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CORRUPÇÃO, ÉTICA E DEMOCRACIA
Antonio Martins1
I. Introdução
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A relação entre corrupção, ética e democracia precisa ser concebida, em nosso contexto, como uma relação conceitual, simultaneamente, de afinidade e diferença. A afinidade conceitual salta aos olhos: não é difícil explorar os vínculos intuitivos entre cultura democrática, seu desvirtuamento por meio da corrupção – em diferentes níveis – e a percepção desse desvirtuamento a partir da ética. Essa afinidade conceitual é explorada de diversas formas, inclusive e principalmente na mídia, para defender a ideia de um combate heroico à “corrupção generalizada”. Inclusive e principalmente na mídia, mas não só. Assim é que um influente filósofo brasileiro vai defender a ideia de que o verdadeiro combate à corrupção é um combate ético, no sentido de que seria preciso, primordialmente, gerar um espírito social republicano que rejeite a corrupção.2 Para um aproveitamento jurídico desta relação, será necessário, entretanto, evidenciar onde os conceitos, para além de encontrar-se, separam-se. Porque a pergunta fundamental, neste campo, será acerca da capacidade do direito de mediar a relação entre corrupção, ética e democracia usando seu instrumentário técnico e atendendo a suas exigências. A corrupção será sempre um desvirtuamento de uma relação de equilíbrio socialmente estabelecida e valorada com base ética, mas ela terá de ser precisada juridicamente. A não diferenciação com que determinados temas são tratados no âmbito de um discurso social geral é estranha ao discurso jurídico. Este se estabelece diferenciando-se, também da ética, mas mantendo com ela uma relação de entrecruzamento refle-
1 Prof. Adjunto de Direito Penal e Criminologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2 Ribeiro, Renato Janine. A boa política, São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 217.
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xivo: ambos os discursos inter-relacionam, mas faz parte de sua estrutura refletir sobre os limites recíprocos.3 Isto tem por consequência que uma determinada forma de “corrupção”, lato sensu, assim concebida pela ética, não necessariamente será uma forma jurídica de corrupção. O direito legítimo contemporâneo pressupõe, contrafaticamente, a produção democrática de suas normas. Se a corrupção interfere nesse processo, isto tem consequências para a própria legitimidade do direito. Assim, a reação jurídica ao problema da corrupção dentro da esfera política é uma exigência estrutural. Mas também porque a lei deve ser aplicada como resultado de um processo democrático, a aplicação corrupta da lei viola as próprias bases da democracia: isto precisa ser avaliado em termos especificamente jurídicos, e não éticos. No intuito de articular as relações de afinidade e diferença entre os nossos conceitos centrais, pretendo dividir minha intervenção em três partes. A primeira delas apresenta o estado atual da criminalização da corrupção no Brasil (II). A segunda parte propõe algumas delimitações conceituais e define um conceito jurídico-penal de corrupção a partir de uma construção teórica que parte do marco legal (III). Os temas serão aqui, portanto, o injusto penal da corrupção e o bem jurídico afetado. Na terceira parte, pretendo demonstrar como, no âmbito de discussão pública acerca da corrupção, subvertem-se por vezes essas diferenças conceituais, a partir de pontos de vista arraigados, mas discutíveis, e opera-se uma confusão entre distintas dimensões de afinidade entre aqueles conceitos, levando a um desvirtuamento das expectativas quanto ao tratamento jurídico da corrupção e à função que o direito penal pode desempenhar (IV). Por fim, apresentarei, resumidamente, algumas conclusões (V). Antes de proceder à minha exposição, são necessárias duas ressalvas. Em primeiro lugar, vou centrar minha intervenção no caso do Brasil, e sobretudo daquilo que determina a discussão pública geral e a discussão técnico-jurídica a partir de grandes processos recentes que ficaram conhecidos como “Mensalão” (Ação Penal 470) e “Lava Jato” (em seus múltiplos desdobramentos). Nesta discussão pública se inserem as já populares “medidas contra a corrupção” alardeadas e propagadas por membros do Ministério Público Federal. Isto não significa que daquilo que pretendo analisar não se possam retirar conclusões para além desse contexto específico. Em segundo lugar, tratarei sobretudo do direito penal como exemplo de desvirtuamento do discurso jurídico. Há outras áreas do direito em que corrupção, ética e democracia se relacionam intrinsecamente. Mas em nenhuma delas as consequências de que pretendo tratar são tão extremas.
