por lá passaram caravanas carregadas de ouro e marfim, uma das tantas formas de sangria das riquezas continentais. Cada canto desde continente geograficamente tão bem recortado é pleno de histórias, seja no Magreb, a islâmica África mediterrânea ou junto aos inúmeros lagos e vulcões do Grande Vale da África Oriental, berço dos hominídeos, coisa de mais de quatro milhões de anos atrás. Ainda que timidamente, porém, os ventos alísios começaram a mudar a direção: desde o final do século passado, graças à luta da própria população africana, os holofotes da mídia passaram a revelar novos cenários da realidade social, econômica e cultural da África. O Congresso Nacional Africano, no cone sul do continente, cresceu em importância na luta pela independência de diversos países e para o fim do regime segregacionista conhecido como “apartheid”. Em seguida, e por consequência, veio a eleição de Mandela, e mais: uma administração digna e sábia, apesar das históricas discrepâncias da África do Sul, um verdadeiro tapa de luva para a oligarquia de herança britânica ou holandesa por alguns séculos ali estabelecida. Mais recentemente, destaca-se a luta pelo perdão da dívida externa contraída pelos países africanos, ex-colônias europeias. Mas, afinal, quem tem de pedir perdão a quem? Quem de fato contraiu dívida? E, apenas para partilhar um incômodo, os milhões de deportados pela escravidão durante quatro ou cinco séculos, outro tanto que morreu nos porões dos navios e o esvaziamento demográfico nas aldeias da África, como se calcula o custo de tudo isso?


De volta à copa, eis que teremos uma oportunidade de apreciarmos cidades e paisagens africanas além das lentes da National Geograhic, quase sempre – e com muita razão – focadas nos parques Krüger, Serengeti e Ngorongoro. E mais ainda dos filmes em preto e branco de Tarzan ou mesmo dos desenhos coloridos e engenhosos de Rei Leão e Madagascar. Lá estarão nos esperando as nuances de metrópoles como Joanesburgo e Cidade do Cabo. Aliás, parte da estrutura rochosa da Montanha da Mesa que majestosamente emoldura a cidade e o próprio Cabo da Boa Esperança é arenítica, como no Segundo Planalto Paranaense. Legado do tempo em que Brasil e África eram uma coisa só - e chamada de Gondwana. Quando se confere a participação de países africanos na história das copas, os números parecem, ao menos, sussurrar algum desconforto. Já mencionamos que o número de países na Europa e na África é muito próximo, cerca de meia centena. Enquanto que na Europa, de cada quatro países, três já participaram de alguma copa – em geral, de várias delas –, na África, a proporção é de um para quatro ou cinco. E essa relação ainda não ficou mais desproporcional por conta da fagulha de lembrança da FIFA que, desde a Copa da França em 1998, “permitiu” a participação simultânea de seis seleções africanas (contra quinze participantes europeus e oito do continente americano). Por vezes, ouve-se uma alegação que ressalta a qualidade e a própria história do profissionalismo futebolístico africano como muito recente e ainda inferior ao europeu e ao sul-americano. Para a primeira metade do século XX, tempo em que o próprio evento ainda carecia de uma maior infraestrutura, pode-se, de fato, considerar tal justificativa. Com o caminhar para o final do século e a entrada nessa nova centúria, isso já não serve mais como outrora. Ainda mais quando se enaltece a capacidade globalizante dos meios atuais. Além do mais, basta se elencar a quantidade e qualidade dos atletas africanos que se espalham pelas ligas europeias, para se arquivar e trancafiar a concepção de um futebol de qualidade inferior para os representantes africanos.

Como na América e na Europa, é evidente que haverá algumas seleções que estão longe não só de aspirar um glorioso e inédito título mundial, como o de ficar entre os quatro semifinalistas. Mas, como naqueles continentes – que poderíamos bem chamar de “Velho Mundo da Civilização de Chuteiras” –, há representantes do continente africano que, se lhes derem um pouco mais de condições para a preparação que antecede a competição – e isso significa mexer com a inquestionável liberação antecipada dos craques que jogam na Europa –, podem e muito bem papar tão logo uma copa do mundo. De acordo com os entendidos em futebol mundial, Nigéria, Gana e Costa do Marfim estariam atualmente melhor qualificadas, entre os representantes da África. Apenas para sanar a curiosidade, aí vão os treze países da África que, desde 1970 – copa em que África debutou – já participaram ou estarão em campo neste ano:

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PAÍSES (SELEÇÕES)

PARTICIPAÇÃO NA(S) COPA(S)

1.

MARROCOS

1970 - 1986 - 1994 - 1998

2.

ZAIRE (atual CONGO)

1974

3.

TUNÍSIA

1978 - 1998 - 2002 - 2006

4.

CAMARÕES

1982 - 1990 - 1994 - 1998 - 2002 - 2010

5.

ARGÉLIA

1982 - 1986 - 2010

6.

EGITO

1990

7.

NIGÉRIA

1994 - 1998 - 2002 - 2010

8.

ÁFRICA DO SUL

1998 - 2002 - 2006 - 2010

9.

SENEGAL

1998

10. GANA

2006 - 2010

11. COSTA DO MARFIM

2006 - 2010

12. ANGOLA

2006

13. TOGO

2006

Uma copa bem jogada, com a ginga, mistura de dança e dribles tão própria da cintura africana e mais a interminável musicalidade emanante das gargantas, tambores e, nem tão melódicas, vuvuzelas sul-africanas, por certo contribuirão para um pequeno, muito pouco, é verdade, resgate da dignidade esportiva e cultural africana.

Francisco Carlos Rehme, o Chicho, é geógrafo, professor de Geografia de 5ª. série do Ensino Fundamental e da 3a. série do Ensino Médio no Colégio Medianeira. Especialista em Geografia Física - análise ambiental pela UFPR e em Currículo e Pratica Educativa (PUC-Rio). É também mestre em Geografia, dentro da linha de pesquisa “Dinâmica das Paisagens” (UFPR).

* Desde o século XVIII até 1975, Zimbabwe era denominado de Rodésia, em homenagem ao explorador britânico Cecil Rhodes, um dos pioneiros do desbravamento do interior da África para os interesses dos estados europeus.

PARA QUANDO A ÁFRICA? AUTOR: JOSEPH KI-ZERBO Editora Pallas Para quando a África? é presença obrigatória na biblioteca de estudiosos, ativistas e interessados nos problemas da atualidade. É obra de um historiador africano, que nela mostra uma visão nova para todos os que somente tiveram acesso, na escola, à história oficial, narrada do ponto de vista europeu. É obra de um socialista democrata, que analisa a situação do continente africano a partir do ponto de vista das necessidades de liberdade e dignidade para indivíduos e nações. É obra de um experiente ativista político progressista, que apresenta uma visão lúcida sobre questões como as armadilhas das teorias desenvolvimentistas, do neoliberalismo e da globalização, ao mesmo tempo em que critica propostas de isolamento econômico e cultural, e reivindica a necessidade de apropriação de saberes e tecnologias pelos povos do Terceiro Mundo.

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A

OUTRA FACE da

TECNOLOGIA Por Guilherme Dal Moro

Sim, é verdade que a tecnologia nos trouxe mil maravilhas; mas é também verdade que mil interesses escusos estão por trás dessas maravilhas. Erguendo o tapete da História, é possível ver algumas sujeirinhas ali embaixo.

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Por cerca de cinco séculos, após o ressurgimento das ciências clássicas, solidificadas nos estudos de Descartes, Bacon, Newton e outros, o homem esteve mergulhado num paradigma que traz a ciência como entidade neutra e imparcial. O próprio método científico de Descartes foi desenvolvido com o propósito de promover a construção de uma ciência em que o objeto de estudo tivesse o menor contato e contaminação por parte de seu observador, o sujeito pesquisador. A partir da aplicação deste método científico e o acatamento de rígidos códigos de honestidade profissional, esperava-se da ciência a produção e acumulação de um conhecimento objetivo. Surge, desta concepção, a visão clássica de que a ciência somente pode contribuir para a melhoria do “bem estar social” ao se isolar da sociedade e perseguir exclusivamente a verdade. De

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modo semelhante, à tecnologia é outorgado o status de entidade neutra e imparcial e confere-lhe o papel de produtora e transmissora de um conjunto de dispositivos concretos que subsidiem as tarefas laborais e domésticas dos indivíduos. Segundo Walter Bazzo, e outros, tais perspectivas consolidaram, nas sociedades ocidentais, principalmente nos dois últimos séculos, uma visão “triunfalista” e hegemônica da ciência e da tecnologia, denominado “modelo linear de desenvolvimento”, que pode ser resumido numa relação de causalidade bastante simples: quanto “+ ciência à + tecnologia à + riqueza à + bem estar social”. No entanto, a partir da década de 60, o mito da hegemonia e neutralidade tecnológica e científica passa a sofrer as primeiras críticas de setores substancialmente acadêmicos da sociedade. Surge um novo sentimento, decorrente dos diversos desastres na década anterior relacionados à tecnologia e à ciência, de maior cautela e alerta em relação ao otimismo oferecido pelo progresso tecnológico. Ademais, contesta-se a validade da relação apresentada acima: para quem e para quantos a tecnologia e a ciência trazem “+ bem estar social”? São tecnologia e ciência entidades neutras e imparciais realmente, ou estão a serviço de interesses disfarçados nas relações econômicas, políticas, sociais e culturais? Donald MacKenzie e Judy Wajcman, no livro Social shaping of technology, defendem a ideia de que a tecnologia e a ciência são “modeladas” por diversos aspectos de ordem econômica, social, política, cultural, etc. Não vamos nos aprofundar aqui nos detalhes minuciosos de como tecnologia e ciência refletem traços destes aspectos, mas nos atenhamos a alguns exemplos do nosso cotidiano para refletir estas ideias. De forma geral, a tecnologia e a ciência são desenvolvidas por grupos, empresas, universidades, institutos e centros tecnológicos, privados ou governamentais, que justificam suas pesquisas científicas e/ou tecnológicas de acordo com interesses específicos. No que se refere às fontes de geração energética, por exemplo, basta uma rápida busca nos grupos de pesquisa nas universidades de todo o mundo para se “antenar” com o que está sendo pesquisado. A diver-

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sidade e a pluralidade das pesquisas são enormes e todas elas se justificam, porque trazem vantagens em relação às tecnologias utilizadas. Atualmente, as discussões ambientais e climáticas condicionaram as pesquisas tecnológicas a trazer como uma das vantagens a redução dos impactos nocivos aos ecossistemas. Pesquisas de geração de energia elétrica por meio de processos “ambientalmente corretos” com uso das ondas, marés, correntes marítimas, vento, irradiação solar estão pipocando por toda a parte. No entanto, isto não significa que estas tecnologias estejam sendo implementadas por aí. Os resultados do recente fórum mundial em Davos nos permitem concluir com segurança: o poder econômico, o “Senhor Dinheiro”, ainda está acima de outros “Senhores” e outros interesses. Langdon Winner traz alguns exemplos interessantes, em Do artifacts have politics?, de como interesses de ordem social modelam a tecnologia. Da década de 1920 à de 1960, diversas pontes foram construídas na cidade de Nova Iorque pelo engenheiro Robert Moses. Uma delas (Robert Moses Bridge) em particular, que liga a cidade às praias de Long Island, possui uma característica bastante peculiar: as estruturas metálicas de sustentação da ponte são relativamente baixas em relação ao asfalto, de tal modo que os ônibus utilizados para o transporte coletivo na cidade de Nova Iorque, naquela época, não poderiam transitar por ela. Desta forma, segundo Winner, Moses garantiu que as praias de Long Island se reservassem às minorias mais ricas que possuíam carros e assim poderiam chegar até elas. Mesmo com a difusão dos meios de transportes individuas nas demais classes sociais, nas décadas seguintes, o desenvolvimento da região de Long Island condicionado pelo padrão econômico elitista – resultando com isso no encarecimento das propriedades e dos serviços na região – perpetuou a inacessibilidade das classes mais humildes àquelas praias. Trago outro exemplo, mais próximo da nossa realidade, que também revela a indissociabilidade entre aspectos tecnológicos e sociais. Em meados do século passado, algumas transformações sociais e o próprio desejo das mulheres de ressignificar seu papel na sociedade conduziram-


nas a entrar definitivamente no mercado de trabalho. No Brasil, este movimento ganha maiores proporções a partir da década de 70. Reflexo deste processo pode ser facilmente constatado ao observar a proporção de mulheres que passam a integrar cursos universitários com interesses claros de se capacitarem para o emprego. Consequentemente, o número de famílias em que as mulheres assumem a função de única provedora financeira aumenta proporcionalmente. É exatamente nesta época que surgem inúmeros produtos – eletrodomésticos, alimentos pré-preparados, congelados – que facilitam e agilizam o desempenho das funções domésticas e, por isso, possibilitam que as mulheres continuem desempenhando tais funções, mesmo nas famílias em que a figura masculina se preserva. De modo claro: o que muitos interpretam como maravilhas tecnológicas que simplificam os afazeres de casa, na realidade, são tecnologias que cristalizam antigas estruturas sociais. O último, e talvez o mais triste dos aspectos que tratarei neste artigo, se refere ao desenvolvimento tecnológico impulsionado por interesses militares e bélicos. Diversas das tecnologias que utilizamos nos nosso cotidiano foram primeiramente desenvolvidas com finalidade militar e, num segundo momento, adaptadas para o uso no cotidiano por meio de bens de consumo. Somente para citar alguns exemplos: forno de micro-ondas, roteador wireless, internet, GPS, equipamentos médicos para diagnóstico e exames como ultrassom e ressonância magnética, etc. A própria técnica de fissão nuclear utilizada nas usinas nucleares (para geração de energia elétrica) foi desenvolvida no projeto Manhattan, iniciado em 1939, que resultou na construção de duas ogivas nucleares – Little Boy e Fat Man – detonadas nas cidades de Nagasaki e Hiroshima após a rendição japonesa na Segunda Guerra Mundial. Até mesmo o avião, orgulho nacional por ter um brasileiro como seu inventor, teve suas principais melhorias enquanto arma de guerra e não enquanto máquina de transporte de passageiros (civis) e carga. Sobre o outro lado da tecnologia, aquele que reflete suas maravilhas e sucessos, não pretendo discuti-lo aqui, afinal de contas já está virado para cima, descoberto e escancarado. Prefiro, em

vez disso, encerrar este breve artigo com a boa opinião de nosso grande professor e mestre Paulo Freire: “Nunca fui ingênuo apreciador da tecnologia: não a divinizo, de um lado, nem a diabolizo, de outro. Por isso, sempre estive em paz para lidar com ela”. (Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br) Guilherme Dal Moro é ex-aluno do Colégio Medianeira. Formou-se em Física na UFPR e atualmente faz mestrado na UTFPR sobre Tecnologia e Sociedade. No Medianeira, é professor de Física do 1º ano do Ensino Médio.

PRODUÇÃO SOCIAL DA TECNOLOGIA SOCIOLOGIA E CIÊNCIA POLÍTICA AUTORA: VILMA FIGUEIREDO Editora EPU Esse livro apresenta as principais questões que as Ciências Sociais têm formulado sobre a tecnologia, sua produção, difusão e consumo nas sociedades contemporâneas. São enfatizadas as diferentes dimensões da tecnologia econômia, política, ideológica e científica - e são discutidas possibilidades tecnológicas para nações dependentes como o Brasil. A tecnologia é apresentada como resposta socialmente produzida a necessidades sociais e, assim sendo, como resultado e condição da vida humana em sociedade.

