Revista Mediação - Número 25

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revista de educação do colégio medianeira NÚMERO 25

Viver e conviver o EU, o OUTRO:

os NÓS

Parem de enlouquecer as crianças

entrevista com Paulo Fochi

ANO XI

ISSN 1808-2564

De Curitiba O cantor sem dentes a Chernobyl, uma crônica de Luís Henrique Pellanda

viagens de descobrimentos



Diretor Pe. Rui Körbes, S.J.

Diretor Acadêmico Prof. Adalberto Fávero

Diretor Administrativo Gilberto Vizini Vieira

Coordenação Editorial Cezar Tridapalli

Revisão

sumário

expediente

Revista de educação editada e produzida pelo Colégio Medianeira ISSN 1808-2564

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Aprender e ensinar através do lúdico

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Parem de elouquecer as crianças

Marcos Eduardo Manente Chella

Entrevista com Paulo Fochi

Cezar Tridapalli

Redação Diego Zerwes

Projeto Gráfico Liliane Grein

Ilustração e imagens

Alongar para quê?

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Shutterstock, Rafaela Pacheco Dalbem e Gustavo Frei

Lívia Gasparotto; Eliane Denise Bacil; Malu Cristina Lima; Jarbas Melo Filho; Simone Cunha; Anna Raquel Silveira Gomes

Colaboraram nesta edição Marcos Eduardo Manente Chella, Paulo Fochi, Lívia Gasparotto, Eliane Denise Bacil, Malu Cristina Lima, Jarbas Melo Filho, Simone Cunha, Anna Raquel Silveira Gomes,Carolina Ribeiro Santana, Lucas Pacheco Ferreira, Adalberto Fávero, Mayco Delavy, Fernando Guidini, Ricardo Tescarolo, Rafaela Pacheco Dalbem, Ana Paula Luz, Gustavo Rafael Frei, Luís Henrique Pellanda

Tiragem 3500

Papel

16 20

Quem são os índios do Brasil Carolina Ribeiro e Lucas Pacheco Ferreira

A supremacia do Direito e o fim da reciprocidade? Adalberto Fávero

Capa: Papel reciclato 180g Miolo: Papel reciclato 90g

Numero de Páginas 52

Impressão Gráfica Radial Tel: 3333-9593

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Judicialização das relações e o banal

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Paideia: a formação do homem grego

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Curitiba: a cidade dos slogans

Mayco Delavy

Equipe Pedagógica Supervisão Pedagógica Claudia Furtado de Miranda, Danielle Mari Stapassoli, Juliana Cristina Heleno, Mayco Delavy e Fernando Guidini

Educação Infantil e E. Fundamental de 1º a 5º ano

Fernado Guidini e Ricardo Tescarolo

Coordenação Profª Silvana do Rocio Andretta Ribeiro

Ensino Fundamental de 6º e 7º ano Coordenação Profª Eliane Dzierwa Zaionc

Ensino Fundamental de 8º e 9º ano Coordenação Profª Ivana Suski Vicentin

Rafaela Pacheco Dalbem

Ensino Médio Coordenação Profº Marcelo Pastre

Coordenação de Pastoral Pe. Guido Valli, S.J.

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Dobrodošli! Ana Paula Luz

Coordenação de Midiaeducação Cezar Tridapalli

Comunicação e Marketing Vinícius Soares Pinto

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Turismo extremo: Chernobyl e a cidade fantasma de Pripyat Gustavo Rafael Frei

Os artigos publicados são de inteira responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a opinião dos editores e do Colégio Nossa Senhora Medianeira. A reprodução parcial ou total dos textos é permitida desde que devidamente citada a fonte e autoria. Linha Verde - Av. José Richa, nº 10546 Prado velho - Curitiba/PR fone 41 3218 8000 Fax 41 3218 8040 www.colegiomedianeira.g12.br mediacao@colegiomedianeira.g12.br

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O cantor sem dentes Crônica de Luís Henrique Pellanda mediação

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editorial

C

aro leitor

Estado paternalista, socialismo, comunismo. Estado mínimo, capitalismo selvagem, neoliberalismo (essa lista poderia ser lida ao ritmo da clássica canção “O pulso”, do então titã Arnaldo Antunes). Todos são termos muito em voga já há algum tempo no vocabulário social e político. Tais expressões falam de grandes modelos dentro dos quais os indivíduos transitam – ou empacam. Talvez, como pano de fundo para tudo isso, o que se esteja buscando – por parte dos bem intencionados – é a melhor forma de pensar no bem da coletividade sem deixar de lado a liberdade individual, expressão que tem constantemente justificado o mau e velho egoísmo. Qual a equação, afinal de contas, que permitiria justiça e oportunidades a todos para que sigam o caminho de suas vocações pessoais? Qual o compromisso e a contrapartida que o indivíduo deve firmar com a sua comunidade? A humanidade sempre foi pródiga em produzir modelos extremos, nos quais ora o coletivismo exacerbado tolhia o indivíduo e suas aspirações particulares, ora o individualismo deixava entrever a injustiça de um perverso darwinismo social, lei do mais forte, quem pode mais chora menos, salve-se quem puder e por aí vai. Nessa corda bamba vivemos até hoje. Muito mal equilibrados, é verdade. Conciliar a liberdade individual a uma preocupação com a justiça e a dignidade de todas as pessoas talvez ainda seja uma síntese utópica, mas pela qual vale a pena lutar, sem deixar que terceirizemos nossa vida (e a hedionda ideia de uma volta à ditadura pode servir de exemplo aqui). Nesse entremeio, a liberdade política nos parece aqui uma categoria imprescindível para estabelecer diálogos entre a esfera individual e coletiva. Se lançarmos mão de uma lupa para examinar mais de perto a sociedade, che-

gamos ao indivíduo e à sua relação com a alteridade, com o outro. Essa relação intersubjetiva (entre sujeitos) aparece de certa forma esgarçada por uma força travestida de direito individual, mas que tem sido judicializada a ponto de matar o diálogo e a capacidade que o homem tem de resolver seus conflitos com o outro pela via política. Não estamos falando de política institucionalizada, partidária, embora esta possa ser, sim, um caminho. Mas da política feita de interlocuções diárias, de escuta, da experiência de vestir o ponto de vista do outro, inclusive para questioná-lo, ampliálo e aprender com ele. Parece haver certa infantilidade numa sociedade que quer se cercar de seus direitos cobrando de forma policialesca – ou seria burlesca? – os deveres do outro. A educação é um dos caminhos para erradicarmos esse comportamento na criança, que ainda se percebe como umbigo do mundo, faz “manha” e bate o pé para que os seus desejos sejam satisfeitos. Se na sociedade adulta repete-se o comportamento da criança, se adultos estão perdendo a capacidade de saber que o mundo não gira em torno de seus umbigos, tudo parece se complicar. E se a humanidade levou um choque ao saber que a Terra não era o centro do universo, talvez precisemos despertar outra surpresa: o “eu” não é o centro da Terra, o “eu” é um ser de relações, e cada um tem sua órbita girando num campo gravitacional regrado pela sociedade da qual faz parte, com seus contratos sociais. Nossa Revista Mediação, em seu número 25, problematiza estas questões com os artigos de Adalberto Fávero, Fernando Guidini e Mayco Delavy. Mas também traz outros assuntos, como é característica da nossa publicação: uma entrevista com Paulo Fochi alerta para o cuidado com a “agenda” da criança. Atarefá-la nem de longe é sinônimo de uma educação mais qualificada. O

tiro pode sair pela culatra. A ludicidade, ou seja, a boa e velha brincadeira é condição das mais importantes para o desenvolvimento infantil, e é sobre isso que fala o artigo de Marcos Chella, professor de Educação Física do Colégio Medianeira. E, para os adultos que se exercitam ou querem começar, o aviso básico, mas muito esquecido: alongarse é preciso. É a esse respeito que fala uma equipe de educadores ligados à Universidade Federal do Paraná. A edição traz ainda dois relatos de viagem a lugares pouco visitados pelos turistas tradicionais: conhecer territórios de conflitos históricos no leste europeu ou o local da tragédia de Chernobyl foi o que fizeram dois ex-alunos do Colégio Medianeira, Ana Paula Luz (atual professora de Arte na instituição) e Gustavo Frei, respectivamente. É também por meio de outra ex-aluna, atualmente coordenadora regional da FUNAI no sul da Bahia, Carolina Santana, que conhecemos melhor a situação do índio brasileiro contemporâneo, sem véus de mistificação. Ela assina o artigo juntamente com Lucas Pacheco Ferreira. E, depois de viajar por Chernobyl, por países em conflito no leste europeu e pela Bahia, não deixamos de olhar para a realidade local, nossa cidade, seja com a análise da nossa professora Rafaela Dalbem, que revisita criticamente os rótulos que já colaram em Curitiba, seja com a crônica de um dos nossos principais escritores contemporâneos, Luís Henrique Pellanda, que em “O cantor sem dentes” fala de tipos tão próprios da cidade e, ao mesmo tempo, tão invisíveis. Espero que os artigos desta edição provoquem os leitores no melhor sentido do termo. Compartilhe nossa revista, escreva para nós, traga-nos seu ponto de vista. Um abraço. Cezar Tridapalli

Envie sugestões e comentários para:

mediacao@colegiomedianeira.g12.br Procure essa e as edições anteriores, que podem ser lidas na íntegra, no nosso blog:

www.midiaeducacao.com.br

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mediação


artigo

Aprender

ensinar através O lúdico é um método de aprendizagem e de expressão infantil. Os jogos e as brincadeiras oferecem a possibilidade do desenvolvimento da linguagem, da concentração e da atenção, além de estimular a curiosidade, a autoconfiança e a autonomia dos pequenos. Conheça um pouco mais sobre o aprender e o ensinar que o lúdico proporciona. Por Marcos Eduardo Manente Chella mediação

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O

brincar e o jogar proporcionam oportunidades para a criança interagir e intervir em seu meio social de forma prazerosa e significativa. Por isso, a utilização do lúdico como prática pedagógica garante o aprendizado não apenas no esporte, mas também em diversas outras disciplinas. Através do jogo, é possível inserir objetivos, regras e o papel de cada um. Todas as teorias do jogo e da brincadeira indicam a importância do lúdico como um meio privilegiado de expressão e de aprendizagem infantil. Os adultos se envergonham de suas fantasias de criança, deixando de lado o imaginário. Certamente, um adulto que já se esqueceu de brincar dificilmente conseguiria voltar a fazê-lo. Mas devemos lembrar que a capacidade de invenção é tão importante quanto a inteligência. A própria cultura, por exemplo, é resultado da habilidade que o homem tem de transformar a realidade. Criar, sonhar e imaginar são fatores essenciais que interferem na potencialidade do ser humano.

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mediação

A ludicidade abrange diversas oportunidades de aprendizagem, já que, brincando, a criança experimenta, descobre, inventa e aprimora habilidades. Os jogos e as brincadeiras – tanto as mais antigas quanto as mais atuais – oferecem a possibilidade do desenvolvimento da linguagem, da concentração e da atenção, além de estimular a curiosidade, a autoconfiança e a autonomia dos pequenos. Portanto, é necessário incentivar a criança no uso da imaginação. É através dela e do corpo que aprendemos a reconhecer e distinguir os desejos possíveis dos impossíveis sem criar futuras frustrações. É no criar e imaginar que estimulamos a aprendizagem, o desenvolvimento, a socialização e a construção do conhecimento fundamental para a vida adulta. Nesse contexto, o corpo passa a ser o primeiro brinquedo da criança. Com ele, os pequenos se expressam, se movem e se relacionam com seu meio e com os demais. Dominando seus movimentos corporais, a criança sente-se à

vontade. Mas, quando reprimida, perde um pouco da flexibilidade e da espontaneidade. Os professores podem – e devem – inserir a ludicidade na sala de aula. Estimular a percepção dos ritmos, sons e silêncios ao redor das crianças através da música e da alternância de diferentes movimentos, por exemplo, são habilidades facilmente exploradas pelos pequenos. O brincar é também uma forma de desenvolver a linguagem. Através de jogos e brincadeiras, a criança consegue se comunicar e expor suas emoções, medos e alegrias, além de ver, sentir e interpretar mais facilmente o mundo ao seu redor. Com a arte, a criança consegue expressar seus sentimentos e pensamento explorando e manipulando diferentes materiais. Pinturas

e

poesias

provocam

uma aprendizagem significativa que, assim como em brincadeiras, acontece gradativamente e de forma inconsciente, natural e espontânea.


Além da escola, a família também é um espaço no qual a criança aprende a se socializar através de brincadeiras. As regras podem ou não ser modificadas durante os jogos para que os pequenos experimentem novos caminhos e como lidar com as diferenças e novos desafios. No simples ato de brincar, a criança demonstra suas emoções por imaginar-se em diversas situações, encarando seus medos e superando-os para participar de determinadas atividades.

Alguns objetos podem facilmente virar brinquedos – não necessariamente iguais aos que compramos nas lojas. Mas, com imaginação, tudo pode servir ao lúdico e à fantasia, proporcionando oportunidades de novas aprendizagens, tanto para crianças quanto para adultos. Vamos brincar?

Marcos Eduardo Manente Chella é formado em Educação Física Licenciatura e Bacharelado - pela UP e pós-graduado em Educação Física Escolar pela PUCPR. É professor do Colégio Medianeira desde 2012, dando aulas para os 4º, 6º e 7º anos.

comente este artigo: mediacao@colegiomedianeira.g12.br

recomendações Os jogos e o lúdico na aprendizagem escolar Autor: Lino de Macedo | Editora Art Med. Há 14 anos, os integrantes do Laboratório de Psicopedagogia (LaPp), do Instituto de Psicologia da USP, estudam e fazem pesquisas com jogos, visando contribuir para o professor aprender a utilizá-los como um importante instrumento em seu dia-a-dia. Este segundo livro de Lino de Macedo, Ana Lúcia Sícoli Petty e Norimar Christe Passos é um novo recurso valioso para professores que trabalham com oficinas de jogos no ensino fundamental, com vistas a facilitar o desenvolvimento da leitura e da escrita de seus alunos. Além disso, o trabalho com jogos proposto neste livro permitirá criar e gerir situações de aprendizagem mais condizentes com a diversidade e a tornar realidade a tão necessária avaliação formativa, porque faz da observação e da regulação uma nova e melhor forma de se atribuir valor e promover as produções de cada criança. Trata-se de um subsídio ricamente ilustrado que, assim como o Aprender com jogos e situações-problema, título anterior, será de grande ajuda para a qualificação do cotidiano pedagógico.

