Presença Africana no Brasil: história e cultura

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Ynaê Lopes dos Santos Giovana Xavier da Conceição Côrtes Rodrigo Silva (coord. geral) Carlos Eduardo França de Oliveira (coord. do curso)

1ª. Edição Conceito Humanidades Rio de Janeiro- 2012


Caixa Econômica Federal

Sumário

Presidenta da República Dilma Vana Rousseff Ministro da Fazenda Guido Mantega

A África de Tarzan?

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Presidente da Caixa Econômica Federal Jorge Fontes Hereda

Ficha Técnica

As Comunidades da África Tradicional

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Coordenação Geral Rodrigo Silva Coordenação do Curso Carlos Eduardo França de Oliveira Professores Ynaê Lopes dos Santos Rodrigo Silva Giovana Xavier da Conceição Côrtes Textos Ynaê Lopes dos Santos Design e Editoração Camila Wingerter

Diversidades da África Tradicional

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A relação com os europeus, a escravização e a formação do tráfico transtlântico

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Ilustrações Paulo Galvão Produção e Edição Conceito Humanidades Assessoria Jurídica Perrotti e Barrueco Advogados Associados

Brasil Africano

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A África de Tarzan? Uma

das histórias mais famosas da literatura mundial ambientada no continente africano é Tarzan. Escrito pelo estadunidense Edgar Rice Burroughs em 1912, o romance Tarzan dos Símios conta a história de um menino branco, filho de ingleses, que ainda bebê acompanha seus pais a uma viagem para a África. Devido a uma sequência de tragédias, os pais de Tarzan morrem e ele é criado por uma macaca em meio à selva africana. No início de sua juventude, mesmo sofrendo por ser diferente dos demais (já que acreditava ser um símio), Tarzan se tornou líder do grupo de macacos que o adotara. A vida do herói muda drasticamente quando ele salva um grupo de norte-americanos que havia sido deixado na África por marujos revoltosos. A partir deste episódio, Tarzan se apaixona por Jane (uma das pessoas que ele salvou), descobre ser filho de uma nobre família inglesa e vive o conflito da escolha entre viver na África ou na Europa. Tarzan se tornou uma personagem tão cativante que outros autores passaram a narrar suas incríveis histórias. Atualmente, além de inúmeros romances é possível conhecer a epopéia de Tarzan por meio de filmes, histórias em quadrinhos e desenhos animados. Boa parte do sucesso desse personagem se deve ao fato de sua trajetória misturar passagens mitológicas que remetem à história de fundação de Roma – na qual os gêmeos Rômulo e Remo foram alimentados por um animal, no caso, uma loba –, com cenas românticas que fazem lembrar o amor proibido de Romeu e Julieta. O cenário africano criado também foi de grande importância para notoriedade de Tarzan. A amizade com a macaca Chita, a agilidade em caminhar pela selva, a rapidez com que pulava de um cipó para o outro, as lutas ferozes travadas contra leões e leopardos foram aspectos da vida do herói que encantaram os leitores. 6

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Na realidade, mais do que encantar, tais referências ao continente africano ajudaram a formar uma determinada idéia de África. Ainda que se trate de uma obra fictícia escrita por um homem que nunca esteve no continente africano, Tarzan reforçou uma imagem já difundida da África, na qual o continente aparece como uma região homogênia, terra de leões, girafas, zebras, rinocerontes e também de algumas tribos compostas por homens e mulheres negros que se vestiam como leopardos e possuíam pouco contato com o que se costuma chamar de “mundo civilizado”. Em outras palavras, a história de Tarzan coroou, no Ocidente, a imagem de uma “África Selvagem”. Por diversas razões, a “África de Tarzan” continua presente até os dias de hoje. Um exemplo disso é o fato de muitas crianças em idade escolar avançada (e por vezes até adultos) não saberem precisar se a África é um país ou um continente. Tal confusão - que pode parecer infantil, ou até mesmo ingênua -, retrata o grande desconhecimento que existe sobre a história africana e a tendência em compreender a África como uma região única, sem diferenças internas. E você, o que sabe sobre a África?

As Comunidades da África Tradicional Um dos grandes equívocos cometidos ao se estudar a história da África

Subsaariana é imaginar que todos os povos que habitaram essa região eram iguais. Existiram comunidades tradicionais africanas que sobreviviam da atividade pesqueira, outras que dependiam da criação de gado e muitas que viviam da produção agrícola. Além disso, nem todas essas sociedades se organizavam da mesma forma: existiram aldeias, clãs de aldeias e até mesmo cidades-estado e reinos. O convívio entre essas comunidades também não era sempre pacifico e harmonioso. Por diferentes razões esses grupos travavam guerras entre si e muitas vezes escravizavam grupos vizinhos. Todavia, embora os pequenos grupos que habitavam não se enxergassem como iguais, havia semelhanças significativas entre eles que devem ser entendidas. Muitas das características em comum encontradas em diversas sociedades africanas, sobretudo na África subsaariana, são decorrentes de um movimento migratório ocorrido entre três e quatro mil anos atrás e que foi denominado como Expansão Bantu. Bantu era umas das subdivisões da família linguística Níger-congo, que era falado por populações que habitavam as proximidades do rio Níger. Segundo pesquisas arqueológicas recentes, graças ao aumento 8

