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ISSN 1808-2564
revista de educação editada e produzida pelo colégio medianeira
Diretor Pe. Rui Körbes, S.J. Diretor Acadêmico
Gilberto Vizini Vieira
Brasileiros e brasileiras - Votar ou não votar? Um direito ou um dever?
Coord. Comunitário e de Esporte
Levis Litz ........................................................................................................................................... 6
Prof. Adalberto Fávero Coordenador Administrativo
Prof. Francisco Alexandre Faigle Coordenação Editorial Nilton Cezar Tridapalli
O pré-juízo - reflexos de um julgamento antecipado
Luciana Nogueira Nascimento (MTB 2927/82v)
Michelli Miranda Andretta e Rodrigo Soares Santos .................................................................
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Revisão Nilton Cezar Tridapalli Projeto Gráfico e Diagramação Sonia Oleskovicz
Desaprender, aprender, aprender a desaprender Gladis Tridapalli .............................................................................................................................
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Ilustrações Marcelo Cambraia Sanches Colaboraram nesta edição Adalberto Fávero, Cláudio Adriano Piechnik, Gladis Tridapalli, Gustavo Dumas, Levis Litz, Michelli Miranda Anfretta, Nilton Cezar Tridapalli, Paulo Zerbato, Rodrigo Soares Santos, Valéria Souza Rocha.
Tiragem
O grande desafio Valéria Souza Rocha ......................................................................................................................
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Do transitório, do permanente e das âncoras Adalberto Fávero ..........................................................................................................................
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3000 exemplares Papel Reciclato Suzano 90g/m2 (miolo) Reciclato Suzano 240 g/m2 (capa)
Humanismo e liberdade na contemporaneidade Mário Soares ..................................................................................................................................
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Número de Páginas 52
Uma noite para muitas mais EQUIPE PEDAGÓGICA
Gustavo Dumas .............................................................................................................................
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Supervisoras Pedagógicas Cláudia Furtado de Miranda e Juliana Heleno Educação Infantil e Ensino Fundamental de 1ª à 4ª séries Coordenadora
O futuro do livro Nilton Cezar Tridapalli ...................................................................................................................
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Profª Silvana do Rocio Andretta Ribeiro Ensino Fundamental de 5ª e 6ª séries Coordenadora
Antártica: reserva natural consagrada a paz e a ciência
Profª Eliane Dzierwa Zaionc
Cláudio Adriano Piechnik .............................................................................................................. Ensino Fundamental de 7ª e 8ª séries
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Coordenadora Profª Roberta Uceda Ensino Médio Coordenador Prof. Marcelo Pastre
GALERIA:
Antártica: natureza bela Claudio Adriano Piechnik ..............................................................................................................
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Coordenador de Pastoral Pe. Guido Valli, S.J. Coordenador de Midiaeducação Nilton Cezar Tridapalli Assessoria de Comunicação e Marketing Luciana Nogueira Nascimento
Os artigos publicados são de inteira responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a opinião dos editores e do Colégio Nossa Senhora Medianeira. A reprodução parcial ou total dos textos é permitida desde que devidamente citada a fonte e autoria.
Linha Verde • Av. José Richa, 10546 Prado Velho • Curitiba • Paraná fone 41 3218-8000/ fax 41 3218-8040 www.colegiomedianeira.g12.br mediacao@colegiomedianeira.g12.br
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Contexto: Conhecer para transformar Entender a trama de relações sociais, políticas e econômicas da atualidade, analisar e refletir sobre a sociedade contemporânea e, ao mesmo tempo, conseguir estabelecer novos olhares e tecer sonhos, novas utopias são desafios impossíveis de encarar sem uma análise profunda do contexto atual e da nossa história. Considerar o passado, principalmente o conhecimento e as experiência do tempo, é requisito indispensável para avançarmos com inovação. "Na verdade, a relação entre a educação escolar, a ciência e o contexto (realidade) é estrutural no projeto da formação das pessoas e deveria ser necessidade urgente e intransferível no trato dos conteúdos das escolas para que se recuperem os sentidos e os compromissos educativos, com o olhar para o presente e inserção no mundo, de maneira a se conseguir dar uma resposta capaz de ancorar essa geração num mundo em frenética transformação", defende o professor Adalberto (Beto) Fávero no artigo de capa desta edição. O autor faz uma rica reflexão sobre o papel do Estado e as imposições do neoliberalismo a partir da individualização da pessoa e do Estado. No mesmo caminho de uma análise de contexto, em outro artigo Sartre invade nossas mentes para lembrar-nos que somos livres para fazer
nossas escolhas e, portanto, responsáveis únicos e diretos por nosso destino. Seguindo esse caminho, de escolha, reflexão e aprendizagem, passaremos nesta edição por uma literal "puxada de tapete". É o que nos faz desinstalar-nos para reaprendermos com as lições da vida. Desaprender, um tabu que nos acompanha durante o crescimento, pode ser uma nova forma de buscar equilíbrio e, porque não, de rearranjar a vida. Para encerrar nosso passeio pelo contexto, fazemos uma viagem ao extremo sul do planeta. Um ambiente belo, ricamente preservado, mas pouco amigável do ponto de vista do clima. O ex-aluno, professor e doutorando da UFPR, Claudio Piechnik, realiza pesquisas na Antártica e nos conta uma pouco mais sobre o lugar no qual a exploração econômica é proibida e sobre a importância das pesquisas para a minimização dos riscos para a saúde ambiental e humana. O autor ainda presenteia o leitor com uma galeria de imagens feitas por ele durante as pesquisas no local. Espero que goste! Se gostar, elogie, escreva para nós! Caso contrário, critique, escreva para nós de qualquer forma! Envie sugestões e comentários para mediacao@colegiomedianeira.g12.br Boa leitura!
Luciana Nogueira Nascimento
mediacao@colegiomedianeira.g12.br 4
Saudações ao editores e colaboradores da Revista Mediação tecno a va n ç os “ re b o s o do Li o artig atamento enção e tr v z re p fe a n i bem li lógicos ” e fique a m a a m tr e me c â n c er d eu estou ís o P . o e m u q es c om o m ma e tudo cer de m a n â ler c o ro d u c o tand m, pro e g a rt o p de re os que gra aparece r os avanç a h n e a u p q m do para aco idos, e tu s são ráp u e entos d im a d e s ça os proc re b o s to a conesta escri a é o que ç n e o d a ctar após dete igo. m o teceu c ianeira, a do m ed n lu a e d o dos Sou m ã e o trabalh r a h n a p ra com em propo gosto de s. Continu o n lu n a e e nhecim mestres ores o co it le s o a cionando quisa. to da pes o pelo artig Parabéns Anne
PARA SEMEAR IDEIAS Capa de Paulo Zerbato. A arte do paulista Paulo Zerbato foi tema de aula de Arte em Maio, pelos alunos da 8a série. Seus trabalhos, inspirados no Surrealismo, tratam de temas "voltados a psicologia como a conscientização, consciência planetária e autoconhecimento, que refletem a complexidade da psique humana, os comportamentos nas relações e uma profunda compreensão do que realmente somos", descreve o autor no seu blog. Para conhecer melhor o trabalho de Paulo Zerbato visite o blog: http://paulosergiozerbato.blogspot.com
As duas últimas edições de 2010 fecharam este ano com chave de ouro! Por isso não posso me furtar de tecer efusivos comentários. Os artigos que versaram sobre o consumismo me trouxeram grande alento, primeiro por explicitar, com todas as letras necessárias, a visão bastante madura e corajosa do colégio em relação a este assunto de grande impacto nos rumos da sociedade. Segundo por revelar que eu e minha família não estamos sozinhos na contramão do consumo desenfreado, posto que demoramos vários anos para trocar de carro, computador, celular e outros; só adquirimos aquilo que de fato é útil ou necessário; não premiamos (e nem adestramos) nossos filhos com recompensas materiais em troca de boas notas nas provas; etc. Neste assunto, gostaria de aproveitar para indicar a todos que assistam “A História das Coisas”, um documentário resultante de uma pesquisa de 2 décadas sobre de onde vem e para onde vão todas as coisas fabricadas e consumidas por nós – dura 20 minutos, é muito didático e está disponível, legendado, na internet no endereço http:// www.storyofstuff.org/international/ (há também uma boa versão dublada no Youtube). Na última revista fiquei surpreso com a qualidade dos artigos publicados pelos alunos. Como frequente crítico de que a escola deve sempre buscar o máximo crescimento dos seus alunos, eu fiquei muito satisfeito com as empreitadas e reconheci, nos trabalhos apresentados, a maneira do Medianeira de buscar o Magis. Assim, gostaria de sugerir, para os próximos trabalhos, que os pesquisadores sejam convidados a efetuar uma apresentação oral dos artigos, em formato de congresso, visando uma vivência científica ainda maior. Parabenizando a todos os envolvidos nos trabalhos Alberto Heitor Molinari Sempre-aluno Pai do Caio, da 5ª série, e do Davi, do 3º ano.
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Por Levis Litz
Quem ĂŠ beneficiado realmente com a obrigatoriedade dos votos? Por que ela pode ser considerada antidemocrĂĄtica? Descubra como o voto livre pode ser uma alternativa ao modelo atual da nossa democracia. 6
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Ei, você aí que está lendo este texto, sabia que tudo que fazemos, que pagamos, que produzimos, que demandamos, que consumimos em sociedade gera uma ação? É claro que sabia e aposto que você também tem noção de que essa ação se converte em algo que certamente vai influenciar nosso sistema de vida, nosso cotidiano, nosso desenvolvimento como indivíduo, o conforto do nosso lar, a segurança de todos nós. Enfim, todas essas manifestações estão, felizmente ou não, intimamente relacionadas à política.
Quando nos referimos à política, apesar de muitos cidadãos brasileiros torcerem o nariz, seria bom entendermos a raiz dessa palavra. Saber que ela se originou nos tempos em que os gregos se organizavam em cidades-estado denominadas polis. Palavra que deu origem aos termos como “política em geral” (politiké) e “pertencente aos cidadãos” (politikós). E que nessa sua trajetória de nominações acabou no latim como politicus, refletindo como “ciência do governo dos Estados”, a partir de 1265, nos idiomas modernos europeus. Então... agora que sabemos um pouquinho mais sobre de onde vem o termo “política”, podemos compreender um pouco o que o conhecido filósofo grego Aristóteles, que viveu em Atenas de 384 a 322 a.C., aluno de Platão e professor de Alexandre, o Grande, quis dizer quando “o homem é por natureza um animal político”. Aristóteles acreditava e, por isso, apresentou em sua filosofia prática a política como um desdobramento natural da ética. Nessa linha de pensamento, enquanto a ética estaria preocupada com o bem-estar do indivíduo, a política se encarregaria de buscar formas de se governar com o objetivo de assegurar a felicidade da sociedade como um todo. A política, pensou-se então, deveria se voltar para as necessidades referentes à sociedade em geral. Doce ilusão ou amarga ingenuidade? Acredite ou chore, se quiser!
Aristóteles ensinando Alexandre, o Grande. Acredita-se que as reflexões aristotélicas sobre a política originam-se da época em que ele era preceptor de Alexandre. Esta imagem é de domínio público.
nifica força, poder, cuja personificação mitológica era Cratos. Demo, por sua vez, é povo. No que tange à política nos regimes democráticos, a exemplo do Brasil, que é visto como uma das referências da atualidade no mundo, a democracia é aceita e defendida como uma ciência política em que seus cidadãos são responsáveis pelos assuntos públicos através da manifestação do seu voto, voto este que elege seus representantes, isto é, um sistema em que os cidadãos podem participar da vida política do país a que pertencem. Sobre a aplicabilidade da democracia, se é boa ou ruim, é muito discutível, principalmente porque a ideia parte do pressuposto de que a maioria elege quem irá governar todos, não importando se, por “obra do acaso” a falta de qualidade do voto legitimou o dirigente. Na democracia, todos serão governados e terão suas vidas afetadas segundo os votos da maioria, mesmo se elegeram aqueles governantes que apenas pensam em seu próprio orifício que se encontra na região do abdômen, aquele bem conhecido e pequenino buraco chamado umbigo.
E no Brasil, o voto, como é mesmo? Democracia ou Demo+Kratos? Lá vamos nós relembrar um pouquinho de história novamente: Kratos, de origem grega, sig-
Aqui na região dos tupiniquins, as eleições daqueles que vão interferir em nosso sistema de vida, são pelo voto direto, secreto e obrigatório
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para a imensa maioria, ou seja, para homens e mulheres com mais de 18 anos. O voto é facultativo para os maiores de 70 anos, para os jovens com idades entre 16 e 18 anos e para os analfabetos. Essa obrigatoriedade veio após a Revolução de 1930.
país, nem que fosse apenas pela manifestação de seu voto (livre). Entretanto, obrigar alguém a fazêlo, não importando como se faça isso, de olhos fechados ou “comprados”, é imoral. É importante ter em mente que o político eleito não está prestando nenhum favor aos seus comandados quando faz algo de bom, é o mínimo que ele deve fazer, afinal, esse é o emprego dele, pelo qual recebe muito bem (e como) por seus préstimos. A atual democracia brasileira gosta de apregoar que o voto é um direito do povo deste país – e isso é verdade, mas pela sua imposição e obrigatoriedade, o voto acaba sendo um dever antidemocrático, pois a população não pode ter a opção de não votar sem ser penalizada. Triste e muito vergonhoso! O voto “de cabresto” deve ser expurgado das entranhas da obrigatoriedade. É evidente que isso não resolverá o problema principal, o caráter no âmbito da política nacional; no entanto, um passo nesse sentido terá sido firmemente dado.
Concordemos ou não, o fato do voto ser obrigatório no Brasil arranha e fere profundamente a essência da democracia, pois fornece sustentação às formas retrógradas e antigas de dominação política, além de nivelar por baixo a qualidade do voto. Se o voto da maioria numa democracia é ruim, com certeza o político será ruim e a vida da maioria do povo será cheia de lamúrias das mazelas dos dirigentes. Há pessoas que defendem a tese de que o voto livre e facultativo desestimula o comparecimento às urnas. Se elas pensam assim, é porque deve haver alguma razão de ser, não é mesmo? Pensemos juntos: será por acaso que existem aquelas pessoas desestimuladas e que, em sua convicção, já perderam a esperança na existência de algum político honesto e desconfiam de que todos os candidatos são “farinha do mesmo saco”? Ou seriam então aquelas que apenas querem exercer o direito da livre escolha que a plena democracia lhes concede, de simplesmente não querer votar, independente de seu motivo? É claro que é relevante e muito fundamental, para não escrever essencial, que todos, em sã consciência, deveriam participar da política do seu
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Mas, pensemos! Qual seria a razão, em pleno 2011, de continuarmos empacados no voto obrigatório? A resposta parece simples, esse seu voto deve valer ouro para quem se nutre da política – minoria que não é só formada por políticos, mas também por interesses de corporações nacionais e internacionais e outros grupos de pressão, muitos denominados e conhecidos por lobistas. Imaginemos que efeito de mudança e impacto o voto livre e facultativo ocasionaria em nosso sistema político. Seria interessante observar e acompanhar, do ponto de vista antropológico e filosófico, o frio na espinha que os velhos “barões e coronéis” da política sentiriam com essa nova estrutura política. Lembremos que a Constituição Federal foi elaborada por políticos (deputados e senadores), através da Assembléia Nacional Constituinte. Assim, eles é que decidiram incluir na Carta Maior (por definição) a obrigatoriedade do voto. Isso parece ser coisa de quem faz uma legislação em causa própria e não de um povo, o qual representa – não parece? Com o fim do voto obrigatório, o eleitor teria poder sobre seus representan-
tes, como deveria ter sido desde sempre, isto é, mais legitimado. A classe política teria que deixar para trás antigos métodos de discursos, pois o eleitor que fosse votar seria aquele que possui mais discernimento da importância do seu voto e não se deixaria enganar tão facilmente por velhas artimanhas e factoides. Na Constituição Federal está escrito em seu preâmbulo: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.” [Veja texto na íntegra em: www.planalto.gov.br]
Com o voto livre e facultativo a todos os brasileiros, o cenário político se transformaria em algo melhor, certamente seria outro, bem mais consistente e limpo. Seríamos estimulados a pensar melhor, dando, assim, um salto de qualidade como eleitor. E então, amigo leitor pensante: é melhor deixarmos passivamente como está, essa lengalenga de sempre, ou vamos optar pelo voto livre já? Afinal, pelo que você vota? (Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br)
Levis Litz é jornalista e repórter fotográfico com MBA em Marketing e Relações Públicas. Expôs a triste condição de pessoas que sofriam com a hanseníase no interior do Estado do Paraná no ano de 1996. Contato: www.FotoseRumos.com
A REPÚBLICA AUTOR: PLATÃO Editora Martin Claret “A República” de Platão, cujo título original é “Politeia”.É uma das obrasprimas de Platão. Nela o filósofo expõe suas idéias políticas, filosóficas, estéticas e jurídicas. Aqui se encontra a “Alegoria da Caverna”, uma das mais belas passagens de toda a obra de Platão. O filósofo imaginou um Estado ideal, sustentado no conceito de justiça.
