Claudinei Roberto da Silva Marcelo Cardoso de Paiva Rodrigo da Silva (Coord.) 1ª. Edição Vasto Mundo Rio de Janeiro- 2012
Caixa Econômica Federal Presidenta da República Dilma Vana Rousseff Ministro da Fazenda Guido Mantega Presidente da Caixa Econômica Federal Jorge Fontes Hereda Ficha Técnica Coordenação Geral Rodrigo da Silva Coordenação do curso Carlos Eduardo França de Oliveira Professores Claudinei Roberto da Silva Marcelo Cardoso de Paiva Rodrigo da Silva Textos Claudinei Roberto da Silva Marcelo Cardoso de Paiva Rodrigo da Silva Design e Editoração Camila Wingerter Ilustrações Paulo Galvão Produção e Edição Vasto Mundo Assessoria Jurídica Perrotti e Barrueco Advogados Associados
SUMÁRIO Apresentação 6 1. A Invenção do Brasil
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2. Um Brasil moderno? O modernismo e os debates de uma ciência social militante
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3. Modernismo, modernismos
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4. Novas leituras, novos rumos: escritores modernistas e a formação da cultura nacional 35 5. Arquitetando a cultura nacional: Os modernos e a construção de uma identidade brasileira 45 6. Arte plástica, Brasil moderno 55 Autores 60
Apresentação Discorrer sobre o modernismo no Brasil e esquecer-se da Semana de Arte Moderna de 1922, que este ano comemora nove décadas, equipara-se a tratar sobre o mesmo tema, tendo como cenário a Europa, e não mencionar as vanguardas estéticas ali nascidas. Mas ao mesmo tempo em que são remissões obrigatórias sem as quais é impossível compreender figuras como Tarsila do Amaral ou Henri Matisse, enfatizá-las em demasiada pode obscurecer, ainda que involuntariamente, um entendimento mais profundo e matizado sobre o que de fato foi o modernismo, recorrentemente tomado como um “movimento” intrínseco às artes em geral. O curso O Olhar Modernista: uma viagem pelo modernismo no Brasil, a contrapelo dessa leitura, busca entender o modernismo no Brasil como uma nova forma de ver e representar o país que envolveu tanto artistas como intelectuais de áreas distintas, a exemplo de arquitetos, historiadores, sociólogos e homens a serviço do Estado. Ao considerá-lo como um amplo quadro mental de ideias, opiniões e sentimentos historicamente situados, é possível afirmar que, a despeito das diferenças entre si, os modernistas brasileiros compartilhavam de uma premissa essencial: o fascínio por uma ruptura que, distintamente daquela proposta pelos modernistas do Velho Mundo, conhecidos por sua oposição radical ao canônico, deitava raízes muito mais numa releitura das tradições herdadas sob a ótica do novo. Tal compromisso com a formação cultural do povo brasileiro promoveu uma profunda exploração da identidade nacional, bem como da função dos artistas e intelectuais na recém-instaurada República. 6
Os capítulos aqui presentes têm como intuito servir de material de apoio ao curso O Olhar modernista, sem qualquer pretensão de esgotar a discussão sobre o tema. Pontos de partida, os capítulos procuram trazer à tona algumas reflexões sobre o pensamento moderno brasileiro, responsável pelo forjar de uma visão renovada de Brasil, seja na fundação de uma arte dita nacional, seja na criação de novas interpretações a respeito do país. Carlos Eduardo França de Oliveira Coordenador do curso O Olhar Modernista
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Capítulo 1
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A Invenção do Brasil Rodrigo da Silva
o chegar ao poder, em 1930, Getúlio Vargas assumia um país dividido pela disputa das elites estaduais, um pacto que houvera prevalecido e mantido a unidade da nação desde a Independência há mais de um século. Não que o concerto dos poderes fosse harmônico e pacífico, em diversos momentos desde 1822 a nação se viu diante de levantes e tentativas de revoluções, mas, ao final, prevalecera o princípio da unidade nacional. Entretanto, se no processo de independência (e com todas as conveniências que havia aos diversos grupos políticos) a unidade na nação fora garantida pela adesão ao projeto monarquista constitucional ao redor da família dos Orleans e Bragança, após a proclamação da República a unidade devia ser buscada em outros campos. Que pese o fato de a República haver sido proclamada num processo muito mais elitista do que a própria Independência, o que levou José Murilo de Carvalho a endossar a ideia de que a população assistira ao ocorrido “bestializada”. Nem a “República da Espada” (dos dois primeiros presidentes militares), nem a que se seguiu (a chamada “República Velha”, com sua política do “Café com Leite”) conseguiu tecer profundamente uma nova ideia de nação, tanto para os grupos regionais quanto para a própria população. 9