3 Cf. a respeito desta e de outras reflexões acerca das relações entre discursos sociais, Martins,
Antonio. Flüchtige Grenzen . Hermeneutik und Diskurstheorie im Recht, Baden-Baden: Nomos, 2013, pp 265 ss.
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II. O tratamento da corrupção no Direito Penal brasileiro
A legislação brasileira pune, assimétrica, mas correspondentemente, a corrupção passiva (art. 317 do Código Penal brasileiro, doravante CPb) e a corrupção ativa (art. 333 CPb), ambos como delitos formais, consistindo aquele na solicitação e recebimento, este no oferecimento ou promessa de vantagem indevida. E nisto se exaure a previsão penal quanto a atos de corrupção.4 Distingue o Código brasileiro os delitos praticados por funcionário e por particular (cap. I e II do Título IX do Código Penal, Crimes contra a Administração Pública), assim como aqueles praticados contra a Administração da Justiça (cap. III do Título IX do Código Penal). Diferentemente do direito alemão, por exemplo, não se prevê no ordenamento brasileiro a corrupção privada (art. 299 Código Penal Alemão, doravante CPa). Tampouco se distingue entre a corrupção praticada por funcionário público em geral (§ 331, I CPa), a praticada por um juiz (§ 331, II CPa) ou, ainda e mais especificamente, aquela praticada pelo titular de um mandato político (§ 108e CPa). Objeto de intensa discussão na mídia e na esfera pública, o chamado “caixa dois”, financiamento não declarado de campanhas políticas, não é punido autonomamente, ainda que possa ser enquadrado, a depender do caso, como outra figura criminosa (sobretudo como crime tributário, segundo o art. 1º, I e II da Lei 8.137/1990, ou crime de falsidade ideológica eleitoral, conforme art. 350 do Código Eleitoral).5 Este o quadro do direito positivo brasileiro. Distingue-se a corrupção passiva da figura típica da concussão, prevista no art. 316 CP, em que o particular é antes vítima que autor de delito, na medida em que o funcionário público dele exige uma vantagem indevida.6 Também é distinta das hipóteses em que o agente age é motivado por interesse ou sentimento pessoal, o que configura o delito de prevaricação, art. 319 CP, mas
4 A conduta base do caput do art. 317 CP corresponde, portanto, ao § 331 do Código Penal alemão (Vorteilsannahme), que se contenta com o exercício da função (Dienstausübung) e prescinde da prática de um ato de ofício (Diensthandlung), este sim exigido pelo § 332 StGB (Bestechlichkeit), no que se corresponde ao art. 317, § 1º CP brasileiro. No direito alemão, diferentemente do direito brasileiro, há correspondência entre essas formas também para as modalidades ativas da corrupção (Vorteilsgewährung e Bestechung, §§ 333 e 334 StGB). 5 Cf. a respeito Leite, Alaor; Teixeira, Adriano. “Financiamento de partidos políticos, caixa dois eleitoral e corrupção”, in: Leite, Alaor; Teixeira, Adriano (org.). Crime e política, Rio de Janeiro:
FGV Editora, 2017, pp. 135 ss. 6 Explica Hungria que corrupção e concussão eram tratadas conjuntamente pelo direito romano, atribuindo-se a distinção a Farinácio e sua oficialização aos Códigos franceses de 1791 e 1810.
Cf. Hungria, Nelson. Comentários ao Código Penal, vol. IX, 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 366.