NEUTRALIDADE DA CIÊNCIA E DETERMINISMO TECNOLÓGICO AUTORA: RENATO DAGNINO Editora Unicamp O autor aborda um tema até agora restrito aos filósofos da ciência e da tecnologia a partir de sua experiência com a docência e a pesquisa no campo interdisciplinar dos Estudos sobre Ciência, Tecnologia e Sociedade.

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A

HISTÓRIA dentro de casa

Por Henrique Witoslawski

Ainda é comum a alguns desavisados se perguntarem pra que ficar estudando História, aprendendo datas e fatos em livros às vezes sem graça. Bem, além do fato óbvio de que a História nos explica, quem disse que ela é estudada apenas nos livros?

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Como todos os conteúdos estudados em aula, a História não se encontra limitada aos muros da sala ou da escola. Ela está em todos os lugares, basta olhar nomes de ruas e avenidas, monumentos em parques ou praças e alguns feriados regionais ou nacionais. Além disso, as diversas casas de memória, galerias e museus que existem pela cidade. Mais do que isso, ela está presente no cinema, desde sempre – de Ben-Hur ao E o Vento Levou, depois Cleópatra, O Nome da Rosa e O Gladiador, para falar muito pouco do que já foi produzido sobre temas históricos. Nos últimos anos, ainda houve o aparecimento de um grande número de revistas especializadas em História, escritas e editadas por grandes historiadores e direcionadas ao público não acadêmico – como bons exemplos, temos a Nossa História, a História Viva e a Aventuras na História (que custam entre 10 e 15 reais nas bancas e por volta de 5 nos sebos). Mesmo com todo esse bombardeio de História à sua volta, as pessoas ainda conseguem achar que tudo se resume a decorar datas, fatos e nomes. Há um senso comum terrível – e que insistentemente vem sendo desconstruído com muita luta nas duas últimas décadas – que impede as pessoas de verem e pensarem a História de forma analítica e reflexiva. Proponho que este olhar diferenciado seja iniciado dentro de casa, em uma situação de conversa simples entre pais e filhos. Para isso, irei sugerir algumas discussões que podem ser feitas na hora do jantar de qualquer dia da semana, mas de preferência em um no qual todos estejam tranquilos, relaxados e com vontade de fazer um mínimo esforço de memória. Os exemplos que darei a seguir são mais próximos da chamada História Cultural, que analisa a realidade de determinados momentos pelas práticas, costumes, hábitos e tradições, sem a tradicional ênfase na política e na economia. Embora eu não acredite que essas esferas possam ser analisadas de maneira dissociada, é comum a separação. Vamos começar pelo simples: os filhos de um casal qualquer possuem dois sobrenomes, cada

um vindo de um lado do matrimônio. O primeiro, da mãe, tem origem polonesa e o segundo, do pai, tem origem alemã. Primeira dedução, lógica: os avós, bisavós ou tataravós das crianças não tinham origem brasileira. Mas se a família não tem origem neste país, por algum motivo alguém veio parar aqui. Neste momento começa a primeira reflexão: por que os avós (ou bisavós e assim por diante) vieram para o Brasil? Por que saíram de suas casas lá na Europa? Os motivos que passam na cabeça das crianças são os mais diversos (experimente perguntar!): porque aqui as coisas seriam melhores, porque estavam passando fome por lá, porque queriam mudar de ares, porque alguém prometeu alguma coisa muito boa no Brasil, entre outros pensamentos possíveis. Se alguém já parou para conversar com o parenteimigrante, provavelmente ouviu alguma história sobre um contexto europeu de guerras, pobreza e fome. Aliado a isso, algumas propostas bastante tentadoras do governo brasileiro para atrair pessoas, com diversos interesses e objetivos. Daí a primeira análise a ser feita: o que levou milhões de pessoas a sair de seus países (contando que os avós não vieram sozinhos)? O contexto europeu, terrível para a grande maioria da população que dependia de terras cultiváveis e sua força de trabalho, gerava fome e miséria. Quando surgiram propostas de outros países do mundo, que prometiam bons meios de sobrevivência, diversos contingentes de várias partes da Europa desembarcaram em terras nacionais. Ponto de reflexão: quais seriam os interesses do Brasil em atrair pessoas? De maneira muito geral, esse interesse variou de região para região do nosso país. Em São Paulo, por exemplo, havia uma demanda muito grande por uma mão de obra que fosse barata e que substituísse o trabalho escravo nas lavouras de café, abolido definitivamente em 1888. É dessa época a grande imigração de italianos para a capital e interior paulista – já diversas vezes retratada em novelas e minisséries televisivas. No Paraná, apesar de ter existido trabalho escravo, a demanda maior por pessoas era por outro motivo: ocupar (boa) parte dos territórios

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interioranos ainda desabitados do estado. Por isso, o governo paranaense prometia terras e sustento aos estrangeiros, para que viessem e tomassem posse, digamos, da parte não ocupada do estado. Por aqui, a mão de obra imigrante foi dirigida também para serviços de construção civil – como a ferrovia que liga Curitiba ao litoral – e diversos serviços e comércios dentro das cidades. Se os avós, ou bisavós, ou tataravós da família dita neste texto vieram direto para Curitiba, é muito provável que tenham chegado em épocas diferentes e se estabelecido em lugares diferentes (lembrando que uma família é alemã e a outra é polonesa). Os alemães foram dos primeiros imigrantes a chegar até a região de Curitiba e se instalaram muito rapidamente em regiões próximas ao centro da cidade – para se ter uma ideia, a Curitiba da segunda metade dos anos 1800 era uma cidade pequena, concentrada no que hoje em dia são as praças Santos Andrade e Osório, tendo como referencial a catedral, na praça Tiradentes. Os mais ricos moravam na rua Comendador Araújo ou arredores, o comércio era concentrado na rua XV de Novembro (que já se chamou Rua da Imperatriz e depois Rua das Flores) e, em menor escala, na Marechal Deodoro (antes chamada Rua da Entrada – pois era a via de acesso a Curitiba para quem vinha de São José dos Pinhais, cuja principal via de acesso era a atual Marechal Floriano Peixoto). A rua que hoje se chama Treze de Maio, que passa atrás do Largo da Ordem – atual centro histórico e centro daquela época – era chamada Rua dos Alemães. Perto dali, o shopping Müller era uma casa de fundição, dos irmãos Müller, alemães. Os poloneses instalaram-se em locais um pouco mais distantes – Bocaiúva do Sul, Orleans, Abranches e Pilarzinho. Além dessa localização espacial dentro da cidade, poderia haver outros problemas, de convívio social talvez. É bastante comum que os pais contem aos filhos algumas situações de sua infância e adolescência, ou de como se conheceram, onde, com quem estavam e como ficaram juntos. Talvez as famílias não se gostassem, talvez o casal tenha tido problemas. No tempo em

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que (bis)avós das crianças do texto eram jovens, poderia existir alguma situação incômoda quanto aos relacionamentos. Talvez essa situação fosse causada por alguma diferença social; uma disparidade financeira entre as famílias poderia causar alguns problemas ou constrangimentos. Há também a possibilidade dessa situação ter sido causada pela descendência. No começo de século XX, os imigrantes não costumavam se misturar muito por aqui, a não ser pelo comércio. Pela própria bagagem cultural trazida da Europa e pela imagem

construída aqui no Brasil, alguns imigrantes eram mais bem vistos do que outros. Os alemães, por exemplo, tinham destaque na sociedade curitibana, eram bem vistos, foram dos primeiros a chegar, conquistaram a fama de trabalhadores e honestos, além da admiração pelos germânicos estarem bem presentes entre a população daquela época. Os poloneses, meio que ao contrário disso, vieram depois, e já por um certo desdém de outros europeus (disputas nacionais existentes há tempos lá na Europa, bem antes da


imigração) e por parte da população local, chegaram a ser chamados de “pretos do avesso”, como se fossem a versão branca dos escravos africanos, pois faziam serviços “menos qualificados” e “de menor importância”. Mas o que sempre existe dentro de casa e é o melhor passaporte para o passado, são as fotografias. Através delas, pode-se viajar diretamente para um ponto específico da vida de uma ou várias pessoas e que foi registrado para sempre. Vale pensar que hoje em dia, com as máquinas digitais, as fotografias estão bem mais banalizadas, digamos assim, mas antes, com as analógicas, com filme de revelar e 12, 24 ou 36 poses, as máquinas geralmente eram utilizadas em ocasiões – uma comemoração, uma data marcante, em algum evento. Isso torna as fotografias antigas ainda mais interessantes. Em uma boa conversa após o jantar, filhos podem passar horas vendo fotos dos pais, tios, padrinhos, avós, bisavós e, obviamente, suas próprias fotos quando ainda eram bebês, por exemplo. É comum, ao vermos uma foto, querermos saber onde ela foi tirada, quem está presente, por que foi tirada, enfim. Logo, qualquer álbum rende horas de conversa. Pelas fotografias, nota-se a enorme mudança no vestuário, nos cortes de cabelo, nos carros e, principalmente, na paisagem urbana ou, ainda, rural. É praticamente impossível que o cenário de uma foto tirada há 10, 20, 30 anos, ou mais, seja o mesmo. Alguns lugares não existem mais, alguns espaços públicos tornaram-se shoppings, alguns shoppings foram demolidos, alguns elementos que eram característicos do centro foram substituídos – como as luminárias roxas que havia ao longo do calçadão da XV – muitos bairros cresceram, alguns novos surgiram e (por que não, infelizmente), muitas casas ganham grades nas portas e janelas. Se os pais foram adolescentes até meados dos anos 90, é possível que tenham algumas fotos com o calçadão da XV lotado de gente em dia de semana, adolescentes como eles, ao contrário da enorme concentração dentro de Shoppings Centers que se nota atualmente. Todas essas mudanças no visual da cidade têm um, ou mais, motivos: a industrialização, a

forte propaganda feita de Curitiba pelo Brasil afora ao longo dos anos de 1990 e início deste século XXI (cidade modelo, capital social, capital ecológica), o crescimento e a constante propaganda sobre os índices de violência urbana, a necessidade de criação de novos parques e praças, enfim, tudo que pode ser perguntado em casa. Se os filhos perguntarem como era a cidade na época em que seus pais casaram, ouvirão falar de um lugar diferente do que veem. Tão ou mais interessante é fazer a mesma pergunta para os avós. O assunto pode ser conduzido de modo a quererem saber a opinião dos pais e avós sobre os motivos da mudança. Provavelmente ouvirão uma série de lamentos, nostalgias, deduções e discordâncias entre quem conta. A história das pessoas está extremamente ligada à história do seu local de nascimento, crescimento, trabalho, diversão, enfim, à sua moradia, sua cidade. Imaginar que é possível separar o que cada um viveu do que aconteceu dentro de sua cidade é precipitado. Tudo o que acontece à nossa volta tem reflexos nos nossos hábitos e no nosso cotidiano; somos partes integrantes da vida pública de onde moramos. O conhecimento do espaço público como ele é hoje começa pelo conhecimento de como ele era; entender o que acontece hoje, os motivos para fazermos tudo aquilo que costumamos fazer pode começar dentro de casa, em uma reunião familiar. Nessa conversa simples e divertida podemos aprender muito sobre quem somos e o local onde vivemos. Isso é ver a história acontecer. (Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br)

Gostaria de deixar meu MUITO OBRIGADO à Lúcia e à Adriana que revisaram e deram boas sugestões para a conclusão deste texto.

Henrique Witoslawski é professor de História da 6ª série. Formado em História – bacharelado e licenciatura – pela Universidade Federal do Paraná e Mestre em História também pela UFPR.

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VIAGEM A CURITIBA E PROVÍNCIA DE SANT A CA TARINA SANTA CAT COLEÇÃO: RECONQUISTA DO BRASIL AUTOR: AUGUSTE DE SAINT-HILAIRE Editora Itatiaia Saint-Hilaire é um dos cronistas estrangeiros que fizeram do Brasil o seu tema. Perscrutou tudo o que se lhe deparava ante os olhos, desde o índio às mais requintadas manifestações da implantação da cultura européia no país. Chegou a conhecer tão bem determinados aspectos da formação étnica, cultural, social e política, que não se furtou a fazer argutas comparações entre usos e costumes das regiões que visitou. Vejase, a este propósito o paralelo que fez entre as mulheres de Minas (estudadas antes, nos outros volumes desta coleção) e as de Santa Catarina, presentes neste volume. Apresenta observações quanto à fauna e flora, e descreve.

A IMIGRAÇÃO ALEMÃ P ARA PARA O SUL DO BRASIL AUTOR: FERDINAND SCHRODER

A IMIGRAÇÃO IT ALIANA NO BRASIL ITALIANA AUTOR: JOAO FABIO BERTONHA Editora Saraiva

Editora Unisinos O livro A imigração alemã para o sul do Brasil foi encontrado por seu tradutor, o professor Martin Dreher, em um sebo da Alemanha. Ferdinand Schröder realizou uma ampla pesquisa, utilizando fontes brasileiras até então não consideradas, material impresso em língua alemã, publicações encontradas em arquivos de instituições do Brasil e da Alemanha, e leis constantes em publicações oficiais brasileiras. Todo o rigor do positivismo historiográfico alemão está presente nesse livro, tornando-o um marco na construção da matriz sobre a história teuto-luterana.

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O Brasil recebeu mais de 1 milhão e meio de homens, mulheres e crianças que deixaram a Itália para tentar uma vida melhor na América. Neste livro, João Fábio Bertonha estuda a vida desses imigrantes e sua luta para progredir e sobreviver, não só descrevendo como era a sociedade na época em que eles desembarcaram, as condições de trabalho a que se submetiam nas fazendas de café, nas pequenas propriedades do sul, nas fábricas de São Paulo e nos serviços urbanos em todo o Brasil, como também seu esforço para ascender socialmente num mundo novo e conseguir a integração econômica, política e cultural. Além disso, aborda também a colônia italiana da atualidade no Brasil, mostrando sua influência na cultura brasileira.


INTERVALOS,

Funções, MATEMÁTICA e Terremotos

Por Marcelo Gorges

Com os recentes terremotos atingindo Haiti, Chile, Estados Unidos, o artigo propõe explicar um pouco mais sobre os abalos sísmicos e usar a Matemática para analisar essas ocorrências.

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Terremotos Um sismo ou terremoto é um movimento natural repentino da crosta terrestre que ocorre bruscamente num período de tempo bem restrito, a partir de um determinado local e propagando-se em todas as direções. As ondas sísmicas podem ser provenientes de movimentos subterrâneos de placas rochosas, atividade vulcânica e por deslocamentos de gases do interior da Terra, principalmente metano. Grande parte dos terremotos ocorre nas fronteiras entre placas tectônicas ou em falhas entre dois blocos rochosos. Estas falhas são fraturas ao longo das quais os blocos rochosos de crosta terrestre se movimentam, em ambos os lados, relativamente uma sobre a outra e em paralelo com a fratura. O comprimento de uma falha pode variar de alguns centímetros até milhares de quilômetros. Entre os efeitos dos terremotos estão a abertura de falhas, a ruptura de um bloco de rocha através de uma falha geológica, deslizamento de terra, tsunamis, mudanças na rotação da Terra, além de efeitos deletérios em construções feitas pelo homem, além disso, resulta em perdas de vidas, altos prejuízos econômicos e sociais (como o desabrigo de populações inteiras, facilitando a proliferação de doenças, fome, etc.). O terremoto com maior impacto já registrado ocorreu no Chile em 1960 e atingiu 9.5 na escala de Richter. Este terremoto ficou conhecido como o Grande terremoto do Chile. Agora, em fevereiro de 2010, o mesmo país foi novamente castigado por um novo terremoto de grande energia.