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populacional e ao desmatamento decorrentes da pesca farta e do cultivo de gêneros alimentícios como o arroz, o inhame e as palmeiras oleaginosas (como a do dendê), os grupos humanos que ocupavam essa região iniciaram dois grandes processos de migração em busca de novas terras. Sendo assim, os povos africanos que se originaram a partir dessa expansão compartilham uma série de características e práticas que, geralmente, são chamadas de África Tradicional. Uma das principais instituições das chamadas sociedades tradicionais africanas era a família, pois era ela que primeiro definia o pertencimento dos indivíduos no grupo. No entanto, na África subsaariana, a noção de família é diferente do modelo europeu. As famílias africanas eram extensas, formadas não só pela mãe, pai e seus filhos, mas também pelos avós, tios, sobrinhos, netos e primos que tinham um ancestral em comum. A família extensa, também chamada de linhagem, era a organização que assegurava a existência física e a perpetuação dos indivíduos; permitia a socialização no grupo; e proporcionava o sentimento de pertencer a um coletivo, na medida em que possibilitava a conexão de cada membro à sua ancestralidade, ou seja, à sua história. As linhagens também determinavam o prestígio social de um homem. Quanto maior o número de pessoas dependentes dele (fossem mulheres, filhos, netos, sobrinhos e irmãos), maior era a importância que ele tinha dentro da comunidade. Este prestígio exercia grande influência nos acordos nupciais feitos entre as diferentes famílias - permitindo a união de grandes linhagens por meio de casamentos – e na escolha dos chefes da comunidade, escolhidos dentre os líderes das famílias mais extensas, pois eram os homens que detinham maiores recursos econômicos e maior respeitabilidade social. Nas famílias extensas havia a divisão social do trabalho, que estava pautada pelo gênero. Às mulheres adultas cabia todos os afazeres domésticos, como a criação dos filhos, os cuidados com a casa, a confecção de utensílios de cerâmica, a tecelagem e, principalmente, os cuidados com a produção dos gêneros agrícolas. Já os homens da mesma idade eram responsáveis pela criação de animais, a atividade pesqueira, a caça (quando essa atividade era realizada), a segurança da comunidade, e diferentes atividades artesanais, sobretudo o manuseio do ferro e as produções artísticas. Outra carcatertística comum às sociedades da África tradicional era a vivência cotidiana da esfera religiosa. Ainda que cada comunidade acreditasse em um Deus ou em deuses próprios, as formas por meio das quais os membros desses grupos entravam em contato com o divino era muito semelhante. Toda ação humana era, potencialmente, uma ação religiosa. O cultivo da terra era geralmente antecedido por cerimônias que visavam à fertilidade. Quando meninos e meninas entravam na fase adulta era comum que fossem feitos rituais de iniciação secretos, nos quais os jovens ficavam reclusos por algum tempo aprendendo os ensinamentos da idade adulta e da profissão que deveriam seguir. Em algumas comunidades, o processo de iniciação dos meninos que se transformariam em ferreiros chegava a durar anos. Até a família extensa era compreendida por meio da religião. Praticamente todas as sociedades da África subsaariana acreditavam na coexistência do mundo dos mortos, e por isso realizavam o culto aos antepassados acreditando que eles eram uma espécie de semi-deuses que serviam como intermediários na comunicação com forças maiores. De forma parecida com o que aconteceu com o império romano 10

antes da conversão ao cristianismo, quase todas as casas africanas tinham pequenos altares particulares nos quais cultuavam seus ancestrais familiares. Junto ao culto aos antepassados, as comunidades africanas também cultuavam deuses específicos que estavam diretamente relacionados com elementos da natureza. Esses cultos geralmente eram acompanhados de muita música e dança e, em alguns casos envolvia o transe de pessoas que estavam iniciadas para incorporar os deuses ancestrais. Em diversos casos, esses deuses tinham sido os chefes fundadores da sociedade que após a morte tinham se transformado em deuses do trovão, deuses da chuva, deuses da Lua e do Sol. Muitos povos criam em entidades que viviam nas águas dos rios e dos lagos, ou então na força de uma determinada árvore e de animais específicos. Mas é importante lembrar que as aldeias africanas não acreditavam nos mesmo deuses. Cada comunidade, cidade ou reino tinha seus deuses e entidades próprios e formas específicas de realizar seus cultos e cerimônias religiosas. Todavia, ainda que a religião fosse praticada por toda comunidade, pois era ela quem dava o sentido à coletividade dos diferentes povos, existiam figuras que tinham relação ainda mais intensa com o mundo do divino, como os sacerdotes e os feiticeiros. Os sacerdotes eram as pessoas (homens ou mulheres) responsáveis por boa parte das cerimônias religiosas, comandavam os rituais de iniciação e eram as pessoas mais capazes em ler os possíveis sinais dos deuses bem como os jogos de adivinhação. Os feiticeiros tinham atributos semelhantes aos dos sacerdotes, mas o fato deles saberem alterar as características físicas de alguns elementos da natureza fazia com que eles fossem figuras ao mesmo tempo temidas e respeitadas pelo grupo. Não por acaso, muitos dos feiticeiros também eram ferreiros, pois ambos detinham o poderoso conhecimento de como alterar a natureza. Tão poderoso como o fogo – que alterava a natureza – era a palavra falada. Isso porque a palavra era uma das formas que o homem tinha de se conectar com o mundo divino e sobrenatural, era o elo de ligação entre o passado, o presente e o futuro. Por isso boa parte das sociedades da África Subsaariana era ágrafa, ou então utilizava a palavra escrita para assuntos específicos. Dessa feita, era por meio da tradição oral que o conhecimento, os costumes, as histórias e os mitos eram contados. A oralidade também reforçava a importância que os homens e mulheres mais velhos detinham nessas sociedades. Justamente por terem vivido mais do que o restante, os idosos eram extremamente respeitados e muitas vezes tomados como figuras quase divinas. Era justamente por isso, que o seguinte ditado ficou tão popular no continente africano: “toda vez que um ancião morre é uma biblioteca que se queima”. No entanto, assim como ocorria com a religião, cada sociedade tinha um sacerdote da palavra, ou seja, uma pessoa responsável por guardar a palavra, como se fosse uma espécie de arquivo vivo. Doma era o nome dado para homens da África Ocidental que eram respoensáveis por guardar a memória de um povo. Depois de passar por um processo de mais de 20 anos de iniciação, esses homens eram capazes de memorizar a história de quase todos os antepassados da sua comunidade e se transformavam numa espécie de “documentos vivos” da sociedade. O respeito que os domas tinham pela palavra era tão grande que eles falavam apenas quando necessário. Os domas também nunca mentiam, pois mentir significava quebrar o elo que os ligava com a memória e a história daqueles que haviam vivido antes deles. Era a maior ofensa que poderiam fazer. 11


Outra figura importante eram os griots. Diferentemente dos domas, os griots falavam muito e contavam diversas histórias, muitas vezes acompanhados de música e dança. Assim como os gregos narraram as histórias da Guerra de Tróia e as aventuras de Ulisses, muitos griots contaram as façanhas de importantes reis, como Sundiata (o primeiro rei do Mali), ou então descreveram batalhas que haviam sido travadas no passado e até mesmo as histórias de como o homem e o mundo haviam surgido. Nas noites mais quentes, os jovens das aldeias sentavam-se em volta de uma pequena fogueira e ouviam as histórias contadas e cantadas pelos griots e pelos homens mais velhos da comunidade.