O lúdico na vida e na escola Autor: Simei Santos Andrade |Editora Appris O lúdico na vida e na escola- desafios metodológicos’ é estudo que busca na ludicidade, mais especificamente no jogo de regras, suscitar referências metodológicas para utilização no contexto escolar deste recurso, enquanto mecanismo que favoreça o desenvolvimento integral do sujeito. Assim, trata-se nesta obra dos jogos vivenciados de forma espontânea pelos alunos, que brincam pela satisfação, pelo prazer que este ato traz às suas vidas e como os professores podem utilizá-los na sala de aula. Este livro se propõe a analisar as relações que se es elecem no jogo, que estão presentes no cotidiano de quem vivencia este ato. Procurou-se trabalhar com três categorias de análise - interação da criança com o jogo, o lúdico na visão dos educadores e o lúdico no contexto escolar - com ênfase no jogo de regras, que nortearam o desenvolvimento dessa pesquisa. mediação

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entrevista

PAREM de

enlouquecer as CRIANÇAS

“Pais, professores, cuidadores e todos os adultos que estão em torno das crianças querem estimulá-las com brinquedos e brincadeiras que as deixarão ‘inteligentes’ e, para isso, criam ou utilizam coisas que piscam, que fazem sons, ou ainda criam agendas lotadas de atividades para as crianças durante a semana.” Entrevista com Paulo Fochi 6

mediação


C

rianças com agenda cheia de atividades, estimuladas por brinquedos multifunções, instadas a se

tornarem consumidoras desde muito cedo. A realidade da infância vem sofrendo com a aceleração da vida e com o atropelo de etapas importantes da sua formação. “Como as crianças não têm sindicato, precisamos que alguém as defenda”, diz o professor Paulo Focchi, pedagogo, especialista e mestre em Educação, professor do curso de Pedagogia e Coordenador e professor do curso de especialização em Educação Infantil da Unisinos. Paulo Fochi é também Supervisor do projeto de Assessoramento técnico-pedagógico do MEC/UFRGS a 165 municípios do RS que aderiram ao Proinfância e consultor e formador de professores, atuando nacional e internacionalmente com os temas do currículo da Educação Infantil. Atua ainda no assessoramento a Redes Municipais de Ensino e a Escolas Infantis, em projetos especiais e no desenvolvimento de produtos e conteúdos para crianças. É autor do blog Catadores da Cultura Infantil (http://catadoresdaculturainfantil.blogspot.com.br/) e coordenador do OBECI – Observatório da Cultura Infantil. É com ele que Mediação conversa, a fim de entender melhor o ritmo da infância e o que a vida con-

temporânea está fazendo com ele. Colaboraram Daniele Mari Stapassoli, Juliana Cristina Heleno e Libera Venturelli.

Mediação – Em entrevista re-

ais paradigmas da infância e do

ofertados a elas, possam ser ex-

cente dada a um grande jornal

conhecimento. Hoje não temos

perimentadas e construídas for-

do Paraná, você afirmou que “o

mais verdades a serem reveladas

mas de dar sentido ao mundo. A

grande desafio da Educação In-

para as crianças, sabe-se que o

provisoriedade do conhecimento

fantil está em descobrir como é

conhecimento não é linear, nem

e a idade das crianças que vivem

ser professor sem dar aula”. Que

por fases evolutivas e contínuas.

a Educação Infantil justifica a

relações podemos estabelecer entre essa questão e a construção dos currículos da Educação Infantil? Há, no país, experiências que mereçam ser ressaltadas neste sentido?

As novas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (Res. 05/2009) nos convocam a pensar sobre a afirmação que fiz, “ser professor sem

importância de possibilitar a elas formas mais complexas, ricas e produtivas de articularem seus conhecimentos com aqueles que a humanidade já sistematizou.

dar aula”. A ideia de currículo

Paulo Fochi – Essa é uma

expressa nas Diretrizes compre-

pergunta importante e comple-

ende que o conjunto de práticas

xa. Complexa, pois trata de rom-

cotidianas, através das intera-

per com uma matriz pedagógica

ções e das brincadeiras, seja a

que todos nós professores carre-

forma de articular os saberes

gamos. Fomos alunos com adul-

das crianças com o patrimô-

tos que nos deram aula, apren-

nio artístico, cultural, científico,

demos nos cursos de pedagogia

histórico e ambiental. Aliás, a

e outras licenciaturas a dar aula

Educação Infantil precisa ser um

e temos a sensação de que a

espaço em que a construção do

única forma de construir co-

conhecimento ocorra de modo

nhecimento ocorra desta forma.

que o foco esteja em garantir

Importante, pois nos convoca a

que as perguntas das crianças

estar sintonizados com os atu-

permaneçam e, nos contextos

mediação

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De nada adianta tentar di-

o currículo da infância. Mas esse

sentir a tinta, experimentar uma

zer às crianças que aprendam

não é um movimento rápido e

nova refeição, são momentos da

sobre números. A construção

fácil. Como disse, implica rom-

mais alta e séria aprendizagem

do conhecimento numérico po-

per com uma matriz de trabalho

de um sujeito; por isso, não há

derá ser muito mais produtiva

fortemente enraizada em nossa

razão para ter pressa de viver es-

em uma atmosfera de trabalho

história educativa.

sas atividades. Aliás, as crianças,

que protagoniza as crianças e garanta que elas experimentem suas hipóteses sobre a construção deste saber. Não podemos esquecer que elas estão imersas em um mundo repleto de infor-

Mediação – Quais são as características, em sua opinião, de um processo educativo de qualidade quando se trata da Educação Infantil em tempo integral?

mações e, por isso, me parece

Paulo Fochi – O primeiro,

então que o sentido da constru-

talvez, é compreender que a

ção do conhecimento na educa-

criança estará em tempo integral

ção infantil esteja em garantir

em uma instituição. Parece ele-

que as experiências concretas

mentar, mas não é. Geralmente,

da vida ganhem espaço e pos-

as escolas se organizam em dois

sam ser significadas de modos

turnos de trabalhos totalmente

particulares.

distintos, interligados pelo pe-

Quanto a experiências brasileiras, creio que nos últimos anos a Educação Infantil tem evoluído muito. Conheço instituições aqui no Rio Grande do Sul e em outros estados que estão buscando compreender o que é construir

ríodo do almoço. Não compreendem a jornada da criança em uma instituição de vida coletiva que, independente da troca de profissionais ao longo deste período, precisa ser pensada na melhor forma das crianças viverem um dia na escola. E esse viver um dia na escola deve garantir que os percursos das crianças estejam regados pela proximidade de um adulto que está interessado em compreender a importante e profunda experiência que os meninos e meninas estão vivendo. Compreender que em uma escola de educação infantil acontece a Pedagogia dos Começos, da primeira vez, então, comer, dormir, estar e conviver com os amigos, sentir a chuva cair, descobrir um instrumento, pintar e

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mediação

por esta particular característica de estarem vivendo os começos, estão naturalmente repletas de atividades. Alerto, então, para as escolas que compreendem um quadro de horários cheio de atividades especializadas como oportunidade de qualidade, e lhes digo: não, isso não é qualidade. Se o tempo das crianças estiver pautado em atividades e profissionais que aparecem de 30 em 30 minutos, não é uma boa forma de organizar a jornada das crianças. Isso significa escolarizar as crianças e, por isso, é importante lembrar: educação infantil é diferente de ensino fundamental, por isso que esta etapa é chamada educação e não ensino. Mediação – Não sei se você concorda, mas temos vivido algumas questões curiosas da contemporaneidade, como adultos querendo voltar à adolescência mas cobrando maturidade dos adolescentes. Como a criança aparece nesse contexto? Paulo Fochi – A criança aparece sem chance de ser criança. Bebês não podem ser mais bebês, nascem cheios de deveres: devem caminhar antes, falar antes, ler antes... Quando responderem a todos esses deveres, os


Mediação – Como você ana-

vastadora de acabar com a po-

lisa o modo através do qual

tente forma que as crianças têm

a mídia – programas infantis,

para interpretar o mundo. Em

publicidade – tem construído o

todos esses anos que tenho tra-

infantil?

balhado com crianças, quase 15

Paulo Fochi – Na grande maioria, salvo raríssimas exceções, a mídia quer construir um consumidor de coisas desnecessárias e os programas e produtos infantis tratam as crianças como idiotas e incapazes de darem

mesmos deixarão de ser importantes e, então, como crianças, já não terão tempo de crianças serem. Há quem diga que isso diz respeito aos modos contemporâneos de se viver, ou, de uma sociedade líquida, em que as fronteiras estão borradas e aquilo que as definia já não as define mais. Mesmo assim, defendo que os bebês tenham tempo de ser bebês, e tenham tempo de explorar o mundo como aquele que chega em um lugar desconhecido e quer sentir, cheirar, ver, perceber e compreender tudo o que lhe rodeia. Precisamos parar de acelerar as crianças

anos, as histórias e opiniões que elas dão sobre o cotidiano são sempre repletas de profundezas. Não há banalidade, ao contrário, existe uma profundidade que muitas vezes não somos capazes de compreender.

sentido ao mundo. Poderia falar

Então, respondendo a sua

dos programas e dos persona-

questão, esses programas que-

gens da moda que hoje temos

rem construir crianças bobas e

para o público infantil, mas seria

que consumam seus produtos

tão óbvio dizer que são ruins e

fúteis.

desnecessários, que prefiro falar de algumas produções de teatro infantil. Em geral, teatro para crianças é descritivo e ensina boas lições a esses que são os “bárbaros” da sociedade (é de bárbaro que vem o termo balbuciar, aqueles que não sabem fa-

Mediação – O psicanalista Contardo Calligaris, em sua coluna de 21 de novembro de 2013 para o jornal Folha de São Paulo, defendeu o tédio como sendo um sentimento importante para a construção de uma vida inte-

lar a língua) e, por isso, precisam ser domesticados e adestrados para as regras sociais. Não é diferente em museus que, quando desejam abarcar o público infantil, instruem os mediadores a explicarem de forma simplista as obras. Parece-me que se construiu a ideia de que tudo que se refere “para crianças” deva ser descritivo.

para que cheguem mais cedo a

Acho tudo isso uma grande

algum lugar, lugar este que nun-

besteira. As crianças são com-

ca se chega e sempre se mantém

plexas e muito abertas a perce-

um sentimento de fracasso e dí-

berem o seu entorno. A descri-

vida com o mundo.

ção simplificada que esses meios tentam fazer é uma forma de-

mediação

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Há 14 anos, tendo como objetivo oportunizar uma experiência conjunta baseada na troca constante de vivências e experiências do cotidiano entre instituições de ensino, o Colégio Medianeira deu vida ao Projeto Parcerias, que conta hoje com onze instituições participantes: Acrica, Casa dos Girassóis, Estrelinha Encantada, Evolutiva, Interpares, Medianeira, Novo Educandário, Objetiva, Pedro Apóstolo, Projeção, Reciclepel e Tiuí. O Projeto Parcerias acredita que a educação não é meramente um produto, cuja venda segue a lei implacável e avassaladora do mercado, mas que os colégios são importantes instrumentos de transformação social dentro de sua abrangência, buscando a formação de pessoas verdadeiramente humanas e de uma sociedade mais justa.

Conheça mais em www.projetoparcerias.com.br e torne-se uma instituição parceira.

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Nos últimos 6 meses, revistas e jornais tem me procurado para falar sobre estimulação; paradoxalmente, isso me estimula a dizer: parem de enlouquecer as crianças. Sim, é isso mesmo que ando percebendo por aí afora. Pais,

professores,

cuidadores

e todos os adultos que estão em torno das crianças querem estimulá-las

com

brinquedos

e brincadeiras que as deixarão

ver uma diferença entre cuidar, brincar e educar? Paulo Fochi – Depende, o que entendes por estimulação? Acho que a brincadeira que as crianças criam para experimentar papéis, ficcionar um universo, não necessariamente são estímulos, mas oportunidades de criar sentidos sobre si, sobre os outros e sobre o mundo.

rior, um convite à autorreflexão.

“inteligentes” e, para isso, criam

Brincar é uma atividade vital

Gostaria que você comentasse

ou utilizam coisas que piscam,

para e das crianças. Elas organi-

essa afirmação pensando no ex-

que fazem sons, ou ainda criam

zam o seu entorno e revivem o

cesso de estímulos destinados

agendas

ativida-

prazer do já sabido ao brincar. A

às crianças.

des para as crianças durante a

brincadeira torna-se uma lingua-

semana.

gem das crianças, com a qual

Paulo Fochi – Prefiro pensar

lotadas

de

comunicam e compreendem o

que sou a favor de outra dimen-

O melhor estímulo que nós,

são do tempo do que afirmar

adultos, podemos dar às crianças

que defendo o tédio. Soa pe-

é o direito de serem felizes, de

jorativa a palavra tédio quando

terem tempo para empreender

o que mais acredito é que ter

suas energias somente nas coisas

tempo para o tempo seja algo

que lhes interessam. As crianças

Não existe forma de educar

tão belo e grandioso, embora

estão dizendo: não aguentamos

sem cuidado e, da mesma forma,

eu entenda a ideia que Calligaris

mais e, como as crianças não

cuidar sem educar. São indisso-

compartilha.

têm sindicato, precisamos que

ciáveis e, por falar em cuidar e

alguém as defenda. Pais e pro-

educar, acredito que a melhor

fessores, não se preocupem em

forma de educar para o cuidado

preencher o tempo das crianças,

e cuidar para educar resida em

voltem suas preocupações para

criarmos uma cultura que preste

garantir que as atividades que as

mais atenção nas crianças e nos

crianças desejam fazer tenham

seus sonhos e desejos de serem

tempo de serem feitas.

felizes.

Tédio é viver sem tempo para se perceber no mundo, isso é entediante. As crianças funcionam em uma dimensão de tempo que não cabe nos ponteiros do relógio, a filosofia chama isso de aion. Foi compreendendo esta dimensão de tempo das crianças

Mediação – Toda a brincadei-

que comecei a questionar a ra-

ra, é claro, estimula. Qual a fun-

zão dos discursos que defendem

ção da brincadeira para o uni-

a estimulação das crianças.

verso infantil? Você conseguiria

mundo. Assim, acredito que cuidar, brincar e educar somam-se de tal forma que se torna impossível diferenciá-los.

comente esta entrevista mediacao@colegiomedianeira.g12.br

mediação

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alongar para quê?

artigo

Um corpo mais flexível é capaz de realizar movimentos do dia a dia com mais facilidade, como, por exemplo, juntar as chaves que caíram no chão ou a simplicidade de trocar uma lâmpada. Tudo bem. Mas como conseguir um corpo mais flexível, afinal? É relativamente simples: com alongamento. Descubra neste artigo os benefícios que o alongamento diário traz para sua vida. Por Lívia Gasparotto; Eliane Denise Bacil; Malu Cristina Lima; Jarbas Melo Filho; Simone Cunha; Anna Raquel Silveira Gomes

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alongamento é um exercício cujos efeitos, há tempos, são discutidos de maneira conflituosa. Questionamentos sobre a forma de fazer, a duração, a intensidade, tudo isso é abordado em revistas e reportagens, ora indicando a atividade a todo e qualquer momento, ora restringindo-a, algumas vezes até referindo-a como destrutiva. Então, o que pensar realmente sobre isso? Aprendemos desde criança, nas aulas de Educação Física, alguns movimentos para executar quando vamos praticar algum esporte. Qualquer pessoa sabe fazer um movimento para exemplificar um tipo de alongamento, isso não é problema. A questão que se pretende discutir nesta matéria é de que forma o alongamento deve ser feito para que se tenha realmente um efeito benéfico e quando devemos realizá-lo. É impossível imaginar que alguém já não tenha utilizado minutos ou horas de sua vida para fazer o tal “alongamento”. É com base nesta certeza que responderemos algumas dúvidas e traremos dicas para que, quando cada leitor deparar-se novamente com esse momento, que se faça de maneira benéfica e que se promovam, de fato, efeitos positivos para o corpo! Vai alongar? Então preste atenção: O que é o alongamento? O alongamento é como se fosse a “técnica” ou o “exercício” para se atingir a flexibilidade. A flexibilidade representa o movimento amplo, o máximo que cada

parte do corpo pode esticar. O problema é que esses movimentos podem ficar reduzidos, em alguns casos até se perderem. É para evitar isso que o alongamento acaba sendo tão importante. Alongar faz bem pra quê? O alongamento, como já dito acima, contribui para mantermos uma boa flexibilidade. Ela é importante para que consigamos executar com facilidade e leveza todos os movimentos que o corpo faz no dia a dia. Já pensou não conseguir esticar o braço pra alcançar um objeto no alto? Ou então, ter dificuldade pra alcançar o cadarço do tênis quando se senta para amarrá-lo? Pois bem, a falta do alongamento pode gerar situações extremas como essa e o que parece ser tão simples de se fazer, pode virar uma tarefa dolorida. E dor é uma sensação muito presente em pessoas pouco flexíveis. Um artigo escrito na Finlândia pelo grupo de Mikkelsson et al (2006), por exemplo, examinou se a flexibilidade e a atividade física feita pelos adolescentes teriam relação com a ocorrência de dor na coluna lombar, dor no pescoço e lesão no joelho na vida adulta. Os pesquisadores concluíram que a boa flexibilidade do adolescente pode contribuir para reduzir o aparecimento de dor no pescoço no futuro, que a atividade física realizada na adolescência contribui para redução de dor na coluna lombar na idade adulta e que existiu um risco, aumentado, de lesão nos joelhos de homens com atividade física fora do horário escolar. Em resumo, o estudo nos