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não pelo recebimento de uma vantagem indevida. 7 Quanto à natureza dessa vantagem, há divergência doutrinária, sustentando a doutrina amplamente majoritária a desnecessidade de que a vantagem seja de natureza patrimonial.8 As previsões legais quanto à corrupção ativa e à corrupção passiva são assimétricas, em primeiro lugar, porque o tipo simples da corrupção passiva parece prescindir do elemento normativo do ato de ofício a ser praticado pelo funcionário,9 enquanto o tipo penal da corrupção ativa exige expressamente esse ato como finalidade específica do autor do delito.10 A corrupção passiva, conforme a redação do Código, consiste em “solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”. O elemento normativo só vem a aparecer no § 1º do art. 317 CP, de modo a agravar a pena no caso de efetiva prática do ato de ofício. Nesse dispositivo, lê-se: “A pena é aumentada de um terço, se, em consequência da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou deixa de praticar qualquer ato de ofício ou o pratica infringindo dever funcional.” Ainda assim, como leciona Heleno Fragoso, “o crime está na perspectiva de um ato de ofício, que à acusação cabe apontar na denúncia e demonstrar no curso do processo”.11 Neste sentido, a viabilidade e possibilidade de praticar um ato de ofício como contrapartida deve ser o elemento mínimo a caracterizar a corrupção passiva, o que reconheceu, finalmente, o Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Penal 470.12 Com isto, quer-se significar que a mera perspectiva de titularidade ou titularidade da função não bastam para caracterizar o delito: é necessário que a prometida contrapartida do funcionário consista no modo de exercer a sua função. 13 Na esteira de Nelson Hungria, Fragoso compreendia a
7 A respeito dessas distinções, cf. Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, vol. 5, 12ª ed.,
São Paulo: Saraiva, 2018, p. 129. 8 Neste sentido, Bitencourt, Tratado de direito penal, vol. 5, ob., cit., p. 121; Fragoso, Lições, vol. 3, p. 419; Busato, Direito penal, vol. 3, ob. cit., p. 511; Habib, Sérgio. Brasil: quinhentos anos de corrupção . Enfoque sócio-histórico-jurídico-penal, Porto Alegre: Fabris, 1994, p. 173. Em sentido contrário, admitindo apenas a vantagem de natureza econômica, Hungria, Nelson. Comentários ao Código Penal, vol. IX, p. 370. 9 Cf. Busato, Paulo César. Direito Penal . Parte Especial, vol. 3, 2. ed., São Paulo: Atlas, 2017, p. 510. 10 Art. 333 CP: “Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício.” 11 Fragoso, Heleno. Lições de Direito Penal . Parte Especial, vol. 2, Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 418. 12 Neste sentido, Greco, Luís; Teixeira, Adriano. “Aproximação a uma teoria da corrupção”, in:
Leite; Teixeira (orgs.). Crime e política, pp. 19 ss., 44. Para a discussão cf. Quandt, Gustavo de
Oliveira. “O crime de corrupção e a compra de boas relações”, in: Leite/Teixeira, Crime e política, pp. 53 ss. 13 Assim, afasta-se conduta semelhante à do art. 422 do Código Penal Espanhol: “La autoridad o funcionario público que, en provecho propio o de un tercero, admitiera, por sí o por persona
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conduta do § 1º do art. 317 CP como exaurimento do crime; e a conduta prevista no caput como atos de tentativa erigidos em crime autônomo.14 Trata-se, portanto, de uma antecipação da intervenção penal. A segunda grande assimetria entre as modalidades ativa e passiva do delito consiste em que a corrupção passiva se pode dar de modo antecedente ou, na hipótese de o agente receber ou solicitar uma recompensa indevida após a prática de determinado ato, subsequente.15 A corrupção ativa, porém, pela própria redação do dispositivo, exige a expectativa de um ato futuro de corrupção: “para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício.”16 Diante da assimetria ressaltada entre corrupção ativa e passiva, resta-nos indagar se um suposto corruptor ativo cuja conduta não se enquadre no tipo do art. 333 do Código Penal brasileiro poderia ser considerado como partícipe no crime do art. 317 do Código Penal. Em princípio, poder-se-ia cogitar de instigação, mas isto não parece pertinente diante da intenção e da técnica legislativa. De todo modo, não há convergência entre as condutas nas modalidades ativa e passiva de modo a compor um quadro clássico de participação delitiva.17 Assim, o melhor seria tratar ambas as formas de corrupção como figuras típicas e formas de autoria e participação delitiva separadas. A ideia de coautoria, por sua vez, vai inteiramente de encontro à sistemática do Código. Referindo-se à hipótese de dação de recompensa posterior ao ato, afirmava, neste sentido, Fragoso, que “não se pode afirmar que haja participação no crime de corrupção passiva, pois quem dá não pode concorrer na ação de receber.”18