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PRÉ-JUÍZO – reflexos de um
JULGAMENTO antecipado
Por Michelli Miranda Andretta e Rodrigo Soares Santos
O reflexo do contato com a Justiça na posição de suposto autor de um delito é desastroso na vida social e profissional do acusado. Amigos e familiares se afastam, surgem problemas no trabalho – ou dificuldade em conseguir um – e ocorrem represálias, que vão desde depredação da moradia até agressões físicas. 10
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Como o próprio nome indica, esse artigo tem por escopo discutir o julgamento que, por muitas vezes, é feito antes do julgamento oficial, seja pela população, opinião pública em geral ou pela mídia, ao divulgar fatos que nem sempre correspondem à realidade ou ao disposto no processo judicial. Na maioria dos crimes, com exceção dos envolvidos, ninguém mais toma conhecimento do que decorre nos procedimentos judiciais. Porém, há certos crimes que tomam dimensões muito maiores, seja pela natureza do delito, pela notoriedade dos envolvidos (vítima ou acusado) ou pela comoção social com o fato. No momento em que determinado crime chega ao conhecimento de pessoas que não estão diretamente (e, provavelmente, nem indiretamente) relacionadas ao ocorrido, muitas opiniões surgem. Mais do que o interesse em como o delito foi cometido, preocupa-se com quem o cometeu. Encontrar um responsável é a ideia primordial. A partir do momento em que a mídia passa a acompanhar o caso, as proporções se multiplicam. O assunto é citado várias vezes ao dia nos meios de comunicação e se torna o preferido nas rodas de amigos, nas reuniões familiares, nas mesas de bar... O interesse neste tipo de ocorrência é perfeitamente compreensível. A criminalidade atinge números alarmantes e, muitas vezes, choca aos que se julgam incapazes de realizar um ato desta natureza. O anseio de que haja punição também é comum, seja pela própria retribuição à conduta delituosa, seja para que o criminoso sirva de exemplo e desmotivação a atos semelhantes, seja pelo mais primário desejo de vingança. Apesar disso, é necessário cautela. Não se pode deixar que a investigação e o decorrer do processo sejam contaminados pela opinião popular. Claro que, em nosso estado Democrático de Direito, devem ser defendidas a liberdade de expressão e de imprensa, estando asseguradas constitucionalmente nos artigo 5º, IV e IX e 220,
§1º da Carta Magna. Em contraponto, atentandose ao artigo 5º, X, também da Constituição Federal, há os direitos do acusado, principalmente quanto às suas garantias individuais, a um processo isento e que respeite sua privacidade, ainda que o processo seja público. Faz-se mister destacar que o primeiro contato da mídia com um caso criminal – e, por conseguinte, as primeiras informações passadas à população – se dá em momentos de vertente essencialmente acusatória. A fase inicial é de investigação, o Inquérito Policial, e segue um modelo inquisitorial, ou seja, não há manifestação da defesa e, portanto, os dados ali contidos referemse tão somente à versão dos fatos levantada pela polícia. Finalizado o inquérito, o próximo ato, que dá início ao Processo Criminal propriamente dito, é a Denúncia elaborada pelo Promotor de Justiça (membro do Ministério Público) onde, novamente, o caráter é acusatório. Há, ainda, que se considerar a disparidade entre a velocidade com que as informações são vinculadas atualmente e a quantidade de atos processuais necessários à conclusão do caso (sem citar a lentidão da Justiça e a burocracia deste trajeto). As prisões processuais – ou cautelares (em flagrante, temporária e preventiva) – ou seja, aquelas que ocorrem no decurso do processo e antes da sentença, muitas vezes são entendidas pela população como penas antecipadas, o que cria a falsa impressão de que o acusado seja realmente culpado. Na verdade, é preciso entender que cada uma destas modalidades de prisão possui uma função específica dentro do processo e em nada se relaciona com antecipação de penalidade ou lastro de culpa (lato sensu). O que é fundamental lembrar é que a acusação é uma suposição de quem seja o autor do crime. Tanto durante o Inquérito Policial quanto no processo judicial, há muito o que investigar, descobrir e esclarecer. Até a condenação formal, a inocência deve ser a regra. Há inúmeros casos em que as acusações não correspondem à realidade. Por vezes, a própria condenação torna-se injusta pelo surgimento de
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novas provas ou mudanças em depoimentos. Nos Estados Unidos, existe um dado interessante (citado no livro Memória, de Alan Baddeley et al., ed. Artmed; e numa reportagem do programa norte-americano 60 minutes) que demonstra que, com o advento do exame de DNA, cerca de 200 pessoas foram inocentadas, sendo que muitas delas já cumpriam pena há vários anos. Um caso no Brasil ficou conhecido nacionalmente pela injustiça cometida. Trata-se do caso da Escola Base de São Paulo, no qual professores e funcionários tornaram-se suspeitos de abuso sexual contra alunos (caso fictício semelhante é retratado no filme Acusação). Em documentário, realizado por estudantes do curso de jornalismo da Universidade Mackenzie-SP e disponível no site Youtube, demonstra-se o quanto a vida dos acusados foi modificada e o quanto sofreram depreciação pública em virtude da acusação infundada. Não entrando em mais detalhes sobre o exemplo supracitado, o que deve ser destacado é que o reflexo do contato com a Justiça na posição de suposto autor de um delito é desastroso na vida social e profissional do acusado. Amigos e familiares se afastam, surgem problemas no trabalho – ou dificuldade em conseguir um – e ocorrem represálias, que vão desde depredação da moradia do acusado até agressões físicas. Se esta já é uma situação complicada para alguém que realmente cometeu um crime (o que acaba se tornando uma segunda penalização), é inimaginável quão difícil é para uma pessoa inocente. As consequências da estigmatização e segregação acompanham a pessoa pelo resto de sua vida. Até a família do acusado torna-se alvo de ofensas e retaliação. Posto que mesmo a penalidade
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aplicada pelo Estado não pode passar da pessoa do condenado, como prevê a Constituição Federal, é inaceitável que agressões sociais o façam. Infelizmente, porém, atitudes nesse sentido são, com frequência, observadas. Não se pode olvidar que somente o Estado tem o direito de punir e, ainda assim, após o devido processo legal – conforme o artigo 5º, LIV, da Constituição. Não cabe à sociedade tomar essa postura para si, fazendo justiça com as próprias mãos, na ânsia de punir conforme a Lei de Talião – “olho por olho, dente por dente”. Outro ponto a ser destacado é que só é crime o que a lei define como tal. São ações humanas selecionadas e que, para as quais, cabem determinadas penalidades. Apesar de haver um semnúmero de tipos penais, a atenção da mídia e da população está sempre mais voltada para os crimes mais dramáticos, mais “visíveis”. Crimes como os denominados colarinho branco (econômicos, financeiros, empresariais etc.) não geram a mesma revolta que os crimes “de rua” (homicídio, roubo etc.). Aos primeiros está garantida a discrição da imprensa, como elucida Michel Foucault, em sua obra clássica Vigiar e Punir. Também por isso, a sociedade não se choca com o resultado destas transgressões e, portanto, não estigmatiza esse tipo de criminoso. Um dos motivos que justificam essa reação (ou falta de) é o fato de as vítimas destes crimes não se enxergarem como tal. Isso porque os danos são difusos se comparados aos de crimes “comuns”. Em casos que envolvem, por exemplo, má utilização de recursos públicos, é quase impossível calcular precisamente quantas pessoas foram atingidas por essa conduta e, geralmente, isso ocorre indiretamente. A verdade é que, como explica James W. Coleman, em A Elite do Crime, há um percentual muito maior de vítimas destes crimes do que das demais modalidades delituosas, além de os danos sociais serem maiores. Enquanto os crimes de colarinho branco são quase desconsiderados pela sociedade, os demais delitos geram um clamor público bastante
comum. Exige-se a criação de mais leis e de penalidades mais severas. O que não é considerado neste anseio é que a legislação penal brasileira está entre as mais avançadas do mundo e, em verdade, necessária é a sua correta aplicação. A Justiça brasileira não necessita de mais leis ou penas mais rígidas; o que realmente desmotiva a conduta delituosa é a certeza da punição e não, necessariamente, a quantidade de penalização. Com base nisso, a impunidade torna-se o maior problema. Ao mesmo tempo em que a crença na impunidade acaba por estimular condutas criminosas, é importante ter em mente que alguma parcela de crimes sempre ficará impune, por mais que essa ideia não agrade. Eugenio R. Zaffaroni, em Em busca das penas perdidas, explica que “se todos os furtos, todos os abortos, todas as lesões etc. fossem criminalizados, praticamente não haveria nenhum indivíduo que não fosse criminalizado por diver-
sas vezes” – destacam-se, hoje, os downloads ilegais de músicas, filmes etc. Fica claro que este nível de criminalização não é desejado por ninguém. Além disso, não há como imaginar um Sistema Penal que conseguisse investigar, julgar e condenar esse volume de infrações. Diante do exposto, permito-me concluir que ainda pior que não punir um culpado é condenar, judicialmente ou não, um inocente. (Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br) Michelli Miranda Andretta é ex-aluna do Colégio Medianeira, bacharel em Direito pelo Unicuritiba e advogada (OAB-PR nº 56.566). Email: michelliandretta@yahoo.com.br Rodrigo Soares Santos é Psicólogo Clínico e Perito Forense (CRP 08/7213), graduado pela UFPR, mestre em Avaliação Psicológica pela USF-SP e professor de Psicologia Forense do curso de Direito e de Psicologia da Universidade Positivo. Email: psicologiajuridica@terra.com.br
INJUSTIÇADOS: (THE EXONERATED)
QUEM SÃO OS CRIMINOSOS?
DIRETOR: BOB BALABAN Distribuidora FOCUS
AUTOR: AUGUSTO THOMPSON Editora LUMEN JURIS
Um grande elenco se une para viver a emocionante história do filme Injustiçados, um drama perturbador sobre Justiça e Pena de Morte. Baseado em fatos inquietantemente reais, Injustiçados mostra a dor de seis prisioneiros condenados à morte, aguardando apenas o momento de suas execuções. Ao desespero dos condenados se une a uma forte sensação de revolta e impotência, principalmente porque nenhum deles realmente é culpado dos crimes pelos quais foram erroneamente julgados. O filme é baseado na peça de mesmo nome interpretada nos palcos por Susan Sarandon e seu marido Tim Robbins.
O reconhecimento da incapacidade recuperadora das penas e medidas de segurança evidenciou o sentido oculto - reacionário, desumanizante, interessado - do direito penal corretivo. Engalanado com as cores vistosas do progresso e da benemerência, por isso endossado ingenuamente por liberais e homens de boa vontade, atua, de fato, como eficiente fermenta da opressão/repressão, a fornecer- lhe meios tão duros e cruéis quanto os castigos empregados pelo direito penal retributivo. Pior - na medida em que oculta o verdadeiro objetivo atrás da fraseologia da ressocialização do delinqüente, cega as pessoas quanto à violência dos métodos empregados, dificultando, assim, o surgimento de movimentos de resistência contra eles.
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DESAPRENDER,
aprender, aprender a DESAPRENDER
Por Gladis Tridapalli
Por que pensar que o desaprender é sempre uma coisa terrível? Na verdade, ele faz parte de um processo dialético e de estranhamento. É aí que o aprender e o desaprender dialogam, gerando dois novos seres, eu e outro. Você vai ler um artigo-depoimento sobre trabalho socioeducativo, dentro da experiência da Faculdade de Artes do Paraná (FAP), como parte do programa Universidade Sem Fronteiras
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Imaginemos alguém, de maneira estável, em cima de um tapete. Ambos parados, tapete e corpo – pés lado a lado, tronco alinhado seguido da cabeça com olhos na altura do horizonte. Imaginemos agora uma literal e desavisada puxada de tapete – um sofrível desequilíbrio, tronco alterado bruscamente para frente ou para trás, olhos perdendo o foco, pés desalinhados na tentativa de achar novamente o chão, perigo de cair. De duas, uma: o corpo tomba no chão ou o corpo em movimento se desloca, se reorganiza, encontra novamente seus apoios, e, ainda alterado, respiração ofegante, permanece em pé, em alinhamento precário, mas atento ao presente. Eis a metáfora que instaura a discussão sobre o desaprender como exercício constante, vigilante e tão necessário para agentes e propositores de projetos de extensão. O desaprender se parece em muito com essa sensação de que o “tapete foi tirado dos nossos pés”, em que, por uma fração de segundos, não sabemos como agir e ficamos suspensos no ar, sujeitos a nos espatifarmos ou tratamos de arranjar um jeito de colocar os pés no chão e permanecer em pé depois do susto. E quantas vezes, nessa aventura prazerosa e dolorosa de conviver numa comunidade, os tombos são inevitáveis e ficamos sem ação diante das diferenças que ferem as respostas previamente organizadas? Quantas vezes nos sentimos frustrados porque a proposta não deu “certo”, não caminhou como imaginávamos? Quantas as vezes que nos preocupamos com o visível desinteresse e apatia por parte dos alunos? Quantas as vezes que usamos de velhas formas de autoridade para achar que as coisas estão sob o controle? Quantas? Quantas? Inúmeras vezes! Lidar com os revezamentos entre arte e educação em regiões que contemplam diferenças sociais, econômicas, naturais, culturais um poucobastante distantes das nossas, como é o caso desses projetos, coloca em xeque muito do que sabemos, somos, aprendemos e, essencialmente, altera os modos como os relacionamentos se dão, ainda mais quando a diversidade é visível, conflituosa
e não se pretende igualá-la. E esse, se encarado como desafio, é que pode ser o bacana de experimentar a extensão na graduação: um convite ao desconhecido, ao pouco habitual, ao estranhamento, ao encantamento também.