Tipos de sismos A maioria dos sismos é designada sismos tectônicos, devido ao fato de as forças tectônicas entre as placas serem aplicadas na Litosfera, faixa que desliza lentamente, mas continuamente sobre a Astenosfera devido às correntes de convecção com origem no Manto e no Núcleo terrestre. As placas podem afastar-se, originando tensões entre elas, colidir-se uma sobre a outra, resultando em forças de compressão, ou simples-

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mente deslizar uma em relação à outra ou uma ao longo da outra, causando torções, grandezas abordadas em física. A aplicação destas forças gera uma curva elástica tal que a rocha altera sua forma até atingir seu ponto máximo de elasticidade, ponto este que, se as forças diminuírem, a rocha volta a sua forma inicial; entretanto, quando a matéria ultrapassa o ponto de elasticidade, entra em ruptura e sofre uma liberação brusca de toda a energia acumulada durante aquela deformação elástica. A energia é liberada através de ondas sísmicas que se propagam pela superfície e interior da Terra. As rochas profundas fluem plasticamente (têm um comportamento dúctil – na astenosfera) em vez de entrar em ruptura (que seria um comportamento sólido – na litosfera). Estima-se que apenas 10% ou menos da energia total de um sismo se propague através das ondas sísmicas. Existem os sismos de origem vulcânica, fenômeno geológico que se produz devendo-se às movimentações de magma dentro da câmara magmática ou devido à pressão provocada por esse quando ascende à superfície, servindo assim para prever erupções vulcânicas, causando estremecimentos da crosta terrestre e nas zonas vizinhas aos vulcões.

Profundidade dos sismos Os sismos podem ser classificados de três maneiras, de acordo com a sua profundidade focal: superficiais, intermédios e profundos. Superficiais – são aqueles que ocorrem entre a superfície e os 70 km de profundidade. A maior parte da energia anual é liberada desta forma, cerca de 85% dos sismos são registrados desta maneira; Intermédios – são aqueles que ocorrem entre os 70 e os 350 km de profundidade. São responsáveis por cerca de 12% da energia sísmica liberada anualmente; Profundos – são aqueles que ocorrem com profundidades superiores a 350 km de profundidade. Libertam cerca de 3% da energia sísmica anual. Estes acontecem apenas no Círculo de Fogo do Pacífico e na zona do


mediterrâneo transasiática em decorrência ao processo de subducção; Na crosta continental, a maior parte dos sismos ocorre entre os 2 e os 20 km, na crosta litosférica, sendo muito raros abaixo dos 20 km, uma vez que a temperatura e pressão são elevadas, fazendo com que a matéria seja dúctil e tenha mais elasticidade.

Aumento da atividade de vulcão de lama; Ocorrência de microssismos; Alteração da condutividade elétrica; Flutuações no campo magnético; Modificações na densidade das rochas; Variação dos níveis da água em poços próximos das falhas;

Geralmente, após um terremoto podem ocorrer sismos secundários. Tais situações podem ser previstas através de sinais precursores, como:

Anomalias no comportamento dos animais (por exemplo, migração em massa de anfíbios);

Aumento da emissão de gás metano, com possível formação de nuvens de metano (coloridas);

Aumento da emissão de dióxido de carbono em áreas vulcânicas;

Divisão entre as principais placas tectônicas, suas movimentações e localização de vulcões.

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Escala Richter

E(A) é a energia liberada por um terremoto de amplitude A e E(A-1), a energia liberada por um terremoto de amplitude A-1. Ao interpretar essa equação, pode-se concluir que a energia liberada por um terremoto de amplitude máxima A é 31,6 vezes maior do que a energia liberada por um terremoto de amplitude máxima (A-1).

A Escala Richter foi desenvolvida em 1935 por Charles Richter, com a ajuda de Beno Gutemberg, ambos do Instituto Tecnológico da Califórnia. Embora muito usada hoje, ela foi primeiramente desenvolvida para estudos na Califórnia, para ser usada em sismógrafos que usavam um sistema particular, o sismômetro Wood-Anderson. Sabese que a intenção de Richter ao criar tal escala foi a de substituir as escalas já existentes, que usavam unidades muito pequenas de medição, e que, portanto, não atendiam às necessidades do cientista, as quais incluíam o monitoramento de terremotos de elevada magnitude para a época.

Eventos com intensidade maior do que 4.6 graus podem ser registrados em qualquer ponto do mundo, mesmo que o sismógrafo não esteja no epicentro ou numa área dentro do raio de ação do terremoto. A tabela de intervalos a seguir, mostra a intensidade e efeitos de terremotos. É importante salientar que a intensidade de um terremoto depende da sua distância do epicentro, bem como das condições geológicas nas quais o terreno se encontra (certos terrenos são capazes de amplificar a intensidade do terremoto). Na tabela, a incógnita “x” representa a possível magnitude de um terremoto.

A magnitude de um terremoto na Escala Richter é medida por uma função logarítmica, sendo ela:

M L ( A ) = log A − log A0 Nesse caso, A é a amplitude máxima atingida pelo sismógrafo no momento do terremoto, e A0 uma amplitude de referência. Devido à característica logarítmica da função, temos , ou seja, M L ( A ) é M L ( A ) equivalente a dez vezes a função de M L ( A−1) . Em termos de energia:

= 10.M L ( A−1) Marcelo Gorges é professor de Matemática do 1º ano do Ensino Médio, no Colégio Medianeira. É formado em Licenciatura Matemática pela PUC-PR e em Engenharia Mecânica pela UTFPR.

E ( A ) = 31,6.[E ( A−1) ]

Graus na

(Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br)

Descrição

Efeitos

Frequência

Não são perceptíveis.

< 2.0

Micro

2.0 < x < 2.9

Menor

3.0 < x <3.9

20

+- 8000/anos

Geralmente não são

Frequentemente percebidos, mas não causam danos.

+- 1000 por dia

49.000 por ano


Fraco

Balanço notável de objetos no interior de casas. Danos pouco significantes e raros.

6.200 por ano (estimativa)

5.0 < x <5.9

Moderado

Causa danos a construções com estrutura fraca. Em construções de estrura forte, os danos são imperceptíveis.

800 por ano

6.0 < x <6.9

Forte

Destrutíveis em áreas localizadas num raio de 160 quilômetros do epicentro.

120 por ano

Mais forte

Causa danos sérios em áreas localizadas num raio de 200-250 quilômetros do epicentro.

18 por ano

9.0 < x <9.9

Devastador

Devasta áreas localizadas a milhares de quilômetros do epicentro.

1 a cada 20 anos

10.0 < x

Épico

Nunca registrado.

Extremamente raro: nunca registrado.

4.0 < x <4.9

7.0 < x <7.9

DVD – TERREMO TOS E COLISÕES CÓSMICAS TERREMOT CÓSMICAS-- O HOMEM E A CIÊNCIA CONTRA O INEVITÁVEL (DISCOVERY CHANNEL) Todo ano, inúmeros pontos do planeta são atingidos por furiosos eventos naturais. Eles arrasam cidades inteiras e abreviam milhares de vidas. São maremotos, enchentes, furacões, vulcões... eventos que o homem e a ciência lutam para prever e, pelo menos, amenizar suas conseqüências. Nesta reportagem, abordamos os terremotos e colisões cósmicas. Em ´Terremotos´, você viajará a uma das mais ameaçadas cidades do mundo: Tóquio, uma metrópole construída junto a uma das mais perigosas “zonas de risco”. Você descobrirá como é o trabalho dos cientistas que tentam prever os abalos e dos engenheiros que projetam construções inteligentes para desafiá-los. Em ´Colisões Cósmicas´, você voltará a 65 milhões de anos atrás para ver como o choque de um gigantesco meteoro exterminou os dinossauros. Você ouvirá os cientistas que estudam o espaço a fim de predizer quando isso acontecerá novamente. Segundo eles, há cerca de 10.000 corpos celestes em rota de colisão com o planeta, e um único grande choque poderia apagar a vida da Terra.

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A ERA DE OURO do

Rádio 2.0 Uma crônica sobre podcasts Por Ulisses Candal Sato

A história se repete? Não, mas não há como negar que ela se apropria de conquistas do passado e traz roupagens novas para antigas práticas. Veja a interessante comparação entre uma conversa com a avó, o rádio, a TV e os podcasts.

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P

Para encarar a longa caminhada até a casa da minha avó, coloquei para ouvir o podcast que havia baixado no dia anterior. O tema? Cultura geral. No percurso, o programa me entreteve durante todo o tempo e me rendeu boas risadas. O programa tem, em média, setenta minutos e, quando finalmente cheguei ao meu destino, já haviam passado cerca de cinquenta. O podcast estava excepcionalmente engraçado, mas tive que dar um pause e entrar. Após cumprir as obrigações formais, sentei no sofá da sala para assistir televisão com a minha avó. Entediado com a programação aberta da TV e ansioso para saber qual era o desfecho do podcast, recoloquei o fone e continuei ouvindo. Foi então que me surgiu a seguinte reflexão. No início da era tecnológica, a grande diversão – especialmente para a geração da minha avó - eram os programas de rádio. Os aparelhos de rádio, inicialmente raridades e artigos de luxo, foram se popularizando e se tornando comuns em boa parte dos lares. Após os deveres do cotidiano, a família se reunia em volta do rádio para se entreter, fosse com matérias jornalísticas, com música, ou mesmo com as radionovelas.

vidade, pode-se brincar com jogos eletrônicos, observar fatos em tempo real, conversar com pessoas do outro lado mundo, dentre outras possibilidades. Essa área seguiu evoluindo e surgiu o iMac, com o seu programa de música iTunes. Após um tempo foi lançado o mp3 player mais revolucionário, o iPod, e, a partir daí, surgiram os Podcasts (para mais informações, veja o box). De repente eu me dei conta de toda essa evolução, ouvindo um podcast na sala enquanto minha avó assistia televisão. Há uma aparente retomada dos antigos valores. Eu estava me divertindo muito mais ouvindo a programação do podcast do que assistindo aos programas que as emissoras nos empurram goela abaixo. O meu divertimento, após toda essa evolução tecnológica, não é baseada em coisas interativas ou que estimulam muitos sentidos, mas sim na boa e velha comunicação oral. Eu me entretinha e me informava exatamente do mesmo modo que minha avó fazia em sua juventude – apenas usando um aparelho bem menor. Antigamente, para comandar um programa de rádio, havia muitas dificuldades. Só mesmo sendo influente, tendo contatos e muito dinheiro. Dessa forma, toda a programação estava amarrada aos patrocinadores e à publicidade. Com a democratização da tecnologia, as portas se abrem. Hoje, qualquer um que disponha de um computador, um microfone, acesso à internet e uma boa ideia (ou não) pode fazer o seu próprio programa e disponibilizá-lo para o mundo inteiro. Mostrando competência, qualquer um pode garantir seu espaço.

O tempo passa, a tecnologia evolui e surge então o mais popular centro de entretenimento familiar: a televisão. Com o apelo visual, a televisão passou a tomar muito tempo do dia-a-dia e influenciar cada vez mais a população. Agora era possível assistir a filmes, séries, jornais, desenhos, shows e, claro, a telenovela.

Outro diferencial é que, hoje, quem faz a programação é o ouvinte. É ele quem decide o que quer ouvir – quando quiser ouvir. O próprio ouvinte assina os podcasts de seu interesse e os escuta quando achar que deve, podendo pausálos, voltar para algum trecho específico, ou pular o que não for de seu interesse.

E a última grande invenção que invadiu nosso lar foi o computador. Com ele, surgiu a possibilidade de fazer tudo que era possível nas outras plataformas e ainda mais. Com sua interati-

A individualidade é uma questão que também merece ser salientada. Todos os “i” dos iPods, iTunes, iMacs, têm uma relação com o seu significado em inglês: “eu”. Assim como PC (perso-

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nal computer), toda essa tecnologia tende a oferecer experiências individuais, que cada um pode programar do seu jeito e de acordo com seu gosto. Por isso, ouvir os podcasts é, na maioria das vezes, um entretenimento individual, diferente de como acontecia antigamente, quando toda a família se reunia para acompanhar o rádio. Ao terminar – tanto as reflexões quanto o podcast que estava ouvindo – desliguei o iPod e voltei para a origem de todos os entretenimentos da humanidade: uma boa conversa sobre isso e tudo mais com a minha avó. (Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br)

Ulisses Candal Sato é ex-aluno do Colégio Medianeira. É estudante de Design Gráfico na UTFPR. Ilustrou os números 14 e 15 da revista Mediação.

OLHARES DA REDE ORGANIZADORES: CLAUDIA CASTELO BRANCO E LUCIANO MATSUZAKI Editora Momento editorial O livro Olhares da Rede oferece reflexões e discussões sobre o gigante universo das redes digitais, a partir das ideias de cinco autoridades no assunto: Yochai Benkler, Manuel Castells, Henry Jenkins, Lawrence Lessig e Douglas Rushkoff. A publicação foi organizada por Claudia Castelo Branco e Luciano Matsuzaki, do Grupo de Pesquisa de Comunicação, Tecnologia e Cultura de Rede da Faculdade Cásper Líbero. Este livro pode ser lido e baixado em seu computador gratuitamente pelo link: http:// culturaderede.com.br/olharesdarede.pdf

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Podcast são programas normalmente de áudio ou vídeo, disponibilizados online através de um feed RSS. Ao escolher o programa que lhe agrada você assina esse podcast e, quando uma nova edição é disponibilizada, o seu computador já o baixa automaticamente e faz upload para o seu mp3player. Essa é a grande diferença entre podcast e os audioblogs, vlogs e flogs. Seu nome surgiu na junção de iPod aparelho de mídia digital da Apple, de onde saíram os primeiros scripts de podcasting - com a palavra broadcasting (transmissão de rádio ou televisão). O termo é creditado a um artigo do jornal britânico The Guardian, de 2004.

A IMIGRAÇÃO IT ALIANA NO BRASIL ITALIANA AUTOR: HENRY JENKINS Editora Aleph Neste livro Henry Jenkins investiga o interesse em torno das novas mídias e expõe as transformações culturais que ocorrem à medida que esses meios convergem. A cultura da convergência está mudando o modo de se encarar a produção de conteúdo em todo o mundo. O autor introduz os leitores aos fãs de Harry Potter, que estão escrevendo suas próprias histórias, enquanto os executivos se debatem para controlar a franquia. Ele mostra como Matrix levou a narrativa a novos patamares, criando um universo que junta partes da história entre filmes, quadrinhos, games, websites e animações. Essa nova edição traz também um capítulo sobre o YouTube.


Da vista de

MEU PONTO ou do

HAITI,

da política e dos pontos de vista

Por Adalberto Fávero

Se o que importa é o momento, como educar para a vida? Como desenvolver uma opção educativa com projeto de vida? Como repolitizar e recriar compromisso com o país e com os outros? Como nosso jeito de educar pode reconstruir sentidos e compromissos? Se a privatização da vida e da identidade é permanente, como pensar a convivência de grupo e o espaço público?