Diversidades da África Tradicional Conforme dito anteriormente, embora existissem muitos aspectos em comum nas sociedades da África subsaariana, elas não eram todas iguais. E também não viveram estáticas no tempo e no espaço. Os deuses cultuados, a organização econômica, as línguas e até mesmo a formação sócio-política eram diferentes. Para ajudar a ampliar o conhecimento sobre as muitas Áfricas que existiram, será tratada parte da história de algumas as sociedades do continente africano, para que não só as semelhanças, como as diferenças existentes entre elas possam ser compreendidas. Trabalhar com todos os povos que habitaram o continente africano seria impossível. Por isso, vamos analisar quatro sociedades da África Subsaariana que existiram antes do contato com os eurpeus: Gana, Ifé, Luba e o reino Monomotapa. Gana foi o primeiro grande estado a se formar às margens do rio Níger, fundado no século IV pelo povo africano soninquê. Este reino era composto por cidades e comunidades africanas menores (sobretudo aldeias agrícolas), que deviam obediência ao grande senhor da região, chamado de gana, ou caia-manga. A maior parte da população era composta por camponeses e criadores de animais. Essas famílias viviam em casas rodeadas por hortas, plantações de palmeiras, figueiras e pequenos currais onde eram criados carneiros e algumas aves. O que eles produziam era usado tanto na subsistência de seus familiares, como no pagamento dos tributos devidos ao soberano. O caia-manga e sua corte viviam na capital do reino – Kumbi Saleh – que era formada por suas cidades. A residência do gana e sua família era um complexo murado cujo interior tinha um palácio feito de pedras e madeiras (dentro do qual havia uma enorme pepita de ouro) e por pequenas cabanas que tinham o teto cônico. Ao redor dessa cidade havia cabanas e pequenos bosques que eram considerados lugares sagrados onde ninguém poderia entrar sem autorização, sobretudo os estrangeiros que eram expressamente proibidos de visitá-los. O acesso a tais locais era controlado pelos sacerdotes e feiticeiros, homens que moravam nos bosques e eram responsáveis pelos cultos religiosos ali realizados. A segunda cidade que formava a capital do reino era um grande centro comercial no qual moravam muitos mercadores. Todavia, ao contrário do que ocorria na primeira capital, esta cidade era habitada por famílias de diferentes condições sociais, que podiam variar desde um simples artesão até ricos negociantes muçulmanos. Era neste lugar que as principais trocas comerciais eram realizadas. Caravanas vinda de diferentes localidades paravam ali para trocar seus produtos pelo tão cobiçado ouro. Embora os mercadores conseguissem negociar grande quantidade de produtos, era o gana quem mais lucrava com esse comércio, taxando com dinar os produtos que entravam em seu território e dois dinares os produtos que saiam de Gana.

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A abundância de ouro em Gana atraiu a atenção de muitos mercadores e viajantes árabes que passaram a se referir ao estado como o país do ouro. Graças às rotas comerciais estabelecidas por negociantes muçulmanos, o ouro de Gana chegou a ser comprado e utilizado em diferentes localidades da Europa. Todavia, a chegada dos almorávidas (que eram bérberes islamizados) trouxe mudanças para o reino de Gana. Ainda que Gana conhecesse e tivesse muitos mercadores convertidos ao Islã, a obrigatoriedade da conversão imposta pelos almorávidas alterou padrões de produtividade econômica transformando os campos de cultivo em pasto. Tal alteração causou um grande desequilíbrio no reino que, mesmo depois da expulsão dos almorávidas no século XII, não conseguiu se reestruturar completamente. Em 1204, o povo africano sosso que vivia nas redondezas invadiu e passou a controlar militarmente o reino. Um pouco mais ao sul do rio Níger, na região sudeste da Nigéria e em alguns pontos dos atuais países de Benin, Togo e Serra Leoa, os grupos iorubas organizaramse em aldeias e cidades-Estado que estavam ligadas por um mito de origem comum. De acordo com um dos mitos fundadores iorubanos, Olodumaré, o deus supremo dos iorubas, enviou para terra Odudua com um saco que continha um pouco de terra, uma galinha e uma palmeira de dendê. Odudua, um semi-deus iorubano, derramou a terra sobre a água e ali colocou a palmeira e a galinha. Assim que foi colocada no chão, a galinha começou a ciscar e a espalhar a terra por todos os lados, dando origem ao mundo. Esse local inicial ficou conhecido como Ifé, que nas línguas iorubas significa aquilo que se alarga. Outras importantes cidades iorubas como Benin e Oió acreditavam ter sido criadas pelos filhos de Odudua, que assim como o pai eram semi-deuses que personificavam forças da natureza. Graças a esse antepassado comum essas outras cidades-estado, bem como aldeias e reinos iorubas pagavam tributos e concediam homenagens à Ifé. Construída por volta do século VI d.C na região de floresta tropical próxima aos rios Níger e Bernué, durante mil anos Ifé foi “o umbigo do mundo”, segundo os iorubas. Embora até hoje seja um importante centro religiosa na África, no século XVI Ifé entrou em franco declínio econômico. A religiosidade era um aspecto determinante na vida de Ifé, e em boa parte estava representado pela figura do oni, ou rei de Ifé. Tido como um rei divino, junto com a responsabilidade de legitimar todos os líderes das cidades-estado descendentes de Odudua, o oni de Ifé também deveria administrar assuntos “terrenos” como cobrança de impostos, o controle da agricultura e o intenso comércio que era realizado na cidade. O oni era um rei divino. Mas não eram apenas as funções religiosas que derem destaque para Ifé. Por ocupar uma posição estratégica na Costa Ocidental africana, a cidade de Ifé não só tinha uma agricultura e atividade pesqueira fértil, como também se tornou um importante pólo comercial. Lá eram comercializados milhete, inhame, dendê, feijão e quiabo cultivados nas regiões de floresta; os grãos e cereais produzidos nas savanas; além dos instrumentos feitos de ferro e contas de pedra e de vidro (utilizadas como ornamentos e enfeites). Além dos habitantes da cidade, esse forte comércio atraia povos vizinhos como os nupês e os vangaras. Junto com a religião e o comércio, a produção artística também era uma característica marcante da cidade de Ifé. As esculturas de cabeças, tanto em terracota como em bronze encontradas em escavações colocaram as esculturas de Ifé na mesma tradição artística encontrada no Egito Antigo, na Grécia e Roma Clássicas e na Itália renascentista, na qual os artistas procuravam alcançar a beleza perfeita por meio do retrato fiel do ser humano. 14