Matinhos, cidade de praia, das tantas coisas e gentes. Matinhos do comércio, das bicicletas, das crianças que não vão muito no mar, dos adolescentes na praça e, como em tantos outros lugares, da violência como o tema da arte. Matinhos do menino que chega atrasado no projeto porque teve que ajudar o pai no mercadinho. Matinhos do outro menino que imita o Michel Jackson, das meninas, das meninas como tantas outras no Brasil, vestidas com roupinhas ditadas pela mídia.
Bonito ou feio o que vemos? Certo ou errado em relação àquilo com que precisamos lidar? Não é essa a questão. Na tentativa de ir muito além das polaridades, a extensão é um convite a reconhecer que processos educacionais, quando vivos, incompletos, imprecisos, são tecidos de instabilidades, idas e voltas, acertos e “quase erros”. Enfim, processos feitos de nomes, histórias, afetos, de gente. Gente como bem formula Paulo Freire: Gosto de ser homem, de ser gente, porque sei que minha passagem pelo mundo não é predeterminada, preestabelecida. Que meu “destino” não é um dado, mas algo que precisa ser feito e de cuja responsabilidade não posso me eximir. Gosto de ser gente porque a história em que me faço com os outros e de cuja feitura tomo parte é um tempo de possibilidades e não determinismo. Daí que insista tanto na problematização do futuro e recuse sua inexorabilidade.
Não foram poucas as vezes que, munidos de um plano de aula bem formulado e de “ideias ótimas” anteriormente experimentadas pelo grupo, fomos surpreendidos e desestabilizados pela realidade tão particular, humana e problematizadora das comunidades envolvidas. Por mais que haja planejamento detalhado, estudo prévio da metodologia, formulação de planos de aula “bem feitinhos e cronometrados”, a puxada de tapete
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que aparece como o novo, como algo não previsto, como algo que frustra ou surpreende nossas expectativas de educadores sempre acontece, forçando a busca de outras estratégias de ação ou provocando o choque, a perplexidade diante da realidade.
Na Vila Torres, no Entrenósoutros, nunca vou esquecer o dia que a Mábile, mais conhecida por Mapi, dançou o seu trabalho artístico e ficamos sem saber direito o que fazer, mas deixamos rolar, mesmo arriscando, percebendo alguns perigos. O trabalho dela é chamado Mábile e o Móbile – síndrome da dúvida absoluta, e acontece a partir da interação com o público e de ações como beijar, tocar, manipular, etc... o público formado pelos adolescentes da comunidade entendeu a proposta de uma maneira coletiva e essas ações foram levadas ao extremo, porque não era apenas uma pessoa que interagia (como acontecia em outras apresentações desse trabalho); eles interagiam em grupo. A Mapi foi exposta a um intenso tocar, beijar, carregar, esmagar coletivo.
Bom ou ruim? Melhor ou pior? Mais uma vez, é preciso ir além das polaridades. Foi no mínimo diferente. Bem diferente de quando esse trabalho foi experimentado com a habitual classe artística e um outro olhar, a partir da Vila Torres, foi incorporado às ações que moviam a pesquisa da artista. E o que é a arte, senão a incessante busca pela promoção de outros olhares sobre as coisas? Outras sensações? Outras sensibilizações e reflexões? Quando estamos operando no universo das comunidades, parece que a sensação é de que precisamos desaprender muito do que em nós já é crença, valor, sabedoria, e, nessa perspectiva, a tentativa por desautomatizar o olhar, escutar mais do que falar, dar tempo e espaço para o que já existe e é grande e forte como informação produzida nesses contextos, parecem ser as estratégias para que uma construção de conhecimento em conjunto seja verdadeiramente efetivada.
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Eis onde o desaprender é testado: no difícil ato de abandonar o que em nós já é duro o bastante para impedir que outras coisas nos aconteçam, passem, transformem, alterem. O desaprender está ligado à ideia de abrir espaço, expandir o olhar sobre o que está acontecendo, suspender nossas opiniões e preconceitos e aprender a experimentar. Experiência no sentido que Jorge Larrosa discute muito bem: Se o experimento é preditível e previsível, a experiência tem sempre uma dimensão de incerteza que não pode ser reduzida. Além disso, posto que não se pode antecipar o resultado, a experiência não é o caminho até um objetivo previsto, até uma meta que se conhece de antemão, mas é uma abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar nem pré-ver nem pré-dizer.
Numa das escolas lá em Matinhos, agora não me recordo qual, o Gabriel, compartilhando uma proposta, se viu surpreendido por um adolescente que ligou uma música muito, mas muito alta no celular. Olha a puxada de tapete aí! A música do aluno era aquele tipo de música que muitas vezes agride o nosso ouvido adulto e de professor, justamente porque tínhamos escolhido algumas outras músicas para trabalhar aquele dia. Gabriel ficou em suspenso e depois em depoimento confessou que numa fração de segundos pensou em pedir para o aluno desligar a sua música. No entanto, a ação de Gabriel foi outra: usou a música do menino e deu continuidade à proposta a partir dela.
A realidade de Matinhos, bem como a da Vila Torres e do Bairro Novo, é multifacetada, forte, viva, conflitante, operante, e, se não for ouvida, sentida e transformada em condições para que um aprendizado mais compartilhado e democrático seja construído, o sentido primeiro desses projetos se perde. Para tanto é preciso afastar, aproximar, afastar, aproximar – d e s l o c a r. A aventura de conviver com arte nas comunidades se incorpora ao deslocamento, que é simbólico e também
real e apresenta-se como fio que tece esse desaprender e o novo aprender que emerge da experiência. É preciso deslocar, sair de um lugar e chegar a outro. É preciso entrar na Kombi do projeto Universidade sem Fronteiras e viajar duas horas até chegar a Matinhos. É preciso pegar dois ônibus e percorrer uma hora até chegar ao Bairro Novo. Uma hora dentro da própria Curitiba. Deslocamentos/viagens em que nos afastamos de nós para tocar o outro, deixamos paisagens geograficamente conhecidas para chegar a outras um pouco mais distantes. Mas, voltamos. Voltamos e nos aproximamos estranhamente do que em nós já é outro.
No final do ano passado, perto do Natal, recebi uma carta/email/depoimento da Ludmila, participante do Entrenósoutros, falando, entre tantas outras coisas bonitas, dos momentos que passamos dentro do ônibus indo para o Bairro Novo. Sorri sozinha, lembrando. Nossa saída do terminal do Cabral, 13h. Ônibus lotado. Felizes quando conseguíamos sentar. Sentadas, olhos voltados para fora e para dentro, um silêncio doído ou conversa “sem parar” para enganar o que vemos – o cenário do centro da cidade, das ruas bonitas, dos prédios coloridos ficando para trás e, com o passar do tempo, em trajeto de quilômetros percorridos, a paisagem mudando, transformando-se em ruas cinzentas, chão esburacado, casas precárias. Sem tristeza ou julgamento, sentia meu corpo como ambiente mudar também. Quando isso acontecia, já era a hora de descer no ponto depois do terminal do Bairro Novo, atravessar a movimentada rua e chegar junto dos meninos para mais um dia.
Dessa forma, é inevitável transformar, compartilhar, transformar – c r i a r – e a prática da extensão como esse espaço aberto ao momento presente, à incerteza e ao desconhecido, pode se tornar potência para promoção de outros modos de se relacionar e operar na promoção das experiências de aprendizagem. O exercício de desaprender se torna ato de aprender e se dá como transformação e ampliação das experiên-
cias e como possibilidade de reflexão e intervenção crítica. Uma transformação que inclui todos, comunidades e proponentes do projeto. Uma transformação que não é só de um lado e também não significa a conquista de conhecimento como porto seguro. Ao contrário, a transformação não poderia deixar de ser problematizadora, principalmente porque está implicada na relação e na produção conjunta. Os percursos/processos que são interdependentes da maneira como os sujeitos estabelecem relações com a realidade – e que, por isso, não são solitários, nem cômodos, nem lineares, mas abertos, em rede – se referem ao modo como os sujeitos se reconhecem e reconhecem as suas relações com o mundo. A educação que visa a elaborar conhecimento implica produzir continuamente, compartilhar, estar junto, com e pelo outro e em relação com o mundo, pois, como também diz Paulo Freire, “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”. A experiência se organiza e auto-organiza de modo aberto e é problematizadora, pois inevitavelmente lida com problemas que emergem das relações e fricções entre sujeito e mundo e com uma ideia de lidar com arte e educação que se distancia da transferência linear de informações e do conceito de educação como depósito bancário proposto, também, por Paulo Freire: Assim, é que enquanto a prática bancária, como enfatizamos, implica uma anestesia, inibindo o poder criador dos educandos, a educação problematizadora, de caráter autenticamente reflexivo, implica
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um constante ato de desvelamento da realidade. A primeira pretende manter a imersão; a segunda, pelo contrário, busca a emersão das consciências, de que resulte sua inserção crítica na realidade [...]. A educação problematizadora se faz assim, um esforço permanente através do qual os homens vão percebendo, criticamente, como estão sendo no mundo com que e em que se acham [...]. A segunda, na medida em que, servindo à libertação, se funda na criatividade e estimula a reflexão e a ação verdadeiras dos homens sobre a realidade, responde a sua vocação, como seres que não podem autenticar-se fora da busca e da transformação criadora
Lá na cantina da FAP, lembro da Rose Mara, no final do primeiro ano do projeto Corpo e Movimento: arte e cotidiano, me contando entre sorrisos e expressões pensativas, sobre as transformações na vida dela depois desse projeto, o quanto as ações lá em Matinhos mudaram o jeito como ela sente e vê a própria vida, o mundo, bem como a realidade do curso de graduação em dança. Na hora, internamente pensei, transformações que provavelmente não são só alegres e brandas, são dolorosas, confusas e que a tornaram uma pessoa sensivelmente menos ingênua e mais colecionadora de inquietações. Sinto que depois que começamos a trabalhar em projetos como esses, passamos por uma transformação profunda que altera de maneira bastante sensível e crítica outros aspectos da nossa vida profissional e pessoal. Colecionamos sonhos diferentes também.
O compartilhar é inerente à vontade que se tem de construir coletivamente um conhecimento em arte que se gere a partir e com o diálogo com as comunidades, num reconhecimento das particularidades regionais e também individuais. Diálogo e construção coletiva, sem hierarquização ou anulação das diferenças para que “o quê” se vive como conhecimento faça sentido para todos os participantes como um todo. Um todo cheio de partes, partes integrando um todo. Todos somos simultaneamente fazedores, proponentes e aprendentes comprometidos em entender o contexto! Eis um dos belos objetivos des-
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ses projetos. No entanto, árdua é a sua efetivação. Contudo, os esforços também estão voltados para isso: a experiência de uma criação compartilhada como modo de ensinar e aprender, ou seja, de viver arte. Uma criação compartilhada que – como no conceito de multidão de Antonio Negri – não ocorre pela ação uniforme e achatamento das diferenças na busca de uma identidade coletiva. Como permanentes “aprendentes” e propositores, os sujeitos envolvidos no processo educacional são sujeitos em suas singularidades. É o próprio Negri quem diz que “a multidão é composta de singularidades – e com singularidades queremos nos referir aqui a um sujeito social cuja diferença não pode ser reduzida à uniformidade, uma diferença que se mantém diferente.” A criação compartilhada se tece pelas diferenças. No entanto, não as toma ou se fixa nelas separadamente. A experiência compartilhada, comunicativa e criativa como um modo do corpo aprender vai além do “acolher” e/ou “respeitar” as diferenças, já que reconhece os diferenciados modos do corpo se organizar e produz outros modos de arte com e a partir das singularidades. É nesse diálogo tenso entre diferenças, que uma produção criativa coletiva é gerada, e se torna partilhada. Sem comando único, sem transferência de informação, sem cópia de modelos préestabelecidos ou práticas nascidas das desigualdades de saberes. O contexto educacional/artístico pode, assim, dilatar-se e se demonstrar em toda sua complexidade política, social e cultural. Dessa maneira, a partilha do que se tem em comum, mantendo as diferenças, é o que possibilita a intervenção da transformação social e política. “A ação política voltada para transformação e a libertação só pode ser conduzida hoje com base na multidão”, reitera Antonio Negri. É na produção conjunta e de cooperação configurada numa espécie de coletividade “singularizada”, diferenciada e que promove a intervenção e transformação social, que a lógica da criação compartilhada se expõe.
(Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br)
Gladis Tridapalli é formada em Dança (Faculdade de Artes do Paraná), onde atualmente é professora. Especialista em Dança Cênica (UDESC) e mestre em Dança (UFBA), é pesquisadora e bailarina. Foi professora de Dança do Colégio Medianeira.
ALTERIDADE E MULTICULTURALISMO AUTOR: ANTONIO SIDEKUM Editora UNIJUI O tema da Alteridade e do Multiculturalismo conquista enfoques novos face à transformação social que sofremos pelo processo da mundialização em curso. O debate gira em torno do conceito Identidades Culturais e do Diálogo de Culturas. Assim, poderíamos afirmar que busca-se um novo modo operacional para definir cultura, como sendo o lugar onde identidades serão preservadas e promovidas para o interesse público. E ao contrário, quando, inúmeras vezes interesses privados monopolizam identidades por seus próprios objetivos, onde a “cultura” é desintegrada. No diálogo de culturas dá-se o difícil pressuposto ético: o reconhecimento do diferente, o reconhecimento da alteridade. Isto é a exigência que cada cultura individual reconheça outras culturas como “iguais” e que mantenha um diálogo verdadeiro com caráter histórico longo, ou seja um “multi-diálogo” com outras culturas. A alteridade e multiculturalismo têm com pressupostos a ética e a filosofia intercultural.
N O TA : 1 O grupo do Corpo e movimento: arte e cotidiano é formado por três professores coordenadores, uma aluna egressa e cinco alunos graduandos. O grupo do Entrenósoutros é formado por um professor coordenador, uma equipe organizadora formada por uma aluna egressa e uma graduanda, e mais alunos/artistas graduandos.
ALTERIDADE, MEMÓRIA E NARRATIVA: CONSTRUÇÕES DRAMÁTICAS AUTORA: ANTONIA PEREIRA BEZERRA Editora Perspectiva “Essas peças são apenas narrativas, caixas de joias para acolher e dizer de novo o inconcebível, sob ângulos diferentes. Elas efetuam um longo percurso para melhor nomear o inominável. Oscilando entre ficção e realidade (A Morte nos Olhos), memória e realidade (A Memória Ferida), realidade e loucura (Na Outra Margem), essas narrativas múltiplas costuram o vazio da memória, interpretam de novo fragmentos de cena, concluindo percursos inacabados, preenchendo lacunas, fazendo ligações, completando o que não aconteceu. É assim que Na Outra Margem inventa uma ficção que permite encontros imaginários redentores. Esses encontros poderiam ter acontecido na realidade se as coisas tivessem sido diferentes, se não se tratasse de um destino cego e desprovido de sentido. Mas eles continuam sendo sombras. Entretanto, sua simples presença permite confissões, arrependimentos também, mas permite, sobretudo, obter a segurança de ter sido amado, único caminho de salvação que possibilita consentir em continuar a viver [?]. A memória é construção do passado, naturalmente, mas ela é, mais ainda, construção do presente, dizia Paul Ricoeur. Ela é o que permite melhor habitar o presente, estar no presente do passado. O presente do passado! A expressão se aplica com força às três peças aqui apresentadas. A sedução da narrativa de Antonia está bem nessa superposição do tempo, sensível no drama recontado, mas também na estrutura polifocal da peça. É o testemunho de uma consciência que chegou ao final de um longo trabalho de interiorização.” Josette Féral
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o GRANDE
DESAFIO Por Valéria Souza Rocha
Quando você ama, você assume a responsabilidade de proporcionar o crescimento de todos os aspectos na vida do outro, seja físico, intelectual, moral, emocional. Educar é um processo árduo, exige trabalho, paciência, firmeza, mas tudo deve ser dosado com amor.