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traz a importante notícia de que alongar bem e praticar exercício físico enquanto jovem traz benefícios à saúde na vida adulta. Como saber se preciso de alongamento? A prescrição de exercícios de alongamento deve ser realizada por profissional habilitado, isto é, professor de Educação Física ou Fisioterapeuta. Os exercícios de alongamento podem ser recomendados para prevenir e/ou melhorar encurtamentos, dores ou lesões musculares. Por horas seguidas, podemos ficar parados numa mesma posição. A permanência na posição sentada adotando posturas indevidas por longos períodos de tempo é facilmente vista nos alunos dentro da sala de aula, no adolescente que passa horas na frente do computador, no adulto no trabalho, no idoso que fica em casa. Tais posturas podem causar encurtamentos musculares. Posições como ficar em pé em filas, deitar todo encolhido no sofá, ficar agachado, encurvado, podem causar dores musculares. Outro exemplo é o suporte de mochilas escolares, muitas vezes regulada de forma assimétrica e inadequada para crianças e jovens. Assim, o tempo prolongado na mesma posição enrijece o músculo e por isso vamos ficando com má postura e sentindo dores principalmente nas costas, nos ombros e pescoço, podendo até ocasionar sensação de peso nas pernas. Difícil achar alguém que nunca apresentou alguma dessas características. Assim, os exercícios de alongamento podem ser realizados para melhorar os encurtamentos e do-

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res musculares principalmente em adultos e idosos. Como citado anteriormente, em adolescentes os exercícios de alongamento podem prevenir as disfunções musculoesqueléticas. Em crianças, até os 12 anos, a prevenção ou melhora de encurtamentos e/ou dores musculares pode ser realizada não apenas com exercícios de alongamento, mas com outros tipos de exercícios e atividades lúdicas. Dos 7 aos 12 anos, a postura da criança sofre grande transformação na busca do equilíbrio, compatível com as novas proporções de seu corpo. Nessa idade, sua mobilidade é extrema e a postura se adapta à atividade que ele está desenvolvendo. Quando fazer alongamento? Nesse caso, vai depender de qual objetivo você pretende atingir. Se a proposta é melhorar a flexibilidade, porque os pais a têm percebido reduzida ou se foi avaliada pelo professor de Educação Física ou fisioterapeuta, o alongamento pode ser prescrito, mas algumas dicas contribuem para que o alongamento seja mais efetivo: - Um aquecimento antes do treino promove maior extensibilidade das fibras musculares. Isso significa que se você fizer aqueles exercícios que esquentam o corpo, você vai conseguir esticá-lo com mais facilidade, o que é muito bom pra quem está encurtado. - Se você gosta de fazer musculação, por exemplo, não precisa alongar antes deste treino. Nesse caso, repetições leves e rápidas, feitas no próprio aparelho de musculação, já são suficientes pra preparar o músculo.

Existem formas diferentes de se alongar? Você pode alongar-se sozinho (alongamento ativo) procurando atingir o máximo que o corpo conseguir e segurar por um tempo mínimo de 15 segundos. O importante é verificar se as demais partes do corpo estão relaxadas para que não ocorram compensações ou tensionamentos que podem gerar dor ou lesão muscular. Você também pode alongar com a ajuda de outra pessoa (alongamento passivo). Nesse caso exija que este seja preparado e conhecedor da técnica, pois um movimento brusco, ou forçado, pode lesionar o músculo. O ideal é que você sinta um leve desconforto (“tipo esticar”) durante a posição do alongamento. Quantas vezes por semana, quantas repetições e qual a duração de cada repetição são suficientes para se alongar?

Para adultos: 2-4 repetições (10- 30s cada repetição). Idosos: 30-60s cada repetição. Para ganhos é recomendado tempo total de 60s para cada grupamento alongado. 2-3x/semana para aumentar a ADM ou flexibilidade. Ganhos expressivos obtêm-se com frequência diária de alongamento. Garber et al, 2011-ACSM

Quais são os cuidados que devem ser tomados no alongamento? Seguir a orientação de um profissional qualificado é o primeiro cuidado. Seu professor de


Educação Física ou o fisioterapeuta pode ensinar você a fazer os movimentos corretos e também verificar se existe alguma restrição caso possua doença ou limitação articular em que o alongamento deve ser executado somente ao lado do profissional ou se não é recomendado para o seu caso. Esteja sempre com vestimentas leves, que não atrapalhem o movimento que o corpo vai executar. O ideal é usar roupas largas, ou que tenham elasticidade, como aquelas usadas em academia. Preste atenção no tempo de duração do exercício, na percepção do corpo esticando e se o restante do corpo está livre de qualquer compensação. comente este artigo: mediacao@colegiomedianeira.g12.br

Este artigo foi desenvolvido dentro do Programa de Pós-graduação Mestrado/Doutorado em Educação Física – UFPR, na Disciplina “Adaptação

do Músculo Esquelético ao Exercício Físico”. Docente responsável: Profa Dra Anna Raquel Silveira Gomes

Lívia Pimenta Renó Gasparotto é fisioterapeuta (UENP), especialista em Recursos Terapêuticos Manuais e Posturais (UEL), especialista em Gerontolgia (UTFPR), mestre em Saúde Coletiva (UNIFESP) e doutoranda em Gerontolggia (UNICAMP).

Eliane Denise Araújo Bacil é professora de Educação Física (UFPEL), especialista em Educação Física, área de Atividade Física e Saúde (UFSC), mestre em Saúde Pública, área de Epidemiologia (UFSC) e doutoranda em Educação Física, área de Atividade Física e Saúde (UFPR).

Malu Cristina de Araujo Montoro Lima é Fisioterapeuta (PUCPR), pós-graduada em Fisioterapia aplicada à geriatria (PUCPR), mestre em Educação Física (UPFR), docente na Universidade do Contestado – Campus Mafra, e Membro da Sociedade Sul brasileira de Fisioterapia Traumato Ortopédica.

Jarbas Melo Filho é fisioterapeuta (UENP), mestre em Tecnologia em Saúde (PUCPR), especialista em Orto, Traumato e Desportiva (PUCPR), especialista em Fisiologia do Exercício Físico (UENP), com Formação em Estabilização Vertebral e Pilates.

Simone da Silva Cunha é Nutricionista (UFPR), fisioterapeuta (UTP), especialista em Nutrição Clínica (UFPR), Acupunturista (CBES), especializanda em Osteopatia pela EOM e mestranda em Fisiologia pela UFPR.

Anna Raquel Silveira Gomes é fisioterapeuta (PUCPR), mestre em Biologia Celular (UFPR), doutora em Ciências Fisiológicas (UFSCar), com pósdoutorado na Universidade de Sydney. É docente do Curso de Fisioterapia (UFPR), docente e orientadora Programa de Pós-graduação Mestrado/Doutorado Educação Física (UFPR) Referências Bibliográficas: GARBER, C.E. et al. Quantity and quality of exercise for developing and maintaining cardiorespiratory, musculoskeletal and neuromotor fitness in apparently healthy adults: guidance for prescribing exercise. Medicine and Science in Sports and Exercise, v. 43, n. 7, p. 1334-1359, 2011. MIKKELSSON, L.O. et al. Adolescent flexibility, endurance strength, and physical activity as predictors of adult tension neck, low back pain, and knee injury: a 25 year follow up study. , v.40, p.107–113, 2006.

recomendação Alongamento para todos Autor: Christophe Geoffroy | Editora Manole Este livro pretende ensinar diferentes técnicas de alongamento dos principais grupos musculares. Apresentando uma abordagem clara, simples, original e muito prática.

Alongamento: uma abordagem anatômica Autor: Brad Walker | Editora Manole Este livro foi escrito para todas as pessoas que buscam os benefícios do alongamento. Apresenta cerca de 200 ilustrações que mostram os principais músculos de cada região do corpo sendo trabalhados em 114 tipos de alongamento. Aborda os diferentes tipos de alongamento, as formas adequadas de se alongar e as regras para um alongamento seguro.

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artigo artigo

Quem são

os índios noBrasil? 16 mediação

Existem, no Brasil, diversos estereótipos e ideias préconcebidas a respeito dos indígenas, construídas ao longo do processo colonizador e que, em certa medida, seguem sendo reproduzidas pelos meios de comunicação e pelos discursos formadores de opinião. Descubra, afinal, quem são eles. Por Carolina Ribeiro Santana e Lucas Pacheco Ferreira


M

uitas pessoas costumam nos perguntar se ainda existem índios no Brasil. À primeira vista, a resposta é bastante objetiva: sim, há no Brasil mais de 800 mil índios, segundo a Fundação Nacional do Índio. Nesses diálogos, intriga-nos, contudo, a dúvida de estarmos, nós e nossos interlocutores, acessando a mesma ideia a respeito do que seja o índio. Ou seja, será que a palavra “índio” significa a mesma coisa em nosso raciocínio e no raciocínio das pessoas com quem estamos conversando? Ao dar continuidade a essas conversas nos deparamos, via de regra, com uma grande diferença entre o conceito de índio “dentro” de nossas cabeças e o conceito de índio “dentro” das cabeças de nossos interlocutores. São os indígenas quem mais sofrem com isso.

A diferença de visões, conceitos e ideias a respeito dos índios também causa diversos contratempos e dificuldades na elaboração e aplicação de políticas públicas, ocasionando situações em que os órgãos de Estado que trabalham com essas questões deparam-se com problemas de difícil solução. No Brasil, existem diversos estereótipos e ideias préconcebidas a respeito dos indígenas, construídas ao longo do pro-

cesso colonizador e que, em certa medida, seguem sendo reproduzidas pelos meios de comunicação e pelos discursos formadores de opinião. É muito comum, em textos que abordam a temática indígena, encontrarmos narrativas que nos remetem ao ano de 1500, quando Cabral aportou sua nau em nosso território. Remetem-nos à imagem das caravelas chegando e sendo recebidas na praia pelos índios boquiabertos e estarrecidos com aqueles seres desconhecidos e descomunais. Tão difundido é esse discurso que tendemos a aceitá-lo como natural, como se fosse a única versão do ocorrido. Sequer questionamos o fato de que essa é a versão contada pelos portugueses e que se tornou a mais difundida por ser a história registrada pelos “vencedores”, por assim dizer. Há, em contraposição, a versão contada pelos indígenas, pois não se pode imaginar que esses povos tenham tido visão tão assoladora sem opinar a respeito. Porém, o que se difundiu foi a visão que os europeus supuseram que os índios tiveram a seu respeito: que os europeus eram deuses, que mereciam todo o ouro e prata, que achavam que um europeu montado em um cavalo era um só corpo, etc. Difundiu-se, também,

a visão dos europeus sobre os indígenas: preguiçosos, ingênuos, sub-humanos etc. Aos indígenas, impossibilitados de serem sujeitos narradores de sua história em virtude da dominação, não foi dada voz para registrar suas percepções daquele momento, ficaram à margem da história, ainda que também tenham produzido significados acerca do contato. Assim, é preciso estarmos atentos ao fato de que a história contada pelo sujeito eurocêntrico acarreta dois grandes equívocos, os quais, quando reiterados, incorrem no erro da negação da alteridade, da diferença, que se reproduz desde o ano de 1500. O primeiro é o de estabelecer uma relação direta e imediata entre os índios e o passado; o segundo, por sua vez, se dá ao abordar a existência dos indígenas a partir do encontro com os portugueses, como se esse encontro tivesse trazido luz e progresso a essas civilizações. Embora pareçam questões relativamente simples de se argumentar em contrário, é preciso pontuar que essas duas questões já causaram – e ainda causam – muitas visões distorcidas e preconceitos. Quando relacionamos os índios com a história do Brasil Colônia estamos reforçando a noção

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de que tudo o que é indígena – a cultura, a alimentação, a língua, as vestes – é ultrapassado e não evoluído, aprisionado no passado. A tendência majoritária é a de pensar os índios a partir de uma visão eurocêntrica, que coloca o homem branco europeu como sendo o narrador da verdade dos acontecimentos históricos. Nessa perspectiva é que, até hoje, chamamos os índios de índios, uma nomenclatura utilizada pelos portugueses ao pensarem que estavam chegando às Índias Orientais, negando as formas próprias de autodesignação.

mesma de 500 anos atrás. Existe

Despender igual tratamento a todos os indígenas é um equívoco em que o Estado brasileiro, em alguma medida, incorre até os dias atuais. Essa compreensão de uma unidade que caracterize os índios não condiz com a realidade e contribui para reforçar o estereótipo que exige que o índio seja aquele indivíduo desprovido de pelos no corpo, que preserva a natureza e cuja cultura é a de não se vestir, de cultuar divindades ligadas aos elementos da natureza, de pintar o corpo e de viver em habitações de palha, dispostas de maneira circular dentro das florestas.

de, a cultura dos indígenas – assim

Quando falamos em cultura indígena, é preciso ter muito cuidado para não exigirmos que a cultura do indígena ainda seja a

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uma definição muito interessante do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, no seu ensaio “O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem”, que compara a forma como vemos a cultura com as esculturas de mármore e as esculturas de murta (um tipo de arbusto que pode ser moldado e modelado para paisagismo, típico dos jardins renascentistas). Segundo Viveiros, é muito comum a sociedade não indígena pensar na cultura dos índios como algo imutável, tal qual as esculturas de mármore, quando na verdacomo a de qualquer grupamento humano – está mais para as esculturas de murta, que se modificam com o passar do tempo. Alguns indígenas praticam seus rituais e danças, cultuam suas divindades, utilizam a medicina tradicional, mas também utilizam a medicina convencional, usam celulares, facebook, calça jeans, e isso não faz deles menos indígenas. O mesmo se aplica à sociedade não indígena. Alguém deixa de ser brasileiro por usar uma calça jeans americana, um tênis feito na China, por beber um vinho chileno? Seria razoável exigir que nós, brasileiros, ouvíssemos apenas samba, comêssemos apenas mandioca, jogássemos apenas futebol?