Se observadas com atenção, percebe-se que as cabeças encontradas em Ifé possuem um acabamento perfeito e são de uma beleza quase inigualável. Tanto as esculturas de bronze como as de terracota retratam o rosto humano em harmonia e equilíbrio, o que sugere que o artista fosse inspirado em modelos humanos na busca da beleza ideal. A África Ocidental foi uma região que também conheceu grande variedade de povos e organizações sociais que na sua maioria estava disposta ao longo do rio Congo e seus afluentes. Durante o século XIII foi formado o reino de Luba, que era composto por diferentes aldeias que estavam subdivididas por linhagens, isto é, por famílias extensas, sendo que cada uma delas era especializada na produção de um determinado gênero. Embora o líder de cada linhagem tivesse amplos poderes sobre sua família, havia uma reverência ainda maior pelo rei que, segundo a tradição oral, era o descendente direto Calala Ilunga e Congolo, os fundadores de Luba. Justamente por isso, o rei era considerado um ser divino, responsável pela segurança e prosperidade do povo. As principais atividades econômicas do reino Luba eram a agricultura e atividade pesqueira. Todavia, como eram descendentes de grandes guerreiros, os lubas conseguiram ampliar seu território por meio de pequenas guerras. Como era de se esperar, a religião Luba cultuava seus ancestrais usando para isso máscaras e esculturas de madeira e rituais que envolviam música e dança. O reino Monomotapa foi fundado pelo povo xona por volta do século XIII, ao sul do rio Zambeze, ocupando parte do planalto do Zimbábue e chegando até o rio Limpopo (atual país do Zimbábue). Diferentemente do restante da região, o planalto do Zimbábue possuía terras férteis e não era afetado pela mosca tsé-tsé (também conhecida como mosca do sono e que é mortal para animais como boi e carneiros), o que permitiu que os xonas conseguissem ocupar aquelas terras. O fator religioso também foi de fundamental importância para a supremacia dos xonas sobre os demais povos da região. Os xonas acreditavam em um deus supremo chamado Muári. Contudo, os homens só podiam entrar em contato com esse deus por meio dos espíritos dos mortos (vadzimu e umondoros) que eram cultuados do alto da colina. É provável que os outros povos da região, ao mesmo tempo amedrontados e encantados com as vozes que ecoavam do topo da colina, tenham criado um respeito religioso pelos xonas e passaram a pagar tributos para esse povo em troca de proteção. A sociedade desenvolvida pelos xonas também ficou conhecida como o Grande Zimbábue. Isso porque as aldeias e vilas dos xonas tinham um arranjo muito característico. Tais vilarejos eram murados com grandes blocos de pedras que serviam como proteção para as casas construídas de dagas e sapé. Essas muralhas de pedra com formato cilíndrico ficaram conhecidas como zimbábues (que na língua xona significa “casa de pedra” ou “casa do chefe”). Dentro de cada zimbábue era possível encontrar de cinco a oito famílias. A descoberta das minas de ouro próximas ao planalto incrementou ainda mais a economia dos xonas. As redes comerciais que já haviam sido firmadas com a criação de gado sofreram um forte crescimento. O ouro do Grande Zimbábue passou a ser negociado com as grandes cidades do litoral Índico do continente como Quiloa e Sofala. Esse comércio permitiu que o Grande Zimbábue comprasse porcelana chinesa, vidros feitos pelos sírios e contas de vidro dos mais diversos lugares, entrando assim na rota comercial do Oceano Índico. 15


O crescimento comercial também resultou na ampliação dos zimbábues que ficaram maiores e mais complexos. O Grande Zimbábue (o maior complexo criado pelos xonas) chegou a abrigar quase duzentas pessoas e era um verdadeiro labirinto de muralhas de pedra. As demais construções de pedra eram habitadas por famílias camponesas, pastoras e artesãs, pois além das casas, essas muralhas de pedra também tinham espaços reservados para a produção agrícola, a criação de animais e a confecção artesanal de produtos como tecidos, vasos de cerâmica e objetos de ferro e cobre. Apesar da economia rica e dinâmica e da estrutura social complexa, o Reino Monomotapa entrou em decadência no início do século XV.