A Invenção do Brasil A derrubada do governo e a tomada de poder por Getúlio Vargas na Revolução de 1930 representava não apenas uma luta pela direção da nação, contra o alijamento de grupos econômicos do restante do país, mas, também, a instauração de um programa nacional diverso. Ao menos no primeiro momento da Revolução de 1930 era bastante significativa a presença de alguns dos Tenentistas da década anterior, movimento formado por oficiais de baixa patente oriundos das camadas médias da população, com maior nível de escolaridade e comprometidos com um programa modernizador do Brasil, ainda que calcados na ideia de uma direção militar do país. Independentemente dos rumos tomados após 1930, com todas as rupturas e mudanças de rumos dos revolucionários, das acomodações com os grupos derrubados, das expectativas frustradas para alguns (o que culminou com a instauração do Estado Novo, em 1937, regime formalmente ditatorial), o que se viu no Brasil, na esfera do poder federal, no decorrer dos anos de 1930 e 1940 foi uma imensa obra de engenharia social que buscou constituir uma base popular a um projeto nacional, coisa que faltara às duas primeiras repúblicas. Efetivamente, até os anos de 1930, pouca coisa unia as populações das diversas regiões brasileiras. Além das imensas distâncias, do isolamento das populações, da existência de regiões de ocupação rarefeita, da precariedade dos meios de comunicação e de transporte, da ausência de programas nacionais, da presença do Estado em contraponto às inúmeras autonomias dos estados da federação, pesava, também, distinções culturais e rivalidades regionais oriundas de séculos de colonização por núcleos e conflitos políticos. Estados criados por divisão para acomodar grupos políticos e econômicos, outros para debelar revoltas, rivalidades e traições acumuladas graças a intervenções armadas, contraposições e preconceitos do universo urbano diante do rural. Havia muito para justificar a unidade nacional, mas havia – talvez – na mesma medida motivos para se dividir. Consciente ou intuitivamente, o grupo que tomou o poder em 1930 não demorou a desencadear um processo de criação, de invenção de uma ideia de país, o que ficou ainda mais urgente e visível após a tentativa frustrada de revolta paulista em 1932 (a chamada “Revolução Constitucionalista de 32”), na qual – junto com o discurso de exigência de democracia – vinha um tema incidental separatista e de revanchismo regional. 10
Paralelamente à reorganização do Estado brasileiro, com a criação de programas nacionais, da padronização de leis, de processos de formação, comunicação, unificação fiscal, monetária e econômica, o governo se empenhou em amarrar essas ações com um forte aparato ideológico, embrenhado nos universos das artes, cultura, esporte e educação. Todo esse processo amparado na criação de uma nova mitologia nacional, composta por imagens, tons, cores, formas, figuras. Curiosamente parte das pessoas convidadas a colaborar nesse processo, ainda que estivessem associadas a projetos específicos do governo federal (na música, arquitetura, patrimônio histórico, educação, etc.), eram oriundas de grupos contestadores da década anterior. Um marco fundamental nesse processo foi a chegada do político mineiro Gustavo Capanema ao Ministério da Educação e Saúde em 1934, após a eleição de Vargas para presidência da República. Em seu ministério, de largas atribuições, Capanema reuniu colaboradores de peso, muitos dos quais já consagrados no meio intelectual brasileiro (como o arquiteto Lúcio Costa e o escritor Mário de Andrade). Outros eram jovens promissores, influenciados pelas correntes renovadoras, como Oscar Niemeyer. Também pelo Ministério Capanema, ou em projetos específicos vinculados a ele, passaram figuras como Heitor Villa-Lobos, Edgar Roquete Pinto, Rodrigo de Melo Franco, Cecília Meireles, Candido Portinari, Manuel Bandeira, Roberto Burle Marx, Vinícius de Moraes. O caráter contraditório de Capanema, se cercando de vanguardistas ao mesmo tempo em que era influenciado