interpuesta, dádiva o regalo que le fueren ofrecidos en consideración a su cargo o función, incurrirá en la pena de prisión de seis meses a un año y suspensión de empleo y cargo público de uno a tres años.” 14 Hungria, Comentários, vol. IX, ob. cit., p. 372; Fragoso, Lições, vol. 2, p. 422. 15 Hungria, Comentários, vol. IX, p. 369; Fragoso, Lições, vol. 2, p. 420. 16 Diverge Busato, Direito penal, vol. 3, p. 628, para quem “a discussão é inócua e trata-se de um falso problema, porque o funcionário público, dada a natureza de sua atividade, sempre voltará a praticar novos atos de ofício, o que faz que se possa interpretar que a vantagem oferecida a posteriori diante de um ato de ofício possa, na verdade, estar vinculada a novos atos a serem realizados ainda mais tarde.” Não parece nem inócua a discussão, nem sustentável essa posição doutrinária.
Ora, comprovando-se que se pretende determinar a prática de um ato de ofício específico futuro, verificar-se-á a prática do crime de corrupção ativa; mas essa demonstração é necessária e se desvincula do ato anterior. O autor parece confundir, aqui, em sua argumentação, aspectos de natureza material e processual. 17 Neste sentido, Quandt, “O crime de corrupção e a compra de boas relações”, p. 64. 18 Fragoso, Lições, vol. 3, p. 472.
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III. O injusto penal da corrupção: ética ou direito?
Já considerando a diferença entre corrupção passiva e concussão, pode-se dizer, seguindo doutrina prevalente na Alemanha, que o que caracteriza essencialmente a corrupção é um pacto de injusto entre o funcionário e o particular que oferece ou promete a vantagem indevida.19 É a partir desse pacto que a doutrina tem tentado caracterizar o injusto da corrupção. Pode-se mencionar aqui a proposta de Greco e Teixeira, que, partindo da ideia de que toda posição de poder deve ser justificada, consideram a corrupção “abuso de poder condicionado por vantagem”20 – na classificação do direito alemão, a corrupção simples, sem exigência de ato de ofício, seria “abuso de poder via perversão da coisa pública em benefício privado”21, e na corrupção com infração funcional, tratar-se-ia de “abuso de poder por meio do desrespeito à ideia de legalidade do serviço público”22 . Mais abrangente, incluindo também os casos de corrupção privada, Saliger pretende caracterizar a corrupção pelo ato, condicionado por vantagem e contrário a interesses, de servir a dois senhores, despontando, daí, uma estrutura triádica, que evita incluir no âmbito da corrupção a violação de deveres profissionais, como no caso das propostas de criminalização da chamada “corrupção médica”.23 Essa definição formal deverá conjugar-se com o bem jurídico penal de modo a fundar o injusto material da corrupção. A corrupção, anota Saliger, “delimita primeiramente o injusto penal formal, que em regra apenas se transforma em injusto penal material em combinação com bens jurídicos dignos de proteção penal.”24 A partir de uma conjugação de ambas as propostas, pode-se afirmar, em proposta sintética que ora apresento, que o injusto da corrupção (ao menos no direito brasileiro, e para ambos os casos, com ou sem promessa de ato de ofício) se caracteriza pelo ato de submeter o exercício de função pública a interesse privado próprio e de terceiro, subvertendo a relação entre público e privado a partir da ruptura do marco da legalidade que distingue ambas as esferas. No caso da corrupção com a promessa da prática de ato de ofício haveria, quero crer, apenas uma diferença de grau no conteúdo de injusto, com a precisão da
19 Kuhlen, Lothar, in: Kindhäuser/Neumann/Paeffgen. Nomos Kommentar zum Strafgessetzbuch, vol. 3, 5a ed., Baden-Baden: Nomos, 2017, § 331 n. 25, p. 2104; § 332 n. 3, p. 2146; § 333 n. 7, p. 2157. Cf. também Greco, Luís; Teixeira, Adriano. “Aproximação”, pp. 19 ss.; Leite/Teixeira,
“Financiamento”, p. 142. 20 Greco/Teixeira, “Aproximação”, p. 31 s. 21 Ibidem, p. 30. 22 Ibidem, p. 31. 23 Saliger, Frank. “Das Unrecht der Korruption“, in: Festschrift für Walter Kargl, pp. 493 ss., 498, 503. 24 Ibidem.