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M
Manchetes de vários jornais da cidade afirmam o número crescente da violência em Curitiba e região metropolitana. A violência toma proporções e invade todo e qualquer lugar. Está nas ruas, nas escolas e universidades e até força a porta para entrar em nossos lares. A angústia e o medo tomam conta das pessoas. Muitos querem explicar qual a origem da violência: seria a impessoalidade das relações, a falta de estrutura familiar ou o crescente consumo de drogas? O que um pai ou uma mãe pode fazer para proteger seu filho? Como evitar que seu filho envolva-se com as más companhias? Quando deve se preocupar com questões como estas? A preocupação e o cuidado devem começar a partir do nascimento, pois a criança precisa de atenção para sua sobrevivência e socialização. A família é o primeiro ambiente do qual a criança faz parte, é onde ela aprende os primeiros valores; portanto, o sistema familiar deve ser a maior fonte de proteção, segurança, afeto, bem-estar e apoio para a criança, pois é o ambiente do qual a criança participa ativamente, através de relações face a face. A
educação é um processo de estabelecer limites, deve ser realizada com amor, pois limite também é uma expressão do amor dos pais. Quando você ama, você assume a responsabilidade de proporcionar o crescimento de todos os aspectos na vida do outro, seja físico, intelectual, moral, emocional, etc. Então, educar é um processo árduo, exige trabalho, paciência, firmeza, mas tudo deve ser dosado com amor. E é responsabilidade do casal e não somente da mulher, como já foi no passado. E esse processo árduo implica diversos comportamentos que os pais devem ter, como acompanhar os filhos – não somente num sentido físico, mas também no sentido emocional. Não é a fiscalização exagerada e sim a demonstração de interesse. É a preocupação equilibrada por seu filho (onde, com quem e o que está fazendo?); é apoiar as iniciativas das crianças; é elogiá-las; é estar disponível; é ser empático. É, além de tudo, demonstrar que o filho, seja ele criança ou adolescente, é amado, querido, importante e capaz. Quando você demonstra interesse pelos assuntos de seu filho e o acompanha, informa que ele que é amado. E ser amado é base sólida para a construção de uma pessoa segura e feliz. A atenção dos pais para aspectos positivos do comportamento do filho inibe o desenvolvimento de aspectos negativos. Além disso, a relação entre pais e filhos passa a ser de confiança, pois a criança sabe que pode, junto com seus pais, re-
solver seus problemas e compartilhar de suas alegrias e conquistas. Quando o filho faz algo errado, a sua atenção deve ser chamada em particular. Em conversa sincera, os pais devem expor os valores morais da família e juntamente com o filho procurar formas de reparar o dano que ele causou. Este conjunto de atitudes proporciona a reflexão e a autocrítica. Hábitos simples como o diálogo, a reflexão de notícias, a leitura de fábulas que são narrativas, em cujo término há sempre a moral da história, facilitam a compreensão de virtudes como a compaixão, a simplicidade, o amor, a justiça, a gratidão, entre outras. O uso das palavrinhas mágicas como “bom dia!”, “Com licença!”, “Obrigado!”, conhecidas como boas maneiras, são importantes e devem ser ensinadas quando a criança começa a se comunicar. Tudo isso deve ocorrer num ambiente onde a confiança é valorizada e respeitada principalmente pelos pais da criança. Estes comportamentos dos pais contribuem para suprimir comportamentos considerados inadequados, incentiva a ocorrência de comportamentos adequados, além de proporcionar o aumento da autoestima da criança. (Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br) Valéria Souza Rocha é formada em Psicologia pela Universidade Tuiuti do Paraná. É psicóloga clínica, CRP 08/15593. Visite o blog:http:// psicologavaleriasouzarocha.blogspot.com/
PAIS PRESENTES, PAIS AUSENTES – REGRAS E LIMITES
FÁBULAS DE ESOPO
AUTOR: PAULA INEZ CUNHA GOMIDE Editora VOZES
AUTOR: RUTH ROCHA Editora FTD
Este livro é muito bom e deveria ser o livro de cabeceira de todos os pais, ele é um auxílio aos pais e educadores na difícil tarefa de educar crianças. A autora procura mostrar as conseqüências negativas de determinadas práticas educativas. Salienta as formas apropriadas de relacionamento entre pais e filhos que permitem que crianças e jovens cresçam saudáveis. Traz também algumas alternativas e reflexões para tornar esta tarefa mais fácil e agradável.
As fábulas são histórias muito antigas, mas continuam atuais e necessárias. Fábulas de Esopo, na narrativa de Ruth Rocha, traz aos leitores a interessante sabedoria das histórias que se tornaram valiosas para bem entender a vida.
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do
TRANSITÓRIO
do e das
permanente
ÂNCORAS
Por Adalberto Fávero
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Compreender como age a sociedade contemporânea é essencial para ressignificar nossa atuação no mundo, tendo em vista que não podemos viver quietos em nossos cantos, em detrimento dos ideais de mudança coletiva.
“Segundo projeções do Banco Mundial, dentro de pouco tempo, já no final do século XX, as indústrias ecológicas movimentarão fortunas maiores do que a indústria química e neste momento já estão faturando montanhas de dinheiro.” (Eduardo Galeano) “Junte os dois tipos de “abertura”- a intelectual e a material - e verá que toda injúria, privação relativa ou indolência planejada em qualquer lugar é coroada pelo insulto da injustiça: o sentimento de que o mal foi feito, um mal que exige ser reparado, mas que, em primeiro lugar, obriga as vítimas a vingarem seus infortúnios...” (Bauman)
N
No início de 2010, as manchetes de jornais, os sites e a televisão tomaram espaço de outras notícias para mostrar e lamentar a tragédia do país mais pobre das Américas: o Haiti, após o terremoto. Reflexões incisivas acerca da realidade mundial e da situação a que fora relegada essa nação estiveram em destaque e referenciaram inúmeras discussões. Passado um ano, a dor do Haiti permanece: os estádios estão repletos de refugiados “provisórios”; a eleição está suspensa com acusações diversas de corrupção e descrédito popular; os assassinatos por comida e água continuam acontecendo insistentemente; as manchetes de jornais e televisão desapareceram; nossa seleção de futebol deve fazer mais uma partida com os jogadores locais para promover uma leve lembrança de que o país e o povo do Haiti ainda existem... Assim são tratadas as tragédias atuais: como um espetáculo de momento. Passado um ano, o olhar de compaixão dirigiu-se aos desabrigados do Rio de Janeiro, às quase mil mortes e milhares de desabrigados – pela chuva, pelo deslizamento de terra e pelo desleixo histórico com o povo que luta todo dia pela própria sobrevivência –, ao fogo que queimou os barracões de escolas de samba... De resto, janeiro mostrou as manchetes de sempre: muitos carros indo e voltando da praia; o movimento e o gargalo das rodoviárias e aeroportos; o novo BBB com os eleitos do Bial, que a televisão insiste em transformar em heróis; as chuvas e as secas do país; o frio no hemisfério norte; as crises políticas da Jordânia, Tunísia, Iêmen, Egito, Líbia. Marrocos, Bahrein e Iêmen (o povo saiu às ruas em vista de falta de empregos, da pobreza generalizada, dos salários baixos, dos
abusos de poder, do enriquecimento de uma minoria enclausurada no poder há décadas, da falta de liberdade, da corrupção e em defesa dos direitos humanos); nos casos desses três países com ditaduras apoiadas por potências do Ocidente, não há organizações de esquerda ou sindicatos liderando os movimentos e sim o descontentamento maciço da população (embora a irmandade islâmica esteja presente em todos os movimentos); o Euro entra em crise e Grécia, Irlanda e Portugal são os países mais afetados; a economia dos EUA não mostra grandes recuperações e nem novo fôlego; a China cristaliza-se como a segunda economia mundial, desbancando o Japão que, dias depois, vem a sofrer com um terremoto de proporções gigantescas... e assim por diante. Na verdade, a relação entre a educação escolar, a ciência e o contexto (realidade) é estrutural no projeto da formação das pessoas e deveria ser necessidade urgente e intransferível no trato dos conteúdos das escolas para que se recuperem os sentidos e os compromissos educativos, com o olhar para o presente e inserção no mundo, de maneira a se conseguir dar uma resposta capaz de ancorar essa geração num mundo em frenética transformação. Seguir esse caminho parece ser necessário para ressignificar a nossa atuação no mundo e forjar tessituras de novas utopias e/ou sonhos de sociedades justas, solidárias e participativas. Lembre-se, por esse viés, que a revista Science elegeu dez descobertas que julgou relevantes para essa primeira década do século XXI. Independente de sua amplitude, faz sentido conhecê-las e pensá-las: 1) Utilidade do DNA inútil – os 21000 genes
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humanos úteis estariam dispostos em apenas 1,5% do total do DNA. A questão dos outros 98,5%, tido como inúteis, para muitos passam a ocupar espaço essencial nos mecanismos de suporte aos 1,5%; 2) O Conteúdo do Universo: 4,56% são compostos de matéria ordinária; 22,7% de matéria “negra” cuja gravidade mantém a ligação entre as galáxias; 72,8% de energia “negra” que alonga o espaço e acelera a expansão do universo. Cada vez mais o universo parece um pensamento gigante, onde quanto mais se escava mais surge o impossível; c- 3) Máquinas do Tempo: descobriu-se que fragmentos de DNA e de colágeno sobrevivem milhões de anos e foi possível sequenciar o colágeno de dinossauro morto há 68 milhões de anos (o tal do Jurassic Park pode ser viável!?) e de um mamute da mesma idade, abrindo espaço para avanços e trato com espécies extintas até então inimaginados; d- 4) Água em Marte: as últimas missões espaciais revelaram ter existido água líquida em Marte o tempo suficiente para sustentar a origem da vida; 5) Células que mudam de destino: uma célula embrionária tem capacidade de se diferenciar em qualquer outra, mas aquelas já diferenciadas em musculares, etc, permanecem como estão e sem tal capacidade. A medicina parece estar encontrando caminhos novos e abrindo possibilidades inovadoras de cuidado com a vida; 6) O Microbioma Humano: nove em cada dez células do organismo humano pertencem a micróbios. Só no intestino existem 1000 espécies de bactérias que somam 100 vezes mais genes do que os contidos em nosso DNA; 7) Descoberta de Novos planetas: no ano 2000, a Enciclopédia de Planetas Extrassolares reunia 26 recém descobertos. Em 2010, somam 505 os planetas catalogados. E pensar que Giordano Bruno foi queimado pela ousadia de afirmar a existência de outros planetas além da terra; 8) O Lado Nocivo da Inflamação: descobriu-se que os processos inflamatórios, que são essenciais para reparação dos tecidos lesados, estão por trás dos mecanismos que provocam as enfermidades mais letais da atualidade: câncer, aterosclerose, obesidade, Alzheimer, Parkinson, diabetes e outras; 9) Alterações Climáticas: em 1995 o painel das Nações Unidas aventava a possibilidade do
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homem estar interferindo no clima global. Em 2010 o mesmo painel afirma: “O aquecimento global é inequívoco, e muito provavelmente, causado pela ação humana.” O futuro do planeta está nas mãos da humanidade e seus cuidados... 10) Os Metamateriais: Desenvolveram-se formas de manipular a luz que desafiam os limites de resolução das lentes comuns pela construção de sistemas óticos capazes de tornar um objeto sensível. Tratam-se de descobertas estratégicas para o futuro da humanidade, para a aventura pelo universo, para a possibilidade de desvendar o mistério da vida, embora nenhuma descoberta apontada pela revista (dada a sua característica) refirase diretamente à economia, aos princípios filosóficos, às mudanças política, aos valores humanos/cristãos e às controvérsias sociais. Ambas, por sinal, andam distantes das reflexões e estudos tidos como prioridades nas escolas. Sob a perspectiva sociológica/política/histórica (como contraponto), apontaria cinco questões interconectadas como estratégicas para nós, educadores, e trabalhadores de um mundo caracterizado pela vertiginosa carreira da mudança: 1ª: As organizações sociais da atualidade não podem manter sua forma estrutural por muito tempo e se dissolvem em tempo recorde, antes de garantir estratégias existenciais de longo prazo (para um Projeto de Vida, por exemplo). Isso é devastador para propostas de educação e formação que busquem levar as pessoas a olhar para o futuro e se pensarem enquanto sujeitos de uma vida e de uma história; 2ª: Estabeleceu-se um divórcio entre poder e política (forças constituidoras do estado-nação). A política tornou-se incapaz de agir em dimensão planetária e o poder desloca-se para crescente terceirização. Esse hiato entre poder e política possibilita um verdadeiro playground para as forças do mercado agirem. E o mercado celebra cada vez mais sacrifícios humanos. 3ª: O sentido e a força da comunidade e do coletivo estão esfacelados. O sentido de humanidade vai perdendo a substância, o que
possibilita ver a dor dos outros como numerários e estatísticas espetacularmente expostas na televisão, na internet e nos jornais que rondam o mundo. Nesse caminho, a dor e morte causam pena, mas são incapazes de gerar indignação. 4ª: Constata-se um acentuado desaparecimento e enfraquecimento de planejamentos e ações a longo prazo. Percebe-se enfraquecimento das estruturas sociais e da história política, bem como das vidas individuais numa série de projetos e episódios de curto prazo. Palavras como maturação, progresso e carreira tendem a perder sentidos. Várias ciências sociais cederam à tentação de trabalhar o episódico, o cotidiano e o momentâneo em detrimento da visão conjuntural e estrutural, contribuindo para o aprofundamento dessa perspectiva. 5ª: Uma das consequências dessas mudanças é que a responsabilidade de resolver esses problemas passa a ser jogada sobre o ombro dos indivíduos, ainda que não entendam e não controlem a extensão dessas mudanças. Assim, já não se fala em agir dentro das regras e com segurança e sim em flexibilização e prontidão para mudar e se adaptar. Por sinal, essas são duas das características da atual preparação de profissionais para o trabalho e constituem elementos centrais da consagrada visão de empreendedorismo. *** As transformações desse instante histórico colocam lado a lado os bem sucedidos e aqueles que são tidos como o lixo dispensável e inevitável das mudanças em andamento. Esses últimos são vítimas de uma sociedade onde não há lugar para todos ou da propalada “sociedade aberta”, que os expõe aos golpes do destino, já que não conseguem controlar a tal “abertura”, o que gera sensação de impotência e vulnerabilidade. O resultado dessa convivência é o aumento inequívoco da violência e de uma população carcerária digna dos filmes de ficção, com ilhas e cidades cercadas e vigiadas nas quais vivem os descartáveis do mundo e do sistema.