O Estado brasileiro já atuou de diversas maneiras com os povos indígenas. Houve um período em que os índios foram escravizados; seguiu-se um período de catequização e de conversão de almas para o catolicismo; durante a existência do Serviço de Proteção ao Índio – SPI, a política indigenista oficial pretendia assimilar os índios à cultura nacional, tratando de atraí-los para perto dos centros urbanos, vesti-los, ensinar o hino nacional e ensinar um ofício que permitisse a sua integração e contribuição com o crescimento econômico da Nação. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, inicia-se um novo ordenamento jurídico quanto à alteridade e à consideração de peculiaridades, particularidades e diferenças a serem protegidas juridicamente. Assim, abandona-se – pelo menos na teoria – a ideia de que o índio precisa, tal qual a natureza, ser preservado, e passa-se a considerar essas pessoas a partir de uma perspectiva da cultura, como um Outro pensante digno de direitos, deveres e respeito. Apesar de a Constituição Federal de 1988 ter tido muitos avanços no que diz respeito aos direitos dos indígenas, ainda temos muito o que avançar nesse tema. O Direito não dá conta de toda a complexidade a que se dispõe regular e, para


isso, é preciso chamar os indígenas para pensar, conjuntamente, as políticas que os afetem, conforme dispõe a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário. Para fazer isso de forma comprometida e séria é necessário sermos mais radicais com alguns aspectos da construção do pensamento moderno. Para citar

novamente o professor Viveiros de Castro, é preciso abandonar a ideia, ensinada por René Descartes, de que “Penso, logo existo” e partir para um exercício de alteridade norteado por “O outro existe, logo pensa (...), pois só é interessante o pensamento enquanto potência de alteridade”.

Carolina Ribeiro Santana é Coordenadora Regional da Funai do Sul da Bahia, Indigenista Especializada e Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-RJ. Ex- aluna do Colégio Medianeira

Lucas Pacheco Ferreira é Indigenista Especializado, Técnico da Coordenação Geral de Monitoramento Territorial da Funai/Brasília e Cientista Social formado pela USP.

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Recomendações Índios no Brasil - História, direito e cidadania Autora: Manuela Carneiro da Cunha | Editora Claro Enigma De mão de obra escrava a obstáculo à ocupação das terras, o status dos índios foi mudando ao longo dos séculos. Nos cinco ensaios que compõem Índios no Brasil, a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha percorre a história da população indígena no Brasil desfazendo preconceitos recorrentes e explicando como se deu a formação da identidade indígena.

Filme: Terra Vermelha Diretor: Marco Bechis Um grupo de índios Guarani-Kaiowá vive em uma fazenda trabalhando em condições de escravidão e ganham alguns trocados para posarem de atração turística. Eles decidem reivindicar a devolução das terras de seus ancestrais e começa um grande conflito com os fazendeiros.

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artigo

A supremacia do

DIREITO e o FIM da

reciprocidade?

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O aspecto ou o espectro da realidade atual vem dando a sensação de que se lutou tanto pela emancipação do indivíduo que o “eu” ficou maluco. A libertação do “eu” chegou ao seu apogeu e agora vive a experiência da solidão, porque desfiliado e privado das antigas estruturas coletivas que lhe davam proteção. Por Adalberto Fávero

“Um banqueiro é alguém que lhe empresta um guarda-chuva quando o dia está ensolarado e o pega de volta assim que começa a chover.” (Mark Twain)

O

início do ano de 2014 acon-

diz Luiz Gonzaga Belluzo (econo-

empresas investem na imagem da

tece em um contexto brasileiro

mista), a economia, agora eleita

Copa; o Brasil não foi à falência;

com cores próprias, mantendo,

a mãe das ciências, é uma ciên-

a população fez férias, como em

no entanto, a realidade de per-

cia triste que manda e desmanda

anos anteriores; muitos acompa-

manências e rupturas dos anos

nas lidas atuais e nas previsões de

nharam suas novelas e “enrique-

anteriores.

futuro. Favorece os interesses do

ceram sua cultura” com o BBB 14

lucro, mas já não interfere tanto

e seu guru Bial... Enfim, o mundo

na situação macro do país e na

e nós mesmos vamos em frente,

opinião pública.

apesar dos economistas e suas

Ao término de 2013, os economistas, mais uma vez, apresentaram previsões alarmantes e aterradoras para o Brasil e para o

O mercado reagiu aumentan-

mundo. A inflação estaria acima

previsões.

do os preços acima da inflação; os

No conjunto dos acontecimen-

dos seis por cento ou até seis e

hotéis estabeleceram preços es-

tos dos últimos anos, no entanto,

meio (fora da meta, portanto); a

tratosféricos na temporada de fé-

seria importante destacar uma

crise de emprego e comércio era

rias e no período da Copa; a situa-

problemática que vai nos afetan-

evidente; a Copa seria desastrosa;

ção de pleno emprego continuou

do e interferindo no modo de

as manifestações compromete-

consistente, entretanto; a inflação

viver e trabalhar: a judicialização

riam, ainda mais, a imagem do

e o IGPM ficaram abaixo dos seis

das relações.

país; o julgamento do mensa-

por cento; os economistas, “os/

lão seria um divisor de águas na

Ela nos tem incomodado nas

as comentaristas políticos” e so-

escolas e nos espaços de conví-

ciólogos de plantão analisaram

vio coletivo quanto aos encami-

os “rolezinhos” exaustivamente e

nhamentos com as famílias, pois

não conseguiram achar revolução;

qualquer assunto tem ameaça de

acabou-se “descobrindo” que os

processo; quanto à autoridade

shoppings não são praças públi-

em sala de aula, porque qualquer

cas, têm cor branca e rica, são o

observação mais incisiva pode ser

corrupção; os “rolezinhos” espantariam os consumidores dos shoppings e se constituiriam em mais uma prova da incapacidade de gestão dos governos locais e federal, etc. Tudo aconteceu num roteiro

paraíso dos mercadores e não da

objeto de retaliações; quanto às

conhecido e preestabelecido de

plebe rude; certamente o funk

reprovações, pois facilmente se

acordo com interesses, não poucas

ou o rap do consumo não fará aí

recorre aos núcleos de educação

vezes, alheios à realidade. Como

grandes revoluções; as grandes

ou se vai aos tribunais; quanto aos

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cuidados com a aprendizagem, porque os laudos de deficiência ou altas habilidades (superdotação) são abundantes e cada vez mais oficiais; sobre as relações de trabalho, pois se conta na ponta do lápis o que se faz ou se deixa de fazer por parte das empresas e dos empregados; sobre as interferências formativas, porque o assédio moral e o bullying tornaram-se recursos de linguagem e padrão de relações, não havendo lugar para o outro; quanto à dúvida sobre até que ponto pode ir a interferência e à sensação de estar com “as mãos amarradas” para intervenções mais incisivas na formação; quanto à profissão de educador, pois a crise de sonho e perspectiva confunde-se com defesa de crise de autoridade e, facilmente, relega-se a outrem ou a outras instituições ou instâncias o serviço de formar as próximas gerações... Enfim, a cada dia recusa-se mais a abrir mão de qualquer coisa para se viver em sociedade e a apologia ao “eu absoluto”, tendo como mediador o direito penal e/ ou profissionais e entidades externos ao convívio das pessoas. Isso implica mudança estrutural das relações, acaba com a reciprocidade, elimina a necessidade de viver com o outro e anuncia a emancipação final do indivíduo. Diante dessa situação, parece ser necessário um aprofundamento referencial dessa questão, já que nos propomos a refletir e interferir na formação de pessoas

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que sejam sujeitos caracterizados por uma práxis capaz de se inserir no mundo em vista de sua transformação e no sonho de um mundo justo e solidário. O aspecto ou o espectro da realidade atual vem dando a sensação de que se lutou tanto pela emancipação do indivíduo que o “eu” ficou maluco. A libertação do “eu” chegou ao seu apogeu e agora vive a experiência da solidão, porque desfiliado e privado das antigas estruturas coletivas que lhe davam proteção. Essa solidão, entre outras coisas, tem transformado os psicólogos, terapeutas e neurologistas com seus laudos mágicos em feiticeiros do novo/velho tempo... admirável mundo novo! Importa insistir nessa questão porque o futuro foi esvaziado e deixou de informar o presente, por isso há falta de sonho e de perspectiva. Estávamos, como dizia Levinás, “acostumados à ideia de que o tempo caminha para algum lugar”. Daí o presente ser soberano e a barbárie possível, pois a impressão é que tudo acaba aqui e agora e não se caminha a lugar nenhum. Num tempo sem perspectivas, o direito e a lei imperam soberanos para resolver as desavenças do dia a dia. O direito penal foi para dentro das casas e os indivíduos veem suas relações mais íntimas serem resolvidas por ele, o que não deixa de ser a mais recente vitória do indivíduo e do individualismo frente ao coletivo.


No entanto, direito demais mata os direitos, o que significa que ele passa a ser solicitado para resolver desavenças e situações juridicamente não identificáveis. Essa situação leva o direito a promulgar valores e crenças, transformando os juízes em novos taumaturgos diante das representações coletivas insuficientes para reger as relações coletivas.

cordialidade foram rompidos. A

comensais se forem fumante s; en-

prisão é a mais nova forma dos sa-

fim, de sconfiem de sua parceira ou

crifícios humanos da antiguidade.

de seu parceiro sexual, que pode

Vive-se o império do direito dentro das famílias, das escolas, dos shoppings, dos círculos de amigos, das relações conjugais e entre pais e filhos.

uma população carcerária de 5,4

A supremacia dos tribunais tem pautado o imaginário social e político, criando unanimidade perigosa, despolitizando as relações e apontando para um novo formato de ditadura. A liberdade do indivíduo e seus recursos para mantê-la a todo custo e sem perdas na convivência social deu aos juízes esse lugar privilegiado e colocou em risco a conquista dos indivíduos e do direito de ser livre e exercer seu livre arbítrio, além de anunciar o fim do homem público, dos fóruns públicos e coletivos de discussão e decisão. O resultado final da “mediação” dos tribunais é a cadeia e a legitimação do estado prisional, por um lado. Essa alternativa tem lotado as prisões com milhões de “afastados” da sociedade, empilhado seres humanos em celas minúsculas e se mostrado inútil em conter a violência e garantir a paz social. Isso porque revela que os laços sociais de reciprocidade e de

As masmorras do Maranhão (abrindo um parêntese), que serviram de mote ao noticiário dos últimos meses, são apenas um exemplo do que acontece no mundo e no país. Em 2012, o Maranhão possuía 24 unidades prisionais com 2219 vagas, diante de mil detentos, sendo que 55% do

contaminá-lo; ou do u suário da e strada que pode matá-lo, etc. E stamos em guerra contra um inimigo que não tem rosto... O novo código penal mostra , involuntariamente , o elo de ligação entre dua s lógica s contraditória s do individualismo contemporâneo: a da ilimitada reinvindicação de direitos e a da exigência de proteção.

total de presos são provisórios, ou

O educador, enquanto me-

seja, sem condenação definitiva.

diador adulto com espaço e

No país todo, entre 2005 e 2012,

tempo definidos de/para in-

a capacidade penitenciária pas-

tervenção educativa, situa-se

sou de 206,5 mil para 310,6 mil

numa encruzilhada angustian-

detentos, com expansão de 50%

te: desconhecer as mudanças

no número de vagas. Entretanto, nesse mesmo período, os presos

e as novas características dos educandos e dos grupos de alu-

aumentaram em proporção de

nos, seguindo impassivelmente

73% (oficialmente, de 296,9 para

adiante ou constituir a profis-

513,7 mil).

são pública de educador como

Trata-se de caminho sem saída que já nos coloca entre as maiores populações carcerárias do ocidente civilizado e cristão.

sujeito da tessitura da própria profissão e do novo momento histórico e formativo. A primeira opção o torna refém do dia a dia no rolo compressor das ma-

Por outro lado, esse caminho

zelas da cultura de momento e

estabelece um novo e inusitado

a segunda lhe possibilita auto-

marco de relações entre as pesso-

ria e exige compromisso crítico,

as que poderia ser ilustrado pelas

mas também traz incômodos

palavras de Antoine Garapon e

próprios de quem opta por ser

Denis Sala, citado por Guillebaud

sujeito da história.

em O princípio da humanidade:

Episódios recentes prota-

Criança s , não confiem em seu s

gonizados pelo STF e pelo STJ

pais , que podem maltratá-la s e abu-

brasileiros são exemplos claros

sar de você s; e s posa s , de sconfiem de

desse caminho, aparentemen-

seu s maridos , que podem se mostrar

te, sem volta: legislação sobre

violentos; empregados , cuidado com

os financiamentos das cam-

seu s patrõe s , que podem a ssediá-los;

panhas políticas (é função do

cliente s de um re staurante , de seu s

Legislativo por origem); a pre-

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sunção da culpa em julgamentos midiatizados; o espetáculo de prisões sem aval do plenário dos juízes; o exercício da sentença como remédio político ou da sanidade das relações dos casais; o trato diferenciado de denúncias do ministério público quando atinge réus em posição social ou política diversa, pois explicita a não igualdade perante a lei... No rol dessas questões, situase, igualmente, a presunção do direito de intervenção na vida de outros povos, pretensamente em defesa da democracia e de seus direitos... Nessa estrada ficou a Líbia, por exemplo, que representava a maior renda per capita da África e está mergulhada no caos; antes fora a vez do Iraque e Afeganistão... Agora a Síria é o inimigo a ser derrotado pelos aliados e defensores “da liberdade” ou o Irã com seu projeto nuclear que faz tremer Israel e o ocidente ou, ainda, a Índia e o Paquistão com suas bombas nas mãos para garantir a paz. Na Ucrânia, a população vai à rua para defender a adesão do país ao mercado Europeu, diante do até então presidente que tinha clara tendência e desejo de aproximação com a Rússia, já que Putin vai tecendo a passos largos uma nova união das repúblicas soviéticas. O terror da Al-Qaeda serve de munição de reserva desde a derrubada das torres gêmeas, ainda que cresça a sensação de que a “montagem dessa obra” possa

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ter sido interna e com o interesse em criar um inimigo comum a ser abatido. No Brasil, a denúncia pela Comissão da Verdade do possível assassinato de JK e reabilitação de João Goulart apontam para uma evidência do que foram no Brasil e na América Latina inteira os golpes militares, apelidados de revolução: a necessidade de assegurar os interesses do capital internacional em comunhão com o grande capital nacional e garantir a gestação daquilo que nos acostumamos a chamar de neoliberalismo. O neoliberalismo é o pai atual do “eu” solitário, do individualismo extremo e da mais recente onda de ataques das potências econômicas e militares sobre países considerados periféricos, mas estrategicamente localizados ou possuidores de riquezas minerais de interesse das empresas transnacionais. A África e a Ásia são os territórios da nova geopolítica mundial. EUA, Rússia, China, Japão e mesmo os demais BRICs investem em influência, possibilidades de extração de minérios, venda de armas, construção de usinas e rodovias e na corrupção dos governos constituídos para lograr lucros atuais e futuros. A crise mundial e, sobretudo, da Europa continua a mergulhar países como Espanha, Portugal e Grécia na insolvência e desespero da população economicamente ativa e na insegurança absoluta os aposentados (lembre-se que

esse foi o continente do Estado de Bem Estar Social). No contraponto dessa alarmante problemática estão, entre outras possibilidades: os movimentos reivindicatórios que retomam fôlego no mundo todo e no Brasil; o papa Francisco em decisões que anuncia novos ares de transparência na Igreja, denuncia a fome de lucros, apela pela paz, fruto da justiça e se constitui numa voz cada dia mais ouvida e respeitada; os movimentos de defesa da vida que ocupam espaços significativos pelo respeito ao planeta e a todas as formas de existência em um mundo cada vez mais ferido pela exploração predatória... Enfim, faz-se urgente gestar uma nova esperança, acreditar em novas possibilidades, reeditar a formação da cidadania, redescobrir caminhos, ressignificar a profissão e se arriscar em levantar bandeiras e sonhos. Esse tecer novas formas e sentidos passa por reaprender a viver e agir no coletivo em contraponto à solidão do “eu” e se trata de urgência urgentíssima. Trata-se de reaprender a viver com o outro e com os outros. Pensamos que essa crença pode se realizar de forma privilegiada na Escola, aprendendo ou concretizando caminhos que aliem as permanências, as simultaneidades e as rupturas com o que fizemos até o momento e o que pretendemos realizar no presente, reaprendo a viver com reciprocidade.