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infração, que já está caracterizada pela submissão do exercício da função pública aos interesses privados. Com isso, já se desvela uma ruptura na estrutura democrática, porquanto é a lei democraticamente produzida que é vilipendiada ao se confundirem os âmbitos privado e público na forma de atuação do funcionário. A partir dessa definição, mantém-se a estrutura triádica a que faz referência Saliger, e se acrescenta, no contexto do direito brasileiro, o elemento da ruptura com a legalidade como determinante. Também neste sentido, é necessário compreender o bem jurídico “administração pública”, que fundamenta a incriminação, para além de ideias como o seu “bom funcionamento, “probidade ou eficiência”25, como o interesse na preservação de uma instituição forjada para atender ao interesse público no marco da legalidade. Aquilo que não ameaçar essa preservação, seja pela aplicação de critérios como a adequação social ou o juízo de insignificância, não servem para fundamentar o injusto material da corrupção.
IV. Corrupção e democracia
Até aqui, tratei de dar um viés técnico-jurídico ao tratamento da corrupção. Não busquei na ética o seu fundamento, senão que parti da análise da lei positiva e da doutrina para definir o injusto da corrupção. De que modo essa definição pode comunicar-se com o discurso ético? Em primeiro lugar, é preciso registrar que, se a relação entre discurso jurídico e discurso ético não é, como pretenderia um positivismo simplório, uma relação de exclusão – basta pensar na definição semântica de determinados elementos normativos para verificar a insubsistência dessa ideia –, tampouco é uma relação de derivação. Direito e ética são discursos concorrentes, que precisam preservar seus limites argumentativos sob pena de desintegrar-se.26 A definição que aqui apresentei une direito e ética na confluência de ambos para fundação do próprio direito: a ideia de legalidade fundada na pressuposição contrafática da igualdade dos cidadãos como criadores e destinatários das normas jurídicas. Neste sentido, confluem direito e ética para a fundamentação de uma ordem jurídica democrática baseada num modelo deliberativo forte, em que qualquer pessoa deve poder tomar parte na criação normativa; esse modelo deliberativo é complementado
25 Assim, Fragoso, Lições, ob. cit., p. 408. 26 Para a diferenciação dos discursos jurídico e moral, cf. Habermas, Jürgen. “Zur Architektonik der
Diskursdifferenzierung. Kleine Replik auf eine große Auseinandersetzung”, in: Zwischen Naturalismus und Religion, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2009.