Essa parte da população “supérflua” não pode ser assimilada e caminha lado a lado nas cidades com os úteis e legítimos. Numa organização dessas não é possível pedir normalidade, não violência e não confronto. Os úteis pedem segurança e se isolam em suas fortalezas, já que as antigas formas de segurança já não funcionam, pois os retardados da modernidade não encontram mais lugar e nem esperança, o que os leva a reagir pela sobrevivência também de maneira individual e desesperada. Nessa nova ordem mundial, o diferente é que a mudança estrutural do Estado e de seu papel não foi ainda analisada e/ou captada por muitos de nós e pelos processos formativos de uma nova cidadania necessária e indispensável para a retomada das pessoas como sujeitos de um novo cenário mundial mais justo e solidário. Por esse caminho e para serem mais seguras, as nações estão se dispondo a serem menos livres e respeitarem menos os direitos individuais. Cada dia torna-se mais difícil falar em direitos humanos, direito dos presos, direitos das minorias, direito dos índios etc. A cada nova fechadura na porta, a cada nova cerca elétrica no muro, a cada novo alarme nas nossas casas... o mundo parece a nós e a nossos filhos ainda mais traiçoeiro. Assim, o medo dá lucro e tem reduzido nossa vontade política ao apoio à repressão e às medidas de exceção. A justiça social fica apequenada em justiça penal. Prefere-se a segurança à justiça. A lei tornou-se uma teia de aranha que só apanha os insetos pequenos. A classe média vive medos objetivos: a morte violenta; os vizinhos suspeitos; o fanatismo ideológico e terrorista; o desejo não realizado de uma vida pacífica e tranquila; o medo do desemprego; a falta de instituições que a ajude a não se sentir sozinha na luta pela sobrevivência e felicidade; a nova manchete na TV e/ou no jornal... não aspira mais revolução nenhuma, apenas sonhos de viver quieta em seu canto. Os Estados vão mudando sua perspectiva e passam de Estados de Bem Estar Social para Estados de Proteção Pessoal. Estados e indivíduos enfronham-se na busca de segurança, onde o coletivo e o sentido de comunidade não mais
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existem. A nova cidadania daqui decorrente tende a ser cada um por si e Deus por todos. O Estado de Segurança Pessoal organiza-se contra o serial killer, o pedófilo a solta, o assaltante, o terrorista, o imigrante ilegal... A quebra do EstadoNação e a falta de ideais sólidos dão lugar ao medo e à busca de segurança nas mãos fortes da repressão ostensiva. Estão criadas todas as condições para a estruturação do Estado de Proteção Pessoal ou do Estado Prisional. Isso acontece pelas razões internas até aqui apontadas e pelo fato de que, após a queda do Muro de Berlim, desmoronou o edifício do mal e o bem ficou órfão do diabo. Havia que se “criar” inimigos internos e externos: Al Qaeda, Afeganistão, Talebans, Iraque, Irã, tráfico de drogas, crime organizado, etc... A Anistia Internacional estima que meio milhão de pessoas são mortas por armas leves distribuídas livremente em vários países. A xenofobia europeia e norte-americana empurra os retardados da modernidade para seus locais de origem, em defesa dos seus cidadãos úteis, aumentando a discrepância e a sensação de descartabilidade do antigo e necessário imigrante. Para esses excedentes de população expulsos de volta a seus países, o mundo atual é cruel e sem lei. Por essas razões todas é que nos parece estratégico, necessário e essencial entender as demandas e mudanças da sociedade em que atuamos. Sem isso, não seremos capazes de responder com competência e sensibilidade às necessidades desse momento histórico. Mas bastará tecer um novo humanismo? A ideia do homem como centro não é a mesma que permite a dominação sobre as demais formas de vida do planeta e a destruição da nossa casa, a Terra? Existe uma nova cosmovisão já constituída? Ou cabe a nós a tessitura de uma nova utopia, reinventando nosso papel de sujeitos pessoais e coletivos da história? Nessa perspectiva, importa perceber a opção estratégica do Governo Brasileiro em colocar o Estado como referência do crescimento econômico e da inclusão das maiorias empobrecidas do país, ainda que muitos dos seus cidadãos apro-
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fundem o preconceito de que a ação do Estado favoreça a indolência e facilite o não trabalho. Marcio Pochmann, em resposta a um artigo de Clovis Rossi – que afirmava que a distribuição de renda nos últimos anos era pura balela –, aponta as evidências e a importância dessa ação, embora na contramão das novas concepções de Estado pelo mundo, afirmando: “parece evidente que a partir da segunda metade da década de 2000 há uma recuperação na participação do rendimento do trabalho na renda nacional, após um longo período de descenso inegável. No biênio 2005-2006, por exemplo, o peso do rendimento do trabalho na renda nacional foi de 41,3%, um pouco maior que os 40,5% de 1999/2000, mas muito menor que os 56,6% de 1958/60... houve redução da taxa real de juros de 7,5% do PIB em 2005 para 5,4% do PIB em 2009, o que possibilitou maior investimento social e uma política de inclusão de milhões de brasileiros no consumo e fora da pobreza absoluta a que estavam reduzidos.” (Folha de S. Paulo, 23/01/11). Vários governos latino-americanos tenderam a esse mesmo movimento, o que ressalta a possibilidade de rediscussão do Estado, de sua função e do seu sentido público e social. São perspectivas importantes pelo momento de individualização do Estado enquanto papel de segurança pessoal apenas, mas precisará significar a reconstrução do sentido de cidadania e de perspectiva da tessitura de uma sociedade com laços capazes de enfrentar as mudanças rápidas da atualidade e incluir a todos no atual conceito de modernidade. Insista-se na relevância desses movimentos, pois a tendência das empresas e também de muitas escolas está focada na eficiência e em nome da eficiência; não poucas vezes, matam-se os ideais e a justiça com os seus e com os demais. Talvez seja por essa razão que as corporações valorizem tanto na atualidade o serviço de recursos humanos. Na ausência de relações humanas duradouras, há que se estruturar um serviço que cuide das doenças, do estresse e da não adesão à empresa. O problema é que a droga mais vendida atualmente pelas corporações é a droga da produtividade e ela mascara o cansaço, o medo e a ação descontextualizada das pessoas.
Certamente, há várias maneiras de ver o mundo e entre elas está a possibilidade de perceber que do caos seja possível tecer um novo modo de viver, de sonhar e de refazer cidadanias pelas redes sociais, pelas relações de trabalho, pelas relações interpessoais e pelos encontros nos espaços coletivos... e a escola é um deles. Eduardo Galeano viu o final do século XX (1999) com os sinais inequívocos dos laços rompidos ao afirmar: “Vista do crepúsculo no final do século: está envenenada a terra que nos enterra ou desterra. Já não há ar, só desar. Já não há chuva, só chuva ácida. Já não há parques, só parkings. Já não há sociedade, só sociedades anônimas. Empresas em lugar de nações. Consumidores em lugar de cidadãos. Aglomerações em lugar de cidades. Não há pessoas, só públicos. Não há realidades, só publicidades. Não há visões, só televisões. Para elogiar uma flor, dizse: “Parece de Plástico”.”
Se essa visão poderia ser rotulada como uma imagem pessimista, ainda que bastante verdadeira no crepúsculo do século passado, certamente as 10 descobertas apresentadas pela revista Science também não resumem os avanços e as possibilidades da primeira década de novo século. No contraponto do pessimismo e da falta de perspectivas, poderíamos lembrar de que crescem os movimentos ambientalistas; vários países reduzem a jornada de trabalho para melhorar a qualidade de vida e gerar empregos; os movimentos populares do Iêmen, Bahrein, Líbia, Marrocos, Tunísia e Egito refletem novas formas de se organizar e mobilizar frente aos desman-
dos políticos; a última eleição no Brasil revelou um novo campo e forma de comunicação que se contrapõe à grande mídia viciada e encastelada nas análises oficiais; a América Latina deu início, sob a liderança do Brasil, a um movimento de aproximação continental sem precedentes; a democracia na América Latina aprendeu a conviver com vários níveis de ideologias no poder, sem as antigas intervenções armadas; ONGs independentes (a maioria tem relação com Estados ou empresas) trilham novos caminhos de organização e denúncia; as novas redes sociais apresentam a possibilidade de novas interpessoalidades e relacionamentos... Se, por um lado, todas essas e outras possibilidades ainda estão em gestação e a corrida do tempo poderia impedir que se constituísse pelo surgimento de novas situações e inesperadas mudanças, por outro lado elas podem servir de âncora efetiva contra o “desenraizamento” sentido no novo modo social de sonhar e de lutar pela vida. Por isso, as âncoras devem ser lançadas e içadas permanentemente, a fim de que o caminhar se dê abrindo novos caminhos. Há que se darem passos e tecer a novidade, antes que sejamos sacudidos pela história. Como afirma Robinson Jeffers, “Um dia a Terra vai se coçar e sorrir, e sacudir para fora a humanidade” (Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br)
Adalberto Fávero é diretor acadêmico do Colégio Medianeira. Formado em Filosofia, História e Teologia, é especialista em Currículo e Práticas Educativas (PUC-RJ) e mestre em Educação (PUCPR).
DE PERNAS PRO AR - A ESCOLA DO MUNDO AO AVESSO AUTOR: EDUARDO GALEANO Editora L&PM EDITORES Em De pernas pro ar – A escola do mundo ao avesso, Eduardo Galeano provoca nossas emoções e nossas consciências, como já o fizera no clássico As veias abertas da América Latina no início da década de 70. Nestas páginas, que transitam pela ironia e, não raro pela indignação, desfilam uma enorme quantidade de fatos, eventos históricos e jornalísticos que comprovam que o mundo está, de fato, de pernas pro ar, refletindo a nossa incapacidade de harmonizar justiça e liberdade.
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Humanismo
LIBERDADE Por Mario Borges
A velha mรกxima popular, que diz para nรฃo confundirmos liberdade com libertinagem, encontra apoio filosรณfico em um dos maiores nomes da Filosofia mundial de todos os tempos: Jean-Paul Sartre. 28
contemporaneidade
e
na
E
Estamos inseridos numa sociedade onde os valores têm se tornado cada vez mais subjetivos. Não encontramos referenciais confiáveis que nos conduzam ou que nos orientem para tomada de decisões assertivas, seguras e que nos façam mais humanizados e felizes. Por outro lado, parece que o homem pós-moderno está banalizado, destituído dessa mesma subjetividade. É um paradoxo. O ser está massificado, perdido e sem horizonte, busca identificação com grupos, clãs, mas nada o satisfaz. As metanarrativas como instituições (religião), as ideologias (socialismo) entre outras tantas que prometiam solução para a realidade humana não inspiram mais confiabilidade na contemporaneidade, perderam muito da sua credibilidade. A família enfrenta uma séria desestruturação e, dessa forma, o homem não sabe lidar com sua liberdade, as estruturas sociais o oprimem tanto que este vive condicionado, não tem poder de decisão, vive controlado por um sistema de dominação, mecanização e alienação estabelecido na sociedade. Nesse sentido, se faz necessário buscar uma saída efetiva para o problema do homem no mundo. E é aqui que quero fazer uma referência
à obra de Jean-Paul Sartre, O existencialismo é um humanismo, na qual coloca o homem como artífice de sua existência, independentemente das circunstâncias que o cercam. O existencialismo é uma corrente filosófica que procura destacar a liberdade individual e a responsabilidade do sujeito diante de seus atos – por isso o conceito de subjetividade dos valores tratado no início do texto – considerando cada homem como um ser único, que, exercendo sua liberdade, torna-se senhor de seu destino. Sarte atribui a primazia da existência sobre a essência, ou seja, considera que primeiramente o homem existe e só depois vai se definir como essência, a partir do que ele irá se transformar, ao contrário de um objeto como uma mesa, um computador ou uma caneta, que têm uma razão de ser pré-estabelecida e uma finalidade determinada, uma vez que primeiro é criado na mente de seu artífice supremo como ideia e só depois se materializa. Isto é, constituído em essência a priori. Sartre se recusa a acreditar que possa existir um homem em ideia, ou seja, um padrão de ser humano. Para ele, o homem é um projeto que só vai se definir no momento derradeiro de sua morte, pois, até então, está por se fazer. Assim, o homem nada mais é do que aquilo que faz de si mesmo, pois, de início, o homem não é nada, ele surge no mundo e só posteriormente se define. Dessa forma, sua essência é construída por ele mesmo na medida em que toma suas decisões. Na conferência “O existencialismo é um humanismo” (1945), Sartre procura defender a tese de que o homem está condenado a ser livre e que não pode se esquivar de exercer sua liberdade. Nesse sentido, está condenado porque não escolheu existir nem criou a si mesmo, simplesmente existe e livre porque é responsável por tudo o que fizer da sua vida (SARTRE, 1973, p.15). Por acreditar na inexistência de Deus, Sartre afirma que não há quem arbitre o que deve acontecer, não há nenhum determinismo. O homem é livre. Nada o força a fazer coisa alguma. O homem está sozinho no mundo, não tem desculpas. Dessa forma, o homem não pode justificar
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Aqui se configura o ateísmo sartreano, em creditar ao homem seu destino e a construção de sua essência, sem influência da religião ou de qualquer que seja a estrutura determinista de uma conduta moral.
sua ação dizendo que está forçado a fazer algo por circunstâncias ou movido pela paixão ou determinado de alguma maneira a fazer o que faz. No entanto, sendo livre, deve também assumir as consequências de suas ações. Sartre parte da máxima de que o homem é um ser-no-mundo, que constitui sua essência através de sua ação no mundo, de suas opções e de seus atos concretos. Destarte, significa que não se pode encontrar para a liberdade outro limite que não seja o da própria liberdade, ou ainda, que o homem não é livre de deixar de ser livre. A liberdade não é o arbítrio ou a vontade momentânea do indivíduo, é a mais íntima estrutura da existência, é a própria existência. No período da Segunda Guerra Mundial, os existencialistas eram vistos como rebelados, isolados e sem perspectivas, sendo associados pela mídia aos movimentos hippies, beat: “Existencialista, com toda razão só faz o que manda seu coração”, frase da época (MOUTINHO, 1995, p.1013). No entanto, Sartre rechaça essa acusação de que o existencialismo seja uma filosofia de vida sem sentido e libertina. Para Sartre, o homem se faz a cada ato, encontra em si mesmo a razão de ser no mundo, e dessa forma se torna livre. Porém, isso gera no homem uma certa angústia, pois se o homem é o único responsável pelo que se tornará, não terá apoio nem desculpa para seus fracassos e não adianta tentar responsabilizar a outros, pois mesmo quando pede um conselho ou quando é pressionado a tomar alguma decisão, no fundo ele está decidindo não decidir, ou seja, em última instância é sempre ele o sujeito que decide, mesmo que sua decisão seja por não decidir.
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No que se refere à questão da moral, pela qual é acusado de defender um relativismo e individualismo na ação humana, Sartre se defende dizendo que assim como uma obra de arte tem um valor universal em si mesma e que ninguém questiona o objetivo ou a intenção do artista, a ação do homem também o tem, pois carrega um valor intrínseco. Para melhor entender, cada ato particular tem intenção de se tornar universal pelo indivíduo que o pratica. Por exemplo: quem se casa deseja que a monogamia seja aceita e praticada por todos. Na verdade, Sartre defende a ideia de que cada um deve ser responsável por seus atos e deve aceitar a liberdade de escolher e assumir as consequências de suas escolhas. Assim, Sartre está defendendo um radical humanismo da subjetividade e da liberdade. Ele acredita que existe uma verdade absoluta que está na subjetividade de cada um, que seria a consciência, ou cogito, lembrando aqui Descartes e o seu “Cogito ergo Sum” ou “Penso, logo existo”, interpretada por Sartre como essa verdade absoluta. Podemos afirmar que a partir das experiências concretas vivenciadas por Sartre nos acontecimentos de seu tempo, como a guerra, a prisão nos campos de concentração nazistas e a descrença na sociedade de seu tempo e nas próprias pessoas, ele busca uma aproximação com as ideias marxistas, ainda que de forma crítica. Busca combater a burguesia que mata os indivíduos e retira sua liberdade. Para Sartre, o que constitui a realidade do homem não é só o fator alienação, mas a capacidade que o homem tem de superá-la. Assim, é preciso considerar o passado, o presente e a cultura, mas acima de tudo ir em direção ao futuro, ao projeto de homem que se deseja transformar, até a ação prática (Revista de filosofia. Conhecimento prático, nº 24: pp. 52-53).