A relação com os europeus, a escravização e a formação do tráfico transtlântico A chegada do islamismo no século IX trouxe diversas alterações para a África Subsaariana. Conversões de nobrezas, ampliações de redes comerciais e a criação de um mercado de escravos são alguns exemplos disso. E tão impactante quanto a presença muçulmana, foi o contato e as relações estabelecidas com os europeus a partir de meados do século XV. Portugal foi a primeira nação europeia a estabelecer contato direto com os povos da África subsaariana, ainda no século XV. Tal contato foi resultado do movimento conhecido como grandes navegações. Os portugueses pioneiros nesse evento tinham dois objetivos inicias com as explorações marítimas. Tendo em vista que o caminho mais rápido para os portugueses chegarem às Índias (via mar Mediterrâneo) estava sob o controle dos muçulmanos, após a expulsão dos árabes de seu território e a centralização do poder nas mãos da dinastia de Aviz, comerciantes, marinheiros, estudiosos das artes navais e a Coroa portuguesa juntaram esforços com o intuito de contornar o continente africano e chegar à Ásia. Além das questões tecnológicas (neste período foram desenvolvidas embarcações de grande porte e técnicas de orientação em alto mar) e da arrecadação de dinheiro, os portugueses tiveram que enfrentar as inseguranças e o medo em cruzar mares “nunca dantes navegados”. Embora a chegada ao continente asiático ainda fosse o principal objetivo dos portugueses, o contato direto com regiões africanas que eram conhecidas apenas por meio da narrativa de viajantes muçulmanos abriu um novo universo de relações para Portugal. Em 1434, as expedições portuguesas aportaram na região africana que foi denominada de Guiné, habitada por diferentes povos como os iorubas, edos e acans. No ano de 1482, os portugueses chegaram à região do Congo. A partir desse primeiro contato, Portugal e as demais nações europeias começaram a estabelecer importantes redes comerciais com diferentes sociedades africanas. Foi nesse contexto que o escravo transformou-se numa das mercadorias mais cobiçadas pelos europeus. Antes mesmo da chegada europeia e muçulmana, diversas sociedades africanas já possuiam escravos. Na maior parte dos casos, tais cativos eram produtos das guerras e razias ocorridas entre os diferentes povos, e nunca alguém que fosse considerado um igual. Ainda que o cotidiano desses escravos fosse marcado pela violência inerente à instituição, o mercado sistemático de cativos só foi formado com o contato de islâmicos e europeus.

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As primeiras tentativas portuguesas de ultrapassar a região litorânea da costa ocidental africana foram impedidas tanto pelas doenças que assolaram sua tripulação (como a febre amarela e a malária), como pelas batalhas travadas pelos africanos que, munidos com arcos e flechas, pequenas espadas e ágeis pirogas venceram as armas de fogo europeias. Já que a tentativa de dominação não havia dado certo, a única forma dos europeus terem acesso aos escravos era por meio de negociações comerciais. Desde 1440, o “trato da carne” já era visto como um negócio lucrativo para Portugal que passou a vender africanos escravizados para importantes cidades europeias, bem como utilizá-los na produção de açúcar na Ilha de São Tomé, que na época era uma colônia portuguesa. No ano de 1448 a ilha de Arguim tornouse uma praça de “comércio regular”, na qual tecidos, armas e cavalos trazidos em navios europeus eram trocados por homens e mulheres escravizados. Em menos de quarenta anos esse comércio intensificou-se de tal forma que os portugueses conseguiram negociar a construção de uma feitoria em território acan, o Forte São Jorge da Mina, com a contrapartida do pagamento de altos tributos para as lideranças locais. Esse forte permitia estocar um grande número de mercadoria (inclusive escravos), enquanto se aguardava o retorno das embarcações que haviam viajado para a Europa. Com o passar dos anos e, principalmente, com a colonização do Novo Mundo, a escravização e venda de africanos intensificou-se, trazendo vantagens econômicas para os europeus e para as elites de algumas sociedades africanas envolvidas no comércio. As primeiras grandes levas de africanos escravizados saíram da região que hoje corresponde aos países de Congo e Angola. A compra massiva de escravos nessa região estava intimamente ligada com a conversão do rei do Congo ao catolicismo e à intima relação que este reino passou a ter com os portugueses. Logo em seguida, entre os séculos XVI e XVII, portugueses e outras nações europeias como os franceses, holandeses e ingleses começaram a comprar africanos escravizados da região que ficou conhecida como Costa do Ouro (no atual país de Gana) habitada sociedades acans, fantis e mandingas. A partir do século XVII, e sobretudo no século XVIII, o tráfico atlântico ampliou sua área de atuação para a região do Golfo do Benin, que ficou conhecida como a Costa dos escravos devido ao grande número de africanos que de lá saíram. O reino do Benin, estudado no capítulo anterior, se transformou em um grande fornecedor de escravos para os europeus e brasileiros. Por fim, durante o final do século XVIII e início do XIX, o comércio com a região Congo-Angola que nunca havia sido extinto, foi reaceso. A constante busca de cativos fez com que portugueses e brasileiros iniciassem o tráfico com a África Oriental, principalmente com a região do atual país de Moçambique. Algumas das cidades-Estado do Oceano Índico estudadas no capítulo anterior, como Quiloa e Sofala, acabaram envolvendo-se no comércio atlântico de africanos escravizados e se tronaram importantes portos de embarque no final dos setecentos. Como a travessia do Atlântico não era barata, os traficantes esperavam ter o número suficiente de escravos para lotar os navios e só então realizar a viagem. Por isso, os africanos escravizados podiam esperar até três meses antes de embarcarem. Durante o período de espera nas cidades costeiras, esses escravos viviam presos e eram constantemente vigiados. 18