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pela igualdade no tratamento dos destinatários das normas jurídicas, que não se identificam em termos exatos com os criadores das normas.27 Contudo, direito e ético se diferenciam na medida em que o discurso jurídico é formalizado e institucionalizado; e ao direito corresponde aquela autolimitação a que se refere Habermas, permitindo tudo aquilo que a lei não proíbe expressamente, enquanto “o poder penetrante da moral abrange todos os âmbitos da vida e não conhece a fronteira entre consciência privada e a prestação de contas pública.”28 A solicitação e o recebimento de vantagem para submeter a função pública a interesse privado contraria a ética e o direito na medida em que viola o interesse na existência da administração pública como instituição jurídico-política igualitária. Assim, a confusão entre público e privado é perniciosa já desde a perspectiva da lógica de funcionamento do sistema político-administrativo, prescindindo, nesta medida, de uma fundamentação de matriz sociológica. A matriz sociológica tende a ser encontrada na clássica interpretação segundo a qual o patrimonialismo, como confusão pré-moderna entre público e privado, estaria a caracterizar desde sempre o funcionamento do Estado brasileiro – interpretação que remonta a Raymundo Faoro29 e recentemente vem sendo duramente atacada por Jessé Souza, por nela identificar a falsa suposição liberal, histórica e sociologicamente equivocada, de que o Estado seria o campo de ação corrupto, enquanto o mercado seria o campo de ação livre de corrupção.30 Independentemente do acerto da tese patrimonialista e de sua contextualização histórica, o fato é que ela tem servido para simplificações do cenário político-jurídico brasileiro e para a identificação do direito penal como área de combate para transformação da (suposta) práxis brasileira no relacionamento com o Estado. Essa função de moralização da vida pública – da qual é partidária boa parte da imprensa e em especial um dos ministros do Supremo Tribunal Federal, autor de declarações que são verdadeira profissão de fé por uma reconfiguração da natureza ética do brasileiro –, essa moralização é estranha ao direito penal e escapa às suas possibilidades de atuação. O discurso jurídico, como adverti, tem limites claros a respeitar, sob pena de desintegrar-se. A redefinição da relação indivíduo-Estado precisa ser construída, se o for, para além de um modelo sancionador.
27 Cf. Günther, Klaus. “Diskurstheorie des Rechts oder liberales Naturrecht in diskurstheoretischem
Gewande?”, Kritische Justiz, Nr. 27 (1994), pp. 470 ss.; idem. “Welchen Personenbegriff braucht die Diskurstheorie des Rechts?”, in: Brunkhorst, Hauke; Niesen, Peter (orgs.). Das Recht der
Republik, Frankfurt am Main 1999, pp. 83 ss. 28 Habermas, “Zur Architektonik”, p. 98. 29 Faoro, Raymundo. Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro, São Paulo:
Globo, 2005. 30 Souza, Jessé. A tolice da inteligência brasileira, 2ª ed., Rio de Janeiro: Leya, 2018, esp. pp. 89 ss.
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V. O “combate” à corrupção e os limites do Estado de direito
1. Limites da definição jurídica de corrupção
As observações feitas até aqui tinham por objetivo delimitar o âmbito de discussão especificamente jurídico ao enfrentar propostas de política criminal que vêm atreladas à ideia de um mais efetivo combate à corrupção. É a essas propostas que pretendo voltar-me agora. Antes de adentrar nas propostas feitas para combater a corrupção apresentadas pelo Ministério Público Federal e nas consequências de um discurso público de franco recrudescimento da intervenção penal, gostaria de chamar a atenção para o fato de que a não caracterização de uma conduta como corrupta não a abona por via de consequência.31 Confrontemos duas formas de conduta que têm a ver com o bom funcionamento do sistema eleitoral. A primeira dessas condutas é o financiamento não declarado de campanha. O financiamento não declarado nada tem a ver com corrupção nos moldes do que aqui foi definido. Pode consubstanciar-se, evidentemente, em ato preparatório ou ser instrumento de delitos de corrupção, mas não é, em si, diretamente, um ato de submeter o exercício de função pública a interesse privado próprio e de terceiro, subvertendo a relação entre público e privado a partir da ruptura do marco da legalidade que distingue ambas as esferas. A segunda forma de conduta remonta à análise que Victor Nunes Leal, em obra clássica, realizou acerca do coronelismo como forma de “incursão do poder privado no domínio público”32. O próprio autor utiliza o termo “corrupção eleitoral” para designar o conjunto de fraudes, coação e manipulação que levavam à sobredeterminação eleitoral por autoridades políticas regionais.33 Mas, também aqui, não se trata de corrupção no sentido técnico-jurídico. O risco de incluir toda conduta malévola ao sistema político e à administração pública no espaço semântico da corrupção é que esse espaço semântico transborde, já não sendo possível qualquer delimitação conceitual que possa guiar a aplicação da lei penal.34