por conservadores como Alceu Amoroso Lima (contraponto religioso ao movimento “escolanovista” de Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo), em verdade revelava um político habilidoso e gestor de um processo que visava justamente criar uma ideologia de caráter nacionalista que pairasse acima das divergências internas. Tarefa extremamente ousada e, é claro, com tons que flertavam proximamente com as ideologias nacionalistas europeias. Em 1937, já no Estado Novo (do qual era signatário), criou o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o SPHAN, que teve a sua frente duas figuras emblemáticas: Rodrigo de Melo Franco (que levou Carlos Drummond de Andrade como seu secretário 11
A Invenção do Brasil executivo) e Lúcio Costa. Em seus primeiros tempos Rodrigo de Melo Franco ainda se valeu da colaboração de Mário de Andrade, o qual, percebendo os encaminhamentos totalitários do governo varguista, se afastou do SPHAN e do Ministério Capanema. O momento imediatamente posterior a criação do SPHAN revela o corte estético e ideológico da década de 1930 e a sedimentação das discussões fomentadas desde o começo da década anterior, fortalecidas pelo aparecimento de livros lapidares em 1933 – Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre – e 1936 – Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda – respectivamente. Apesar de todas as diversidades que afastavam pensadores e obras tão distintas, traço comum a eles é a busca de uma matriz nacional e do diálogo dela com o mundo, incorporando as sucessivas contribuições culturais vindas das diversas regiões do planeta. A ideia do “tipicamente nacional”, do “brasileiro”, ganhava dentro do Ministério Capanema e, por consequência, no governo federal força e atenção que jamais tivera. A implicação imediata disso é que tudo que fosse considerado “estrangeiro”, ou não tipificado como “nacional”, deixava de merecer atenção e zelo, acusado – muitas vezes – de colonizado (embora essa fosse uma condição de nascimento do Brasil, mas continuamente criticado e responsabilizado por toda mazela nacional). As escolhas do SPHAN para seus primeiros tombamentos de patrimônio histórico foram talhadas sobre essa visão. O barroco eleito como obra máxima, expressão do ápice de uma arte que não era nossa – posto que aportou pelas mãos dos portugueses e carregada de influências orientais -, mas que – idealmente – havíamos transformado em algo “brasileiro”; Aleijadinho, por sua vez, mestre absoluto do estilo, síntese – inclusive – da formação étnica nacional. De outro lado, no sul do país, São Miguel das Missões, extrato do momento áureo de uma cultura mestiça, meio europeia, meio guarani. Outros tantos exemplares, “testemunhos da origem da nação”. Mário de Andrade, que contribuíra nas formulações iniciais da definição de patrimônio cultural do SPHAN, não conseguiu ver a concretização do reconhecimento e da proteção das manifestações populares e cotidianas de nossas culturas, prevaleceu o monumental, o religioso, o luso-brasileiro. 12
De fato, o que se percebe em perspectiva é um vasto processo que, ao mesmo tempo, procurou amalgamar e harmonizar (calar?) as diversidades que marcavam nossa sociedade. O antigo e o moderno, o nacional que comporta “regionalismos” (para quem?), o nativo e as heranças portuguesas e africanas, a eleição de sons, tons, traços tidos como sintetizadores da nação e oriundos de uma “paixão” inata (o futebol, o samba, o carnaval, o a natureza deslumbrante e exótica). Todos esses elementos não eram desprovidos de lastro cultural, não eram sem fundamentações sociais significativas, mas, não resta dúvida, foram em certa medida domesticados, colocados sob o controle do Estado, oficializados (o que implica na regulação, na limitação, no balizamento das amplitudes). De outro lado, todo o restante passou a ser compreendido como “regional”, uma espécie de hierarquização das manifestações, pois estavam circunscritos a territórios específicos, que eram trazidos a público como exemplos do quanto o Estado, com seu desenho sociocultural “nacional”, consegue manter (tolerar?) as diversidades e se encanta com suas espontaneidades (selvagens?). Paradoxalmente, o modernismo – com sua profunda associação as dissonâncias, interrupções, fragmentações – forneceu vasto repertório de referências e inteligências a essa engenharia social imagética desenvolvida a partir de 1930.