Registre-se que a Escola pauta essa ação por meio do conhecimento e do trato crítico e situado do seu fazer educativo, o qual precisa estar pautado em conteúdos inseridos na realidade e ser capaz de dar significado ao viver de educadores, de alunos e, ainda que indiretamente, de suas famílias. Educar e formar via conhecimento caminha, necessariamente, pelas disciplinas e seus conteúdos como meio, leitura e intervenção na realidade; passa pelo reaprender a viver e experienciar o coleti-

vo; passa por ser capaz de perder alguma coisa do “eu” absoluto para reaprender a viver em sociedade; passa por retomar bandeiras de justiça e solidariedade na direção da paz pessoal e social.

Adalberto Favéro é diretor acadêmico do Colégio Medianeira. Formado em Pedagogia, História e Teologia, é especialista em Currículo e Práticas Educativas (PUC-RJ) e mestre em Educação (PUCPR).

Sem essa perspectiva e intervenção, a escola e nossas vidas perdem sua razão básica de existência e delega-se a outrem a decisão sobre o presente, sobre o nosso futuro e a nossa história. comente este artigo: mediacao@colegiomedianeira.g12.br

Recomendações O princípio da humanidade Autor: Jean-Claude Guillebaud | Editora Ideias Em ‘O Princípio de Humanidade’, o francês Jean-Claude Guillebaud tece um panorama da atual sociedade humana que se encontra dividida entre o fantasma de horrores do século XX e as esperanças de um novo tempo de luz. Como se o mundo estivesse sob a espada de Dâmocles, o autor permeia o livro com considerações sobre teologia e genética, informática e biologia, guerra e paz. ‘O Princípio de Humanidade’ apresenta questionamentos que servem de bússola a antropólogos, sociólogos e filósofos no eterno caminho de compreender o ser humano.

A reinvenção do mundo Autor: Jean-Claude Guillebaud | Editora Bertrand Brasil O interesse pelo futuro, a igualdade, a razão, o universal, a liberdade, a justiça - cada um destes valores é fruto de uma história específica ,enraizada no pensamento grego, no judaismo e no cristianismo. Só a clara consciência dessa história permite compreender por que estes valores, estão ao mesmo tempo mais frágeis do que nunca. Reinventar o mundo não é somente resistir a barbárie, é redefinir com lealdade o que nos une e para que futuro queremos caminhar.

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artigo artigo

Judicialização

das RELAÇÕES e o banal

Hoje, quando lemos nos veículos de comunicação (ou quem sabe até defendamos) que “bandido bom é bandido morto”, ainda não conseguimos compreender o porquê de um desejo tão sanguinário e de destruição do outro. Somos violentados pela brutalidade todos os dias: da imagem, da pobreza, do reducionismo da vida ao consumo, do machismo, do descaso, da força, do preconceito, da alienação... Por que aplaudimos algumas violências e condenamos outras? Por Mayco Delavy 26 mediação


A

s férias nossas de cada ano sempre nos lembram do descanso merecido. Depois de longos dias de trabalho e entrega, o nada e a possibilidade de viver com as pernas para o ar. Esse reencontro com o vazio da agenda que, rotineiramente, torna-se mais uma possibilidade de fazer “alguma coisa”, nos remete às nossas origens primitivas e à nostalgia da vida em um paraíso há muito perdido. Se o conceito de terra “prometida” ainda existe, pode ser comprado na artificialidade do shopping e no conforto de uma vida burguesa que engole a si mesma em velocidade vertiginosa. Nas férias, ao menos para os que gostamos de leitura, é tempo de ler pausadamente o jornal diário. As páginas de economia, cultura, política, mundo... Podem ser saboreadas e dissecadas naquilo que elas têm de pior. Sim, o jornal, infelizmente, também é veículo que facilita a preguiça do pensar. Notícias que não nos deixam espaço de reflexão nas entrelinhas. Maldade diária vendida ao gosto do freguês. Já na primeira semana de 2014, deparamo-nos com inúmeras notícias que falavam da violência no Brasil. Entre elas, destacamos a seguinte manchete: “Presos filmam decapitados em penitenciária do Maranhão” (jornal Folha de São Paulo, 7 de janeiro de 2014, http://goo. gl/npYj9H, último acesso: 05 de março de 2014, 19h22min); Acostumados que somos à superficialidade diária das notícias, lemos e assistimos (o link direciona para um vídeo) com grande surpresa e terror o conteúdo da matéria

(o conteúdo do vídeo é impróprio para menores de 18 anos e pessoas com forte sensibilidade a imagens de violência). Logo no início, vemos um jovem que teve a couro da perna arrancado e está agonizando no chão... Paramos por aqui com a descrição das cenas, pois a força simbólica da violência sempre tem a capacidade de nos emudecer. Passadas algumas semanas desde a publicação da notícia na Folha, o impacto das imagens ainda guardam o vigor dos grandes espetáculos de aniquilação da vida. Um ser humano lançado à própria sorte (neste caso, azar). Cenas muito próximas do princípio que deu base a regimes como o nazismo e o stalinismo: o ser humano é supérfluo; por isso, dele podemos nos desfazer a qualquer momento. Eis a premissa!! Somente ela a nos conduzir diariamente.

brasileiro configura-se como um campo de concentração de vidas. Quem de nós nunca se deparou com a seguinte frase: “O Brasil gasta a cada ano uma fortuna com um presidiário e eu, trabalhador, sou obrigado a pagar impostos”? Talvez com outra formulação, mais culta ou coloquial, mas o central da mensagem não foge muito do expresso acima. Realmente, ao analisarmos os dados, surpreendemo-nos com as cifras. Estima-se que o país gaste em média 40 mil reais por ano com a manutenção de um apenado em um presídio federal e 21 mil reais nos presídios estaduais. Comparados esses números, por exemplo, com o gasto médio do governo com um aluno da educação básica ou com um professor, a “indignação” parece aumentar na mesma medida da desigualdade dos investimentos: gasta-se em média 15 mil reais por ano com um aluno da educação básica. No estado do Paraná, um professor concursado de 20h/a semanal recebe, em média, R$ 1.044, 94 por mês. A análise das informações e números, geralmente, permanece apenas nas cifras e no cálculo simples: se gastamos 15 mil com um aluno e 40 mil com um “preso”, há algo de errado com as prioridades do estado! Não estaríamos nós sendo “enganados” pelos nossos governantes? As perguntas e afirmações poderiam chegar ao infinito. No entanto, antes da analise numérica, devemos levantar mais algumas questões que nos permitam uma apreciação geral da situação: i) quando analisamos o montante

JUDICIALIZAÇÃO Para os que já trabalhamos com apenados (presos condenados), escutamos as suas histórias, travamos contato com as suas famílias, entregamos as suas mensagens para o mundo, não há como não diferenciar o “crime” do “criminoso”, tampouco não pensarmos na “gradação” utilizada para a punição (ou não) de determinados crimes: 20 anos para o crime X, 40 anos para o crime Y, 5 anos para o crime Z... O velho adágio que afirma que a justiça “é cega” porque não faz distinção entre as pessoas tem, com toda certeza, seu grau profundo de falsidade e injustiça. Não há como abstrair a pena do apenado e o atual sistema penitenciário

DAS RELAÇÕES

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de 40 mil reais e o comparamos com a situação real dos presídios (ao menos da grande maioria das penitenciárias brasileiras), algo na conta não fecha: celas abarrotadas com o triplo ou quádruplo da sua capacidade original; ii) alimentação de péssima qualidade; iii) lógica do confinamento humano e da privação de todos os direitos defendidos por todos nós na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Constituição Federal; iv) total incapacidade de “recuperação” do condenado: as prisões transformam-se, na verdade, em fábricas de produção da marginalidade; v) se vivemos em um país da sonegação fiscal e do desvio das verbas públicas, essa realidade seria uma exceção para os investimentos em presídios? vi) por fim, não há como não levantarmos a questão do “lugar” ou da função social dos presídios na sociedade hodierna, especialmente a brasileira: uma sociedade pautada pela lógica do medo ne-

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cessita de grandes santuários que revelem o lugar do culto ao terror e à judicialização. Hoje, quando lemos nos veículos de comunicação (ou quem sabe até defendamos) que “bandido bom é bandido morto”, ainda não conseguimos compreender o porquê de um desejo tão sanguinário e de destruição do outro. Alguns sempre contra argumentam: “Só existe defesa de direitos humanos por parte daquele grupo de pessoas que nunca sofreu uma perda violenta na família, nunca foi assaltado, machucado etc”. Realmente temos que concordar que toda forma de violência não é benéfica. Todavia, não se erradica a violência com veículos ainda mais violentos. Essa é apenas a propagação da lógica do mais forte. Somos violentados pela brutalidade todos os dias: da imagem, da pobreza, do reducionismo da vida ao consumo, do

machismo, do descaso, da força, do preconceito, da alienação... Por que aplaudimos algumas violências e condenamos outras? Se 20 centavos da passagem de ônibus nos fizeram ir para a rua em número tão grande em junho de 2013, que sentimento nos desperta a aniquilação da vida? Se a vida é um valor inviolável, devemos aceitar a universalidade desse princípio que deve se estender a todos que têm vida (inclusive àqueles que julgamos e nomeamos BANDIDOS)! Copa do mundo, férias, trânsito, praia, lazer... O mundo continua a desmoronar em torno das nossas “amenidades”. Os mais afortunados ainda conseguem construir um microcosmos de artificialidade semelhante àquele preparado para o jovem Sidarta Gautama... Enquanto isso, a brutalidade do real a nos perseguir... Somos ainda “humanos”? Primo Levi e a atualidade das suas me-


mórias, escritas e refletidas ao longo da sua vida, pode nos ajudar a encerrar/reabrir essa breve reflexão: É isto um homem? Vocês que vivem seguros Em suas cálidas casas, Vocês que, voltando à noite, Encontram comida quente e rostos amigos, Pensem bem se isto é um homem Que trabalha no meio do barro, Que não conhece paz, Que luta por um pedaço de pão, Que morre por um sim ou por um não. Pensem bem se isto é uma mulher,

Sem cabelos e sem nome, Sem mais força para lembrar, Vazios os olhos, frio o ventre, Como um sapo no inverno. Pensem que isto aconteceu: Eu lhes mando estas palavras. Gravem-na em seus corações, Estando em casa, andando na rua, Ao deitar, ao levantar; Repitam-nas a seus filhos. Ou, senão, desmorone-se a sua casa, A doença os torne inválidos, Os seus filhos virem o rosto para não vê-los. (Primo Levi, É isto um homem?, 1958).

Referências bibliográficas ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. (Tradução: Roberto Raposo). São Paulo: Companhia das Letras, 1989. LEVI, Primo. É isto um homem? (Tradução: Luigi Del Re). Rio de Janeiro: Rocco, 1988. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. (Tradução: Raquel Ramalhete). Petrópolis: Vozes, 2011.

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Mayco Delavy é Formado em Filosofia (FAJE – Faculdade Jesuíta, em Belo Horizonte, MG), especialista em Ética (PUCPR) e mestrando em Filosofia (PUCPR). Já trabalhou com apenados (2006/2007) na Pastoral Carcerária e no Comitê de Direitos Humanos em João Pessoa (PB) e Belo Horizonte (MG). Atualmente, trabalha no Serviço de Orientação Pedagógica de 8º e 9º anos, no Colégio Medianeira.

Recomendações A origem de totalitarismo Autora: Hannah Arendt | Editora Cia das Letras Hannah Arendt primeiro se propõe a elucidar o crescimento do antissemitismo na Europa Central e Ocidental nos anos 1800 e prossegue com a análise do imperialismo colonial europeu desde 1884 até a deflagração da Primeira Guerra Mundial. A última seção discute as instituições e operações desses movimentos, centrando-se nos dois principais regimes totalitários - a Alemanha nazista e a Rússia stalinista. Arendt considera a transformação de classes em massas, o papel da propaganda para lidar com o mundo não totalitário e o uso do terror como fatores essenciais para o funcionamento desse tipo de regime. E no capítulo de conclusão, ela avalia a natureza de isolamento e solidão como precondições da dominação total.

É isto um homem? Autor: Primo Levi | Editora Rocco É isto um homem?’ é um libelo contra a morte moral do indivíduo. No livro, o escritor e químico italiano Primo Levi relembra seu sofrimento num campo de extermínio, sem, contudo, invocar qualquer resquício de autopiedade ou vingança. Deportado para Auschwitz em 1944, entre outros 650 judeus italianos, Levi foi um dos poucos que sobreviveram, retornando à Itália em 1945.

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artigo

Paideia:

A FORMAÇÃO DO HOMEM

GREGO A Paideia grega conduziu ao primeiro movimento humanista conhecido na história. Do legado desse povo, não recebemos o individualismo, mas sim a compreensão do eu subjetivo no movimento da ideia, enquanto verdadeira forma humana: a autenticidade do ser sob uma forma perfeita e independente Por Fernando Guidini e Ricardo Tescarolo

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É

possível compreender a formação inicial da cultura ocidental pelas lentes do conhecimento? Essa pergunta torna-se condição de possibilidade para alavancar a reflexão aqui proposta: um olhar sobre a obra Paidéia: a formação do homem grego, do filólogo alemão Werner Jaeger, focalizando a formação de um modo de ser cultural, mediatizado pelo conhecimento, sob as formas iniciais de um modelo educativo, responsável pelo surgimento da Pedagogia. A tese defendida neste ensaio versará sobre a intersecção entre conhecimento, educação e pedagogia, demonstrando como, na antiguidade clássica, a filosofia, mais do que uma simples teoria, constituiu-se como um modo de vida, pretendendo realizar o homem na sua mais radical humanidade. Desse modo de ser, de pensar e de conviver em sociedade surge, a partir do século IV a. C., a sistematização inicial de uma ciência, responsável pela transmissão do conhecimento: pela sofística, inicia-se a popularização democrática do saber, estabelecendo o hodos responsável por responder à questão: como é possível ensinar a Areté? Inicialmente, faz-se necessário refletir sobre o título da obra: Paideia. Na língua latina, o termo foi traduzido por cultura. Aqui, significa a designação exata de um todo em questão, nada abstrato, mas sim em relação ao modo de ser concreto de um povo. Relaciona-se aos gregos e ao seu lugar na história da civilização ocidental. Neste contexto, refere-se à formação da pessoa humana individual, à sua

educação, em consonância com a sua forma genuína e perfeita de ser, relacionando conhecimento e vida social. Para os gregos, portanto, a verdadeira Paideia consistia na busca pessoal pela verdade no espaço da polis, enquanto vida em comunidade.

legado desse povo, não recebe-

Para eles, a educação é comunitária. Enquanto modo de proceder consciente, pode modificar a natureza física do homem, elevando suas qualidades e capacidades em um nível superior. Ao conduzir à descoberta de si próprio, pode criar, pelo conhecimento do mundo interior e exterior, formas melhores de existência humana. É fato que outras e diferentes formas de realizações artísticas, religiosas e políticas, fazem parte da história anterior da humanidade. No entanto, a arché da Paideia como aqui a compreendemos, inicia-se com os gregos.