Percebemos, assim, que nessa perspectiva a realidade existencial de cada um pode ser traçada independente das experiências negativas que vivemos em nosso cotidiano, pois Sartre afirma em uma de suas célebres frases: “Não importa o que fizeram conosco, importa o que vamos fazer com aquilo que fizeram conosco”. Cabe a nós, então, fazer uma reflexão crítica do pensamento sartreano no que diz respeito à liberdade e à responsabilidade individual de nossos atos na construção de nossa essência, não de uma forma fatalista como coloca Sartre, pois esta pode levar ao desespero, mas de forma positiva e otimista que possibilite a nós tomar decisões maduras e responsáveis. (Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br)
Mario Borges é formado em Teologia (PUCPR), Filosofia (Faculdade Bagozzi) e pós-graduando em Filosofia da educação: ética, política e educação (UFPR). Trabalha na Biblioteca da fase II do Colégio Medianeira.
FONTES
C O N S U LTAD AS :
Por Francisco Júnior Damasceno Paiva. Conhecimento Prático Filosofia. Edição nº 24: Editora Escala Educacional, p. 52-53, 2010. MOUTINHO, Luiz Damon Santos. Sartre: existencialismo e liberdade. São Paulo. Moderna, 1995. SARTRE , Jean Paul. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os pensadores).
O EXISTENCIALISMO É UM HUMANISMO AUTOR: JEAN-PAUL SARTRE Editora VOZES O existencialismo é um humanismo foi o título da conferência proferida por Sartre em Paris no dia 29 de outubro de 1945, com o objetivo de defender o existencialismo das críticas que lhe estavam sendo dirigidas. Portanto, esta obra trata-se do texto estenografado, pouquíssimo retocado por Sartre, daquela conferência juntamente com as perguntas que lhe foram dirigidas em seguida.
O SER E O NADA - ENSAIO DE ONTOLOGIA FENOMENOLÓGICA AUTOR: JEAN-PAUL SARTRE Editora VOZES Publicado, em 1943, O SER E O NADA dá continuidade a uma reflexão que já se iniciara no princípio do século com pensadores como Kierkegaard, Jaspers e Heidegger, exercendo uma incontornável influência sonre as cinco últimas décadas. Sartre desenvolveu um prodigioso e completo sistema de “explicação total do mundo” através de um exame detalhado da realidade humana como ela se manifesta, estudando o abstrato concretamente. Ao ser publicado, O SER E O NADA causou espanto, polêmica, protestos, admiração. Com sua originalidade transgressora e contestações às verdades eternas da tradição filosófica, constitui o apogeu da primeira fase da filosofia sartriana.
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UMA NOITE,
para muitas mais Por Gustavo Dumas
DocumentĂĄrio sobre o Festival da MĂşsica Brasileira de 1967 passa na cara a nossa deslavada apatia atual. 32
O
O ano é 1967 e no palco estão, em saudável disputa, Marília Medalha e Edu Lobo, Chico Buarque e MPB4, Gilberto Gil, Sergio Ricardo, Roberto Carlos... Tantos outros já ficaram pelo caminho. Sergio Ricardo é desclassificado por quebrar e atirar seu violão na plateia, após vaias e vaias para sua excepcional “Beto bom de bola”, um samba-homenagem a Garrincha feito um ano após o fiasco da Seleção Brasileira na Copa de 1966. Caetano, tratado por Veloso pelos jornalistas que cobrem o evento – destaque para os personalíssimos Cidinha Campos e Randal Júnior! – é vaiado quando entra em cena com sua guitarra elétrica. Roberto Carlos cantava samba e fazia piada tosca. O “mocinho” Chico tinha de ser catado nos bares da redondeza para garantir a presença de seu smoking na batalha. Gil, barbudo e tenso, é buscado no hotel, duas horas antes de se apresentar, chapadaço, acompanhado dos Mutantes com uma beldade roqueira em seus quadros, chamada Rita Lee. Esses e vários outros “detalhes” do III Festival de Música Popular Brasileira da TV Record são absorvidos, combinados e projetados, com uma sutileza documentarista ímpar, pela lente audiovisual dos diretores Ricardo Calil e Renato Terra em Uma noite em 67 (Brasil, 2010). O filme é uma declaração de vitalidade e experiência de uma geração que marcou época em nossa música e que se tornou possível, em um período político instável, principalmente pelo entendimento de que ideologia e estética não são indissociáveis, muito pelo contrário. O personagem principal do Festival e do filme, no entanto, é outro: a plateia intervém fortemente na cena. Trata-se de um público ativo, consciente, atencioso e visceral. Uma plateia de gente viva, portanto. O documentário abre com Edu Lobo e Marília Medalha prestes a se consagrarem com “Ponteio” (parceria de Edu com Capinam), que desbancaria, entre outras concorrentes, a “Roda viva” de Chico, arranjada brilhantemente por Magro, componente do MPB4. Gil defende, com outro arranjo sensacional, “Domingo no Parque” – já na lida por constituir a sua Refazenda (novas e ve-
lhas sementes em uma junção “ohn”, como o próprio ex-ministro define em sua metaforização costumeira, complexamente simples). Caetano, sorriso generoso estampado ante tantos “apupos” contrários advindos da plateia, faz o “Alegria, alegria”, que depois admite como canção regular. Esteticamente, encontra-se “isolado”, junto com Nara Leão, defensores que são do pop e do uso da guitarra elétrica e do que mais pudesse vir a se somar à música brasileira. Virá a Tropicália, que rotulará Chico como um cara “velho”, aos vinte e poucos anos. Sergio Ricardo, pós-Festival, vira modinha juvenil; depois, é praticamente abandonado por décadas, embora produza, e muito – no cinema, nas artes visuais, na política e, sempre, na canção. Toda essa efervescência, suas consequências, o futuro, nosso presente: nada escapa ao olho clínico lançado pelos diretores em um balanço histórico comovente, bem-humorado e, o que é melhor, crítico, na sua formulação/edição. Mais de cinco horas daria o filme, se levado a cabo seu projeto inicial de abordar a era dos festivais como um todo. Ao recortar os acontecimentos de um único e mui simbólico festival, sangrando da própria película, Calil e Terra optaram por fugir da superfície, chão usual da arte brasileira de hoje, perdida entre um esteticismo barato e um denuncismo sem proposta ou apresentado em estado de gritaria cega de “vozes” que se insurgem, porém, sem base consistente. A nostalgia de Uma noite em 67, portanto, serve a um questionamento, funda-se militante, em forma de uma saudade que se serve do passado vicejante para indagar um presente sem memória, sequioso por sedimentar um plano futuro. Bastidores são revelados e, numa comparação com as noções atuais, dominantes, de jornalismo e música, o que tínhamos era algo extremamente antiprofissional. E que bom que era, assim desse jeito! Cidinha Campos e Reali Júnior agem como seres humanos e não jornalistas “imparciais” (robôs com um texto limitado, automimético, fazendo o serviço sujo de seus patrões escroques), tratam os artistas como pessoas próximas (e não celebridades, mitos, ídolos, figuras inatingíveis) e se dirigem ao público como comunicadores autônomos (e não meros informantes autômatos).
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As perguntas e as respostas são espontâneas, a gafe e o caco são permitidos e trabalham em prol da obtenção de um contato mais fluido com a fonte e o destinatário da cobertura jornalística. Na música, destacam-se: a ousadia dos arranjadores e a ausência de medinho nos músicos; muito menos aparato tecnológico e de produção; e a aceitação do risco e do erro como atalho inexpugnável para um fruir estético de feição própria e original. Ou seja, encontram-se preservadas, num campo e no outro, a dimensão fática e franca no trato da informação jornalística e a dimensão artística do fazer música. A nostalgia se impõe ainda na constatação do quanto a suposta “profissionalização” proposta por um mercadinho emburrecido e abraçada por uma mídia conservadora nos tornou surdos e flácidos na percepção musical, com sua assepsia sonora metida a besta, o seu certinho que não toca ninguém. O que transformou boa parte da música brasileira em produto comum, fruto do mesmo trabalho alienado questionado no mundo todo ao longo da década de 1960, pertence ao mesmo caldo (de)formador de nossa cultura política, que nos tornou igualmente apáticos e estéreis. Chico, Caetano, o próprio Sergio, não demonstram arrependimentos, nem saudosismo. Isto porque não se esconderam de nada. Não se omitiram. Fizeram. Para o bem ou para o mal, com guitarra ou sem guitarra, com guinadas à esquerda ou à direita. Sentem é falta de um corpo mais ágil, jovem; para fazer mais, talvez. Não pararam no tempo, e este também não parou – só sucumbiu com muitos sonhos, fazendo brotar nas massas o tal sono, que se estende até os dias de hoje. A nostalgia arrebatadora de Uma noite em 67 é de um tempo de posicionamento, de opinião, até de uma certa rebeldia – e muita busca, muito encontro, muita birita, cigarro e talento gastos em prol de ideias e causas de espectro coletivo. Radicalismos – amplamente justificáveis à luz da história – à parte, o que estava em jogo eram os rumos de nossa cultura, e esta entendida num sentido maior ou, como afirma o crítico Marcello Castilho Avellar, da EM Cultura, “exatamente por (se) perceber que cultura e política são sinônimos – ou eram sinônimos”.
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O sono, contudo, ora parece entrar em um estágio agônico, após o seu apogeu durante a década neoliberal de 1990. A sensação que obras como Uma noite em 67 – e também vale a citação de filmes como Tudo pode dar certo (Woody Allen, EUA, 2009) e Juventude (Domingos de Oliveira, Brasil, 2008) – nos desperta é de que estamos perdendo por não fazer, travados pelo cagaço de romper com uma rotina massacrante, petrificados pelo consumo inútil do mesmo, esse fantasma que nos habita de inércia. Eis que, ao final da sessão, também nos fustiga uma esperançazinha, mesmo com tantos mortos-vivos passeando por esquinas e escritórios, embora o amor esteja tímido e a frieza persevere em derredor, de que vem coisa por aí. (Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br) Gustavo Dumas é escritor e revisor. Colabora com o jornal de cultura e política Algo a Dizer e publicou, assinando com o heterônimo de Zeh Gustavo, os livros de poesias A Perspectiva do Quase (Arte Paubrasil, 2008) e Idade do Zero (Escrituras, 2005). Também pertence ao grupo de samba Terreiro de Breque.
Saiba mais vi sitando o site oficial do film e: http:// www.umanoi teem67.com .br
UMA HISTÓRIA DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA - DAS ORIGENS À MODERNIDADE AUTOR: JAIRO SEVERIANO Editora s 34 Neste livro, Jairo Severiano assumiu uma tarefa enciclopédica - contar, em um único volume, os mais de duzentos anos de história da música popular brasileira. Para isso, estruturou a obra em quatro tempos - formação (1770-1928), consolidação (1929-1945), transição (1946-1957) e modernização (de 1958 até os dias de hoje). Em cada uma dessas fases, o autor contextualiza historicamente os gêneros e movimentos, bem como os compositores, músicos e intérpretes que melhor souberam representá-los.
o
futuro
do
LIVRO Por Nilton Cezar Tridapalli
Tema badalado nesses últimos tempos, o futuro do livro vem empolgando não apenas especialistas, mas despertando a curiosidade e os “achismos” de muita gente. Ao final de “os livros de papel são eternos”, devemos colocar um ponto de exclamação ou de interrogação?
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H
Há um tempinho atrás, mais ou menos 300 anos antes de Cristo (isso não era pra ser uma ironia, afinal o que são 2 310 anos comparados aos cerca de 200 mil anos do homo sapiens?), a biblioteca de Alexandria funcionava como uma espécie de ancestral do Google. Uma quantidade enorme de informações reunidas num lugar. No entanto, era lá, e apenas lá, que estavam estas informações, guardadas em rolos e livros cujo número de exemplares se limitava ao original de cada um. Não havia mecanismos de copy – nem rights, nem lefts –, tampouco fotocópias; ou seja: cada livro era lido apenas por uma pessoa de cada vez (o que diriam hoje fenômenos como Harry Potter?). Essa “facilidade” de difundir por meio de cópias em papel o objeto físico que chamamos de livro só veio a acontecer bem mais tarde, já na chamada Renascença, com a prensa de Gutenberg. Os livros, a partir daí, começaram a se espalhar, a se reproduzir, a evoluir. Estamos falando do século XV. Se formos falar de ontem, da década de 1990, falaremos de livrarias e bibliotecas espalhadas pelo mundo (embora pudessem existir em maior número nessas nossas bandas), com prateleiras abarrotadas de volumes compartilhando informações, saberes, emoções, conhecimentos de todos os tipos. Surgem as livrarias megastores, muitas delas embutidas nos shoppings centers, que exibem seus lançamentos, listas de mais vendidos, sua espécie de coleção outono-inverno de livros.
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objeto: seja em Alexandria (ainda em suas formas primitivas), seja com Gutenberg, seja a livraria física ou a virtual, o objeto central é um negócio chamado livro. O que é um livro? Essa é apenas uma pergunta retórica, é claro. Todos sabemos o que um livro é, desde mais ou menos 300 anos antes de Cristo: um objeto físico, de papiro, pergaminho e – depois – papel, em rolos ou – depois – com páginas sobrepostas presas do seu lado esquerdo, que contém informações – na sua maioria – escritas. Com um passado tão remoto – dentro da escala de tempo de um ser humano –, com uma história tão arraigada em evoluções lentas e consistentes, com uma vida tão complexa, bonita e solidária – um livro é sempre uma partilha! – quem ousaria cravar uma profecia a respeito do futuro do livro? Que criatura mortal, que não consegue viver um mísero século, seria suficientemente arrogante para ser a pitonisa do destino do livro e de sua exuberante história? O fato é que o assunto é um dos mais falados atualmente. As livrarias virtuais de ontem estão, hoje, vendendo livros digitais. O que isso significa? Significa que esse tipo de livro virou um formato digital, não tem mais substância. Não é mais papiro, nem pergaminho, nem papel. O conteúdo de um livro é um negócio que “não existe”, que não pode ser visto nem tocado fisicamente...
Súbito, susto. Susto e maravilhamento. Bibliófilos desencantados com o acervo débil das grandes livrarias – transformadas em revenda de livros de autoajuda, sem estoque de livros mais antigos, com vitrines que vendem livros da mesma forma com que se vendem sapatos na loja ao lado – começam a ganhar uma opção salvadora: é possível comprar livros pela internet. Algumas livrarias virtuais sequer existem fisicamente, mas o bom leitor é diligente, visita o site, lê resenhas, fica atento aos comentários e pode encomendar o livro seja de qual país for.