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A Invenção do Brasil
Bibliografia
BOMENY, Helena (org.). Constelação Capanema: intelectuais e política. Rio de Janeiro: FGV, 2001. MICELI, Sérgio. Nacional estrangeiro: história social e cultural do modernismo artístico em São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. SCHWARTZMAN, Simon (org.). Tempos de Capanema. Rio de Janeiro: Paz e Terra/FGV, 2000. SEVCENKO, Nicolau. Orfeu estático na metrópole: São Paulo nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
Filmografia
32 – A guerra civil. Brasil, 1993. Direção: Eduardo Escorel. Revolução de 30. Brasil, 1980. Direção: Sylvio Back.
Na internet
Arquivo Público do Estado de São Paulo www.arquivoestado.sp.gov.br Biblioteca Nacional www.bn.com.br Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil www.cpdoc.fgv.br
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Capítulo 2
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Um Brasil moderno? O modernismo e os debates de uma ciência social militante Rodrigo da Silva
oda obra literária se renova a cada geração. Parte de um texto é composto pelo universo de produção (o autor, seu tempo e seu lugar), outra parte é feita das apropriações que no decorrer dos anos vão se fazendo dele. Por isso, decorridas décadas – às vezes séculos – da produção de um texto (e poderíamos estender isso para quase qualquer outra criação humana) nosso trabalho se multiplica, pois cabe apreendê-lo na contemporaneidade, no nosso tempo, e, concomitantemente, entendê-lo em “seu” tempo. Alguns títulos e autores que se tornaram clássicos das ciências sociais no Brasil, e que anualmente são lidos por milhares de estudantes de História, Letras, Ciências Sociais, foram gerados dentro de um universo de debates que muitas das vezes é ignorado e que colaborou na forja de determinadas concepções de país. Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., Paulo Prado, Mário de Andrade, Edgar Roquete Pinto e tantos outros escreveram suas obras num dos momentos mais complexos e fascinantes da história brasileira, o qual – poderíamos dizer – tratou de alinhavar um imaginário nacional no olho de um furacão que reordenou profundamente o Ocidente e encerrou a chamada “época das Luzes”.
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Um Brasil moderno? O modernismo e os debates de uma ciência social militante É um equivoco dizer que o modernismo foi uma decorrência das inúmeras turbulências e revoluções ocorridas nas primeiras décadas do século XX no Ocidente; mais próximo da realidade seria dizer que o próprio modernismo foi uma das forças propulsoras que abalaram as estruturas. Justamente por isso é fundamental perceber a relação íntima entre alguns dos pensadores brasileiros desse período, suas obras e o desdobramento de uma estética modernista na interpretação e proposição a respeito da sociedade brasileira. Embora alguns dos autores citados tenham começado a publicar suas obras de maior importância e fôlego apenas nos anos de 1930 – como Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre, lançado em 1933, Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda de 1936 e Formação do Brasil contemporâneo: colônia de Caio Prado Jr. de 1942 – suas formações se deram nas décadas anteriores, nas quais vivenciaram não só um país – e uma cultura ocidental – em transformação como perceberam um cenário amplo de crise que implicava diretamente em elaboração de juízos e discernimentos. No início dos anos de 1920 o cenário brasileiro podia provocar uma série de perplexidades para um observador. O país havia se tornado uma república a pouco mais de trinta anos e o mesmo ocorria com o fim da escravidão oficial. A Independência, por sua vez, estava prestes a completar um século, mas, politicamente, o país estava fortemente estruturado em oligarquias regionais em grande medida sustentadas por uma base agrícola e rural. Contudo, ele se urbanizava e a estrutura do governo e das forças armadas absorvia uma juventude citadina, oriunda das camadas médias da população e instruída. A entrada maciça de imigrantes na segunda metade do século anterior – e mesmo no início do XX – alterara a configuração étnica e cultural de diversas regiões do país e, ao findar a Primeira Guerra Mundial, novas ideologias – o comunismo principalmente – passavam a ser debatidas por estudantes, operários, artistas, políticos e intelectuais. A crescente urbanização do Brasil, a presença de imigrantes europeus, o primeiro movimento de industrialização do país e a criação de uma massa trabalhadora nas grandes cidades também confluíra para o surgimento de movimentos operários e para embates sociais. A década chamada de “Os anos loucos” findava com a quebra da Bolsa de Nova Iorque e o mergulho vertiginoso do Ocidente em uma crise econômica sem precedentes. 18