Chegada a hora da viagem, os africanos eram colocados nos porões das embarcações de médio porte que ficaram conhecidas como navios negreiros ou tumbeiros. A ideia era colocar o máximo de escravos possíveis dentro de cada navio. A duração da viagem variava de acordo com o ponto de partida e o ponto de chegada. Nos séculos XVI e XVIII, os navios que saíam da Costa Ocidental africana demoravam cerca de vinte e cinco dias para chegar a Pernambuco, trinta dias para chegar à Bahia e quarenta dias para aportar no Rio de Janeiro. Já a travessia entre a Costa Índica da África (principalmente na região de Moçambique) e o Rio de Janeiro poderia durar de dois a três meses. O embarque era um dos momentos mais desesperadores para os africanos. Em primeiro lugar, muitas sociedades africanas acreditavam que o mar separava o mundo dos vivos do mundo dos mortos, por isso, a viagem significava a perda da vida. Outros povos acreditavam que os portugueses e europeus em geral eram canibais e que todos eles seriam devorados assim que entrassem no navio. Quando a experiência do tráfico foi aumentando, os africanos escravizados sabiam que não morreriam (ao menos fisicamente) e que não seriam devorados; mas também sabiam que seu futuro seria duro e incerto e que dificilmente retornariam à sua terra natal. Nos portos da Costa dos Escravos era comum que antes do embarque os africanos dessem uma volta em torno da árvore do esquecimento, um ato simbólico que demonstrava a violência inerente à escravidão. A travessia dos africanos escravizados era realizada nos porões das embarcações, onde eles passavam a maior parte da viagem amontoados uns nos outros e presos pelos pés ou pelos braços. Como não havia espaço suficiente, os escravos ficavam sentados durante boa parte da viagem ou revezavam as poucas esteiras que existiam no navio. A morte era contante durante a travessia. Estima-se que 30% dos escravos embarcados morriam antes de chegar no Novo Mundo. No entanto, apesar de todo horror, muitos africanos conseguiram construir laços de solidariedade durante a viagem. A amizade construída entre esses africanos chegava a ser tão forte que existia uma palavra para defini-la: malungu. Essa palavra tinha origens em diferentes línguas africanas, mas a experiência da travessia do atlântico fez com que ela ganhasse um significado especial: companheiro de travessia. A força dessa amizade era tanta, que alguns africanos conseguiram mantê-la depois da chegada ao continente americano.

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Brasil Africano A violência era uma característica inerente à instituição escravista. E não era

apenas a brutalidade dos castigos corporais que estava em questão. A escravidão era pautada por uma complexa rede de violências físicas, psicológicas e simbólicas. Os açoites, o uso dos troncos, as queimaduras com ferro em brasa, e o uso máscaras, argolas e grilhões são alguns exemplos de agressões físicas as quais os escravos estavam sujeitos. Havia ainda a brutalidade no trato cotidiano; as diferentes formas de abuso (inclusive sexual); a instauração do medo nas relações sociais; a desconsideração de identidades já construídas; e o pressuposto de inferioridade que, na época, era duplamente justificado pela origem africana e pela cor negra dos cativos. Depois dos horrores da chegada, marcada pela morte de muitos africanos e pela separação de famílias e de companheiros de travessia, o escravo era vendido em barracões existentes nas principais cidades portuárias da América. Ainda nas adjacências dos mercados, o africano que havia sido comprado era batizado. Na verdade, rebatizado. O nome que recebera em sua terra natal era substituído por um nome cristão (como José, João, Maria, etc.), e a ele agregado o nome do porto africano no qual havia sido embarcado: Cabinda, Mina, Benguela, dentre outros. Nesse momento, os novos José Cabinda, João Mina e Maria Benguela, também recebiam os primeiros ensinamentos do cristianismo e aprendiam as primeiras palavras em português. Durante os mais de trezentos e cinquenta anos de vigência da escravidão no Brasil, a mão-de-obra escrava compôs a base dos trabalhadores e por isso mesmo foi utilizada em diferentes atividades e em localidades distintas. Todos os gêneros produzidos em larga escala e vendidos para o exterior, como o açúcar, o tabaco, o ouro e o café, foram frutos do trabalho árduo de escravos africanos e crioulos. No ápice da produção do açúcar (século XVI) e do café (século XIX), e no auge do período aurífero (século XVIII), a exploração do escravo era tamanha que a média de vida ativa do cativo variava entre sete e dez anos. Contudo, estimativas apontam que mesmo nesse curto tempo de vida ativa, o escravo “pagava” para seu proprietário a quantia que havia sido desembolsada no momento da sua compra e ainda gerava benesses: a partir do terceiro ano de trabalho, tudo o que era produzido pelo cativo representava lucro ao senhor. Este retorno financeiro relativamente rápido fez com que o escravo fosse visto como uma boa forma de investimento, o que fomentou o tráfico intercontinental de africanos por três séculos. Essa lógica da exploração total do trabalho escravo intensificou ainda mais a violência inerente à escravidão. Além da obrigação em labutar horas a fio de baixo de sol quente, chuva forte, ou dias frios, o constante reabastecimento de africanos escravizados nos portos do Brasil fez com que muitos proprietários fossem negligentes com os cuidados despendidos aos cativos. Ainda que fosse um investimento lucrativo, o escravo era um bem facilmente reposto. 20