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“Do ponto de vista da coruja, do morcego, do boêmio e do ladrão, o crepúsculo é a hora do café da manhã. A chuva é uma maldição para o turista e uma boa notícia ao camponês. Do ponto de vista do nativo, pitoresco é o turista. Do ponto de vista dos índios das ilhas do Mar do Caribe, Cristovão Colombo, com seu chapéu de penas e sua capa de veludo encarnado, era um papagaio de dimensões nunca vistas.” (Eduardo Galeano)

F

Férias é tempo de descanso, do ócio que não precisa ser produtivo, das leituras que ficaram para trás, de encontrar pessoas e lugares que há muito não se veem. Não se fala aqui necessariamente do tal ócio produtivo ou coisa que o valha. Ócio é ócio! É não fazer nada do que é comum no dia-a-dia atribulado do ano. Então não se tem que dar adjetivo especial para esse tempo e ao não fazer. É descanso das lidas comuns e pronto! Para muitos, dezembro, janeiro ou fevereiro foi assim. Nesse final do velho ano e primeiro trimestre do novo, aconteceram coisas comuns e incomuns “como sempre”: Natal e festas de início de 2010; as propagandas do Carnaval já em janeiro; aqueles noticiários “inovadores” com o número de carros nas estradas indo e vindo; as mesmas fotos de famílias e diversão nas praias; acidentes nas estradas e exageros de quem festejou demais; assaltos diversos e o janeiro mais violento dos últimos 8 anos em Curitiba; como nos 10 últimos janeiros, o novo BBB (do qual já se tornou politicamente correto dizer que não se gosta, mas que muitos veem por debaixo do pano para ninguém saber); a novidade do maior edifício do mundo em Dubai (818 metros de altura, 100 metros mais alto que o Corcovado) que ninguém ainda sabe para que serve; o aumento da discussão sobre o clima, com cientistas contrapondo-se à versão de aquecimento global através de uma teoria de aquecimento cíclico do sol e apontando para a questão climática como nova tendência de comércio (o grande

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problema não seria o aquecimento e sim o uso das riquezas da terra acima de sua capacidade); as chuvas e as enchentes mostraram, mais uma vez, a fragilidade de nossas cidades inundadas, milhares de brasileiros fora de suas casas, terremotos, tsunamis e muitos pontos de vista... Na sua maioria, são coisas de final e início de ano, porém seria indispensável destacar duas situações para 2010, as quais não podem passar despercebidas: o Haiti e o ano de eleições no Brasil – e essas duas questões são drasticamente interdependentes. Por isso, a proposta aqui é tratar das duas situações juntas na perspectiva da retomada da análise e inserção política/contextual. A proposta é fazê-lo, relendo e analisando os jornais (Destaque à Folha de São Paulo de janeiro). Um estudo de dois economistas (Laura Jaramillo e Cemili Sancak) sob o título “Porque a grama é Mais Verde em um Lado da Hispaniola” apresenta um levantamento intrigante e catastrófico sobre o Haiti que vai além das manchetes e imagens preponderantes na mídia escrita, falada e eletrônica. O Haiti e a República Dominicana dividem a ilha Hispaniola, sendo que em 1960 o PIB per capita dos dois países era quase idêntico: um quarto da média latino-americana. Em 2005, o PIB per capita da República Dominicana triplicara (US$7400) – sendo o país que mais cresceu na região – enquanto o do Haiti fora reduzido quase pela metade e o país ficou na lanterna de toda a região (US$1300). A renda per capita brasileira é de US$9400. De 1990 a 2008, a economia do Haiti cresceu apenas 5%, enquanto a América Latina cresceu 82%. Essa situação foi resultado de uma história de abandono, pobreza, ditaduras, explorações


de Corporações do Norte e das sanções econômicas após a queda do presidente Jean-Bertrand Aristide em 1991. As exportações caíram 40% (para um terço em relação a 1991), a economia encolheu 30%, a receita do governo declinando pela metade. Nesse período, o país cresceu menos que entre 1960 e 1980, sob as ditaduras dos Duvallier. A indústria têxtil e as maquiladoras mexicanas baseadas em zonas francas (fabricavam bolas de beisebol, equipamentos elétricos, brinquedos) foram destroçadas e o emprego caiu só nesse setor de 80.000 para 6.000 trabalhadores. Em 1960, a expectativa de vida era de 44 anos e em 1970 o analfabetismo atingia 78% da população maior que 15 anos (contra 33% da República Dominicana). O escritor cubano Alejo Carpentier, em O reino deste mundo, conta um pouco dessa dor permanente de um povo que se fez independente por uma rebelião de escravos, sonhou com um mundo livre e experimenta a morte permanente e o esquecimento de todo o planeta no terremoto permanente e miséria a que é submetido. É absurdamente dramático e esclarecedor acerca do racismo branco que tem mantido o país na miséria e esquecimento, o comentário do Cônsul do Haiti em São Paulo, captado sem que ele soubesse estar sendo gravado quando se preparava para um programa no SBT: “Acho que, de tanto mexer com macumba, não sei o que é aquilo. O africano em si tem maldição. Todo lugar que tem africano está fodido.” Na sequência, o mesmo senhor comenta que a tragédia estava “sendo uma boa” porque “o país fica conhecido”. Carlos Heitor Cony lembrou, em artigo na Folha (17/01/10), acerca do terremoto de Lisboa, que mereceu um célebre poema de Voltaire (1756) sob o título “Poema sobre o Desastre de Lisboa”, no qual o

autor dizia descrer em Deus como ser superior que cuidasse dos destinos humanos. Lisboa não tem mais desastres nos terremotos, pois desde Pombal reestruturou-se e a União Europeia ajuda a garantir uma estrutura e padrão de vida que quase elimina essa possibilidade. Os 18 últimos terremotos nos EUA (na mesma escala que esse no Haiti) não mataram mais que 143 pessoas. Há, portanto, algo mais que os insondáveis mistérios da natureza na tragédia desse país! O desastre do Haiti não mereceu poemas de descrença nos homens ou em Deus, embora seja a maior catástrofe dos últimos 200 anos e tenha matado cerca de 200.000 pessoas. A solidariedade internacional é necessária agora, mas não resolve o seu problema histórico. Pode minorar a falta de água, de comida, de roupa, de casa, de segurança... No entanto, não encara o desastre histórico da nação mais pobre das Américas. O Haiti não é aqui, mesmo que o Brasil tenha inúmeros Haitis esquecidos dentro de seu próprio território. O retrato das perdas, da luta pela comida, do desespero de pais que perderam seus filhos... tudo isso impacta, porém não pode deixar esquecer o medo que a revolução de escravos que libertou o país causou em seus vizinhos escravocratas e o perigo que significou a todos eles. “Em 1803 os negros do Haiti deram uma tremenda sova nas tropas de Napoleão Bonaparte e a Europa jamais perdoou esta humilhação infligida à raça branca. O Haiti foi o primeiro país livre das Américas. Os Estados Unidos haviam conquistado antes a sua independência, mas tinha meio milhão de escravos a trabalhar nas plantações de algodão e de tabaco. Jefferson, que era dono de escravos, dizia que todos os homens são iguais, mas também dizia que os negros foram, são e serão inferiores. A bandeira dos homens livres levantou-se sobre as ruínas. A terra haitiana fora devastada pela monocultura do açúcar e arrasada pelas calamidades da guerra contra a França, e um terço da população

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havia caído no combate. Então começou o bloqueio. A nação recém nascida foi condenada à solidão. Ninguém lhe comprava, ninguém lhe vendia, ninguém a reconhecia.” (Eduardo Galeano, 2010)

O Haiti precisava ser esquecido e a vitória dos fracos abandonada à própria sorte para que não servisse de exemplo a ninguém, escreveu Giannotti em 17 de janeiro (Folha – caderno MAIS). Dizia ele: “Nas guerras das estrelas esse conflito não comparece, como se desdobrasse entre duas forças, de tal modo transformadas pela técnica que se resolvem numa luta entre o espírito do mal contra o espírito do bem?” No Haiti há sangue, não há tecnologia avançada e a fratura humana da falta de solidariedade, do cuidado humano e da união dos povos está exposta. É nosso Afeganistão, nossa Etópia, nosso morro do Rio que desmoronou, nosso Nordeste sem água e comida, nosso Jardim Ipê (São José dos Pinhais) com toque de recolher... mas é muito mais que tudo isso, pois expressa o jeito de tratar o Outro e a nossa falta de reciprocidade permanente. É o retrato de um país e de um povo esquecido e explorado.

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ou a força da natureza como razão da destruição. Olhar para o Haiti é olhar para a América Latina toda e para a história dos esquecidos cuja dor somente aparece nas catástrofes, fazendo os bem alimentados chorarem diante da televisão, mas voltando depois à vida normal. Assim têm sido tratadas todas essas situações transformadas em espetáculo de dor e compaixão passageiras. Talvez seja por isso que, no turbilhão de mais essa tragédia com o povo haitiano, os Meios de Comunicação tenham gastado três dias inteiros para falar da morte de uma brasileira que estava lá: Zilda Arns. Com o perdão e o reconhecimento ao inequívoco valor de seu meritório trabalho, só pode ter sido para cultivar a personalização da dor e dos personagens, talvez nos fazer sentir solidários através de alguém, mas certamente porque à oficialidade não importa contar a história inteira desse povo – de nenhum povo. Aí, então, tudo já fica resolvido e o espetáculo pode continuar. Para atestar o que foi dito até aqui, resgatemse trechos de uma Carta Aberta publicada por um grupo de acadêmicos haitianos, dizendo, entre outras coisas: Nós, acadêmicos e intelectuais haitianos, revirando ainda os escombros de nossas casas e vidas destruídas, esperamos ser ouvidos por cima dos clamores de comentaristas e autoridades. Isso é tanto mais importante porque o futuro do Haiti se decide agora... Mas essa catástrofe foi anunciada... Nenhuma criança haitiana foi orientada a buscar proteção sob um móvel ou sob o umbral das portas... Os bilhões de dólares gastos nos últimos 15 anos geraram re-

É como se o coronel-fazendeiro Quatric tivesse derrotado os Na’vi na terra de Pandora, do filme Avatar. Os vales e a beleza da Ilha Hispaniola estão cheios de sangue e morte há muito tempo, mas a sensação é como se a caixa de Pandora tivesse sido aberta só agora com um terremoto.

sultados pífios... O que restava do Estado haitiano

Os haitianos já mataram 20 dos 21 presidentes entre 1843 e 1915 num tsunami político/social permanente na busca pelo fim da corrupção e na procura da própria identidade roubada pelos colonizadores e seus vizinhos do Norte. O livro Colapso, do biogeógrafo Jared Diamond, pode ajudar em mais detalhes dessa tragédia anunciada e espantar o determinismo geográfico

muito morto... O público internacional deve saber

ruiu junto com a capital. O colapso do palácio presidencial, da Assembleia Nacional e da maioria dos ministérios serve como uma metáfora bem adequada. A destruição do Estado haitiano, iniciada há 50 anos, foi completada... Nenhum de nós chegou a se surpreender com a completa ausência do Estado há que o presidente haitiano está desacreditado aos olhos do povo, o mesmo acontece com a ONU... É necessário criar um comando central que una os mais respeitados representantes do Haiti e os Estados internacionais e qualquer coisa além disso resultará em fracasso e não gerará um mínimo de confiança. Enquanto a confiança se esvai e o povo haitiano desespera-se, só resta contar com a boa von-


tade de nossos amigos da República Dominicana, do Brasil, do México e, falhando todos, de Deus. (Folha, 24 de janeiro de 2010).

Mais do que nunca é necessário, por essas e tantas outras razões, resgatar a política em seu sentido amplo: como cuidado e administração do bem comum e de todas as pessoas. A supremacia do economês e do psicologês tem afastado a discussão coletiva, o sentido histórico dos problemas. Transforma-se tudo em estatística e/ ou em situação terapêutica! Aqui no Brasil, em seu sentido mais restrito, o mundo político anda agitado pelas movimentações em vista das eleições de 2010 e as arrumações eleitorais e eleitoreiras parecem ir de vento em popa. O congresso nacional – o legislativo de modo geral – continua eleito pela mídia para sua pretensa campanha de moralização pública. É fato que ninguém tenha uma réstia de dúvidas das falcatruas que rondam os altos poderes da sempre nova/velha ordem. Todo dia aparecem novas denúncias e escândalos para corroborar nessa construção de uma leitura depreciativa da política. A mais nova e absurda imagem veio ao se fecharem as cortinas de 2009 com o vídeo e as imagens das doações espúrias em Brasília, envolvendo o governador Arruda e a Assembleia Distrital com um inusitado meio de transportar a propina: a meia. Depois da cueca, veio a meia e todas as possibilidades de humor e horror que essa situação representa! No entanto, a “grande mídia” é parte constituinte desse mundo e seu jogo; em nome da liberdade de expressão, funciona como defesa permanente da sua ação destrutiva e como desserviço à informação e formação política da população. Os eventos apresentados como dramáticos compõem a situação de permanente despolitização da coletividade. Confunde-se com intencio-

nalidade a toda prova a política com o fazer político corrupto, o que contribui para a debandada generalizada da participação nas coisas públicas e do exercício da cidadania. Os e-mails e as correntes que infestam nossos computadores, falando em não votar ou delineando mais um abuso financeiro, possuem esse ingrediente de ferocidade alienadora aterrorizante. No centro dessas discussões, o planeta sobrevive, respirando ar cada dia mais asfixiante, ainda que se aponte para cuidados nas emissões e exploração por parte das grandes economias mundiais. Registre-se, aqui, o estrondoso fracasso da última conferência mundial, na qual apenas as nações de médio e pequeno porte se comprometeram com algo e só foi possível um manifesto frágil e sem compromissos como resultado de todos os esforços e esperanças mundiais. Talvez, em médio prazo, seja possível aspirar um mundo em que se pense no planeta e os mais ricos deixem de consumir estupidamente e enviar seus lixos aos pobres (literalmente em containers ou veladamente nas suas sobras tecnológicas). Tudo isso contribui para que alguns poucos possam continuar a controlar setores vitais da vida do país e da montagem do imaginário coletivo da população. Repolitizar, por isso mesmo, talvez seja um dos eixos centrais da ação educativa e da ação cidadã de todos nós, mais do que nunca. No entanto, não é a mesma política, o mesmo foco, a mesma problemática e o mesmo mundo dos anos 70 e 80 do século passado que exige essa demanda. Os últimos 20 anos trouxeram mudanças globais, nacionais e individuais que precisam ser revisitadas. Se coletivamente experimentam-se situações constrangedoras e a despolitização crescente da população, é indispensável repensar a ação em sala de aula e nos trabalhos coletivos da escola para que o conhecimento seja menos conteudista

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e mais expressão da leitura da realidade. Esse é um desafio indispensável, já que, por vezes, nos distanciamos do contexto/realidade em nosso trabalho com os alunos e entre nós, educadores; porque em ano eleitoral é um debate indispensável; porque se trata de um tecer de novo os referenciais coletivos e pessoais para se viver... A política não atrai mais não apenas pela corrupção e sim pelo fato de que a preocupação com a boa administração deu lugar à autoadministração. Transformam-se queixas coletivas em problemas sociais suscetíveis à intervenção terapêutica. Daí o sucesso crescente dos psicólogos e psiquiatras, tomando o lugar dos políticos e dos educadores. Dessa mesma fonte nasce a certeza de que bastam bons gestores e uma macroeconomia acertada para que as coisas funcionem no país e no mundo. Trata-se do neopositivismo renovando-se permanentemente. A eficiência é o mais novo slogan das empresas, em detrimento das relações de trabalho e cidadania. No entanto, mais do que nunca, as preocupações pessoais e coletivas estão vinculadas ao tema da felicidade. Porém, felicidade hoje em dia quer dizer evitar a autodepreciação. Assim, o individualismo militante e disciplinar deu lugar ao individualismo a la carte – hedonista e psicológico. A felicidade foi privatizada na relação entre o consumidor e a mercadoria que o satisfaz. Para repolitizar, é necessário recomeçar por essa discussão: como retomar as causas coletivas e ressignificar a felicidade, além do consumo? Não basta procurar nas folhas amarelas! A afirmação acima é importante porque a felicidade parece poder ser alcançada com uma série de novas compras e novos restaurantes... ainda que os bares continuem a ser, em tantos casos, a salva-