Diante de toda essa efervescência, sem contar os movimentos artísticos e políticos na Europa, a intelectualidade brasileira se propunha a pensar o país diante do mundo. Não que isso fosse uma novidade absoluta, mas, pela primeira vez, isso se dava em um país independente, republicano e sem escravidão. Também era novidade o fato de pensar o país em face de uma Europa destruída e ressentida após a Primeira Guerra Mundial. O padrão de cultura, de civilização, para o Ocidente se auto-devorara numa guerra fratricida de quatro anos, na qual todos os limites de barbárie haviam sido transgredidos. A referência cultural havia sido abalada em suas estruturas e falar em progresso X atraso, civilização X barbárie exigiria a partir de então inúmeras considerações e relativizações. Quando chegou aos EUA para estudar com o antropólogo Franz Boas, Gilberto Freyre – contava o próprio – sentira ao atravessar uma cidadezinha do interior do sul um forte cheiro de churrasco. Ao atravessar o centro da mesma verificara que o odor provinha não de um churrasco, mas da incineração de um homem negro crucificado em praça pública pela Klu Klux Klan. Pensava o sociólogo brasileiro: por que somos diferentes? Sérgio Buarque de Holanda, jornalista, atuando como correspondente na Alemanha, por sua vez, tinha uma vasta lista de questões a se fazer: Como um país tão jovem se atirara numa guerra tão selvagem? O que formara esse país? Como a pátria da filosofia, da música, mergulhara em tanta obscuridade? E nós, tão jovens como nação, o que herdamos do Velho Mundo? Porque não incorporamos as virtudes e deixamos os vícios para trás? O que é o brasileiro frente ao mundo? Caio Prado Jr., oriundo de uma das famílias mais ricas do país e formado no seio da aristocracia, flertava com o pensamento de Karl Marx e o contrapunha aos escritos de outro Prado seu parente, Paulo, que descrevera o Brasil como um país melancólico e sem a veia guerreira dos europeus, portanto pouco inclinado às revoluções e revoltas necessárias para a evolução social. Essas reflexões, ainda que típicas das ciências sociais, não estavam distantes de figuras como Mário de Andrade, Alcântara Machado, Villa-Lobos e outros tantos, inclusive pela proximidade dos atores. O Brasil dos anos de 1920 e 1930 era composto de uma pequena 19
Um Brasil moderno? O modernismo e os debates de uma ciência social militante parcela de população urbana, e dentre essa uma parcela ainda menor de escolarizados e ínfima de intelectuais, artistas e escritores. O resultado imediato de um cenário tão restrito era uma grande proximidade, seja pela origem social, seja pela cooptação de cérebros nas camadas intermediárias da população. Mário de Andrade possuía origens relativamente humildes, mas como professor de música, escritor, transitava entre as elites, relação entre grupos sociais que o sociólogo Max Weber houvera discutido em uma de suas obras mais relevantes, Ciência e política, duas vocações. Obviamente que cada uma dessas obras, e de seus autores, mereceu longas reflexões pelos acadêmicos brasileiros, entretanto, o que nos importa é flagrar nelas uma penetração de preocupações estéticas aplicadas sobre um país, sua sociedade e cultura. Em comum todas essas obras têm o fato de se preocuparem em compreender a origem e os (des)caminhos do Brasil, de encontrar suas formas, sua morfologia, sua estética. Mas, longe de apenas identificar essas características, os autores dos anos de 1930 estavam preocupados em – com sua crítica – propor o desenho de um novo país, de uma nova sociedade. Nesse aspecto é curioso notar que enquanto os modernismos europeus se pautavam numa apologia do futuro – tal como Otavio Paz tantas vezes escreveu –, no reconhecimento de uma virtude inerente do amanhã diante dos demais tempos históricos, os modernismos no Brasil se referenciaram fortemente no passado nacional. Em Gilberto Freyre o passado é como um tempo de ouro, perdido, de relações sociais duras, mas negociadas por uma criatividade oriunda da mescla cultural dos povos formadores do Brasil. Casa Grande e Senzala é a descrição de um berço cultural brasileiro, escravista, violento, mas permeado por “docilidades”, por uma afetuosidade onipresente. Sobrados e Mucambos é o início da passagem desse berço sócio-cultural brasileiro – rural, agrícola, patriarcal – para uma sociedade urbana, de impessoalidades, da ausência de proximidades promovidas pela presença do sobrado, semi-castelo onde os senhores se trancam com suas famílias. Ordem e Progresso é o término desse processo, com a instauração da República e de uma sociedade indiferente, impessoal e que somente se apropriou dos aspectos negativos dos tempos anteriores. 20