31 Para uma visão histórica das condutas que costumam ser definidas como corrupção, incluindo, por exemplo, o contrabando, v. o rigoroso estudo de Romeiro, Adriana. Corrupção e poder no
Brasil: uma história, séculos XVI a XVIII, Belo Horizonte: Autêntica, 2017, pp. 53 ss. 32 Nunes Leal, Victor. Coronelismo, enxada e voto, 7ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 230. 33 Ibidem, p. 222. 34 A doutrina penal tem demonstrado essa preocupação. Além da já mencionada obra de organização de Leite/Teixeira, Crime e política, deve-se anotar que, em seu trabalho monográfico a respeito do tema, Habib, Brasil: quinhentos anos de corrupção, separa a abordagem em duas
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2. O pretenso “combate” à corrupção
Pois bem. Concorrem, hoje, distintas narrativas sobre processos como a Ação Penal 470 e, sobretudo, a operação Lava Jato, com seus múltiplos processos e ramificações. Inegável é que ambos os processos se apresentam como marcos no combate à corrupção através do direito penal. Enquanto a Ação Penal 470 desenvolveu-se com relativa serenidade na esfera pública, a operação Lava Jato inclui, na imensa lista de eventos midiáticos, momentos que põem em cheque os limites do Estado de direito à aplicação do Direito Penal. A lista é, de fato, longa, passando por prisões midiáticas, vazamento do conteúdo de colaborações premiadas para a imprensa, prisões preventivas utilizadas de modo a forçar delações até chegar ao caso realmente desabonador do vazamento ilegal de áudio ilegalmente coletado de diálogo entre a presidente da República e um ex-presidente. A primeira sentença contra o ex-presidente Lula está eivada de particularidades, entre elas a reinterpretação da exigência de um potencial ato de ofício a ser praticado por um agente público, consolidada pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da Ação Penal 470.35 O juiz sentenciante, hoje Ministro da Justiça, considerou que o posicionamento do STF não fora claro. A segunda sentença, prolatada por outra juíza, utiliza literalmente trechos daquela primeira sentença, embora se trate de processos diferentes. No contexto de um combate “ético” à corrupção se inserem as “medidas”, conjunto de propostas formuladas por integrantes do Ministério Público Federal para modificação da legislação penal. Entre essas medidas, estão: (i) o aumento das penas dos delitos de corrupção (que já é de 2 a 12 anos!), num país com uma das maiores populações carcerárias num dos sistemas prisionais mais vis de que se tem notícia; (ii) a criminalização do enriquecimento ilícito de funcionários públicos, que supera em muito a ideia de antecipação da intervenção penal: é a confissão do fracasso da persecução e a inversão absoluta do ônus da prova; nas palavras do mais popular dos integrantes da Lava Jato: “com sua implementação, bastaria que o Ministério Público provasse que o servidor tem uma situação financeira incompatível com seu patrimônio original e seus rendimentos para poder denunciá-lo. (...) Evidentemente, se o funcionário público provasse qual-
partes, a primeira dedicada a aspectos históricos, éticos e sociológicos, a segunda dedicada à técnica jurídico-penal. 35 Para a crítica cf. Tavares, Juarez; Borges, Ademar. “O crime de corrupção passiva na visão do STF e a sentença que viola o princípio da legalidade”, in: Proner, Caroline; Cittadino, Gisele et alii (orgs.). Comentários a uma sentença anunciada . O processo Lula, Bauru: Canal 6 Editora, 2017, pp. 232 ss.
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quer origem lícita dos bens ou simplesmente fosse capaz de levantar uma dúvida razoável, deveria ser absolvido”36; (iii) a criminalização da doação eleitoral não declarada; (iv) a previsão de prisão preventiva para forçar a devolução de dinheiro desviado (antes, evidentemente, de uma sentença condenatória).