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ção do encontro de amigos. É onde ainda conseguimos fazer nossas revoluções festivas! Por outro lado, quando as compras e a sofisticação consagram os novos VIPs, é fato que a maioria da raça humana está fora dessa possibilidade. Num shopping não se vai encontrar amizade, os prazeres da vida doméstica, a ajuda a um vizinho com dificuldade, o respeito aos colegas ou a proteção contra o desprezo e a humilhação. Buscam-se o consumo e o transitório e esse encontro entre o consumidor e a mercadoria mata o instinto artífice e criador pela facilitação e o evitar que o homem tenha que se desgastar para realizar ações do dia-a-dia. Há sempre uma nova engenhoca para resolver o problema, porém, como o consumo não pode acabar e só com novas aquisições é que se chega à felicidade, está criado um panorama de realizações momentâneas que nada têm a ver com realização pessoal e/ou projeto de vida. Afinal, para que projetos a longo prazo? Para que o até que a morte nos separe? Para que o discernimento e o juízo de valor? A solução é a curto prazo! Na cultura anterior, possivelmente a nossa, a pessoa nascia com uma identidade definida. Agora cabe a cada um construir a sua identidade, remodelando-se com os equipamentos que fazem parte do seu dia-a-dia. Antes fazia um projeto para a vida, agora os projetos são momentâneos e precisam ser montados e desmontados. É uma espécie de contrato por um tempo que logo passa e há reprocessamento constante. Numa vida dividida em episódios ou fatias independentes com enredos e finais próprios, cada episódio pode ter um elenco e os parceiros do episódio anterior são descartáveis. Como na história do super homem (homem superior), a marca do passado só pode ser dos seus próprios feitos. O passado soa como um solitário ranger de dentes! O problema é que o homem morre a partir do momento que não traça mais metas que pareçam impossíveis e que tenham relação com o futuro. Isso porque a felicidade está sempre um passo à nossa frente e ela nos move. Não basta


calcular o que dá para fazer depois do plano de saúde, da educação das crianças, da manutenção da casa, das novas roupas, das pensões aos exparceiros e da prestação do carro. Embora isso faça parte e seja necessidade de nosso plano de sobrevivência, reduzir a felicidade a isso mata a humanidade da pessoa. Contribui definitivamente para um mundo sem alma! Talvez seja por isso que o novo nome da infelicidade e a expressão mais corriqueira (depois do famigerado “estou estressado”) seja TÉDIO. Tédio é a extrema infelicidade, o não poder se divertir, não poder ou não ter o que fazer, a ausência da ação que entretém, o vácuo de atividade, a impossibilidade da ação que satisfaz... Se importa o momento, como educar para a vida? Como desenvolver uma opção educativa com projeto de vida? Como repolitizar e recriar compromisso com o país e com os outros? Como ir além do espetáculo de morte e dor do terremoto no Haiti? Como nosso jeito de educar pode reconstruir sentidos e compromissos? Se a privatização da vida e da identidade é permanente, como pensar a convivência de grupo e o espaço público?

Enfim, há um desafio e uma demanda nova ao pensar a educação, a formação, a cidadania e a política. O momento parece exigir uma profunda interlocução e inter-relação entre o individual e o coletivo, entre a vida intensa do momento e os projetos de futuro, o bem pessoal e o bem comum, o cuidado com a pessoa e com todas as pessoas, o imediato e o mediato, a escola e a cidade, o real e o virtual?real, o nacional e o transnacional, o individual e o diverso... Enfim, o perigo e o desafio de reumanizar estão postos a todos, mas em especial têm lugar no trato com a educação que se pretende herdeira do repasse das conquistas da humanidade às próximas gerações. Não fazê-lo reporta-nos à última frase de George Orwell, em A Revolução dos Bichos: “E já não se sabia quem era homem e quem era porco.” (Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br)

Adalberto Fávero é diretor acadêmico do Colégio Medianeira; é formado em Filosofia, Teologia e História, com pós-graduação em Filosofia da Educação (PUCPR) e em Currículo e Práticas Educativas (PUCRJ). É mestre em Educação pela PUCPR.

DE PERNAS PRO AR AUTOR: EDUARDO GALEANO Editora L&PM Em De pernas pro ar – A escola do mundo ao avesso, Eduardo Galeano provoca nossas emoções e nossas consciências, como já o fizera no clássico As veias abertas da América Latina no início da década de 70. Nestas páginas, que transitam pela ironia e, não raro pela indignação, desfilam uma enorme quantidade de fatos, eventos históricos e jornalísticos que comprovam que o mundo está, de fato, de pernas pro ar, refletindo a nossa incapacidade de harmonizar justiça e liberdade. Verdadeiro, generoso, lírico e às vezes cruel, este livro é um inventário da nossa dura, estranha e injusta realidade. Dono de uma obra emblemática e importante, Eduardo Galeano é um dos mais importantes escritores latino-americanos, com seu nome projetado em todo o mundo com traduções em mais de 20 línguas.

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É pra

POLEMIZAR? Então tá... ... debatendo os direitos humanos em Cuba, a mídia e a política externa brasileira... Escrito em fevereiro de 2010

G

“Gato Escaldado”...

Por Mauro M. Braga

O tema dos “presos políticos” em Cuba não é novo, assim também não são as sistemáticas campanhas difamatórias da grande mídia contra aquele país. A intenção deste artigo, mais do que apenas contrainformar e ajudar a esclarecer, é alimentar o debate, que, acredito, transcende muito apenas a velha “questão de Cuba”. 32

Numa das mais completas e francas entrevistas de Fidel Castro, concedida a Ignácio Ramonet e publicada no livro Cem Horas Com Fidel, ele justifica como um tipo de “mal necessário” o rigor com que historicamente foram tratados alguns dos presos cubanos – rigor este que sempre me pareceu excessivo, inclusive por ter adotado, não poucas vezes, a pena de morte. Apresenta argumentos válidos, afirmando, entre outras coisas, que a proporção de presos em Cuba é muito inferior à de outros países; que não há, de fato, presos “políticos” em Cuba, já que o governo cubano não impede os eventuais dissidentes de deixar o país, desde que tenham condições de bancar sua viagem em segurança, sem gerar riscos (ou você acha que aqueles milhares de cubanos que vivem em Miami viajaram todos em barquinhos?); que alguns presos cubanos, tentando evitar o cumprimento de penas por


delinquências diversas, tentam se passar por “dissidentes políticos” (e muitas vezes recebem incentivos generosos para isso da máfia cubana na Flórida e da CIA...), buscando apoio para tentar deixar impunemente o país, etc... Em meio às argumentações, uma me chamou especial atenção: afirmou que o grau de rigor tende a aumentar na medida em que algum cidadão, por suas atitudes, coloque em risco a segurança da sociedade cubana e suas conquistas, já que o país vive em “permanente estado de guerra”. Esse “estado permanente de guerra”, embora pareça estranho visto daqui, me saltou aos olhos quando estive lá. Afinal, qualquer conversa mais profunda com os cubanos deixa claro como a imensa maioria daquela sociedade, que defende arduamente as conquistas da revolução, sente-se permanentemente ameaçada e pronta para reagir e defender seu país a qualquer momento em que isso seja necessário. Há campanhas midiáticas sistemáticas sobre isso e a questão é abordada desde cedo nas escolas e famílias. Trata-se, digamos assim, de uma sociedade psicologicamente condicionada. Não por menos, se pensarmos em tudo o que passou... Tudo o que ainda passa... O ônus de desafiar o poder da vizinha super-potência contabiliza inúmeras agressões, que inclusive se intensificaram depois do final da Guerra-Fria. A lista é enorme: em 50 anos, Cuba sofreu uma invasão militar, inúmeras tentativas de assassinato contra seus líderes, bloqueio econômico, atos diversos de sabotagem, incluindo guerra biológica atingindo suas plantações e água potável, atentados terroristas diversos, incluindo aviões derrubados e bombas em hotéis visando a prejudicar a indústria turística (você nunca ouviu falar disso? Curioso que não tenha aparecido no “Jornal Nacional”, não?), sacrificando uma lista incontável de vítimas diretas e indiretas – tudo comprovado, fartamente documentado e até cinicamente assumido pela CIA. Posada Carriles, terrorista confesso que explodiu um avião cubano matando mais de 70 pessoas, vive hoje livre e goza de imunidade dentro dos EUA, protegido pelo governo. O fato é que o povo cubano sente-se ameaçado, vive ameaçado e cobra rigor de seus governantes contra quem colabora com aqueles

que o ameaçam. Culpá-lo pela histeria seria, no mínimo, ingênuo.

Reações contraditórias... Só o povo cubano? Não somos todos assim, quando ameaçados? Ora, nos escandalizamos se o governo cubano mostra-se insensível diante de um pretenso “dissidente” (seria mesmo um “dissidente”? você tem certeza? eu não...) que morre numa greve de fome e reagimos com conivência quando o noticiário relata, por exemplo, que a polícia outra vez subiu os morros e matou, em confronto, montes de “traficantes” e “bandidos”. Justificamos isso como “mal necessário”, já que a violência dos morros e favelas nos ameaça, certo? Achamos que é preciso enfrentá-la... e se ocorre de forma violenta, fazer o quê... é o preço a pagar... Não é a sociedade ideal, mas é o que podemos fazer, não? Livramo-nos dos delinquentes para tentar viver em paz, atrás de nossas cercas eletrificadas... E criticamos a conduta ética do governo de Cuba, claro... Mais curiosidades: a sociedade estadunidense, traumatizada pelo 11 de setembro, acha normal que seu governo mantenha milhares de presos políticos, sob a acusação (na maioria dos casos não comprovada) de “ligação com o terrorismo internacional”. Na pretensa “terra da liberdade”, o povo confere tranquilamente ao seu governo o direito de prender, isolar e até matar a quem bem entenda... O governo de Israel faz o mesmo com palestinos e outros povos que “ameaçam a existência” de sua nação, e quem levanta a voz para denunciar abusos é prontamente acusado de antissemitismo. Isso sem falar no confinamento imposto ao povo palestino em guetos murados – similares aos de Varsóvia. Nossas indignações são perigosamente relativas... O fato é que nunca saberemos até que ponto cada um desses “transgressores anônimos”, vulgarizados em expressões generalistas como “dissidentes políticos”, “terroristas”, “traficantes”, “bandidos”, etc, que sangram e desaparecem diariamente nessa “bela” sociedade humana sob nossa sorridente indiferença, representava verdadeiramente alguma ameaça. O próprio critério de “ameaça” é relativo. O julgamen-

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to, feito por quem se sente ameaçado, não é idôneo. E o pior é que, no momento de agir, empurramos para debaixo do tapete as regras do mundo civilizado, onde ninguém é culpado sem comprovação, onde há advogados, justiça, direitos, etc. E, lógico, nos escandalizamos com a violação dos direitos humanos em Cuba.

Informação e desinformação... Indo além, creio que o direito à informação, de tão valioso, deveria ser tratado com mais respeito em nosso país. O que é difícil quando setores dominantes da mídia encontram-se tão aquartelados e confortavelmente instalados numa rede de corporativismo e subserviência aos poderes estabelecidos, como ocorre em especial por aqui, mas também em tantas outras partes do mundo. Este “mundo CNNizado”. Este “Brasil Rede-Globado”... Quisera viver num país onde as expressões faciais tão bem treinadas da Fátima Bernardes e do Willian Bonner se mostrassem cordiais e simpáticas ao divulgar para os milhões de brasileiros que os assistem todos os dias os números da “Operação Milagro”, ou dos bolsistas carentes de países pobres que se tornam médicos na Ilha da Juventude, ou mesmo celebrar as ações militares internacionalistas cubanas, como a que ajudou a derrubar o regime do Apartheid sul-africano, ou até a imensa ajuda humanitária enviada por Cuba ao Haiti (boicotada descaradamente pela mídia)... Ah, você nunca ouviu falar em nada disso? Por que será? Bem: se está lendo esse texto até aqui, imagino que possa se informar pela Internet... Ainda bem, né? Pois a massa brasileira recebe outro tipo de informação associada a Cuba. Aí o “casal 20” do Jornal Nacional faz aquela famosa cara de indignação. Aí o espaço garantido é o da “blogueira”, da greve de fome do “dissidente político”, do esportista que abandona a delegação em troca de um contrato milionário (que horror! esportistas, ou devo dizer “dissidentes políticos”, brasileiros nunca fazem isso, né?), etc...

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Não há espaço aqui para rebater cada uma dessas situações, e é verdade, sim, que a “Questão Cubana” merece um debate sério, em alto nível, sobre algumas contradições – inclusive o rigor com prisioneiros. Mas, diante dessas velhas campanhas difamatórias, cito a oportuna consideração feita por Eduardo Galeano, quando, dirigindo-se ao governo dos EUA, afirmou: “... se os senhores têm, aqui pertinho, uma ilha onde estão à vista os horrores do inferno comunista, por que não organizam excursões ao invés de proibir as viagens?” Mas não nos desviemos! A questão central é que não nos esqueçamos nunca que o controle da informação é um dos mais eficazes instrumentos de perpetuação de poder.

A mídia, a geopolítica e o ano eleitoral... Que não nos esqueçamos, também, que estamos num ano eleitoral. O que torna conveniente às elites usar seu arsenal midiático para tentar minar a credibilidade de pontos considerados mais fortes do governo Lula – como a sua política externa. Doa a quem doer, uma coisa é muito clara: nesses últimos 7 anos, um novo Brasil mostrou-se ao mundo, muito mais respeitado (até temido, por alguns...). Fortalecemos as relações sul-sul com países latino-americanos, africanos e asiáticos; abrimos espaços iguais de diálogo, sem privilégios, com países em conflito, como no caso Israel-Palestina; cobramos coerência na questão do Irã, reforçando a ideia de que apenas os países que não possuem armas nucleares têm autoridade moral para exigir o mesmo de outros países; demonstramos habilidade e firmeza em algumas delicadas questões latinoamericanas, como a da nacionalização do gás boliviano ou a da rediscussão do tratado de Itaipu, sem nos deixar levar pelos chiliques reacionários das elites orquestrados pela mídia; enterramos a ALCA e fortalecemos as iniciativas de unidade latino-americana; assumimos papel de liderança ousada na condenação do golpe de Honduras; condenamos a invasão do Iraque; fizemos nossa voz ser ouvida tanto em Davos como no Fórum Social Mundial; e fomos capazes de fazer tudo isso sem radicalismo, sem deixar nunca de


dialogar com o mundo rico. Não é à toa que, nos últimos meses, vozes que representam as elites, como as de Arnaldo Jabor, Diogo Mainardi, entre tantos outros (que encontram tanto espaço na Globo, na Veja, etc...), estejam numa clara campanha para tentar inverter as verdades sobre a nossa nova política externa. Talvez saudosos daquele Brasil subserviente, obediente como um cãozinho treinado que “cuidava do quintal dos EUA”, como antes... Assim, a estratégia de associar Lula à “terrível e retrógrada ditadura socialista cubana”, atribuindo-lhe alguma “saia justa” por “não dar ouvidos aos apelos dos dissidentes”, constitui apenas mais uma alfinetada. Não será a última, com certeza... Chego a me divertir com a indignação dessa imprensa marrom quando o Brasil abre espaços de diálogo com governantes que eles detestam, como Hugo Chavez, Evo Moralez, Ahmadinejad, etc. Curioso: quando dialogávamos com o Bush, eles não se manifestavam... Enfim, as alfinetadas continuarão afiadas e associar o governo brasileiro aos “bad boys” do mundo é uma estratégia básica – ainda mais num ano eleitoral, quando até aquelas preocupações com a imagem e tentativas de ao menos manter aparências de neutralidade costumam desaparecer. Quem sabe um dia vivamos num mundo onde as sociedades – cubanos, israelenses, estadunidenses ou brasileiros da zona sul do Rio de Janeiro – possam seguir o caminho que escolheram sem viverem ameaçados, onde os eventuais delinquentes paguem por seus atos, mas tenham sempre seus direitos respeitados, e onde as grandes empresas de mídia sejam norteadas mais pelo compromisso firme e ético com a verdade e a qualidade da informação do que pela ideologia das estruturas de poder que as controlam. Quem sabe a humanidade um dia perceba que isso nunca ocorrerá enquanto o mundo for socialmente tão injusto. O que temos hoje são apenas subprodutos agregados ao caos do sistema. Não vê quem não quer. Só isso. (Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br)

Mauro Michelotto Braga é geógrafo, professor do Colégio Medianeira, em Curitiba, e integra o Movimento Brasileiro de Solidariedade a Cuba, através da Associação Cultural José Marti Paraná-Cuba.