Então, fica aquela coceira para arriscar uma resposta à pergunta: o livro, tal qual o conhecemos hoje, vai morrer? Ao mesmo tempo em que ficamos instigados, a recomendada modéstia nos alerta ser de bom tom apenas fazer umas humildes reflexões, que podem se juntar às do leitor, que já escreveu, pensou, leu sobre o assunto e, aos pouquinhos, vamos formando uma teia de pensamentos partilhados, a fim de que consigamos coletivamente pensar o nosso tempo, formar uma imagem de nossa história, nos conhecer e reconhecer como integrantes de uma família humana que tece cultura, conhecimento. E que, sabemos, boa parte dessa cultura e desse conhecimento ganha memória naquilo que chamamos de livro.
Até ontem, portanto – a década de 1990 –, todas estas transformações mantêm um mesmo
Portanto, repetindo: o livro, tal qual o conhecemos, tem seus dias contados?
Os livros digitais acabaram de surgir. Junto com eles, vieram os e-books, ou e-readers, que nada mais são do que livros eletrônicos ou leitores eletrônicos (embora esses leitores precisem de um leitor de carne e osso – ao menos por enquanto). Eles irão, em 10, 15, 30, 50 anos, suplantar uma história de 2 300 anos? Há fervorosos fãs do livro de papel que riem de uma pergunta como essa e talvez já tenham parado de ler esse artigo, por considerá-lo inútil. Afinal, não se destroem 2 300 anos (ou mais, ou menos) de história assim num piscar de olhos. O livro de papel é como uma colher, nas palavras de Umberto Eco: desde que foi inventada, nada mais precisou aparecer para substituí-la. Ela é perfeita para a função à qual se destina. É o mesmo Umberto Eco quem diz que “eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos” (e olha que ele está considerando o livro apenas após a era Gutenberg). Veja, na entrevista que concedeu ao jornal O Estado de São Paulo, em 13 de março de 2010: O livro, para mim, é como uma colher, um machado, uma tesoura, esse tipo de objeto que, uma vez inventado, não muda jamais. Continua o mesmo e é difícil de ser substituído. O livro ainda é o meio mais fácil de transportar informação. Os eletrônicos chegaram, mas percebemos que sua vida útil não passa de dez anos.
Difícil contra-argumentar, não? Seja pelo argumento em si, seja pelo argumentador, esse semioticista e romancista italiano de 78 anos, bibliófilo inveterado e profundo estudioso dessa “coisa” chamado livro. Se ainda quisermos outros bons argumentos para a sobrevivência do livro impresso em papel, podemos ler a passagem abaixo, trecho de um artigo publicado pela Revista Veja de 5 de maio de 2010, que se refere às razões em favor do livro impres-
so expostas por Robert Darnton, diretor de Biblioteca de Harvard: Darnton é amante do papel, do prazer visual e tátil que se extrai do contato com um livro (em particular, com obras antigas e raras). Será simplista, argumenta ele, imaginar que uma nova tecnologia vai substituir completamente e de imediato formas mais antigas. A televisão não acabou com o rádio, e nem o YouTube acabou com a TV. O livro em papel, portanto, deverá conviver muito tempo com leitores eletrônicos como o Kindle e o iPad.
As palavras de Eco e de Darnton sintetizam vários argumentos em favor da permanência do livro em papel. Podemos resumi-los: — É o modo mais fácil de carregar informação; — Já dura 5 séculos, em contraposição aos gadgets eletrônicos, que não passam de 10 anos; — Proporciona prazer visual e tátil único, impossível de imaginar com um e-book, que torna todos os livros iguais; — Não será substituído, afinal, a TV não acabou com o rádio, o Youtube não acabou com a TV; Não é uma lista completa, mas pelo menos são essas as razões que mais ouço dos amigos e pessoas ligadas à leitura em papel. E é aí que eu gostaria de entrar jogando um pouco de lenha nessa fogueira, fogueira essa que pretende chamuscar um pouco os livros impressos (não, não sou Guy Montag!). Manda a boa etiqueta que sejamos modestos, mas tentarei mostrar por que acho os argumentos acima frágeis, por mais que representem argumentos fortes e proferidos por autoridades que se tornaram autoridades não por acaso.
É mesmo o modo mais fácil de carregar informação? Por enquanto, livro por li-
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vro, talvez. Um livro de papel pode ser jogado numa mochila, dobrado, manuseado de forma brusca, aberto a qualquer momento e em qualquer lugar. Um leitor pode rabiscá-lo rapidamente, fazer seus apontamentos e anotações num instante. Portanto, pode-se ler, retirar informações de um livro de papel e já colocar no mesmo papel as suas próprias impressões (no duplo sentido do termo). Um livro de papel já vem com a função touch screen. Fácil, prático, rápido. Tenho um e-book e, confesso, ele é lento para receber anotações. É bom lembrar, entretanto, que ainda estamos lidando com os ancestrais dos e-readers. O próprio Umberto Eco, que afirma ser o livro de papel o modo mais prático de carregar informações, possui um acervo de 50 mil títulos, dos quais 30 mil estão em seu apartamento em Milão e 20 mil em outra casa, no interior da Itália. Livro por livro, é evidente que o de papel é bastante prático. É também evidente que não vou precisar de 50 mil livros de uma só vez. Mas, digamos que preciso viajar por longos dias e gostaria de levar 10, 15, 30 livros? Que preciso montar uma palestra e quero colocar uns 30 livros em cima da minha escrivaninha? Digamos que estou de mudança para outra cidade? Um ebook pode armazenar mais de mil livros, em média. Um mesmo aparelho, que, acreditem, ainda vai evoluir mais, pode conter o livro ou os livros que você quiser. O que mais podemos pensar sobre o argumento da praticidade?
Livros duram mais que os eletrônicos? Não sei se o bibliotecário da Biblioteca de Alexandria concordaria. A instituição “livro”, assim como o conhecemos hoje, pós-Gutenberg, já dura mais de 5 séculos, sim. Mas são pouquíssimos os volumes físicos que conseguiram sobreviver a esse tempo – e, se o conseguiram, estão dentro de uma redoma, só podem ser tocados por especialistas com suas luvas delicadas. Seria o mesmo que dizer que um ser humano dura 200 mil anos, quando na verdade é a humanidade que está durando tudo isso. É fato que aparelhos eletrônicos duram pouco, seja porque estragam ou porque logo vem algo para substituílos. Mas o arquivo em si, essa coisa imaterial do
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formato, por exemplo, pdf, pode facilmente ser armazenado e conservado. Se você vai trocar seu e-book uma vez por ano, como muitos fazem com o celular, não importa. Seus arquivos continuam. Você os tem em seu e-book, podendo levá-los para onde quiser e, além disso, pode guardá-los em sua biblioteca digital, no computador de casa. Ou, ainda, deixá-lo na nuvem, utilizando serviços gratuitos de megasservidores que armazenam enormes quantidades de arquivos para você. Ganhamos espaço físico na sala, com menos livros e poeira – embora, sei muito bem, gostemos de expor nossas obras e não somos loucos de achar que manter uma biblioteca física em casa seja perder espaço. Isso nos leva ao próximo argumento.
O prazer tátil, visual e até olfativo (ah, aquele cheirinho de livro...) é insubstituível? Sim, concordo plenamente que essa sensação seja insubstituível. O “problema” é que nós, leitores, é que somos substituíveis. Morreremos e deixaremos o mundo para os mais jovens, nascidos e criados com outras interferências e partilhas culturais. Não seria ingenuidade achar que toda essa nova geração nasce automaticamente adepta a se maravilhar com a população de ácaros presente em papel velho? Minha geração viu exatamente a transição do disco de vinil para o cd e eu acompanhava as pessoas falando que jamais o cd substituiria o charme do “bolachão”, com seus ruídos deliciosos. Não só substituiu como já está sumindo também... virou o quê? Arquivo digital, sem formato físico – o tal mp3, por exemplo. Nada, portanto, pode nos fazer tão egocentrados a ponto de acharmos que a nossa experiência de mundo, nessa curtíssima temporada de existência individual, seja a única verdadeira, com validade indeterminada. Outras gerações se seguirão, reciclando e desconstruindo a nossa. O mesmo vinil pelo qual muitos de nós nos apaixonamos, já era uma corruptela dos antigos gramofones que, por sua vez, já deram o que falar, pois eram acusados de matar a experiência de ouvir a música ao vivo (a perda da aura de que falava Walter Benjamin)... Substituímos a experiência ao vivo, in loco, mas pudemos compartilhar muito mais, e a preços mais baratos.
Esse papo todo nos leva ao último argumento escolhido aqui.
O livro de papel é eterno, pois a experiência nos mostra que uma nova experiência não aniquila a outra? O exemplo de Darnton é perfeito. De fato, a TV não substitui o rádio, nem o Youtube acabou com a TV. Mas é também verdade que o cd acabou com o vinil (ou reduziu-o a um nicho) e que o próprio cd está agonizando pela lâmina afiada dos arquivos digitais. Na mesma esteira da substituição do vinil pelo cd, acompanhei a mudança das fitas VHS para os DVDs – ameaçados agora pelo blue-ray, que talvez ceda espaço para os arquivos a serem baixados em locadoras virtuais –, ou, saindo da música, vimos também a transição das câmeras fotográficas analógicas para as digitais. Muitos de nós dirão “ah, essas câmeras não têm o charme das outras, que nos faziam tirar fotos que eram grandes incógnitas, geravam uma ansiedade deliciosa de nos fazer ir revelálas, viver um tempo de espera que essa sociedade imediatista nos fez perder etc etc.” Sim, posso concordar. Mas será que uma geração depois da nossa concordaria? Eu concordo, ok, mas confesso que já encostei minha câmera analógica... Lembro-me bem da primeira vez que vi uma câmera digital, que tinha a abertura para um enorme disquete. Um amigo fotógrafo, dos bons, com laboratório de revelação em casa, foi quem me mostrou. Discutimos se aquilo iria pegar, chegamos à conclusão de que alguns nichos se apegariam àquela ferramenta, como jornalistas que precisassem de fotos instantâneas. No mais, nada mataria o controle, o cuidado, a textura de uma foto em papel, tirada com uma câmera analógica e revelada pacientemente em laboratórios... Preciso dizer que estávamos errados?
nho, nem mesmo pelo tamanho de uma ou duas ou cinco gerações. Isso seria perder o senso de que as verdades são provisórias. Escrevi bastante e confesso que, enquanto escrevia, o exemplo do Umberto Eco não me saía da cabeça: um livro é como uma colher. É uma invenção perfeita, não precisa ser modificada. Não consigo, de fato, imaginar uma ferramenta que substitua a colher... Consigo, no máximo, dar um contra-exemplo que me pareceu igualmente bom: rebato Umberto Eco com o diretor sênior da Penguin Group USA, Jeff Gomez, em seu livro Print is dead (sem tradução no Brasil). Ele cita outros dois autores – Al e Laura Ries – para falar sobre velas e lâmpadas elétricas: A cada noite, em toda a América, milhões de velas estão queimando. Nenhum jantar romântico é completo senão tiver velas sobre a mesa. Uma vela é vendida a 20 ou 30 dólares, muito mais do que uma lâmpada elétrica. Diferente da lâmpada, o valor da vela não tem relação com sua capacidade de iluminar. Assim como a lareira e o barco a vela, a vela de cera perdeu sua função e se transformou em arte.
O que importa, e isso é assunto para outro artigo, é não confundir livro com leitura, o objeto com a atividade. Os arquivos mp3 reduziram o vinil e o cd a exceções, mas não acabaram com a música; ao contrário, espalharam-na e popularizaram-na. A câmera fotográfica digital substituiu a analógica, mas não acabou com a fotografia. O e-book pode, ou não, acabar com o livro de papel. Mas temos que lutar para que não se acabe a leitura.
Enfim, a discussão é ótima. Tenho muitos livros de papel, tenho minha biblioteca que junta poeira e traças. E adoro! Aprendi isso com um professor em particular. Portanto, sou sim desses estranhos seres que tateiam, admiram e, se bobear, até passam um livro no rosto, nas bochechas, para sentir as texturas e cheiros todos. Mas não posso medir o mundo pelo meu tama-
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Não é à toa que, se você reparar bem nas palavras de Eco e de Darnton, ambos defendem o livro (eu também, embora possa parecer que não, por causa do meu “papel” de advogado do diabo fervendo a 451 graus farenheit), mas deixam rastros de dúvida: Eco diz que “é difícil ser substituído” ou que “ainda é o meio mais fácil...”. Darnton, por sua vez não acredita que a tecnologia vá substituir “de imediato formas mais antigas”. Mesmo eles não cravam a eternidade daquilo que amam. Que sejam, então, infinitos enquanto durem. (Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br)
Nilton Cezar Tridapalli é formado em Letras (UFPR), especialista em Leitura de Múltiplas Linguagens (PUCPR) e mestre em Estudos Literários (UFPR). Co-editor da Revista Mediação, coordena o setor de Midiaeducação do Colégio Medianeira (www.midiaeducacao.com.br). É tradutor e escritor, autor do romance Pequena biografia de desejos (Editora 7 Letras).
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A QUESTÃO DOS LIVROS
NÃO CONTEM COM O FIM DO LIVRO
AUTOR: ROBERT DARNTON Editora COMPANHIA DAS LETRAS
AUTOR: UMBERTO ECO E JEANCLAUDE CARRIÈRE Editora RECORD
O historiador norte-americano Robert Darnton decidiu reunir em um único volume seus artigos abordando a questão do livro, depois de verificar que, na última década, ele havia sido convidado a um grande número de conferências sobre a suposta ‘morte do livro’, levandoo a suspeitar que estes, ao contrário, deviam estar muito vivos. Abordando questões como - ‘Estaria a era do livro em papel encadernado chegando perto do fim, em face dos avanços trazidos pelas tecnologias digitais?’, Darnton discute alguns temores que esta paisagem suscita. Por exemplo, será que a iniciativa do Google de digitalizar livros de grandes bibliotecas públicas americanas sinaliza uma tendência monopolística visando apenas ao lucro? E como ficarão os interesses de editores e autores em um processo que pode assumir características predatórias, como ocorreu com a indústria fonográfica?
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Umberto Eco e Jean Claude-Carrière, apresentam uma discussão sobre a história e o futuro dos livros. Ao percorrerem cinco mil anos de existência dos impressos, os autores defendem a imortalidade do objeto como o conhecemos, apesar dos e-readers e da internet.
PRINT IS DEAD AUTOR: JEFF GOMEZ Editora ST MARTINS PRESS (EUA) Desde seu início remoto, os livros resistiram a numerosas mudanças culturais e continuam inalterados. Agora, pela primeira vez desde a Idade Média, tudo o que sabemos está prestes a mudar. Os novos formatos e a revolução digital estão prontos para deixar os livros na prateleira da história. Em Print is Dead, Gomez explica como autores, produtores, distribuidores e leitores não só devem reconhecer estas mudanças, mas perceber que estamos diante da primeira verdadeira transformação a acontecer no mundo das palavras desde a invenção da imprensa.