vida na polis, pois o homem é um

A Paideia grega conduziu ao primeiro movimento huma-

centralidade de Homero que, pelas

nista conhecido na história. Do

na cultura grega os princípios da

mos o individualismo, mas sim a compreensão do eu subjetivo no movimento da ideia, enquanto verdadeira forma humana: a autenticidade do ser sob uma forma perfeita e independente; porém, entrelaçada ao movimento e à ser político. Como compreender, então, o impulso orientador da educação que, a partir da sua essência, confere princípios identitários e norteadores a este povo? Jaeger responde à questão voltando-se inicialmente para a primeira Grécia. Deste período histórico, retoma conceitos centrais de uma sociedade em fase embrionária de formação, demonstrando a função da educação sob os conceitos de nobreza e Areté. Resgata, a partir de então, a suas obras Ilíada e Odisseia, plasma

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atingiu uma unidade de consciência nacional e, como diz Jaeger, imprimiu o seu selo sobre toda a cultura grega posterior.

nobreza, da honra e da virtude. Como exemplo do modelo educativo expresso nas obras, observamos as palavras de Fênix, educador de Aquiles, quando retrata ao jovem o fim para o qual foi educado: proferir palavras e realizar ações. A Areté, neste momento histórico, é um equilíbrio entre a ação e a nobreza de espírito. Vemos, pela primeira vez, a educação converter-se em formação, formalizando o homem de acordo com um modelo. Homero é considerado, assim, o primeiro educador de toda a Grécia. As raízes da sua poesia mergulharam nas camadas mais profundas do ethos grego, demonstrando o que une e move a todos nós. A mitologia presente em seus versos retrata a realidade humana em relação à comunidade, no intuito pessoal e coletivo de realizar os objetivos mais elevados. O elemento normativo, então presente, demonstra o germe de uma ética pautada pelas leis do ser, e não do mero dever. É pelas mãos de Homero que, pela primeira vez, o espírito pan-helênico

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Neste momento da reflexão, Jaeger dirige-se a um segundo educador que, ao lado de Homero, revela uma esfera da formação humana totalmente diferente do mundo e da cultura dos nobres. Trata-se do beócio Hesíodo. Nele, revela-se a segunda fonte da Paideia: o valor do trabalho. Para o poeta, a educação e a prudência na vida do povo impõem-se enquanto modos de ser, manifestando-se no trabalho diário da sua profissão. Na obra de Hesíodo, observamos a introdução da ideia do direito, frente à qual deverá brotar uma sociedade melhor. É assim que a diké e o trabalho se estabelecem como pilares da educação e da cultura popular. O estudo sobre a cultura e a educação grega arcaica chega à polis. É pela estrutura social da vida na cidade que a cultura atinge, pela primeira vez, a forma clássica. Neste período primitivo, todos os ramos da atividade espiritual brotam da raiz unitária da vida em comunidade. Em seu eidos, o homem se realiza no espaço da polis. A análise sobre essa forma embrionária de cultura volta-se inicialmente para Esparta. É dela que temos o conceito de Estado, o qual representa uma força educadora no sentido mais profundo da palavra. Em Esparta, sob o olhar de Delfos, temos a valorização do coletivo em um sistema consciente e coerente, acreditando

que o mais alto fim do estado seja a Paideia, estruturando a vida individual de acordo com normas absolutas. A disciplina espartana, portanto, era a educação ideal, contrapondo-se à relatividade da democracia. Tirteu é o poeta que vive a vontade política da grandeza espartana. O ethos educacional das suas elegias é compreendido em um contexto de sobrevivência frente às guerras micênicas. A nova Areté demonstrava que, frente ao perigo, a ideia de totalidade manifestava-se abruptamente, sendo o herói a mais alta forma humanitária. De Atenas, recebemos o estado jurídico e o ideal de cidadão. Já no século VI a. C., a partir de Sólon, observamos o equilíbrio entre duas realidades: a themis, referindo-se à autoridade do direito, e a diké, significando o apelo ao cumprimento da justiça. Enquanto primeiro representante do espírito ático, o legislador encarna a força educadora do nomos, dirigindo aos homens um apelo, a fim de ganharem consciência da responsabilidade da ação. Pela união entre o estado e o espírito, a comunidade e o indivíduo, Sólon é o primeiro ateniense. A análise de Platão sobre o movimento vivenciado em Atenas, a partir de Sólon, é a de que cada estado, em sua organização, implica a formação de um tipo de homem definido, daí a necessidade de uma educação capaz de imprimir as marcas do seu espírito. Até então, não falamos sobre a filosofia. Não faremos, aqui, uma divisão no sentido de que,


com o início da polis, finda-se o

movimento constante pelo qual

mito e inicia-se um novo modelo

era pautado o modo de vida dos

de pensar e de conhecer. A defesa

gregos. Ainda neste período,

ora feita é a de que, desde as for-

observamos as grandes manifes-

mas iniciais de sistematização do

tações artísticas do espírito áti-

conhecimento, da sua autocom-

co sob as formas do drama e da

preensão e da sua organização

tragédia com Ésquilo, Sófocles

social, evidenciamos um proces-

e Eurípedes. Pelas lentes destes

so de racionalização progressiva

poetas, evidenciamos o estágio

de uma determinada concepção

de evolução da sociedade grega,

de mundo. O logos, inicialmente

seus dramas, preocupações, apo-

presente nas diferentes formas da

geu e crises.

manifestação do espírito grego, deixa transparecer leis internas passíveis de subjetivações. Em um dado momento histórico, essa descoberta é estruturada pelo homem como um conhecimento filosófico, capaz de responder aos porquês que perfazem a existência humana. Como sabemos, o ponto de partida do pensamento filosófico racional foi o olhar sobre o cosmos, relacionando-se ao problema da origem. Dessa reflexão

A educação, junto às demais manifestações artísticas, tais como o teatro, a poesia e a escultura, objetivava criar uma determinada forma de homem, reforçando os princípios plasmados nos séculos anteriores, agora ressignificados em um novo momento histórico. No entanto, a quem se destinava a educação? É possível ensinar a Areté? Todos os cidadãos eram passíveis de receber a mesma educação?

inicial, somos herdeiros das con-

Neste momento da história da

siderações de Tales, Anaxímenes,

Paideia grega, esses questiona-

Anaximandro, Pitágoras, Xenófa-

mentos relacionam-se à sofística

nes, Parmênides, Heráclito, den-

como fenômeno da história da

tre outros. O estado evolutivo

educação e, consequentemente,

racional no qual se encontravam

do início da pedagogia.

os gregos, junto às suas formas

O século V a. C. torna-se o

de vida organizadas na polis, pro-

ponto de partida histórico ne-

porcionou um movimento de bus-

cessário para a compreensão do

ca constante pela origem e pela justificativa, sob o ponto de vista do conhecimento, do todo circundante. Tal movimento perdurou pelos séculos seguintes, atingindo seu apogeu junto às ideias de Sócrates, Platão e Aristóteles.

grande

movimento

esse movimento em um contexto que, principalmente a polis de Atenas, adentra no mundo internacional do comércio, da política e da economia, movimento esse subsequente às guerras contra os persas. Situam-se aqui os sofistas: os sábios ou “homens cultos”. Inicialmente, a finalidade do movimento educacional por eles comandado não era a educação do povo, mas dos chefes, assemelhandose, assim, à antiga forma educativa dos nobres. Compreendê-los, sob o ponto de vista intelectual, significa situá-los frente aos objetivos da educação, pois tentam responder à tarefa do ensino da Areté. Para tanto, encerram neste percurso uma multiplicidade de processos e de métodos. É com eles, assim, que a Paidéia, no sentido de uma ideia e de uma teoria da educação, adentra no mundo e recebe fundamento racional. Segundo Jaeger, os sofistas podem ser considerados os fundadores da ciência da educação, estabelecendo os fundamentos

educativo,

responsável por imprimir o caráter a este e ao século seguinte, no qual se embasa a ideia ocidental de cultura. Das necessidades da vida no estado, nasceu a educação, reconhecendo no saber sis-

Porém, antes das sistemati-

tematizado uma nova e poderosa

zações dos grandes pensadores,

força espiritual formadora de ho-

não podemos nos esquecer do

mens. Faz-se necessário entender

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da pedagogia. Chamaram de techne a sua teoria e arte da educação, versando sobre a matemática, medicina, ginástica, teoria musical, arte dramática, política. É deles a criação do trivium (gramática, retórica, dialética) e do quadrívium (aritmética, geometria, música, astronomia). Protágoras, sofista do mais alto grau, afirma que a tecnhe política é ensinável, necessária para a compreensão da intelecção do direito e do estado. Para ele, só a educação política é verdadeiramente universal. Afirmamos que a construção histórica do mundo da cultura atinge seu apogeu no momento em que se depara com a ideia de educação. É assim que, a partir do século IV a. C., os gregos dão a todas as formas de criações espirituais o nome de Paideia, mais tarde designada como cultura, e hoje também compreendida como bil-

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dung. Por intermédio dos sofistas, o espírito grego ganhou o mundo. Por meio deles, conscientizamo-nos de que a continuidade dos estágios primitivos da cultura não é vazia, e sim base para que possamos admirar, compreender e sistematizar o novo. Hegel, sob o conceito da suprassunção (aufhebung), reafirma, em um novo espaço e tempo históricos, semelhante premissa. O problema da educação da natureza humana encontra nos sofistas a união entre filosofia e pedagogia. Para os sofistas, e principalmente para Protágoras, a educação é a culminação da cultura humana no seu sentido mais amplo. Em última instância, os sofistas são os grandes responsáveis pela popularização e pela democratização do saber, servindo como mediadores entre a ciência jônica e a educação ática.

Conhecimento, educação e pedagogia encontram-se entrelaçados nas reflexões acima expostas. Cada um dos elementos, ao longo do texto, foi analisado à luz do contexto e do momento histórico da formação do homem grego, guiados pelo conceito de Paideia. A filosofia, presente por detrás de cada um dos momentos, evidenciou a necessidade da justificativa e da compreensão, fazendo com que, mais do que uma teoria, fosse sendo plasmado um modelo cultural enquanto possibilidade de realização do ser humano, em sua mais alta e radical humanidade. De Homero, passando por Esparta, por Atenas e chegando aos sofistas, situamos o ideal educativo de um povo que, atento ao movimento das ideias, compreendeu o seu próprio modo de existir no movimento do conceito e da comunidade, tornando-o pedagogia, realidade e cultura. Frente à complexidade da metamorfose civilizatória atual, e em relação à educação, a experiência acima exposta ainda tem sentido? Platão, Agostinho, Averróis, Thomás de Aquino, Descartes, Rousseau, Kant, Hegel, Dostoiévski, Arendt, Dewey, Freire, Takeshi, Morin, Saviani, dentre outros, experienciaram o movimento acima exposto e, nas entrelinhas dos seus escritos, não se depararam com semelhantes questões? Um navegador desavisado, ou com a sua bússola um tanto “desnorteada”, diria que tudo isso não passa de flatus vocis. Deveríamos, segundo ele, atentarmonos para o movimento da cultura


atual, para os desafios impostos à educação, à política, à vida em sociedade, sem as amarras, os referenciais ou as metanarrativas passadas. Segundo nossa análise, não seria a fala desse navegador, desvinculada do movimento e da história do espírito humano, um mero flatus vocis? Como sentenciara Georges Bernanos, não existem meias-verdades. comente este artigo: mediacao@colegiomedianeira.g12.br

Fernando Guidini é Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2010) e doutorando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu (mestrado e Doutorado) em Educação da PUCPR. É Orientador Pedagógico dos 6º e 7º anos do Colégio Medianeira.

Referências bibliográficas

Ricardo Tescarolo é Doutor em Educação pela USP (2003), Mestre em Educação pela PUCSP (1993), com Estágio Pós-Doutoral pela Fordham University, USA (2011-2012). É Professor do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu (Mestrado e Doutorado) em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, PR, Brasil.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir:

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. (Tradução: Roberto Raposo). São Paulo: Companhia das Letras, 1989. LEVI, Primo. É isto um homem? (Tradução: Luigi Del Re). Rio de Janeiro: Rocco, 1988.

nascimento da prisão. (Tradução: Raquel Ramalhete). Petrópolis: Vozes, 2011.

Recomendações Paideia: a formação do homem grego Autor: Jaeger Werner |Editora Martins Fontes Esta obra busca ser um estudo profundo e completo sobre os ideais de educação da Grécia antiga. Jaeger estudou a interação entre o processo histórico da formação do homem grego e o processo espiritual através do qual os gregos chegaram a elaborar seu ideal de humanidade. A partir da solução histórica e espiritual, foi possível chegar ao entendimento da criação educativa sem par de onde se irradia a imorredoura influência dos gregos sobre todos os séculos.

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artigo

Curitiba: a cidade dos

slogans 36 mediação


Curitiba é conhecida ainda, Brasil afora, por uma série de alcunhas, advindas de um política antiga: o city marketing. Além de ser conhecida como cidade desenvolvida e cidade modelo, os turistas mencionam com certa frequência a área verde aqui disponível. Você sabia, contudo, que dados de área verde englobam, também, áreas particulares? O artigo a seguir tentará responder: quanto dessa área verde está de fato disponível para a população? Essas áreas verdes estão bem distribuídas pela cidade? Por Rafaela Pacheco Dalbem

Q

uantos slogans sobre Curitiba você conhece? Além dos citados, podemos acrescentar mais alguns: Cidade Sorriso (!), Capital das Araucárias, Capital mais fria do Brasil, Cidade Planejada, Cidade Modelo...

É bem provável que você já tenha se deparado com qualquer um desses títulos (com exceção da ‘Cidade Sorriso’) ao declarar, fora dos limites territoriais, que é daqui. Esses títulos são fruto de uma política antiga adotada pelo grupo político que governou a cidade por muito tempo: o city marketing. Definindo de uma forma simplista, o marketing utiliza de estratégias para atrair consumidores e, no que diz respeito ao city marketing, a estratégia é atrair investidores e vender a imagem de uma cidade. Coisa que Curitiba faz muito bem. Fato conhecido é que, ao sair de Curitiba, e declarar-se dela, os primeiros comentários que surgem vão ao encontro da série de estruturas implantadas na cidade a partir da década de 1970, sempre pelo mesmo grupo político.

Outro fato que os moradores e os turistas mencionam com frequência é a grande presença de parques e das altas taxas de “área verde” (embora não se tenha certeza absoluta de quais os critérios para o estabelecimento dessa taxa). Mas, ao analisarmos os dados das regionais de Curitiba, percebemos que os dados de área verde englobam, também, áreas particulares. A questão aqui é: quanto dessa área verde está de fato disponível para a população? Essas áreas verdes estão bem distribuídas pela cidade? Primeiro, seria importante enfatizar a ressalva feita há pouco: não há um consenso do que é “área verde”, esse é um dado que sempre fica vago. Para clarificação e estabelecimento dos conceitos, recomendo a leitura do texto Problemas de utilização na conceituação de termos como espaços livres, áreas verdes e correlatos, de Lima et al. (1994) De qualquer forma, nesse artigo, consideraremos como área “pública” todos os parques da ci-

dade. A base cartográfica utilizada aqui é do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC) e não nos ateremos especificamente à área, mas sim à distribuição. “Um dos maiores requisitos do espaço livre seria sua localização em relação aos usuários. Um grande peso é a distância entre o usuário e o espaço livre.” (em distância maior do que 10 a 15 min, a pé, a utilização decai) (DI FIDIO, 1985, apud NUCCI, 2001). Segundo Jantzen, 1973 (in Cavalheiro & Del Pichia, 1992, apud Nucci, 2001), as áreas verdes de vizinhança devem encontrar-se a no máximo 100m quando forem destinadas a crianças de até 6 anos, 500m para crianças de 6 a 10 anos e 1000m para pessoas de 10 a 17 anos ou forem um parque de bairro. Esses raios de influência, de todos os parques da cidade, estão traçados no mapa a seguir (mapa 1). A cor mais intensa refere-se à primeira faixa (até 100m), a cor intermediária referese ao segundo grupo (até 500m) e a cor mais clara refere-se ao grupo de até 1000m de distância.