Sérgio Buarque de Holanda, por sua vez, em Raízes do Brasil via em nosso passado as origens de nossa persona social, de nosso caráter (termo em voga nos anos de 1930). Nossa cordialidade, personalismo, bacharelismo, a dubiedade das relações sociais e a indistinção entre as esferas públicas e privadas. O Brasil era um país que não superara ainda traços incômodos de seu passado e que impediam a construção de uma sociedade menos desigual e mais justa. O mesmo poderíamos dizer a respeito de Formação do Brasil Contemporâneo: colônia, de Caio Prado Jr., o qual abria sua obra descrevendo o “Sentido da Colonização”. Agro-exportadora, vinculada aos interesses metropolitanos, fundamentada na geração de excedentes, no exclusivismo econômico, no regime escravocrata, no latifúndio, no controle de poucas famílias, na sociedade polarizada entre livres e escravos, proprietários e despossuídos. Uma sociedade que se reproduzira e complexificara, mas que não superara as máculas de origem. Em todas essas obras encontramos a retomada do passado, sempre como idealização (idílica ou infernal, como berço ou como mácula), sempre como referência. O outro lado dessa remissão ao passado é a proposição no presente, a ideia de superação (para Sérgio Buarque ou Caio Prado Jr.) ou de retomada dos valores (em Freyre), embora, obviamente, todos sejam extremamente complexos em suas formulações. Essa diferença, inclusive, entre rompimento e retomada valeu – décadas depois – a Gilberto Freyre a pecha de conservador, ainda que no discurso de Caio Prado Jr., e na matriz do pensamento comunista, haja um forte componente conservador ou “restaurador” (daquele que restaura um “comunismo primitivo” da aldeia, da igualdade dos direitos). Ou seja, nessas obras fundadoras, diversamente de muitas outras igualmente importantes, há um claro aspecto estético aplicado a sociedade brasileira. Tanto Sérgio Buarque quanto Gilberto Freyre não apenas eram próximos de modernistas como eram grandes conhecedores e críticos do modernismo e suas referências. Freyre cultivava uma admiração singular pelo poeta americano Walt Whitman, autor de Folhas de relva, um dos referenciais mais significativos dos modernistas na Europa e nos EUA. Outro elemento diferenciador entre os trabalhos dos pensadores brasileiros e o de seus congêneres europeus é a posição em que se colocam no cenário da história mundial. 21
Um Brasil moderno? O modernismo e os debates de uma ciência social militante Os modernistas europeus questionavam a posição do continente e da cultura ocidental (ou europeia, mais corretamente) nessa trajetória humana. O berço da cultura ocidental, tido de modo ufanístico no decorrer do século XIX como impulsionador da humanidade, como ápice da civilização, era o mesmo motor das atrocidades cometidas na década de 1910. Então as ideias de evolução contínua, do progresso como valor em si, da crença na tecnologia e na ciência, passavam por contestação radical. Uma das decorrências disso no pensamento social e nas ciências humanas foi uma crescente crítica às cronologias lineares e constantes; ou seja, no lugar de um tempo contínuo, acumulativo, marcado pela evolução humana, da qual a Europa seria o maior expoente, surgem proposições de um tempo espasmódico, marcado por acelerações e desacelerações, por surtos, sem sentido único, permitindo inúmeros retrocessos. Ao mesmo tempo a humanidade passava a ser entendida como um conjunto de temporalidades simultâneas, culturalmente marcadas, nas quais cada grupo humano experiência a existência de modo distinto. Tanto as concepções dos pensadores franceses – sobretudo do historiador Fernand Braudel – a respeito das “durações” do tempo quanto o questionamento do físico Albert Einstein são diálogos com as novas mentalidades que surgem a partir dos anos de 1910/1920. Com isso, permite-se o retorno ao “primitivo”, aos fundamentos da espécie humana. Na antropologia isso implica num rompimento com os cânones da ciência, que se pautara até então pela busca e compreensão da “evolução” e da hierarquização das culturas através de seus desenvolvimentos tecnológicos. Os conceitos de “civilização” em contraponto à “barbárie” e de “desenvolvido” frente a “atrasado” perdem força, permitindo estudos que se pautavam não pela hierarquização, mas pela busca da compreensão da diversidade através da comparação. A frustração com a “cultura europeia” marcou, também, certa idealização – paradoxalmente romântica? – nos estudos dos povos nativos ao redor do globo. Picasso, Matisse e tantos outros vão buscar nesse “primitivismo” as referências humanas, boas e más, ora símbolo de pureza e beleza originais, ora da brutalidade e “selvageria” inerente ao homem e não superável por qualquer suposta evolução ou aculturação. 22