AV ANT AGEM ACADÊMICA DE CUBA – POR QUE VANT ANTAGEM SEUS ALUNOS VÃO MELHOR NA ESCOLA AUTOR: MARTIN CARNOY Editora Ediouro A obra aborda os desafios enfrentados por muitos dos sistemas educacionais, entre eles o brasileiro, e aponta uma forma de superá-los. Sem apresentar fórmulas mágicas e simplistas, nem tampouco recorrer à retórica ideológica, o autor sai a campo em busca de evidências – e vai buscá-las na sala de aula, onde a qualidade da educação se materializa. A partir da mensuração do que acontece em classes cubanas, chilenas e brasileiras, o autor chega a conclusões sobre as razões da superioridade acadêmica de Cuba.

A VERDADE SOBRE CUBA AUTOR: PE. ROQUE SCHNEIDER & PE. ELOY OSWALDO GUELLA Editora Loyola Era uma ideia que vinha de longe. Um sonho acalentado já nos longes da juventude: conhecer Cuba de perto, sentir o povo caribenho, correr aquela ilha semilendária que há mais de trinta anos desafia a maior potência do mundo, os Estados Unidos. Alguns viajam até lá numa profissão de fé ao regime de Fidel Castro. Outros, para discernir as luzes e sombras de um sistema de governo diferente... que já faliu no Leste Europeu, na ex-União Soviética. E sobrevive ainda no caribe: o socialismo.

Não deixe de assistir ao vídeo Levante sua voz, sobre o direito (ou a falta de) à comunicação e informação. Entre em nosso blog http://midiaeducacao.wordpress.com e, no campo “pesquisa”, digite “Levante sua voz”.

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A

INCLUSÃO

sócio-digital:

preâmbulos e o caminho da da

EDUCAÇÃO A

DISTÂNCIA

O

A Inclusão Social a partir da inserção dos indivíduos na inclusão digital virtual tem sido a tônica das últimas discussões de caráter inovador em processos educacionais, ao menos nas sociedades mais ocidentalizadas, onde temos uma maior possibilidade de informações a respeito.

Por Susane Martins Lopes Garrido

Está cada vez mais impossível dissociar o termo “inclusão digital” da “educação a distância”. Veja de que modos estas expressões se retroalimentam.

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Nesse sentido, o ato de incluir digitalmente pode ser legitimado como um potencializador para os indivíduos, para sua reinvenção, para a reconstrução das ações que o levam a uma melhor condição social e de emancipação, na vida. O mundo digital virtual carregado de informações intrínsecas e extrínsecas, e as possibilidades advindas das criações e representações dos indivíduos podem gerar, como uma espécie de intermediação, uma verdadeira inclusão social. Sob essa perspectiva, a inclusão digital não deve ser um fim em si mesmo, ou seja, não precisa ser um conhecimento que se estabelece por se estabelecer – como a máxima totalitária do senso comum, que insistentemente prega a nossos alunos que, se estudam determinados as-


suntos, é porque são necessários para o vestibular... – justificativa nada plausível e que simplesmente demonstra a não clareza de objetivos. Assim, quando em um processo de inclusão digital, ensinam-se conhecimentos de softwares, programações em 2D e 3D, simulações, navegações na web, interações em plataformas, desenvolvimento de objetos de aprendizagem, dentre outros, deve pretender-se a aplicabilidade destas tantas inovações, primeiramente na vida cognitiva dos indivíduos para, a partir das significações, possuir sentido na vida prática desses mesmos indivíduos. A inclusão digital, assim chamada pelo fato de incluir a outra, a social, também precisa ser compreendida não apenas pelas possibilidades recursais tecnológicas de acesso, às quais os indivíduos possam vir a se integrar. A tecnologia em si é apenas uma parte do processo e ajuda – no momento em que este processo passa a ocorrer – o professor e a comunidade “de aprendizagem” na qual está inserida, na medida em que se torna integrante e também integradora do próprio sujeito aprendiz. Assim, sob uma perspectiva mais macro, se o objetivo maior da inclusão digital vem a ser a inclusão social (o que deveria...), essa deve ser contemplada desde o princípio de todo o processo que a propõe, pois são os indivíduos os atores reais de qualquer dinâmica de interação e de interatividade, bem como do exercício da própria cidadania que se esteja buscando. As noções de interdependência entre inclusão social e inclusão digital podem ser discutidas a partir de uma visão sistêmica, pois se autoproduzem e, na interação com o meio, produzem uma a outra: Segundo Maturana (2002), o Homem é um ser vivo com autonomia, isto é, autoprodutor – capaz de produzir seus próprios componentes ao interagir com o meio. Dessa forma (...) “não podem, (os seres vivos) se limitar a receber passivamente as informações e comandos vindos de fora. (ibidem p.14). Assim estabelece-se uma congruência entre autonomia e dependência, uma passa a complementar a outra. (Garrido: 2005)

Nessa noção de interdependência não há li-

nearidade nem objetividade para a criação de uma ou outra inclusão, mas rearranjos complexos e transversalizados que fazem com que a inclusão social esteja sempre presente em qualquer fase em que se pense uma inclusão digital. Assim, uma inclusão social digital se faz, com maior eficácia, a partir de possibilidades mais sistêmicas. Se a noção de conhecimento diversifica-se e multiplica-se quando a consideramos, podemos legitimamente supor que comporta diversidade e multiplicidade. Desde então, o conhecimento não seria mais passível de redução a uma única noção, como informação, ou percepção, ou descrição, ou idéia, ou teoria; deve-se antes concebê-lo com vários modos ou níveis, aos quais corresponde cada um desses termos (MORIN, 2005, p. 18).

Segundo Morin (2002), sob a ótica da complexidade, pode-se fazer do próprio conhecimento um objeto de conhecimento. Para o autor, na cognição “(...) o ato de conhecimento, ao mesmo tempo, biológico, cerebral, espiritual, lógico, linguístico, cultural, social, histórico, faz com que o conhecimento não possa ser dissociado da vida humana e da relação social” (2005: p. 26). Assim, o digital, o virtual, as tecnologias emergentes e os demais termos associados a esta tônica tornam-se intrínsecos ao desenvolvimento dos próprios indivíduos transformando-se em continuidades, complementações, aplicações ou dissidências das atuações cotidianas dos mesmos. [...] Vemos com dificuldade possibilidade de isolar o campo do conhecimento se temos necessidade de conceber as condições bio-antropo-sócioculturais de formação e de emergência do conhecimento assim como os domínios de intervenção e de influência do conhecimento. Finalmente, é toda a relação entre o homem, a sociedade, a vida, o mundo que se acha atingida e problematizada de novo no e através do conhecimento do conhecimento (MORIN, 2005: p. 26).

A Educação a Distância poderia promover aspectos propulsores de uma inclusão sócio-digital? Essa tem sido a grande discussão dos últimos anos em torno da modalidade a distância no Brasil, o que alimenta inúmeros conceitos tecnológicos e pedagógicos para as metodologias institucionais, criação de decretos de legislação vigora-

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dos pelo MEC, um assombroso crescimento de ofertas principalmente na educação superior e uma preocupação geral (alunos, professores, instituições de ensino e o próprio MEC) em torno dos balizadores da “qualidade” para as ofertas desta natureza. Desde o surgimento dos dois Decretos que regem a EaD atualmente (Decreto 5.622 de 19 de dezembro de 2005, revogado em alguns itens pelo Decreto 6303 de 12 de dezembro de 2007), a Educação a Distância é a modalidade educacional na qual a mediação didático-pedagógica nos processos de ensino e aprendizagem ocorre com a utilização de meios e tecnologias de informação e comunicação, com estudantes e professores desenvolvendo atividades educativas em lugares ou tempos diversos. Essa definição prepõe flexibilidade nas possibilidades de ensino/aprendizagem por parte de alunos, para propor um caráter de inclusão a uma parcela da população que se encontra fora da universidade ou da escola. É fato, entretanto, que o maior crescimento ou adesão à modalidade a distância encontrase nas Instituições de Ensino Superior (graduação e pós-graduação), onde, nos últimos 4 anos, segundo dados do ABRAED 2009, alcançou-se a marca de 356%, enquanto que na educação básica (principalmente em EJA ou Ensino Profissionalizante), o crescimento fora de 62,8%, uma vez que a atual legislação prevê o credenciamento das escolas (para EaD) realizado somente pelo sistema de ensino de cada estado, o que limita o âmbito geográfico de atuação das mesmas para o próprio estado. Na medida em que o credenciamento atingisse um âmbito federal, como ocorre com as IES, haveria um potencial inclusivo muito maior para as escolas. Vamos torcer para isso acontecer! Estudos têm demonstrado que a modalidade a distância no ensino superior brasileiro atinge um público normalmente mais velho, trabalhador e afastado do estudo regular (durante anos) ou pela educação básica ou pela própria vida acadêmica.

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A maioria dos alunos de EAD são casados [sic], contra apenas 19% entre os presenciais; 44% têm dois ou mais filhos (contra 11% entre os presenciais). Fica claro, pelo estudo, que o estudante de EAD é marcantemente distinto do estudante presencial: ‘Ele é em média mais velho, mais pobre, menos branco, majoritariamente casado, tem filhos, vem mais da escola pública, tem pais com escolaridade básica, trabalha e sustenta a família, tem menos acesso à internet, usa menos o computador, tem menos conhecimento de espanhol e inglês, entre outros’, conclui o estudo. Ristoff, no entanto, não se surpreende com o fato de um estudante mais excluído economicamente e bem mais ocupado se sair melhor nos exames do Enade. Para ele, segundo esses resultados,“fica evidente que o estudante de EAD também se diferencia dos demais porque tem mais autodisciplina para os estudos, sabe estudar sozinho no pouco tempo de que dispõe, e efetivamente valoriza a oportunidade de estudar“. (ABRAED: 2009).

Essas afirmações relevam uma tendência já mundializada, de estudar em tempos ou lugares diferentes, a fim de que sejam supridas dificuldades de toda a ordem para aqueles normalmente “excluídos” do status quo acadêmico (escolar) das sociedades em geral. No Brasil, a exclusão educacional é sempre surpreendentemente mais alarmante porque o índice de analfabetismo de jovens a partir de 15 anos beira a média de 10% da população do país. Seja por falta de condições econômicas, sociais, de deslocamento, de histórico familiar ou de subsistência genérica, o jovem brasileiro está ainda fora da “escola”; assim, a promoção de uma possibilidade de estudo envolvendo menos custo (no que se refere às características citadas) e mediada por algum tipo de tecnologia que chegue a esse aluno representa, sem dúvida alguma, uma oportunidade inclusiva. No entanto há de se considerar, e de forma muito enfática, que as instituições de ensino, de educação básica ou de ensino superior a distância, estejam devidamente preparadas e aparatadas para o desenvolvimento das práticas educacionais mediadas por tecnologias. Nesse sentido, a oportunidade inclusiva gerada pela ideia da modalidade deve refrear o oportunismo comercial que infelizmente tem atingido o país nos últimos 4 anos, o que levará, certamente, a um pro-


cesso seletivo natural para as escolhas institucionais que prezem missões e valores voltados para os processos verdadeiros de ensino e de aprendizagem que antecedem toda e qualquer modalidade educacional, seja esta presencial ou a distância. (Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br)

INCLUSÃO DIGITAL UMA VISÃO CRITICA AUTOR: EDILSON CAZELOTO Editora Senac São Paulo

Susane Martins Lopes Garrido é Doutora em Informática na Educação pela UFRGS e Mestre em Educação pela PUCRS. Atualmente é Professora adjunta e Coordenadora da Unisinos Virtual – EaD da UNISINOS e Membro da Comissão de Educação a Distância do Ministério da Educação do Brasil (MEC).

É possível ser contra a inclusão digital? Será ela sinônimo de inclusão social? O autor considera que a análise dos Programas Sociais de Inclusão digital, entendidos como formas de expansão da cibercultura, não pode prescindir da reflexão sobre como o poder econômico se excerce e legitima nas sociedades contemporâneas. O autor investiga como os eixos principais da cibercultura (informatização do cotidiano e saturação mediática) se articulam em conformidade com a nova global de soberania.

ABC DA EAD - A EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA HOJE AUTOR: CARMEM MAIA E TT AR JOAO AUGUST O MA AUGUSTO MATT TTAR NETO Editora Prentice Hall Brasil F O N T E S C O N S U LTADAS E SUGESTÕES DE LEITURA: ABRAED 2009: Disponível em http://www.abraead. com.br/anuario/anuario_2008.pdf . Consultado em abril de 2010 EAD e os Pólos - Exigências legais: Disponível em h t t p : / / w w w. s i n p r o - r s . o r g . b r / t e x t u a l / j u n 0 8 / EAD_Polos.pdf . Consultado em abril de 2010 Indicadores do IBGE de 2009: http://www.ibge.gov.br/ h o m e / p r e s i d e n c i a / n o t i c i a s / noticia_visualiza.php?id_noticia=1476&id_pagina=1. Consultado em abril de 2010 GARRIDO, Susane. “A Perspectiva Sistêmica na Cognição Humana a partir da Influência das Tecnologias do Ciberspace”. Revista On line Colabor@ - CVA RICESU – Volume 3 – Numero 9 – Julho 2005 - In http://www.ricesu.com.br/colabora/n9/artigos/n_9/ pdf/id_05.pdf. MATURANA, Humberto. A árvore do Conhecimento. São Paulo. Paz e Terra. 2002. MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 1991. MORIN, Edgar. O método 4. As idéias. Porto Alegre: Sulina, 2002. MORIN, Edgar. O método 3. O conhecimento do conhecimento. Porto Alegre: Sulina, 2005. Tempo Moderno: http://www.tempomoderno.net/ 2009/09/ibge-constata-taxa-de-analfabetismo.html. Consultado em abril de 2010

A educação a distância (EaD) vem crescendo de maneira explosiva. Consequentemente, crescem também o número de instituições que oferecem algum tipo de curso a distância, de cursos e disciplinas ofertados, de empresas fornecedoras de serviços e insumos e de artigos e publicações sobre EaD. É nesse cenário em mudança que surge o ‘ABC da educação a distância’, um verdadeiro manual sobre o assunto, que traz não apenas a história da EaD no Brasil e no mundo, como também dicas e sugestões para quem quer melhorar ou mesmo implementar esse tipo de serviço. Esta obra aborda os vários modelos de EaD que vêm sendo praticados, as ferramentas disponíveis, os novos papéis do aluno, do professor e das instituições, os direitos autorais e o futuro da EaD, entre outros pontos relevantes. Elaborado com o intuito de organizar o grande volume de histórias, casos, tecnologias, ambientes, papéis e fundamentos relacionados ao tema, ‘ABC da educação a distância’ é, sem dúvida, fundamental para quem quer conhecer um pouco mais sobre esse tema tão importante nos dias atuais.