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Mapa 1 - Distribuição dos parques e bosques na cidade de Curitiba e suas áreas de influência. Fonte: DALBEM, R. P. 2011.

Analisando o mapa, podemos perceber que há uma grande concentração de áreas verdes no norte da cidade e o sul de Curitiba seria considerado como um ‘deserto de parques’ – lembrando que o Centro está, geograficamente, no norte da cidade. É injusto dizer que não há nenhum, pois há o Zoológico e a Área de Proteção Ambiental do Passaúna (APA do Passaúna), que estão um pouco mais ao sul, mas, ao compararmos as duas regiões, é possível ver a gritante diferença. Mendonça (2002) já evidenciou isso ao escrever:

Independentemente da tentativa de tornar ótima a cidade a par tir da criação de uma imagem

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que não corresponde fielmente à cidade real, a distribuição das áreas verdes na cidade de Curitiba, sobretudo os parques de uso público, é for temente excludente. A quase totalidade dos parques públicos urbanos, bem equipados para o lazer e a prática de esportes e de fácil acessibilidade aos citadinos, está concentrada na porção nor te da cidade, exatamente na área onde também se concentra a classe média e alta da sociedade curitibana, como se pode perceber em vários documentos car tográficos que registram a distribuição dos parques urbanos curitibanos. A porção centro-sul da cidade de Curitiba encontra-se desassistida

no que concerne a uma política de parques urbanos municipais. É esta a área que se encontra mais carente de parques com equipamentos de lazer gratuito, pois é, paradoxalmente, também nela que se concentra grande par te da população de mais baixa renda do município” (mapa 2). Agora fica a pergunta: é coincidência? Não entraremos no quesito de Justiça Ambiental, mas, pelo menos, evocaremos o “Direito à Cidade” – alusão ao título do livro de Henri Lefebvre. O direito que assegura aos cidadãos ter moradia, saneamento básico, acesso à educação, saúde e lazer: o direito de “ser”.


*Agradecimentos especiais a Paulo Henrique Costa, pela elaboração do mapa de renda.

Rafaela Pacheco Dalbem é formada em Geografia pela UFPR e mestre em Geografia Física, Ambiente e Ordenamento do Território, pela Universidade de Coimbra – Portugal. É professora do 8º ano do Ensino Fundamental e 1º ano do Ensino Médio, no Colégio Medianeira. Referências LIMA, A.M.L.P.; CAVALHEIRO, F.; NUCCI, J.C.; SOUZA, M.A. del B.; FIALHO, N.

Mapa 2

de O. e DEL PICCHIA, P.C.D. Problemas de utilização na conceituação de termos

E por que evocamos esse direito? Algumas pessoas, ao lerem essas palavras, poderão dizer: mas as áreas com mais infraestrutura só são privilegiadas porque são mais antigas. E isso não é de todo mentira. De fato, em Curitiba, os bairros com mais infraestrutura são os bairros mais antigos: Centro, Água Verde, Batel (o que explicaria a razão de mais investimentos ao longo dos anos). E os outros bairros, mais ao norte, são os

bairros que historicamente eram formados por fazendas/chácaras de imigrantes, o que facilitaria a criação de parques. Até aí, tudo bem. A questão é que, com o passar dos anos, os Planos Diretores e os planejamentos como um todo reforçaram essa diferença. A existência de diferenças é normal, mas o reforço dessas diferenças por parte do poder público não é. comente este artigo: mediacao@colegiomedianeira.g12.br

como espaços livres, áreas verdes e correlates. In. II CONGRESSO BRASILEIRO DE ARBORIZAÇÃO URBANA, São Luís, Anais ... SBAU, 1994, p. 539-549. MENDONÇA, F. “Aspectos da problemática ambiental urbana da cidade de Curitiba/PR e o mito da ‘Capital Ecológica’”. GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, nº12, 2002, 8p. NUCCI, J.C. Qualidade ambiental e adensamento urbano. São Paulo: Humanitas/FAPESP, 2001, 236p.

Recomendações Curitiba e o mito da cidade modelo Autor Dennison de Oliveira | Editora UFPR Elaborado sob um ponto de vista alternativo, este livro revela as razões do suposto êxito da política de planejamento urbano desenvolvida em Curitiba desde 1965. Na retórica oficial do poder público, esse sucesso se deve essencialmente ao talento e competência de seus arquitetos e urbanistas. Usando uma perspectiva histórica, Dennison de Oliveira, professor de História da UFPR, enfatiza o contexto institucional e político que permitiu aos urbanistas imporem à sociedade local o seu projeto de cidade e examina detalhadamente a relação mantida entre os urbanistas e as elites econômicas da cidade, tida como a principal responsável pela estabilidade e permanência do mito de Curitiba como “cidade modelo”.

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artigo

Dobrodošli!

O que aconteceria se, durante uma jornada no exterior, seu amigo sugerisse uma viagem a um lugar que não é ponto turístico, que não possui estrutura nem meios de transporte sistemáticos? Você toparia ou iria para um lugar mais cômodo? Ana Paula Luz decidiu se aventurar. Conheça o relato dela sobre sua passagem pela região dos Balcãs. Por Ana Paula Luz

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Q

uando a guerra dos Bálcãs começou em 1992 eu era uma menina de 11 anos. Devia estar na 5ª ou 6ª série e adorava Geografia. Provavelmente não se falava sobre nada disso na escola, nem na minha casa. Afinal, era um lugar muito longe, longe demais para que eu soubesse o que eram Bálcãs ou Mar Adriático naquela época. Tenho remotas lembranças da palavra Bósnia ou Kosovo. Para mim, esses eram lugares imaginários, sofridos e muito longe da minha realidade. Acho que eu era muito jovem para me ater a essas lembranças ou para dar-me conta de que outras meninas da minha idade estavam a ir ao colégio em abrigos subterrâneos ou que uma bomba estourou em uma escola que podia ser a minha escola. Podia ser comigo. Minha vida correu muito bem até que, um dia, não sei por que cargas d’água, um caminho me levou à Bósnia. Dia 23 de agosto de 2012, justamente 20 anos depois da guerra.

Minha amiga Silvia, romena e apaixonada por essa parte do mundo, queria viajar comigo. Ok, eu pensei que iríamos a Ibiza ou a qualquer outro lugar mais óbvio. Ela chegou com a proposta da Europa do Leste e eu aceitei na hora. Bósnia, Kosovo, Montenegro… Alguém já conheceu alguém de lá? Alguém já pensou em ir até lá? Minha aventura começou na cidade de Mostar, cidade bósnia mais atingida pela guerra. Ali ninguém gosta de ninguém e todo mundo gostava muito do Tito, o ditador bonzinho que uniu a Iugoslávia. São 6 países no total (Croácia, Bósnia, Macedônia, Kosovo, Montenegro e Albânia). Falam quase a mesma língua. Bósnios não suportam Sérvios, Macedônios odeiam os Gregos, Sérvios odeiam Kosovares, Montenegrinos não curtem Albaneses e por aí vai… Eu era uma brasileira e um bicho raro por lá. Quando eu falava que era do Brasil, arregalavam os olhos com a expressão “o que

você está fazendo aqui?” Essa pergunta me perseguiu intimamente durante toda a viagem. Não há turistas, não há estrutura turística, não existe nada que lembre uma cidade turística e, ao mesmo tempo, está tudo tão perto da Europa ocidental, tão perto da Itália, da grande ex-potência para aqueles países esquecidos num cantinho do Mar Mediterrâneo. De fato estou me acostumando com a expressão “ex” ultimamente: Ex-potência, ex -Iugoslávia, ex-Europa rica, ex, ex… Voltando à Europa do Leste… Peguei o avião e a primeira parada foi Dubrovnik, na Croácia. Eita lugarzinho mais bonito! A Croácia é um país que recebe muitos turistas no verão porque possui uma costa de mar muito bonita. Ainda vi alguns resquícios de Europa do oeste por ali. Primeiro choque: os preços – tudo muito mais barato. Segundo choque – sorrisos, todos estão ali pra te ajudar. Terceiro choque, pobreza. Hummm, de alguma maneira re-

Dubrovnik - Croácia

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Ponte Latina - Sarajevo conheci um pouco de Brasil por ali. As pessoas sorriem pouco hoje na Espanha, a crise e a descrença com o partido popular acabaram com os últimos sorrisos de uma país que viveu seu apogeu e que hoje vive de lembranças. O país envelheceu, o país empobreceu, o país vê seus jovens emigrando... Ainda tínhamos 15 dias pela frente e esperava ansiosamente chegar a Sarajevo. Não sabíamos muito bem como chegar até lá. Uma coisa importante: essa parte do mundo praticamente não possui transporte público, tudo é meio no jeitinho. Peguei muita carona, entrei em muito carro desconhecido, inclusive de gente que nem falava a minha língua ou qualquer tipo de língua reconhecível. Mas não havia em nenhum momento a palavra medo, perdese o medo quando se precisa da ajuda do outro e o outro, ainda que seja desconhecido, é a pessoa mais próxima de você naquele momento. Se não existe transporte, hotéis muito menos. O que existe são guest houses, casas de

famílias que alugam um quarto para viajantes esporádicos como nós. Finalmente, subimos em um ônibus com destino a Mostar e de lá pegamos um trem a Sarajevo. No caminho, prédios e cidades inteiras destruídas pela guerra e muitas marcas de tiro nas paredes. As pessoas convivem com isso há vinte anos. Por que não cobrem essas marcas? Não e fácil esquecer, não se apaga uma guerra assim.

Uma estupidez essa história da guerra, estamos falando de uma guerra que aconteceu ontem, poderia ser eu ou você, poderíamos estar presentes. Uma guerra recente. Eu deveria ter ido à Bósnia antes. Como nunca tinha pensado em ir a Sarajevo? Enfim, estava preocupada em visitar museus, Paris, Madrid, Roma, Londres, todos esses lugares pareciam sempre muito mais atrativos. Inocência minha. Sarajevo e Pristina,

Rosas de Sarajevo - Buracos ao longo das ruas, causados por granadas e morteiros. Os buracos foram preenchidos com resina vermelha, como um memorial para os mortos na guerra 42 mediação


capital do Kosovo, são as duas cidades mais interessantes em que estive nos últimos tempos. Claro, não excluo a caótica cidade do Cairo, no Egito, ou mesmo Londres, adoráveis. Mas Sarajevo tem algo que eu não sei explicar. Não é exatamente bonita, para nada, mas possui uma força que somente ela tem. Eu diria que é uma cidade corajosa! Ali, na Ponte Latina, no centro de Sarajevo, morreu Francisco Ferdinando e por isso começou a 1º guerra mundial. Depois veio a guerra da Iugoslávia… que lugarzinho sem sorte. Eu cruzei algumas vezes essa ponte no caminho do nosso restaurante preferido, o Nanina.

A comida é incrível e acho que engordei 3 quilos comendo Cevapi todos os dias. Uma mistura de pão turco, carne de vaca e queijo de cabra. Queijos e muita carne. As pessoas são sobreviventes e isso já faz com que elas sejam mais simpáticas do que estou acostumada. Conhecemos em uma casa de chá um senhor por volta dos 60 anos. Na época da guerra ele deveria estar com 40 anos e lutou. Perguntei a ele por que ele havia lutado e ele me disse da maneira mais educada e calma do mundo: todos lutamos! Ele lutava um dia e no outro ficava em casa, lutava outro dia e no outro

ficava em casa. Eu nunca vou esquecer essa frase. Ele sobreviveu. No caminho a Montenegro pegamos uma carona com um refugiado que foi para os EUA na época. Os Estados Unidos ofereceram anistia aos refugiados da Bósnia. Ele estava visitando a família que ficou na Bósnia e iria passar uns dias na praia, em Montenegro. Era muito reservado, mas com certeza teria suas histórias para contar também; no entanto, preferiu calar-se nos 200 quilômetros que fizemos juntos cruzando um país muito menor do que eu imaginava.

Montenegro

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Bem, nem preciso dizer que cada fronteira que eu cruzava era uma aventura e que poderia acontecer tudo. Uma fronteira interessante foi a do Kosovo. Como vocês bem devem saber, o Brasil tem conflitos com a Sérvia devido ao reconhecimento ou não de Kosovo como país. O Brasil apoia a independência do Kosovo e por isso fui muito bem recebida no país. Já na fronteira com a Albânia, eles olhavam o meu passaporte, olhavam pra mim, o policial ia à salinha, conversava com outro, me olhavam. Achei que iam me cobrar uma propina ou algo. No final das contas, carimbaram e me deixaram entrar, mas não foram muito gentis. As pessoas lá são altas, grandes, fortes e brancas. Metem medo e falam umas línguas estranhas. Na Macedônia, por exemplo, utilizam o alfabeto cirílico. Impossível decifrar qualquer coisa.

Em Prístina, capital do Kosovo, a arquitetura é toda comunista, grandes espaços abertos e muito concreto. Lembrou-me muito o Brasil também. Fomos a uma bar chamado Tingle Tangle no centro da cidade com dois kosovares que conhecemos. Parecia um bar saído de um filme, daqueles filmes de conspiração do pós-guerra. A música, o cigarro, a rakia (bebida típica dos Bálcãs que parece uma vodka). Macedônia é um país interessante. Vive uma expansão econômica muito grande e por toda a capital, Skopje, é possível observar construções gigantescas de edifícios, pontes, calçadas. Notase o consumo na vida das pessoas, nos carros, nas roupas, Por outro lado, cruzando a fronteira e entrando na Grécia, Tessalonika, é evidente a crise europeia, a cidade decadente,

as pessoas tristes, o saudosismo dos tempos de glória. A filosofia na Grécia agora é outra – é pela sobrevivência. Talvez seja melhor que a exIugoslávia permaneça isolada e pouco conhecida? A guerra e a crise não são justas com ninguém. E eu continuo adorando geografia. Dobrodošli! comente este artigo: mediacao@colegiomedianeira.g12.br

Ana Paula Luz é ex-aluna do Colégio Medianeira e atual professora da Oficina de Artes Visuais (Departamento de Arte) e da disciplina de Arte do 8º ano do Ensino Fundamental. Formada em Belas Artes (Faculdade de Artes do Paraná - FAP) e especialista em História da Arte (Escola de Música e Belas Artes do Paraná - EMBAP), é ainda mestre e doutora em Arte e Educação pela Universidade de Barcelona.

Recomendações Como o soldado conserta o gramofone Autor: Saša Staniši | Editora Record

Aleksandar herdou do avô o dom de inventar histórias. Quando a guerra chega à cidade bósnia de Visegrad, sua família é obrigada a fugir, e o menino precisa utilizar a imaginação para criar uma realidade diferente.