Mas, daqui, do outro lado do Atlântico nossa posição geográfica, histórica, cultural, era profundamente diversa e tais preocupações geravam eco limitado ou com efeitos diversos daqueles vistos e ouvidos na Europa. Embora hoje saibamos que, mesmo etnicamente, não há qualquer linearidade histórica na Europa, essa não era a percepção na virada do século XIX para o XX. Imaginava-se uma longa sequência de um só povo a partir de um só espaço. Nas Américas nossa gênese colonial partia de um princípio diverso, marcado pela chegada de conquistadores, em território ocupado milenarmente e que, no decorrer dos séculos, recebera imensos contingentes de pessoas trazidas do mundo todo, sobretudo da África. Ainda que muito se tenha escrito e defendido até o século XIX a respeito do princípio civilizador da colonização, do “fardo do homem branco” (como responsável pela aculturação dos “bárbaros”), sempre houvera vozes dissonantes, religiosas ou não, identificando a violência e brutalidade do processo. Deste modo a crítica a se estabelecer nas primeiras décadas do século XX no Brasil – e também um pouco em cada país da América Latina – não era a um “fracasso” ou “mal estar” da civilização, não era o da desilusão com o presente decaído, de uma cultura perplexa, como no caso europeu, mas de compreensão do papel dos povos miscigenados no cenário mundial e perante o futuro. Se nos séculos anteriores, e principalmente no XIX, as elites intelectuais e políticas latino-americanas recorrentemente olharam para a Europa como parâmetro e – em certa medida – lamentando-se de nossa “impureza original”, as primeiras décadas do XX propiciam e incentivam um reencontro com as singularidades étnicas, históricas e culturais das Américas e de seus povos. Portanto, a posição dos pensadores deste lado do Atlântico, guardadas todas suas divergências, matizes, interesses, afinidades, pendeu para a reflexão e a projeção de um passado a ser superado – diferentemente da Europa. Superado em suas mazelas sociais, suas permanências excludentes, elitistas, pouco democráticas, personalistas, patriarcais, etc., mas não em sua diversidade e riqueza culturais, legado – aos seus olhares – indiscutível do Brasil e das Américas. 23
Um Brasil moderno? O modernismo e os debates de uma ciência social militante Perceba-se que essa elaboração está na base tanto do pensamento de Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, quanto no de Mário de Andrade, de Lúcio Costa, está na formulação das políticas iniciais do Ministério da Saúde e Educação de Gustavo Capanema e do diretor do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rodrigo de Mello Franco. E, sem dúvida, podemos perceber esse discurso em manifestações muito recentes da cultura brasileira, como na obra final de Darcy Ribeiro: O Povo Brasileiro: a invenção do Brasil. Em tempos recentes cresceu a crítica à compreensão de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr. como oriundos de uma mesma “geração de 30” (termo cunhado por Antonio Cândido em pósfacio hoje clássico ao Raízes do Brasil); tal crítica se vale da observação das divergências entre os três autores, algumas bastante significativas. Contudo, se esquece que, apesar das singularidades, estavam todos eles dentro de um mesmo movimento, mais amplo, dado pelo tempo e respondendo a um mesmo mundo. Há alguns anos, o historiador Nicolau Sevcenko disse em entrevista que – para ele – a figura mais radical do Modernismo em São Paulo havia sido Sérgio Buarque, quando todos esperariam a indicação de Mário ou Oswald de Andrade. A indicação não era nem fortuita, nem corporativista, mas escorada numa percepção antropofágica da obra de Sérgio Buarque de Holanda, talvez mais do que qualquer outro escritor de sua geração. De modo geral tanto o Modernismo como movimento estético, político, social, intelectual amplo, quanto os autores e artistas a ele ligados tiveram papel fundamental da delineação de uma nova percepção do Brasil, a qual perdurou por décadas e ainda é presente em nossas produções intelectuais e artísticas.