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e d r o c a O creto

se LEONARD

de

COHEN Por Diego Zerwes

O que faz uma canção ser regravada com mais ou menos 200 versões diferentes? Que segredo é esse?

E

Você já imaginou a voz rouca de Bob Dylan cantando Sunday Bloody Sunday, do U2? Ou Justin Timberlake interpretando You give a Love a bad name?, de John Bon Jovi? Não, eles não participaram de nenhum coro, de nenhum reality show, ou de algum concerto beneficente. Bob Dylan, Bono Vox, Justin Timberlake e Bon Jovi. Diferentes em seus estilos sonoros, eles convergem em um ponto: a música “Hallelujah”, de Leonard Cohen. Se apenas esses conhecidos artistas, citados acima, tivessem regravado a canção, já seria um bom indício, digno de pesquisa. Contudo, de acordo com o site da MTV americana, há aproximadamente 200 interpretações da música por diferentes artistas. Lançada em 1984, no álbum Various Positions, de Leonard Cohen, “Hallelujah” ganhou maior notoriedade em 1994, com o novo arranjo do compositor e cantor americano Jeff Buckley,

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morto acidentalmente enquanto nadava em um afluente do rio Mississipi, em 1997. Dez anos mais tarde, a revista americana Rolling Stone listou a canção entre as 500 melhores músicas de todos os tempos (The 500 Greatest Songs of All Time). O novo arranjo de Jeff Buckley é tão famoso que, segundo a revista online NME, ela é conhecida como a “versão original”. Na última semana do ano de 2008, 24 anos depois de sua composição, “Hallelujah” ficou com os dois primeiros lugares do Official UK Charts Company, uma lista oficial baseada nas vendas de singles e álbuns no Reino Unido. O primeiro lugar ficou com Alexandra Burke, vencedora do X Factor, um programa de televisão britânico para cantores iniciantes (semelhante ao programa Ídolos do Brasil). O segundo lugar foi de Jeff Buckley, impulsionado pelas vendas promovidas por uma campanha dos fãs desta versão. Por que “Hallelujah”, tanto tempo depois, ainda obtém tanto sucesso? Difícil de responder. Porém, pensar no fato como consequência de um árduo trabalho e excelente processo criativo é uma perspectiva interessante, principalmente em tempos de hits efêmeros, lançados incansável e freneticamente pela indústria fonográfica. Em entrevista a Jian Ghomeshi, do jornal The Guardian, em julho de 2009, Leonard Cohen foi questionado sobre o grande sucesso de “Hallelujah” em 2008. Ele respondeu que isso soou ligeiramente como uma vingança, já que a Sony Records achava o disco Various Positions fraco e não bom o suficiente para o mercado americano.

um bom refrão. Nós basicamente vivemos de maneira parecida, e a música mais autêntica é aquela que trata dessas coisas, que são o ganho e a perda, a rendição e a vitória. A música popular tem que ser sobre esses assuntos”. O resultado de tanto sofrimento, paciência e, finalmente, vitória, foi uma canção virtuosa e que, segundo o biblista Sébastien Doane, está repleta de passagens bíblicas. Para ele, a própria melodia pode conduzir a uma viagem espiritual. Antes de apresentar os fatos bíblicos em si, Doane lembra que Aleluia, uma palavra hebraica, significa “Louvai ao Senhor”. “É uma exclamação utilizada na liturgia e nos salmos”. Leonard Cohen apresentou duas versões de “Hallelujah”. A primeira, do álbum Various Positions, de 1984; e a segunda foi lançada dez anos depois, no álbum Cohen Live. [Confira ao lado a primeira versão da música e os versos lançados posteriormente] Sébastian Doane aponta que o “Senhor” descrito neste primeiro parece ser o Rei Saul. Há uma passagem na Bíblia que descreve o que seria essa situação: “E sucedia que, quando o espírito maligno, da parte de Deus, vinha sobre Saul, Davi tomava a harpa e a dedilhava; então, Saul sentia alívio e se achava melhor, e o espírito maligno se retirava dele” (I Samuel 16, 23). Entretanto, esse não é o único aspecto representado no verso. Leonard Cohen se coloca no lugar do compositor e, mais tarde, de Rei. Compor “Hallelujah” é tentar descobrir qual é o “acorde secreto” que Davi tocava para o Rei Saul. “Ela é assim: a quarta, a quinta,/ A menor cai, a maior sobe”. Esses são os acordes secretos que Cohen ou Davi tenta mostrar para alguém que não se interessa por música: “Mas você não se importa com música, não é?”.

O processo criativo para a composição da letra foi árduo. Em pelo menos cinco anos de composição, ele preencheu dois cadernos e reuniu cerca de 80 versos. “Eu me lembro de estar no chão do hotel Royalton, deitado no carpet e de cuecas, batendo minha cabeça no chão e dizendo: ‘Eu não consigo terminar essa música’”. Respondendo ao questionamento, o processo de criação de “Hallelujah” é proporcional ao sucesso que obteve. Cohen esclareceu a sua maneira de criar: “Há dois tipos de composição, a rápida e a minha”.

Parece ser clara a ligação entre a música e a passagem bíblica. Essa suspeita se torna ainda mais forte quando se leva em consideração o fato de Leonard Cohen ser judeu e sempre referenciar histórias bíblicas em suas canções, como na música History of Isaac, a qual ele narra a partir da visão de Isaac, filho de Abraão.

Se não há uma fórmula concreta para se criar, Cohen descreve um conceito que tange na universalidade dos versos de “Hallelujah”: “Ela tem

O segundo verso de “Hallelujah” evoca outra passagem, ainda com Davi. Para Doane, o verso corresponde a um adultério cometido pelo Rei

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Davi: “Uma tarde, levantou-se Davi do seu leito e andava passeando no terraço da casa real; daí viu uma mulher que estava tomando banho; era ela mui formosa” (II Samuel 16, 2). A mulher que ele observa é Bathsheba, esposa de um de seus generais que acaba morto na guerra, a seu mando. Contudo, de acordo com a narração bíblica, Deus não gosta da atitude de Davi e, depois de sete dias de cama, o filho deste com Bathsheba morre de uma doença, que não é especificada. A letra da música e as referências dadas por Doane parecem muito verossímeis. Ele ainda lembra que a figura do corte de cabelo lembra a história de Sansão – cujos cabelos eram fonte de sua força – e Dalila. “Ela te amarrou à cadeira da cozinha,/ Quebrou seu trono, cortou seus cabelos”. Contudo, “Hallelujah” não se restringe a referências bíblicas. Leonard Cohen revela o que a música pode significar. Ele não fala propriamente sobre as referências da Bíblia, mas sobre o sentido universal no qual que está inserido “Hallelujah”.

No primeiro, ele tentava tocar o acorde secreto para alguém que não se interessava por música. Contudo, ele apresenta tais acordes. “O Rei frustrado compõe Aleluia”; frustrado porque sua música não vai ser apreciada. E é nesse sentido que Cohen se coloca, indiretamente como Rei, como foi dito acima. Havia um medo, não manifesto, de que sua composição poderia ser considerada fraca, da mesma maneira que a Sony Records entendeu. No segundo verso, a relação entre homem e mulher está diretamente ligada à passagem bíblica. A relação de Davi e Bathsheba, que nasce com um adultério e que termina com a morte do filho, é marcada por pontos de felicidade e tristeza. Primeiro, o encantamento de Davi ao vê-la banhar-se e a traição, vista sob seu aspecto como uma coisa boa. O momento de tristeza está na morte de Urias, então marido de Bathsheba, e o descontentamento de Deus que culminou na morte do filho. O segundo relacionamento presente no verso é de Sansão e Dalila, que destrói o trono do marido e o reinado ao entregá-lo aos inimigos e ao cortar seu cabelo.

O que ele pretende, ao não mencionar as referências bíblicas, é mostrar que há algo espiritual e independente de religiões ou crenças que pode transformar a vida de cada um.

No terceiro verso da versão original, há uma conversa que remete ao segundo mandamento: “Não tomar o santo nome em vão”. Ele questiona qual é o santo nome. Ele foge da questão religiosa e se volta, mais uma vez, à universalidade das coisas. O que está em jogo é a discussão de que o santo nome pode ser diferente para cada um. Mas isso não importa, pois “há um raio de luz/ em cada palavra/ e não importa qual você ouviu/ se foi uma Aleluia sagrada ou quebrada”. O santo nome, por exemplo, poderia ser, dentro da lógica da música, o amor, ou “Eu te amo”.

“E sem levar em conta qual é a impossibilidade da situação, há um momento em que você abre sua boca, abre bem os braços, abraça o problema e apenas diz ‘Aleluia! Abençoado seja o nome’. E você não pode reconciliar isso de qualquer forma, exceto na posição de total rendição, de total afirmação”.

Para concluir a obra, ele descreve o fim da relação dizendo que fez o seu melhor, mas que isso não foi o suficiente. Retomando o início da canção, ele diz que vai ficar perante o Senhor da Música, aquele mesmo que ele evoca e que ela, uma possível esposa, não dá atenção.

“Este mundo está cheio de conflitos e cheio de coisas que não podem ser reconciliadas. Mas há um momento quando podemos transcender do sistema dualístico e conciliar e abraçar toda a bagunça. É isso o que pretendo dizer com [a palavra] “Hallelujah””.

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Essa pode ser a fórmula de uma canção duradoura: aspectos universais que contemplam a relação dualística de um casal. Isso não foi dito anteriormente, mas, além do sentido bíblico, a música trata também da relação de um casal, mesmo nos dois primeiros versos.


Em outras versões, há versos diferentes, compostos também por Leonard Cohen. Em um deles, a figura do casal é abordado com mais ênfase. O que há de mais interessante no verso é o Marble Arch (Arco de Mármore) – e que passa despercebido pelos críticos dessa música –, um monumento construído em 1827 para ser o portal do Palácio de Buckingham. Só podiam atravessar o Arco os membros da Família Real inglesa, ou as Tropas do Rei. O arco era utilizado também para casamentos. A bandeira vista pelo narrador representa a marcha da vitória. Mas, como ele diz, o amor não é essa marcha. O amor, portanto, não é necessariamente consumado com um casamento. Em outras palavras, casar-se não significa amar, quando o casamento, pelo que parece, é apenas uma convenção e uma marcha da vitória. Esse é conjunto de uma música perfeita que, ao que nos indica, ficará por algum tempo, senão nas listas, mas na cabeça de todos os que a conheceram e que pararam cinco minutos para contemplá-la. Um bom refrão. Versos ricos em referências. Uma melodia que tenta recuperar o acorde secreto de Davi. Não é uma fórmula. Mas foi o melhor caminho que Leonard Cohen pode traçar para chegar à música perfeita. Alguns artistas ainda buscam a fórmula mágica para compor músicas como essa, assim como se buscou por muito tempo o elixir da juventude. A fórmula é simples: trabalho e talento. (Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br)

Diego Zerwes trabalha no Audiovisual da Fase I, no Colégio Medianeira. É publicitário (UP), especialista em Literatura Brasileira (UTFPR) e acadêmico de Letras (UFPR). www.zerwes.com.br.

ÁLBUM VARIOUS POSITIONS

AUTOR: LEONARD COHEN Eis o álbum da primeira gravação de “Hallelujah”. Quer ouvir a música? Experimente colocar o título no www.youtube.com. Você verá quantas versões vão aparecer

Agora, eu soube que havia um acorde secreto Que Davi tocava, e agradava ao Senhor Mas você realmente não se importa com a música, não é? Ela é assim: a quarta, a quinta, A menor cai, a maior sobe O rei frustrado compondo Aleluia Aleluia, Aleluia, Aleluia, Aleluia Sua fé era forte Mas você precisava de provas Você a viu tomando banho no telhado Sua beleza e o luar arruinaram você Ela te amarrou à cadeira da cozinha Ela destruiu seu trono, cortou seu cabelo E do seus lábios ela tirou um Aleluia Aleluia, Aleluia, Aleluia, Aleluia Você disse que eu tomei o nome em vão Eu nem mesmo sei o nome Mas se eu soubesse, bem então, qual é o nome para você? Há um raio de luz Em cada palavra E não importa qual você ouviu A sagrada ou a destruída Aleluia Aleluia, Aleluia, Aleluia, Aleluia Eu fiz o melhor, não era muito Eu não podia sentir, então tentei tocar Eu falei a verdade, não vim para te enganar E mesmo que tudo Tenha acontecido errado Eu vou ficar ao lado do Senhor da Música Com nada na minha língua, a não ser Aleluia Versos de outras versões Talvez eu já estive aqui antes Eu vi este quarto, eu andei neste chão Eu vivia sozinho antes de te conhecer Eu vi sua bandeira no Marble Arch E amor não é uma marcha da vitória É um frio e sofrido Aleluia Mas houve um tempo em que você me disse O que realmente acontecia lá embaixo Mas agora você nunca me mostra, não é? Mas você se lembra quando eu entrei em você E também pomba sagrada E todo o suspiro que dávamos era um Aleluia Talvez haja um Deus lá em cima E tudo o que eu aprendi sobre o amor Era como atirar em alguém que te desarmou Não é um choro que você pode ouvir à noite Não é alguém que viu a luz É um frio e sofrido Aleluia

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Diversidade

e cultural

MUNDIALIZAÇÃO

Por Nilton Cezar Tridapalli

Qual a melhor metáfora para entendermos a relação entre a cultura global e a cultura local: cabo de guerra, ciranda, mãe-pega? De tudo um pouco?