Na esteira desse projeto, o Ministério da Justiça produziu outro, em vias de ser sancionado, que abrange um campo de delitos mais vasto do que os delitos de corrupção, mas cuja lista de medidas arbitrárias e contraditórias não é menor.37 Nesses e noutros projetos de lei, pretensamente modernizadores do “combate” ao crime, não se discute a real delimitação conceitual dos delitos de corrupção, como tampouco as consequências do recrudescimento penal. Pretende-se, na verdade, gerar um fato político com a finalidade, na melhor das hipóteses, de transformação da sociedade. Que isto não pode e não deve ocorrer à revelia do Estado de direito e a partir de soluções que arrepiam o direito e o processo penal, segue sendo a verdade pouco ouvida nos debates públicos. Fatos políticos têm sua esfera própria de desenvolvimento; é-lhes inerente a ideia de transformação social. Quando o direito penal adota a transformação social como finalidade, desvirtua-se ele, e se desvirtua a transformação almejada.
O efeito perverso da introdução de pautas éticas e políticas no discurso jurídico é a desintegração deste discurso. A definição precisa do que significa corrupção cede espaço à adoção de conceitos vagos e propostas que não condizem com uma investigação científica séria, mas atendem a expectativas midiáticas. Como democracia e Estado de direito estão intrinsecamente vinculados, a erosão do Estado de direito também representa um risco para a democracia. Isto sem falar no empobrecimento da esfera pública que embasa as propostas democráticas de transformação legislativa com a renúncia à contribuição científica. O resultado é a produção de um direito penal simbólico tal qual descrito e analisado por Hassemer,38 “fenômeno de crise da moderna política criminal
36 Dallagnol, Deltan. A luta contra a corrupção, Rio de Janeiro: Primeira Pessoa, 2017, p. 121. 37 Para a crítica v. Santoro, Antonio Eduardo Ramirez; Martins, Antonio; Joffily, Tiago (orgs.).
Projeto de lei anticrime . Análise crítica dos Professores de Ciências Criminais da Faculdade
Nacional de Direito da UFRJ, Belo Horizonte: D’Plácido, 2019. 38 Hassemer, Winfried. “Symbolisches Strafrecht und Rechtsgüterschutz”, in: Strafen im Rechtsstaat,
Baden-Baden: Nomos, 2000, pp. 170 ss.
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orientada a fins”39. A legislação criminal passa a atender a uma necessidade política de ação, desconsiderando os limites, as possibilidades e as garantias do direito penal. Ao abrir mão dos standards próprios do Estado de direito, o direito penal se despe de sua real dimensão integradora – se é que ele a tem – para transformar-se em mero instrumento de manipulação política e controle social-tecnológico. É quando ética e democracia estão mais ameaçadas pelo efeito indireto do ferrenho (e anódino) combate à corrupção.
VI. Conclusões
À guisa de conclusão, gostaria de condensar os seguintes aspectos: 1. o direito penal brasileiro pune como delitos de corrupção apenas a corrupção ativa e passiva, de modo assimétrico. Enquanto na corrupção ativa exige-se que o agente vise à prática de um ato de ofício por parte do funcionário, na corrupção passiva, o mínimo para sua caracterização exige a viabilidade e possibilidade da prática de um ato de ofício; 2. o injusto penal da corrupção pode ser caracterizado como o ato de submeter o exercício de função pública a interesse privado próprio e de terceiro, subvertendo a relação entre público e privado a partir da ruptura do marco da legalidade que distingue ambas as esferas; 3. o bem jurídico-penal a fundamentar a incriminação da corrupção é o interesse na preservação de uma instituição estatal forjada para atender ao interesse público no marco da legalidade; 4. as definições apresentadas se originam da específica confluência entre discurso jurídico e ético no marco de fundação de um Estado democrático de direito; 5. a solicitação e o recebimento, assim como o oferecimento de vantagem para submeter a função pública a interesse privado contraria a ética e o direito na medida em que viola, simultaneamente, o modelo democrático de produção normativa e o interesse na existência da administração pública como instituição jurídico-política igualitária; 6. sob pena de desvirtuar-se, o tratamento jurídico da corrupção precisa respeitar os limites do discurso jurídico e do Estado de direito, rejeitando sua flexibilização em nome de uma transformação ética da sociedade.
39 Ibidem, p. 188.