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artigo

Turismo extremo:

Chernobyl e a cidade

fantasma de Pripyat Seja para tirar aquela foto de cartão postal ou provar os pratos típicos da região, viajar é sempre bom. Mas que tal deixar de lado os locais mais fotografados do mundo e ir um pouco além? Estou falando em visitar Chernobyl, um dos últimos lugares para se conhecer na lista de muita Por Gustavo Rafael Frei gente. mediação

45


N

acidente a madrugada de 26 de abril

que havia ocorrido um pequeno

veu o reator – foi concluída. Esta

de 1986, operadores da Usina

acidente na usina de Chernobyl,

estrutura tinha como principal

Nuclear de Chernobyl, localizada

nada muito grave. Entretanto,

objetivo a contenção do material

no norte da Ucrânia, iniciaram um

àquela altura, os moradores já

radioativo na atmosfera, e duraria

teste no reator de número quatro,

haviam absorvido uma dose de

em média 25 anos antes de exigir

que consistia em operar com bai-

radiação cinquenta vezes maior

manutenção. Por falta de finan-

xos níveis de energia. Foi quando

do que a considerada inofensiva.

ciamento, a construção de uma

uma explosão ocorreu, abrindo

Informações desencontradas, e a

nova estrutura teve que ser adia-

um buraco no teto do reator e li-

falta de preparo para lidar com

da até meados de 2012. O novo

berando material altamente radia-

uma situação de tamanha propor-

sarcófago deverá ser colocado

tivo na atmosfera. Os primeiros

ção, fizeram com que as autori-

sobre a antiga estrutura a fim de

bombeiros que tentaram comba-

dades iniciassem a evacuação dos

proteger o material radioativo por

ter o incêndio não tinham a exata

moradores mais de trinta horas

pelo menos mais um século.

dimensão do inimigo invisível que

após o acidente.

estavam enfrentando, e acabaram chegando ao local sem a proteção adequada. Resultado: foram expostos a níveis letais de radiação e morreram em pouco tempo.

nobyl não estava totalmente contornado: nos meses seguintes foi preciso apagar o incêndio e selar o reator problemático. Uma ope-

Tour Algumas agências oferecem o passeio pela zona de exclusão em Chernobyl, dentre as quais a Solo East. Ao optar por esta empresa, o pacote mais básico custa US$

Há poucos quilômetros da usi-

ração de limpeza também foi fei-

na, a cidade de Pripyat ainda dor-

ta na região. Animais tiveram que

mia tranquila enquanto o maior

ser mortos, edifícios tiveram que

acidente nuclear da história aca-

ser demolidos e os escombros en-

bara de acontecer. Quando o dia

terrados. Pouco tempo depois, a

amanheceu, a única informação

construção do sarcófago – estru-

O pacote completo possui vis-

tura de aço e concreto que envol-

to de acesso à zona de exclusão,

que a população tinha era a de

46 mediação

Porém, o problema em Cher-

149. Para os mais radicais, há a possibilidade de alugar o próprio medidor de radioatividade, desembolsando mais US$ 10.


visita à cidade fantasma de Pripyat

humorado. Logo no início do tra-

que guias como ele, em Cherno-

e ao reator de número quatro. In-

jeto ele começa a nos dar avisos:

byl, têm permissão de trabalhar

clusos, ainda, transporte, almoço,

“Não toquem em nada, procurem

200 dias por ano, e que após tal

guia fluente em inglês e a pro-

pisar sempre onde há concreto

período é preciso ficar 100 dias

messa de voltar antes do anoite-

e evitem contato com musgos e

sem voltar à região – para que a

cer a Kiev, capital da Ucrânia. O

cogumelos. Não tentem levar ne-

radioatividade do corpo normali-

aventureiro que deseja conhecer

nhum objeto da zona de exclusão

ze. “Sinto saudades do apito do

o local precisa ser maior de ida-

como souvenir, isso é considerado

geiger durante o período longe

de e concordar com uma exten-

crime”. Descontraído, ele aler-

do trabalho”, brinca Nikolai. Gei-

sa lista de obrigações. Nada de

ta: “Se algum de vocês espera

ger é o nome do aparelho medi-

bermudas ou sandálias: é preciso

ver mutantes ou zumbis, sinto

dor de radioatividade utilizado na

usar roupas que cubram boa par-

desapontá-los”.

excursão, que computa a radiação

te do corpo, bem como sapatos fechados. Preencher um termo de responsabilidade caso algo de “indesejado” venha a acontecer

Após duas horas de viagem, chegamos ao primeiro checkpoint do exército ucraniano: a entrada

em microsievert por hora (μSv/h). A partir de um determinando valor de μSv/h, o medidor começa

da zona de exclusão. Todos pre-

a emitir avisos sonoros indican-

cisam descer do ônibus e passar

do uma área com radioatividade

pelo controle. Não é permitido

elevada. A cerca de 100 metros

O ponto de encontro é em

tirar fotos dos portões e dos guar-

do reator quatro, o meu medidor

frente ao hotel Kozatskiy, no cen-

das. Controle feito, seguimos via-

marcou 3,76 μSv/h. Porém, em al-

tro de Kiev. Uma vez com todos

gem. Um dos passageiros ques-

gumas outras áreas, ou até mes-

a bordo, era a hora de começar

tionou Nikolai sobre a segurança

mo colocando o medidor próximo

a viagem. Conhecemos, é claro,

de ser guia numa região como

à vegetação, cheguei a um valor

o nosso guia: Nikolai, de calça

aquela, e estar em contato diário

de quase 30 μSv/h. Nessas áreas

camuflada, óculos escuros e bem

com a radioatividade. Ele explica

não é permitido permanecer por

também é necessário antes do início do passeio.

mediação

47


mais de 5 minutos. Segundo José

didáticos ainda estão na parede,

da cidade e a mais alguns outros

Barbério, presidente do Instituto

brinquedos e ursos de pelúcia po-

edifícios. Todos praticamente va-

de Ensino e Pesquisa na Área de

dem ser vistos pelo chão. Tempo

zios e, pouco a pouco, tomados

Saúde (IEPAS), uma pessoa que

para fotos e seguimos viagem em

pelo mato. Quase não se perce-

recebe a dose de 100.000 μSv

direção ao temido reator quatro.

be o trajeto das ruas, tamanha

por ano tem o risco de câncer au-

Há um monumento em frente ao

é a ação do tempo. A influência

mentado. Mas, diga-se a verdade,

local, que hoje está sob vigilância

soviética durante a Guerra Fria

estamos expostos à radiação o

máxima – cercado por muros, cer-

também chama atenção e pode

tempo todo. Barbério afirma que

cas e guardas. A poucos metros

ser vista por todo lado: bandeiras,

ao comer uma banana recebemos

dali pode-se ver que a construção

uma sala com diversos materiais

cerca de 0,1 μSv e, num inofensi-

do novo sarcófago, com entrega

de propaganda socialista e sím-

vo raio X dentário, recebemos em

prevista para 2015, já está adian-

bolos soviéticos espalhados por

média 5 μSv.

tada. Em formato de meia lua, a

todo lado. Na volta, almoçamos

nova estrutura estava recebendo

em uma cantina militar e passa-

partes de sua cobertura durante a

mos no monumento em home-

nossa visita.

nagem aos primeiros bombeiros

Nos segundo e terceiro checkpoints, o nosso guia precisa apenas entregar a lista de passageiros

48 mediação

para os guardas, e estamos libe-

Próxima parada: cidade fan-

rados. A nossa primeira parada é

tasma de Pripyat. Após uma ca-

num jardim de infância no vilarejo

minhada, chegamos ao famoso

de Kopachi. Tirando a visível ação

parque de diversões, palco de

do tempo nas paredes e no assoa-

inúmeros jogos e filmes. Judia-

lho, a sensação é de que as crian-

dos pela ferrugem, ainda estão

ças tiveram a última aula delas no

por lá a roda gigante, carrinhos

dia anterior, saindo às pressas.

de bate-bate e outros brinque-

O livro da aula de música ainda

dos. É permitida a visita ao antigo

está em cima da mesa, quadros

Hotel Polissya, ao centro cultural

mortos em virtude do acidente. Já na saída da Zona, todos devem passar pelo medidor de radiação – inclusive o ônibus. Aqueles que não passarem no teste deverão permanecer até que os níveis se normalizem. Por sorte, todos da excursão estavam limpos e, assim, seguimos viagem para Kiev. comente este artigo: mediacao@colegiomedianeira.g12.br


Gustavo Rafael Frei é ex-aluno do Colégio Medianeira, graduando em Administração com ênfase em marketing na Fachhochschule Münster, na Alemanha.

Todas as fotos no interior deste artigo são do próprio autor.

recomendações Filme: O desastre de Chernobyl Discovery Existem horas e minutos que mudam o percurso da história, quando cada segundo, cada palavra e cada decisão têm um peso no destino não só de uma nação, mas de toda a humanidade. Este DVD procura examinar uma destas horas, os acontecimentos a partir do momento da contagem regressiva, para um desastre nuclear - a explosão nuclear de Chernobyl. A explosão foi dez vezes pior do que a de Hiroshima e aconteceu devido a uma combinação de erro humano e tecnologia imperfeita. Cada minuto deve se desdobrar com a narração dos acontecimentos na visão das principais pessoas envolvidas, entre os quais, o engenheiro chefe de Chernobyl, Anayoly Dyatlov, e sua equipe. Enquanto se preparam para o teste catastrófico, outras pessoas também se envolveram - a esposa de um dos trabalhadores da usina e dois pescadores que pescavam nas águas residuais quentes de Chernobyl.

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crônica

O cantor sem dentes Uma crônica de Luís Henrique Pellanda do seu livro mais recente, Asa de Sereia (Arquipélago Editorial, 2013). Por Luís Henrique Pellanda

Ele é um dos escritores paranaenses contemporâneos de maior expressão dentro e fora do estado. Depois de seu livro de contos O macaco ornamental (Bertrand Brasil) e de crônicas Nós passaremos em branco (Arquipélago Editorial), Luís Henrique Pellanda volta à crônica com Asa de sereia (Arquipélago Editorial), livro que monta e desmonta os imaginários da cidade de Curitiba. Os tipos curitibanos são revisitados e ressignificados pelo olhar original do autor, ele próprio um caminhante inveterado que transforma o que vê em cenários e personagens muitas vezes ignorados pela rotina de todos nós. Da anestesia cotidiana para a estesia do dia a dia, Pellanda mostra que a renovação do olhar depende muito do ponto de vista que resolvemos adotar. Mediação tem o privilégio de publicar a crônica “O cantor sem dentes”. Acompanhe:

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N

ão é de hoje que o cantor não tem os dentes. Caíram no século passado, antes de sua viola perder as últimas cordas. E tudo bem, você releva. Ao velho não fazem falta o náilon e a dentição, qual a diferença? Nem voz ele tem.

Injustiça, não se trata de um homem mudo, nem sei se é louco. O cara pode até não falar, mas domina as cinco vogais. Ouça, é com elas que ganha a vida ali na Praça Osório, diante do chafariz. Seu canto é um grasnado áspero, de projeção invejável. Afinação é outra história. As notas lá em cima, o andamento ligeiro e constante, marcado pela mão direita. As unhas de gárgula castigando o encordamento invisível, a madeira vermelha descascada. Já a garra esquerda, quase decorativa, pouco ajuda. Imóvel, nunca troca de acorde, não desfaz a pose de aranha dando o bote. As moscas, é o que comentam por aí, somos nós. Foi um jovem forte, disso você não duvida. Criado na roça, perdido na cidade, o potencial amoroso desperdiçado num sofá de zona. É um clássico em seu paletó caipira. Ombreiras largas, punhos comidos. A calça de brim com a barra alta demais. A sola das botinas se abrindo em dois novos sorrisos banguelas. Você sorri de volta, não pode evitar, gosta dele, embora não possa parar para ouvi-lo, tão ocupado e responsável.

E parar por quê? É sempre o mesmo traje, o mesmo repertório limitado, uma repetição invariável de gritos e onomatopeias sem sentido. Nada muda. Ou melhor, o instrumento muda: nem sempre é a viola, às vezes o cantor até inventa alguma novidade, mas é raro. Você lembra que já o viu tocar uma harpa paraguaia, igualmente sem cordas, numa manhã de chuva fria. Ou será que foi um sonho? O ponto em geral é aquele, o chafariz da Osório; o negócio deste músico, corajoso, é concorrer com as sereias. Mas logo depois do almoço também é possível vêlo na Luiz Xavier, a menor avenida do mundo, caído à porta de um predinho abandonado. É ali que ele gosta de dormir, um cochilo rápido, obrigatório, o rosto colado ao petit-pavé, a boca aberta beijando o chão, como se quisesse seduzir as pedras brancas do calçamento, incorporá-las às ruínas do que já foi uma arcada dentária. Não, você não se incomoda com o corpo deitado ali, ele não obstrui o caminho dos vivos, e por isso ninguém o perturba em seu sono. É só um artista em seu direito de sonhar e deixar-se empobrecer. Não é páreo para nós, você sabe, ele nem gosta de dinheiro. Aliás, nunca o vi pedir nada, mas você, por acaso, já lhe deu alguma coisa? Uma moeda sequer? Eu também não. No entanto, alguém

mediação

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o deve sustentar, quem é que se vira sem uns trocados? E o cantor, afinal, bebe Coca-Cola o dia todo, acocorado junto ao repuxo da Osório. Uma lata de refrigerante entre os pés, um cigarro atrás da orelha, e ele vai sobrevivendo, tem as suas fomes, os seus prazeres. Mas às vezes você, curioso, o vê fumar e especula: quem lhe paga os caprichos, é porque sente pena da sua falta de dentes e perspectivas, ou porque gosta da sua música? Pois sossegue, meu irmão. Garanto que, em breve, você terá a sua resposta. Não demora a acontecer. Será num fim de tarde, ou num começo de manhã, tanto faz a hora. Você estará indo ou voltando do banco, ou da loja de de-

partamentos, ou do escritório de contabilidade, da pastelaria, da igreja, do bar, não importa. Caminhará até o seu ponto de ônibus, ou até o estacionamento onde largou o seminovo, ou rumo ao cursinho, à academia, a uma consulta médica, a cabeça plena de rancor ou entusiasmo, a depender dos pesos na balança do seu dia ou da sua noite, e finalmente ouvirá soar, tão bonito quanto inesperado, um acorde cristalino menor, que o despertará deste pesadelo de surdez. O som alagará tudo à sua volta, do poço mais fundo ao espírito mais raso, e você enfim vai compreender o que tanto cantava e queria o velho do paletó remendado. Letra e melodia, tudo ficará

claro e limpo, e você verá vibrarem as cordas douradas de sua viola, e verá escaparem estrelas de sua harpa, e brotar o ouro da mina de suas gengivas. E aí não, não sei, ninguém sabe, e nem queira saber. Talvez você o aplauda, ou cante junto com ele, ou ria dele, ou chore, ou sinta que agora sim terá tempo de sobra para sentar no meio-fio e curtir o espetáculo. Talvez tenha vontade de dançar, rasgar a roupa e se atirar na turvação das águas da fonte, e nadar com as sereias, e voar com as sereias, ou alimentá-las com a própria carne. Mas, a essa altura, é capaz de o show já ter acabado. Quem vai pedir bis, você? comente esta crônica: mediacao@colegiomedianeira.g12.br

Luís Henrique Pellanda nasceu em Curitiba (PR), em 1973. Escritor e jornalista, é autor dos livros O macaco ornamental (contos, Bertrand Brasil, 2009), Nós passaremos em branco (crônicas, Arquipélago Editorial, 2011, finalista do Prêmio Jabuti 2012) e Asa de sereia (crônicas, Arquipélago Editorial, 2013), e organizador dos dois volumes da antologia As melhores entrevistas do Rascunho (Arquipélago Editorial, 2010 e 2012). Trabalhou nos jornais Gazeta do Povo e Primeira Hora e, na área literária, atua como jornalista, entrevistador, curador, mediador, resenhista e cronista em diversos eventos e veículos de todo o Brasil.

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Linha Verde – Av. José Richa, nº 10546 - Prado Velho - CEP 81690 100 - Fone 41 3218 8000 - Curitiba - PR os NÓS www.colegiomedianeira.g12.br


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