ANTÁRTICA:
reserva natural
consagrada
PAZ e à CIÊNCIA à
Por Cláudio Adriano Piechnik
A Antártica possui 80% da água doce do planeta, é rica em recursos minerais e animais e é a área mais preservada do mundo. Conheça um pouco mais sobre o lugar no qual a exploração econômica é proibida e sobre a importância das pesquisas para a minimização dos riscos para a saúde ambiental e humana. O professor Cláudio Piechnik é quem esteve lá e nos conta mais... 41
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Há 140 milhões de anos, a massa continental denominada Pangea começou a se fragmentar e, por deriva continental, a região Antártica foi se dirigindo em direção ao Polo Sul. O resultado histórico desta evolução geológica é que atualmente este continente detém 80% da água doce e 90% do gelo do planeta, como também recursos vivos e minerais (inclusive petróleo) incalculáveis. É o continente dos superlativos – o mais frio, mais seco, mais alto, mais ventoso, mais remoto e o mais desconhecido. A caça de focas atraía as pessoas para a Antártica nos primeiros anos do século XIX e dentro de poucas décadas causou acidentes graves nas populações de animais selvagens. O lobomarinho da Antártica estava à beira da extinção em muitos locais em 1830. Já a caça às baleias no Oceano Antártico se intensificou no início de 1900 e cresceu muito rapidamente. Em 1910, foi responsável por 50% das capturas mundiais. A história da caça às baleias é uma sequência repetida de busca por espécies mais rentáveis, que ocorria da seguinte maneira: uma vez esgotado o estoque de uma espécie (o que tornava sua comercialização inviável), passava-se às outras espécies menos favorecidas. O declínio das capturas se deu motivado por tentativas internacionais, que regulamentavam a caça e levaram à criação da Comissão Baleeira Internacional (CBI). Por muitos anos, a CBI teve pouco sucesso como uma organização, criada para gerenciar as baleias como um recurso sustentável. Felizmente a queda de lucros foi peça chave na condução de muitas empresas para fora do negócio de caça às baleias. Os impactos da pesca e da caça, assim como o da mineração, foram regulamentados e as atividades proibidas pela assinatura do Protocolo de Madri. Este documento regulamenta o uso do continente Antártico – foi firmado em 1º de dezembro de 1959 e envolveu países interessados em explorar ou pesquisar a região. O Tratado torna a região Antártica uma RESERVA NATURAL CONSAGRADA À PAZ E À CIÊNCIA, e proíbe até 2047 a exploração econômica de seus recursos minerais. O protocolo também regulamenta e controla as atividades humanas no local. Atual-
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mente, a Antártica pode ser considerada a região do planeta mais preservada e uma das mais vulneráveis às mudanças ambientais globais. A interação terra e mar é uma das características mais marcantes do ecossistema antártico marítimo, principalmente na Baia do Almirantado, localizada na Ilha Rei George (Arquipélago das Shetlands do Sul). Muitas das alterações climáticas globais observadas hoje podem estar relacionadas àquelas que ocorrem nas regiões polares, incluindo na Antártica. Para entendê-las, é preciso estudar seus aspectos físicos, químicos, biológicos e sociais. Com os recentes avanços da ciência, podemos incomparavelmente progredir no desenvolvimento tecnológico. Nas áreas das Ciências Exatas e da Terra, e no Gerenciamento Ambiental, sabe-se a cada dia um pouco mais sobre a Antártica, porém há muito ainda a se descobrir, estudar e interpretar. Um exemplo reside em entender como a região antártica influi no clima de todo o hemisfério sul e, por consequência, no Brasil. O INCT-APA (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Antártico de Pesquisas Ambientais) concentra suas investigações tanto no ambiente terrestre como no marinho, levando em consideração a influencia da atmosfera. No ambiente terrestre, as rochas expostas são colonizadas pela vegetação rasteira composta por liquens, musgos, algas, fungos e plantas vasculares de pequeno porte, sem citar toda biota microscópica associada, que se beneficia dos ricos dejetos das aves marinhas. Aves estas – pinguins, biguás,
petréis, gaivotões, skuas e trinta reis – que desempenham um papel extremamente importante dentro deste ambiente. Já o ecossistema marinho possui uma biota composta por flora e fauna bem adaptadas a condições climáticas extremas, com temperaturas muito baixas, gelo, congelamento prolongado da água do mar e grandes variações nos períodos de radiação entre inverno e verão. As mudanças biológicas nestes ecossistemas acompanham as alterações naturais em relação ao clima, bem como aquelas provenientes de atividades humanas. Por esta razão, a observação deste processo é de fundamental importância para a conservação e a preservação destes ambientes. Além disto, para valorizar a ciência antártica é necessário promover a educação e disseminar a informação cientifica por meio de ferramentas com grande amplitude de difusão para a sociedade. É muito importante também a multidisciplinaridade dos temas investigados pelo INCT-APA, que leva a formação e consolidação de recursos humanos direcionados às pesquisas em regiões polares. Todas estas atividades convergem para o gerenciamento ambiental integrado da Baía do Almirantado e regiões circunvizinhas. A difusão deste conhecimento gerado pelas pesquisas acima citadas tem se manifestado no conhecimento popular, como a divulgação de informações sobre as mudanças climáticas e o risco de desaparecimento de gelo em certas partes do planeta. A área da península antártica, onde está a Estação Antártica Brasileira Comandante Ferraz (EACF), também está sendo afetada pelas variações climáticas. Dados recentes sobre a península apontam para uma queda nas temperaturas médias na última década.
Dentre as pesquisas atualmente realizadas pelo INCT-APA que podem trazer benefícios diretos para a sociedade, destaca-se o trabalho inédito com a alga verde Prasiola crispa, que utiliza dejetos de pinguins para sobreviver. Brasileiros descobriram que esta alga possui uma substância bioativa com ação inseticida. Não se pode também deixar de citar a importante atividade desenvolvida dentro da problemática de derramamentos de petróleo: processos de biorremediação utilizando organismos vivos, fungos e bactérias locais, com capacidade de utilizar derivados de petróleo como alimento e, assim, auxiliar na descontaminação de áreas que tenham sofrido derramamentos. O INCT-APA também estuda processos ecofisiológicos em algumas espécies locais, abundantes e com ampla distribuição circumpolar e antártica, com capacidade de lidar com o degelo e, por consequência, com a redução da salinidade. Outras alterações, influenciadas pela presença humana, como impactos pelo lançamento de esgotos, derivados de combustíveis fósseis e metais pesados nas águas oceânicas, também são estudadas. Um exemplo disso são as investigações em condições laboratoriais sobre o grau de toxicidade e a bioacumulação de contaminantes em organismos. Este é o primeiro passo para uma avaliação da significância de produtos químicos tóxicos nos sistemas aquáticos. O desafio das pesquisas antárticas é associar os dados climáticos e atmosféricos com a diversidade dos organismos antárticos, fauna e flora, suas adaptações fisiológicas e os possíveis impactos humanos, sempre levando em conside-
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ração a pesquisa básica, que fornece subsídios para melhor compreender a complexa estrutura do ambiente extremo que é a Antártica. Ao mesmo tempo, a complexidade das informações obtidas e a sua variabilidade vêm acompanhadas da preocupação em gerenciar da melhor forma possível a presença humana neste continente. Assim, a Estação Antártica Brasileira se encontra atualmente em processo de implantação de um Sistema de Gestão Ambiental (SGA), certificável pela norma internacional ISO 14.001:2004. Esta certificação tem como objetivo tornar a estação brasileira uma das primeiras estações científicas certificadas na Antártica. Com esta iniciativa de implantação do SGA, o INCT-APA pretende proporcionar meios para tornar a presença do ser humano no continente antártico cada vez mais harmoniosa com o meio ambiente. Desta forma, os produtos palpáveis da pesquisa do INCT-APA são a melhoria da qualidade de vida e a minimização dos riscos para saúde ambiental e humana na área estudada. Aliamos a capacidade tecnológica com o uso do espaço e dos recursos para propiciar o desafio de trabalhar em um ambiente inóspito, extremo e afastado.
A infraestrutura A maior parte das pesquisas desenvolvidas pelo Brasil na Antártica é realizada na Baía do Almirantado (Ilha Rei George, Arquipélago das Shetland Sul, Península Antártica), onde esta localiza-
da a Estação Antártica Brasileira Comandante Ferraz, além de atuar em regiões oceânicas e costeiras adjacentes a esta baia. As atividades de pesquisa do INCT-APA recebem o apoio logístico Força Aérea Brasileira e da Marinha do Brasil/ CIRM (Comissão Interministerial para os Recursos do Mar)/ PROANTAR (Programa Antártico Brasileiro).
Suporte logístico para pesquisas na Antártica A Força Aérea Brasileira (FAB) realiza o transporte dos pesquisadores brasileiros para Punta Arenas (Chile) e desta cidade para a Base Antártica Chilena Presidente Eduardo Frei, no continente Antártico, onde os navios brasileiros aguardam para completar a travessia até a Estação Brasileira na Ilha Rei George.
Navios A Marinha do Brasil mantém a Estação Brasileira, Estação Antártica Comandante Ferraz e dois navios de pesquisa: Navio de Apoio Oceanográfico Ary Rongel (H-44) e Navio Polar “Almirante Maximiano” (H41). O Napoc Ary Rongel (H-44) tem 75m de comprimento, com dois laboratórios (seco e úmido), dois guinchos na popa (geológicos e oceanográficos) e 24 vagas para pesquisadores. O Navio Almirante Maximiano (H-41) tem 94m de comprimento e é equipado com seis laboratórios (secos e úmidos) e vagas para 26 pesquisadores.
Estação Antártica Brasileira Comandante Ferraz (EACF) A Estação Antártica Brasileira está localizada na Baía do Almirantado (Ilha Rei George, Arqui-
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pélago Shetland do Sul, Península Antártica). A EACF ocupa cerca de 2250 m2 de área construída e tem capacidade para abrigar até 56 pesquisadores. As acomodações incluem: 21 camarotes (número de leitos varia em cada cabine), sala, cozinha, uma biblioteca, sete banheiros, uma sala de comunicação, três salas de secagem, quatro laboratórios, duas salas de aquário, duas oficinas (elétricos e eletrônicos), uma enfermaria, quatro armazéns, uma academia de ginástica, um incinerador, um quarto de motores, e um heliponto. Além dos laboratórios mencionados acima, existem sete módulos de pesquisa externa. Para apoiar a investigação no ambiente marinho, há também três botes infláveis e um barco pequeno. O estudo da atmosfera na Estação Antártica Brasileira tem o apoio de cinco laboratórios de campo para o monitoramento e medições, que coletam dados da ionosfera, meteorologia, ozônio, radiação UV, dinâmica da alta atmosfera neutra e gases estufa. Cada laboratório tem diferentes atividades e seus instrumentos são instalados no exterior do módulo e operam continuamente durante todo o ano.
PVC são compactados e armazenados, retornando ao Brasil a bordo do NApOc Ary Rongel, sendo grande parte para a reciclagem. Os efluentes líquidos são encaminhados para uma estação de tratamentos de esgotos localizada em baixo do heliponto da EACF.
PERGUNTAS FREQUENTES:
Há turismo na Antártica?
Qual é a forma correta: “Antártida” ou “Antártica”?
Sim, o turismo na Antártica começou no final dos anos 50, quando o Chile e a Argentina levaram mais de 500 turistas às Ilhas Shetlands do Sul, mas a atividade somente se estabeleceu em 1966. O número de visitantes atingiu o recorde de 46 mil.
As duas formas são usadas e estão corretas. Antártica é uma palavra de origem grega que reúne os termos anti (oposto) e arktos (urso), sendo que este último termo refere-se à estrela polar da constelação de Ursa Menor ou Little Bear.
Qual a menor temperatura registrada na Antártica? A menor temperatura já registrada foi de 89,2ºC, na Estação Vostok (ex-URSS), em 21 de julho de 1983, sendo também a mínima temperatura ambiente já medida na Terra.
O que é feito do lixo na Antártica? Todo o lixo produzido na EACF é coletado e processado de forma seletiva. O lixo orgânico é queimado em um incinerador dotado de filtros antipoluentes e o restante do material (metais, alumínio, papéis, papelões, vidros, plásticos e
Quem desenvolve as pesquisas na Antártica? As atividades científicas são propostas e desenvolvidas por cientistas de universidades e instituições de pesquisa de diversas regiões do Brasil que, de forma interdisciplinar e interinstitucional, conduzem investigações nas áreas de Ciências da Terra, Ciências da Atmosfera e Ciências da Vida.
Qual foi o primeiro homem a atingir o Pólo Sul? Roald Amundsen, norueguês, em 11 de dezembro de 1911.
As visitas, que custam em média US$15.000,00 por pessoa, se concentram nas zonas livres de gelo nos meses entre Novembro e Março. Os visitantes fazem curtas incursões nas regiões costeiras, visitam estações científicas, monumentos históricos e colônias de animais. Dentre as atividades estão incluídas também alpinismo, acampamento e mergulho. Os ambientalistas e alguns governos querem controles mais rígidos para proteger visitantes e a vida selvagem. As preocupações incluem naufrágios, vazamentos de petróleo e estresse sobre a vida animal e vegetal, que já sofre os efeitos do aquecimento global.
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A quem pertence a Antártica? A Antártica não pertence a ninguém, como menciona o próprio Tratado da Antártica em seu artigo IV: “Nenhum ato ou atividade que tenha lugar, enquanto vigorar o presente Tratado, constituirá base para proclamar, apoiar ou contestar reivindicação sobre soberania territorial na Antártica, ou para criar direitos de soberania na Antártica.” Mas os signatários iniciais do Tratado reivindicam partes da Antártica – Argentina, Austrália, Chile, França, Nova Zelândia, Noruega, e Inglaterra.
Como se formou a calota de gelo na Antártica? A água que evapora dos oceanos é carregada na alta atmosfera até a Antártica, onde forma cristais de gelo aderidos a minúsculas partículas de poeira. À medida que mais cristais vão aderindo às partículas, formam-se os flocos de neve, que crescem nas mais variadas formas enquanto caem. A
Agradecimentos:
neve se acumula na superfície da Antártica em camadas cada vez mais profundas e, gradualmente, vai se transformando em gelo. A espessura média desta camada no continente é de 5 km! (Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br)
Cláudio Adriano Piechnik é formado em Biologia (PUCPR), MBA em Sistema de Gestão Ambiental (PUCPR), Mestre em Biologia Celular e Molecular (UFPR). É Doutorando em Biologia Celular e Molecular (UFPR), Pesquisador do INCT-APA Módulo III (projeto Biomarcadores Histopatológicos) onde estuda a dinâmica de populações e as principais adaptações morfofisiológicas e comportamentais dos organismos ao seu ambiente, seja ele impactado ou não. É professor do 3º. Ano do Ensino Médio no Colégio Medianeira e ex-aluno.
SUGESTÃO DE SITES www.inct-antartico.com.br www.mar.mil.br/secirm/proantar.htm www.scarmarbin.be www.antarcticconnection.com www.inct-antartico.com.br/arquivos/APA.pdf
MATERIAIS PARA A SALA DE AULA: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/EnsMed/ vol09_meioambientantart.pdf http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/EnsMed/ vol10_meioambien1a82.pdf http://antartica.cptec.inpe.br/~rantar/publicacoes/ 200612_setzer_mec_mma_10.pdf
ANTÁRTIDA
NO EXTREMO DA TERRA, A ANTÁRTIDA
AUTOR: ROSANA BOND Editora ÁTICA
AUTOR: PIERRE AVEROUS Editora AUGUSTUS
O livro oferece uma síntese geográfica. Saiba tudo sobre o continente dos gelos eternos: a importância do gelo, o controle de temperatura, a manutenção do nível dos mares, a reserva de água doce, o perigo flutuante dos icebergs e a ação do homem no ecossistema da Antártida.
Como e a vida em um deserto gelado? O que a conquista do Polo Sul representa para a Humanidade? Estas respostas você encontra neste livro, uma descrição vivida e estimulante do Continente Gelado.
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Galeria:
NIK RIANO PIECH CLÁUDIO AD
ANTÁRTICA: natureza bela
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