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D

Desde que os estudos culturais ganharam força na metade final do século XX, a expressão “diversidade cultural” se fez ecoar nas diversas frentes das ciências humanas. Estudos de, entre outros, Stuart Hall, Edward Said e Homi Bhabha colocaram a cultura no centro dos debates estudando justamente as culturas ditas periféricas. A cultura central é posta em perspectiva, e passa a ser estudada não mais como núcleo irradiador dos mais diversos cânones, mas é vista sempre em relação a outras culturas. Obras importantes como Identidade cultural na pós-modernidade (Stuart Hall), Cultura e imperialismo (Edward Said) e O local da cultura (Homi Bhabha) ajudam a criar um olhar matizado a respeito da ideia de que toda periferia, vista de determinado ponto de vista, pode ser um centro. Trabalhar com a noção de que a cultura é um termo em si carregado de plurais ainda diz pouco. É importante ir além dessa simples constatação, escavando as entranhas do termo “diversidade cultural” e trazendo à tona complexidades que não se resolvem apenas na superfície da expressão, que engendra contradições e dilemas. De início, o termo não garante por si só a coexistência intercultural livre de imposições e de hegemonias. Na correlação de forças entre culturas, quase sempre o sistema econômico e, por consequência, de mercado suplanta com sua voz estertorosa culturas que dispõem de riquezas enraizadas nas tradições populares, mas que, no entanto, não servem de matéria prima para a transformação em produto vendável e rentável. Dessa forma, é preciso colocar a cultura no seio de uma sociedade em rede, complexa, globalizada e suscitar o dilema: a globalização da cultura facilita intercâmbios e amplia o conhecimento ou acaba por arquitetar uma inequação de vetores cuja resultante acaba sempre sendo a supremacia de culturas economicamente dominantes? Talvez as duas coisas. Há, sem dúvida, em meio aos discursos ufanistas da globalização, riscos de se criar uma cultura pasteurizada, cujas diversas cores locais cada vez mais adquirem o monocromatismo de um centro irradiador/ven-

dedor de cultura. Se nivelamento for entendido como igualdade de expressão, ok. Se entendido como homogeneização, aí o empobrecimento das culturas regionais é inevitável. Armand Mattelart, no seu Diversidade cultural e mundialização, é quem traz esses dados sintomáticos: um quinto do globo detém 80% do poder de compra e de investimentos... Nesses tempos em que democracia é confundida ou substituída pelo Global democratic marketplace, é fácil constatar: se a cultura está nas mãos do mercado mundial, e ao mercado a cultura só interessa como forma de compreender consumidores, então o global não passaria de um mundo feito para um quinto da população. A História mostra à humanidade os inúmeros exemplos de aculturação sofrida por diversos povos. É a era dos impérios e de suas colônias o modelo que serve para, hoje, diversos teóricos estarem falando de neocolonialismo, cujo processo de aculturação se dá de forma sem dúvida mais sofisticada, já que os meios informacionais não são apenas informacionais (tampouco comunicacionais, visto que é um processo unilateral), mas sempre trazem dentro de si valores próprios de um emissor-sujeito. Como grande signo dessa irradiação em sentido único, o american way of life dispôs e ainda dispõe – por mais que alguns torçam o nariz e digam que esse assunto já era – de inúmeras formas para se imiscuir entre as outras culturas: antes de tudo, o poder econômico; e, na sua esteira, vieram outras armas, desde as literais, que arrombaram o mercado de países de tradição diversa e impuseram seu estilo time is money até as lúdicas, como é o caso do cinema, por exemplo – e talvez maior exemplo. Assim, “uma acepção estreita da noção de cultura se naturaliza, imbricada nas mediações técnicas e mercadológicas” (Armand Mattelart). Ou seja, essa noção de cultura aparenta ser natural quando, na verdade, é uma construção ideológica. Se, conforme Theodor Levitt, “stricto sensu, a globalização nomeia o projeto de construção de um espaço homogêneo de valorização, de unificação das normas de competitividade e de rentabilidade em escala planetária (...), cada vez

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mais, em todos os lugares, os desejos e os comportamentos dos indivíduos tendem a evoluir do mesmo modo, trate-se de Coca-Cola, de microprocessadores, de jeans, de filmes, de pizzas, de produtos de beleza ou de fresadoras”, fica mais uma vez evidente a ligação direta em que o poder econômico determina comportamentos e hábitos de consumo, que são, enfim, valores culturais. Daí a discussão acerca do cinemão hollywoodiano como fator de aculturação e propaganda do american way of life. Organizado em poderosas associations, o cinema dos Estados Unidos domina toda a cadeia de produção, passando por cima de diversas leis locais. A Motion Picture Association está espalhada pelo mundo, infiltrada nas brechas (às vezes abertas a fórceps)

hegemônica jamais serão exportadas “in natura”, até por causa da perda do transplante, que arranca as raízes contextuais. Ou serão glamourizadas; ou seus contornos exóticos serão potencializados; ou serão domesticadas e transformadas em uma forma digerível e aproximada da cultura dominante; ou serão solenemente ignoradas. Tudo isso lembra, guardadas as proporções, as antigas “civilizações” gregas. Elas, civilizadas; as demais, diferentes: bárbaras. “A transformação do ato cultural em valor de mercado anula seu poder crítico e dissolve nele os traços de uma experiência autêntica”. Mattelart também relembra Adorno e Horkheimer, que aproveitam o conceito de alienação proposto por Marx e Engels e constroem seu conceito de indústria da cultura, tendo a divisão do trabalho, a serialização e a padronização como suas principais características... a “experiência autêntica” passa a ser apenas ponto de partida do mercado, que a incorpora, estandardiza-a e a devolve em forma de produto. Ou seja, o ciclo da transformação da cultura em produto só se completa com a morte da “experiência autêntica”.

das legislações de muitos países, barganhando direitos de distribuição quase hegemônica e dando como contrapartida algumas esmolas percentuais para investimento em produções locais. Se cinema é a “máquina de sonhos”, a MPA busca assegurar que os sonhos sejam em inglês, e inglês americano... Há, portanto, “desequilíbrios das trocas culturais em nível mundial”, na expressão de Mattelart. Desse modo, fica difícil discordar do autor francês quando este diz que o imperialismo cultural é violência simbólica. Culturas diferentes da

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É bom lembrar que a aculturação se dá por camadas invasivas sorrateiras, não mais por meio de força bruta e sim utilizando-se de estratégias confortáveis, muitas vezes lúdicas, do entretenimento. Seria infantilidade, no entanto, acreditar que uma série de TV americana, por exemplo, mudaria toda a forma de ser e pensar da comunidade de uma cidade média no interior do Brasil. É claro que o local é capaz de absorver a cultura alienígena e de propor antíteses aos valores vindos de fora. Contudo, a contaminação é lenta, pois na síntese feita entre a cultura local e a estrangeira haverá sempre um resquício a mais dessa última. E, à medida que o bombardeio prossegue, também a cultura local vai cedendo espaço, perdendo terreno e vendo se impor uma cultura que vai ganhando proeminência a cada nova síntese. Até que ponto a cultura local consegue amortecer os efeitos do global? Qual seu


grau de tolerância? Eis uma boa questão. Uma comunidade que não preserva suas fontes de memória (como sua arte, por exemplo) faz de sua amnésia um campo arado e adubado, pronto para receber o que os valores externos impõem. Portanto, uma sociedade fortemente apegada a uma tradição cultural própria é mais capaz de conviver com a cultura global. Assim, o termo glocalização, cunhado a partir da linguagem da Economia e da Administração, conseguiria de forma menos desigual equilibrar as forças e ganhar espaço ao unir o global e o local. “O sertão é o mundo”, diz Riobaldo, em Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa... A cultura local sobrevive e, em contato com uma suposta cultura global, tem o papel de dissolver as estruturas sólidas da ideologia dominante. A presença do local no global produz uma resistência antidogmática, pois subverte cânones de cultura que aparentam ser absolutos e únicos quando nada mais são do que construtos históricos estabelecidos pelo jogo desigual do poder. Daí fazer sentido emprestar o termo glocalização, que, em que pese estar associado à linguagem empresarial, pode ser revisitado e ressignificado em prol da manutenção das especificidades locais das múltiplas culturas. A tentativa de um cinema engajado na América Latina mostrou essa tentativa de resistência; as cotas de exibição para filmes nacionais também – não obstante o absurdo de precisarmos, dentro do próprio país, garantir um cantinho para o nosso cinema... Massimo Canevacci, professor da Universidade de Roma, traz à tona a possibilidade de uma hibridização “que nos fala de dimensões globais e locais ao mesmo tempo”. É o que ele chama de “Comunicação Glocal”. Como exemplo, cita o grupo brasileiro Sepultura, que, em seu álbum Roots, misturou códigos mais globais de linguagem musical – o rock – com aspectos locais – cantos, acordes e instrumentos musicais indígenas. Eis um bom exemplo de como a glocalização pode ser inventiva. Por outro lado, pode servir como mera forma de adaptação cultural, cujo interesse único nada mais é do que vender um produto de marca global para um mercado local... (adaptar comerciais da Coca-Cola em paí-

ses diferentes, por exemplo). Pra se ter uma ideia, países da própria Comunidade Europeia, com toda a força e tradição de seu cinema, têm dificuldades para negociar a distribuição de seus filmes para os mercados nacionais europeus, tamanha a infiltração das majors americanas nesses países. Não há, ao ler isso, como não passar a pensar na situação dos países subdesenvolvidos e/ou emergentes.

O Brasil, por exemplo. Afastando a falsa ideia de uma identidade nacional que nos une, também nos deparamos internamente com pluralidades regidas por correlações de força desiguais. Se falar de um país “periférico” já remete a uma série de dificuldades, o que dizer de cidades “periféricas” dentro de países “periféricos”? Ao trazermos estas discussões para os limites caseiros, fica evidente que, fora do “eixo-centro” Rio-São Paulo, os mesmos problemas se interpõem em meio às dificuldades extremas de dar vazão às produções regionais e de relativizar “modelões” de Brasil. Cidades brasileiras fora do grande eixo enfrentam, assim, uma dupla resistência: dialogar com os centros nacional e, depois, internacional. Recebemos muito por causa de duplas pontes que nos trazem o global; produzimos e distribuímos pouco por conta de duplos muros que represam o local. Homi Bhabha, em seu belo O local da cultura, nos lembra: “os próprios conceitos de culturas nacionais homogêneas, a transmissão consensual ou contígua de tradições históricas, ou comunidades étnicas ‘orgânicas’ – enquanto base do corporativismo cultural –, estão em profundo processo de redefinição.” Revisitar conceitos de identidade nacional e diversidade cultural dentro do local demandaria ainda muitas – talvez inesgotáveis – páginas. Muitos já o têm feito por meio de suas discussões do multiculturalismo. É certo que expressões como cultura local ainda escondem muitas divisões e, no limite, poderiam levar ao indivíduo como parte única de seu grupo. Ao buscar minúcias da diversidade cultural, dividiríamos tanto os grupos que acabaríamos por chegar ao indivíduo. Em contrapartida, no

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processo inverso, veríamos no mesmo indivíduo a marca de muitos grupos culturais. Nesse rocambole cultural, é importante manter a discussão acesa, equilibrando-se entre acertos, erros e pontos de vista diversos. (Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br)

Nilton Cezar Tridapalli é coordenador de Midiaeducação do Colégio Medianeira e um dos editores da revista Mediação. Formado em Letras (UFPR), é especialista em Leitura de Múltiplas Linguagens (PUCPR). É tradutor e mestre em Estudos Literários (UFPR).

O LLOCAL OCAL D A CUL TURA DA CULTURA AUTOR: HOMI BHABHA Editora da UFMG Apontado pela revista Newsweek como um dos prováveis cem nomes de destaque no século 21, o crítico indo-britânico Homi K. Bhabha vem se firmando cada vez mais como intelectual brilhante, responsável por análises originais e polêmicas de temas centrais da atualidade, como hibridismo, pós-colonialismo, identidade e nação. Os ensaios reunidos em ‘O local da cultura’ oferecem contribuições inestimáveis para diversas áreas, sobretudo a crítica literária e os Estudos Culturais.

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DIVERSID ADE CUL TURAL E MUNDIALIZAÇÃO DIVERSIDADE CULTURAL AUTOR: ARMAND MATTELART Editora Parábola Em seu livro, Armand Mattelart nos guia em meio à trama dos empreendimentos culturais, lembrando-nos dos desafios urgentes de uma diversidade posta em risco por uma produção cultural que se deixa reduzir a seu valor de mercado. A mundialização das indústrias culturais projetou os ‘produtos do espírito’ para o centro das negociações sobre a liberalização total das trocas comerciais. O tema da diversidade cultural, por muito tempo amordaçado, passou a constar da ordem do dia das grandes instâncias internacionais. A preservação da diversidade deve ser posta a cargo das políticas públicas, ou pode ser atendida pela multiplicação da oferta mercantil de bens e serviços? A própria idéia de diversidade cultural acoberta realidades e posições contraditórias. Eixo crítico da nova ordem mundial, ela está no princípio de uma cada vez mais necessária democracia mundial. Mas também pode ser transformada em caução do novo modo de gestão do mercado global. Qual é a ligação entre exceção e diversidade cultural? Por que a União Européia, por exemplo, foi levada a trocar a primeira pela segunda? Trata-se apenas de garantir a cada grupo cultural a possibilidade de produzir suas próprias imagens ou de ir além disso e legitimar uma nova filosofia geral, que subtraia os bens comuns da humanidade ao jugo da lei da livre troca?


EMPADAS DE QUEIJO Por Marcelo Weber Glória de quem já experimentou, desespero de quem só experimentou. Nostalgia na boca de quem lembra. Come o melancólico e sai do seu mundo dançando, come o fleumático e agita-se buscando aventuras, torna o colérico afável, anima o taciturno. Dá fome ao anoréxico. Faz o ateu acreditar, e o crente duvidar. O pessimista se sente ótimo, o otimista melhor do que nunca. Quem sofre de amor come a empada e redescobre o valor próprio e se arrepende de perder tanto tempo sofrendo porque ela devolve a confiança em si mesmo, e a autoestima se ergue dentro do miserável. A empada de queijo é obra demiúrgica, operação mística da arte rabínica de dar vida ao inanimado. É o Golem da cozinha. É o sopro nas narinas de Adão. A cabala atribui valores numéricos às letras do alfabeto, a empada combina o melhor da vaca (sem derrame de sangue), que é o queijo e a manteiga com o que a galinha dá melhor de si além da canja, que é o ovo. Mistério maior da cozinha, metáfora das metáforas, símbolo do conhecimento, o ovo tem lugar cativo nos dicionários de símbolo do mundo todo e na mitologia e na mesa de todo os povos.

Agora que você já leu tanto alimento pra cabeça, que tal ir à cozinha? Segue nossa coluna gastronômica.

Elvis Presley, Sarah Bernhardt, John Kennedy, Mickey, Einstein ou Maradona, ou Mao Tse Tung, não há quem seja mais fomoso que a galinha. Poderia estender-me num elogio sem fim da empada mas passemos à receita, às Regras deste rito de criação.

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Empadinhas de queijo MASSA

RECHEIO

200g de manteiga

5 ovos

2 gemas

2 copos de leite

200g farinha

200g de queijo parmesão

1 xícara de água Sal

MODO DE PREPARAR: Escolha primeiro uma trilha sonora. Isso faz muito bem, principalmente quando se vão bater claras em neve. Misture as gemas com a manteiga em temperatura ambiente. Acrescente à farinha água e sal. Misture e deixe descansar.

Riquezas do nosso reino, Ex-libris de nossa cozinha. Talento de nossas senhoras Mimo às nossas crianças. Medalha no peito de nossos marechais. Mas, espere, não é só isto, não finda aqui a obra com que a benemérita cozinha demonstra amor e admiração por seus semelhantes. Se a empada sozinha já se faz digna de encher o ventre dos deuses, acompanhada de posta branca ao molho de vinho branco ela se des-

Encha ¾ das forminhas com este recheio batendo sempre, pois o queijo tende a se depositar, o que faria com que as primeiras empadinhas saíssem com mais creme que queijos e as últimas o inverso, e os comensais não chegariam nunca em acordo quanto à excelência deste pitéu.

te deste acepipe – existem pessoas mais suscetíveis que outras – é preciso amarrar as mais sugestionáveis a um poste ou ao pé da mesa e tampar-lhes as narinas com cera de abelha assim que as empadas começarem a ressentir, pois o odor que delas exala é comparável ao canto das sereias que seduziu os companheiros de Ulisses perto de Cilas e Caribdes. Do contrário, os comensais poderiam, idiotizados pelos vapores, se lançar descerebradamente contra o forno e se queimar, estragando o repasto, o divino ágape.

Leve ao forno até dourar. Dependendo do temperamento das pessoas eleitas ao degus-

Desamarre-os somente depois de desenformar e esfriar as douradas empadas,

E forre as forminhas tomando o cuidado de deixar um pouco mais grossa a massa no bordo. Bata 5 ovos com 2 copos de leite e 200g de queijo parmesão ralado preferencialmente na hora. Pite pouco de sal.

dobra num caleidoscópio compulsivo de sabores contrastantes e irrecusáveis. Marília sem Dirceu, Tristão sem Isolda, Belarmino sem Gabriela, Abelardo sem Heloísa, Dante sem Beatriz, Romeu sem Julieta, Pedro sem Inês, Don Quixote sem Dulcinéia. Posta branca sem empada. As duas combinadas são como num motor de dois tempos, em que a explosão na câmara de um pistão força o virabrequim a abaixar o outro pistão que estava no alto; assim, uma empada engolida puxa um pedaço de posta e um pedaço de posta empurra outra empada, numa espécie de moto-perpétuo da gula.

Marcelo Weber é artista no seu sentido mais amplo, renascentista. Ex-aluno do Medianeira e agora pai de aluna, é autor do Mural do Conhecimento, obra em azulejo em exposição na entrada principal do Colégio.

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