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Apesar de cuidados com alimentação, moradia e vestimenta serem de responsabilidade senhorial, a fácil reposição dos escravos ajuda a explicar as péssimas condições de vida que os proprietários ofereciam a seus cativos. A alimentação que os escravos recebiam costumava ser composta apenas por farinha de mandioca ou de milho, uma porção de carne salgada e, por vezes, um pouco de feijão: o básico para o sustento humano. As roupas desses cativos eram feitas de panos de algodão simples e deveriam durar ao menos um ano. Muitos escravos que adoeciam eram deixados à própria sorte, pois, conforme dito a pouco, muitas vezes era mais vantajoso comprar um novo cativo do que cuidar do enfermo. Junto à rígida e pesada disciplina de trabalho no eito e às chibatas recebidas quando não alcançavam a quantidade estipulada de feixes de cana ou cestos de grãos de café, os escravos e escravas ainda enfrentavam outros dois grandes problemas: os acidentes e as condições insalubres de trabalho. A mesma rotina de trabalho árduo foi experimentada por escravos e escravas domésticos das casas-grandes ricas e pobres do Brasil. Arrumar a casa, cozinhar, lavar e passar roupa, cuidar dos filhos dos senhores: os escravos domésticos eram os primeiros a acordar e os últimos a deitar, todos os dias. Se por um lado eles gozavam de uma melhor vida material, já que moravam e se alimentavam na casa de seus proprietários, era também sobre eles que primeiro recaia a maldade e o abuso de muitos senhores e senhoras. Nas grandes cidades, os escravos domésticos também estavam sujeitos às violências descritas acima. Mas eles não eram os únicos. Os escravos de ganho e de aluguel também experimentaram diferentes tipos de agressões e brutalidades. No aluguel, também comum nas regiões rurais, o cativo era alugado de um senhor para outro, podendo realizar variada gama de atividades. Já na atividade de ganho, o escravo oferecia seus serviços pelas ruas e comércio da cidade em troca de um pagamento, frequentemente chamado de “jornal”. Parte do dinheiro que ele recebia era entregue semanalmente para seu senhor. O pouco do dinheiro que sobrava ficava com o escravo que ainda precisava pagar por sua alimentação e, em muitos casos, por sua moradia. As intempéries que marcaram a vida dos escravos na América portuguesa e depois no Brasil Império fez com que eles encontrassem diversas formas de resistir. Fugas, formações de quilombos, revoltas, quebras de ferramentas de trabalho e até mesmo o suicídio são exemplos dessa resistência. No entanto, a religiosidade também foi uma forma que muitos cativos utilizaram para lutar contra a condição do cativeiro. Uma alternativa que muitos escravos encontraram não só para construir suas famílias extensas, mas também para lutar pela liberdade se deu por meio à filiação às Irmandades Negras criadas no Brasil. A história das Irmandades Religiosas remonta à Idade Média, período no qual devotos de determinados santos criaram, com o aval da Igreja Católica, organizações cujo principal objetivo era fazer caridade e ampliar a fé cristã. As irmandades negras criadas desde o período colonial seguiam os mesmos preceitos religiosos das demais: todos os membros deveriam efetuar o pagamento da taxa anual, dinheiro esse que seria revertido às festas, rituais fúnebres e missas das igrejas. A grande diferença dessas Irmandades estava na condição de seus membros (a maioria eram escravos e/ ou libertos) e o fato delas adorarem santos negros, como Nossa Senhora do Rosário, Santos Elesbão, Santa Ifigênia e São Benedito. 22

Muitos senhores e a própria Igreja Católica viam com bons olhos a formação das irmandades negras, pois acreditavam que essa era mais uma forma de controlar a população escrava e liberta, já que esses homens negros passariam a compartilhar a mesma religião que seus proprietários ou ex-senhores, religião essa que defendia a escravização de negros crioulos ou escravos. Contudo, embora tivessem a mesma fé religiosa que seus senhores, as irmandades negras foram importantes espaços de sociabilidade para negros cativos e alforriados. Os membros de uma mesma irmandade criavam laços de amizade, parentesco e, sobretudo, solidariedade: muitas vezes, o padrinho de um recémnascido era escolhido dentro da irmandade que os pais da criança faziam parte. Casamentos entre escravos ou de cativos com libertos também ocorriam dentro dessas organizações. As irmandades negras ainda garantiam um enterro e um cortejo fúnebre digno para todos os seus membros. O Candomblé e a Umbanda também foram maneiras de resistir e criar novos laços de identidade. No candomblé, por exemplo, os membros de um mesmo terreiro ou casa são considerados irmãos, pois são todos filhos da mesma mãe ou pai-desanto responsável por seu processo de iniciação. A ideia de irmandade ou confraria também permeou o universo religioso e social da umbanda (mais comum no Rio de Janeiro e em São Paulo), do tambor-de-mina (do Maranhão) e do batuque gaúcho. Embora as religiões afro-brasileiras tenham sido perseguidas durante muito tempo, pois eram acusadas pela Igreja Católica de praticar feitiçaria, as redes de parentesco criadas nessas comunidades ajudaram diversos cativos na luta pela liberdade. O fim da escravidão, em 1888, não garantiu a boa inserção dos africanos escravizados e seus descendentes na dinâmica socioeconômica. Salvo raríssimos casos, nenhum senhor aceitou de bom grado o fim da escravidão, pois isso representava a perda de uma importante propriedade. Desse modo, a abolição da escravatura no Brasil foi resultado da soma das lutas abolicionistas internas com as diversas ações escravas em busca da liberdade e com a pressão da Inglaterra, e não do sentimento altruísta da classe senhorial. Se isso não bastasse, a lei Áurea não representou um ponto final na história brasileira, mas sim o início de um novo capítulo da sua trajetória. Mesmo porque, os milhares de escravos libertos assim como os que já eram forros antes de 1888 continuaram fazendo parte da história do Brasil, apesar disso nem sempre ser lembrado. Embora a abolição da escravidão tenha ocorrido quando o Brasil ainda era uma monarquia, os ideais de uma sociedade sem escravos estavam mais relacionados com um governo republicano do que com a figura de imperadores e princesas. Não por acaso, pouco mais de um ano após a abolição da escravidão, foi proclamada a República do Brasil em 15 de novembro de 1889. As autoridades republicanas brasileiras tomaram diversas medidas a fim de “remediar” o que consideravam uma das razões do atraso brasileiro; uma delas foi a manutenção da política do embraquecimento iniciada ainda sob nos tempos de D. Pedro II. O objetivo dessa política era fazer com que o Brasil se tornasse uma nação branca no intervalo de cem anos. Daí o incentivo à migração de europeus para as principais regiões produtoras do país. A ideia era que, aos poucos, a população brasileira fosse se miscigenando ao criar gerações cada vez mais claras. A fim de combater práticas racistas, ou de lutar por melhores condições de vida e de trabalho, entre o final do século XIX e começo do século XX, trabalhadores e intelectuais negros de diferentes localidades do Brasil começaram a se organizar 23


para discutir a discriminação sofrida, pensar alternativas para a melhoria da condição de vida dos afro-brasileiros e proporcionar momentos de lazer que até então eram negados para essa parcela da população. Um dos primeiro movimentos foi criar associações e grêmios que permitissem não só o encontro como o debate. Em São Paulo, que na época já era o principal centro econômico do país, foram fundados o Centro Cultural Henrique Dias, a Associação Protetora dos Brasileiros Pretos e o Grêmio Dramático Recreativo e Literário “Elite da Liberdade”. Associações e grêmios semelhantes foram criados nas demais cidades brasileiras. Nessas organizações eram realizados diversos tipos de atividades como festas, bailes e reuniões, ocasiões nas quais havia diversão, discussão e diversas redes de solidariedades e amizade eram estabelecidas. Todavia, as questões experimentadas pela população negra não ficaram restritas às associações e grêmios. Como os meios de comunicação da época apenas reproduziam os padrões de beleza europeus e estampavam a população negra como “criminosas em potencial” - reforçando assim o racismo -, diversas das organizações negras descritas acima se articularam e fundaram jornais voltados para população negra. Não por acaso tais jornais ficaram conhecidos como: imprensa negra. Esses jornais, em parte influenciados pelos periódicos escritos pelos e para imigrantes, eram direcionado a uma elite de homens e mulheres negros e mestiços, que mesmo pequena, tinha representantes em diferentes localidades do Brasil. Alguns deles eram jornais muito semelhantes aos produzidos no restante do país e pouco, ou quase nunca, tocavam na problemática do racismo. Nesses casos, os periódicos traziam ofertas de emprego, anúncios de concursos de beleza e outras notícias cotidianas. No entanto, em periódicos como O Clarim d´Alvorada, A Liberdade, a Sentinela, O Alfinete, e O Baluarte, jornalistas e intelectuais negros não só denunciavam situações de preconceito racial, como também usavam o jornal para ajudar na educação e aumentar a autovalorização da população negra e mestiça, questões que não tinham espaço nos outros jornais brasileiros. Alguns periódicos chegaram a abrir espaços para que seus leitores publicassem poemas e contos. E Não foi por acaso que muitos jornais da imprensa negra faziam menção constante aos abolicionistas brasileiros. Em geral, havia uma grande preocupação em transmitir mensagens morais que pregavam contra a vadiagem e enalteciam o trabalho e o trabalhador negro. Produzidos em pequenas gráficas e muitas vezes contando unicamente com o financiamento de seus editores ou com o dinheiro angariado com rifas, a grande parte desses jornais tinha uma pequena tiragem e era distribuída gratuitamente ou então vendida a custos baixos nas organizações e agremiações frequentadas pela população negra. Uma vez mais, a solidariedade entre os membros da comunidade negra se fez sentir. Em 1931 foi fundada em São Paulo a Frente Negra Brasileira. A FNB, como ficou conhecida, era uma organização que objetivava integrar a população negra na sociedade seguindo os padrões vigentes. Por isso, tal organização se empenhou em criar as condições necessárias para que a população negra pudesse ingressar no competitivo mercado de trabalho. Em pouco tempo, outras filiais dessa organização foram criadas em todo país. Em 1944, Abdias do Nascimento fundo o Teatro Experimental do Negro. Além de recuperar heranças africanas como o candomblé, o TEN promoveu congressos e, principalmente, provou que o Brasil tinha talentosos atores, poetas, bailarinos e músicos negros, incomodando muitas emissoras de televisão e jornais do Brasil. 24

Assim como ocorreu no período escravista, as religiões de matriz africana tiveram um papel fundamental para as populações negras e mestiças de todo o Brasil. Embora existam diferentes religiões que receberam forte influência da cosmologia africana em todo território brasileiro, é possível dizer que o princípio de coletividade existente em todas elas foi uma das armas que ajudou na luta contra a discriminação e promoveu a criação de uma identidade negra intimamente ligada com o passado africano, ainda que atualmente tais religiões sejam praticadas não só pela população negra e mestiça. Uma das religiões de matriz africana mais difundida no Brasil é o Candomblé. De forma abrangente, o Candomblé é uma religião brasileira de matriz africana baseada no axé (força vital que está em tudo e em todos) que faz oferendas às entidades ancestrais que estão ligados à fundação das principais linhagens africanas. Tais entidades são chamadas de orixás ou voduns e são acionadas por meio do transe possessivo que é chamado pelos sons dos tambores. Cada indivíduo tem seu orixá de cabeça, ou seja, uma entidade que o irá acompanhar pelo resto da vida. O terreiro ou casa de Candomblé é um espaço sagrado onde cultos, oferendas e festas são realizados. Tais casas são chefiadas por Pais ou Mães de Santo também chamados de babalorixás e ialaorixás. Além de chefiarem suas casas, os Pais e Mães de Santos costumam ter grande atuação na comunidade próxima o que, consequentemente fez com que muitos deles se tornassem importantes lideranças comunitárias no combate à discriminação religiosa e racial. A Umbanda também é uma religião tipicamente brasileira que foi criada no final do século XIX e início do século XX no Rio de Janeiro. Tal religião é resultado da combinação de elementos religiosos oriundos da África, com o Kardecismo e religiões indígenas. Atualmente existem diversos tipos de umbanda em todo Brasil. Estruturada nos princípios morais de fraternidade, caridade e respeito ao próximo, a Umbanda admite a existência de um Deus maior chamado Zambi (Deus supremo dos cultos de Candomblé Bantu). Todavia, o contato dos umbandistas com o divino se dá por meio de dois tipos de divindades: os Orixás (as mesmas entidades encontradas no Candomblé) e os Guias. O culto Umbandista em espaços específicos como Terreiros ou Centros. O chefe desses espaços, chamados de Sacerdotes ou Sacerdotisas, são os médiuns mais experientes. Festas religiosas e populares, tais como o Império do Divino, a Congada, a Umbigada, o Jongo e o Bumba-Meu-Boi são outras manifestações culturais fundamentais para a manutenção de práticas iniciadas no período colonial que apresentam fortes traços africanos, sobretudo em regiões interioranas no país. Além de ser um importante momento de diversão, essas festas acabaram criando traços identitários e laços de solidariedade nas comunidades em que são praticadas. A música e as festas populares brasileiras também são importantes manifestações culturais que apontam o legado africano no Brasil. Mas não são as únicas. No campo das artes plásticas também é possível observar forte presença da população negra, seja ela objeto ou sujeito das obras. Observa-se assim, que em todas as instâncias e épocas da sociedade brasileira é possível observar a pluralidade da presença africana.

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