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Bibliografia
FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2005. _______________. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. São Paulo: Global, 2003. _______________. Ordem e Progresso: processo de desintegração das sociedades patriarcal e semi-patriarcal no Brasil sob o regime de trabalho livre: aspectos de um quase meio século de transição do trabalho escravo para o trabalho livre; e da monarquia para a república. São Paulo: Global, 2004. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. PRADO JR., Caio. Evolução Política do Brasil e outros estudos. São Paulo: Brasiliense, 1972. ________________. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Publifolha, 2000.
Filmografia
Raízes do Brasil: uma cinebiografia de Sérgio Buarque de Holanda. Brasil, 2001. Direção: Nelson Pereira dos Santos. O povo Brasileiro: a invenção do Brasil. Brasil, 2001. Direção: Isa Grinspum Ferraz. Casa Grande e Senzala. Brasil, 2000. Direção: Nelson Pereira dos Santos.
Na internet
Fundação Joaquim Nabuco www.fundaj.gov.br Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo – IEB www.ieb.usp.br Fundação Darcy Ribeiro www.fundar.org.br
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Capítulo 3
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Modernismo, modernismos Claudinei Roberto da Silva
012 celebra a efeméride nunca suficientemente comemorada dos 90 anos da Semana de Arte Moderna. A data nos permite uma vez mais avaliar por ângulos diversos a importância daqueles eventos, alguns deles preteridos pelas elites que outrora escreveram sua história. Em pintura chamamos pentimento, palavra italiana que significa arrependimento, o fenômeno que acomete pinturas antigas e revela as etapas que o artista seguiu até a conclusão de sua obra. Isso se dá porque com o tempo as camadas de tinta vão ficando pouco a pouco transparentes e desse modo revelam formas que foram abandonadas, corrigidas etc. Assim, também essa narrativa da qual nos ocupamos vai ganhando contornos inéditos, pela ação do tempo, pela distância da história. O entendimento geral sobre a Semana de Arte de 22 vai sendo ampliado na medida em que o país, o próprio Brasil, segue paulatinamente avançando e aperfeiçoando seu sistema democrático, o que implica numa necessária revisão de sua compreensão, arejada pelos pontos de vista e depoimentos daquelas forças antes desprezadas pelas classes dominantes que redigiram a “versão oficial” da história.
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Modernismo, modernismos Mas a hipótese acima aventada, mesmo se correta, não alija o fato de que as seminais contribuições dos agentes de 1922 também se beneficiam e valorizam-se no tempo, tempo que confirma a importância daquela ousadia. Trata-se, portanto, de buscar os termos justos, ou tão justos quanto possível, para expor uma história em processo, que sendo de arte e peculiar por isso, está entranhada no bojo daquela outra macro-história, podendo mesmo comentá-la de maneira pertinente e original. Ao viajar pelo interior do Brasil é possível deixar-se pasmo com a visão das monoculturas intermináveis que se sucedem monotonamente por horas a fio. Cultivos que fizeram fortunas e foram a glória da nossa economia, deram lugar a outras que continuam patrocinando aqui e alhures o anseio da nossa burguesia agrária pelo poder ostentado de maneira tão variada. Admirável é, portanto, que num país de tais dimensões, num tal colosso continental, exista quem pretenda que o gosto e as sensibilidades sejam definidos por quem habita uma parcela relativamente pequena de seu território. Não parece razoável que assim seja, mas sabemos que a memória é um campo em constante disputa e que a nossa história, a história da civilização brasileira, tem sido contada pelo grupo que disputando o poder conquistou-o e pretere a partir daí a história dos vencidos.
Índices e signos da modernidade É possível aferir a condição moderna a partir de índices e signos dispersos num determinado cenário sociocultural? Certamente que sim, contudo esses parâmetros podem não se apresentar na epiderme do tecido social, nem sempre afloram de maneira explícita e evidente. Um índice que indica a modernidade de um grupo no Brasil dos fins do século XIX e início do XX é sem dúvida a urbanização de suas cidades, o grau de desenvolvimento urbano e suas fatais derivações. Certa boemia artística reunida em torno dos cafés e ateliês é uma dessas derivações do fenômeno moderno, estando intimamente ligada ao anseio de urbanidade e civilização nos moldes dos centros urbanos da Europa e particularmente da França, mas não só nela. 28
O futebol, aliás detestado por Lima Barreto, é também um fenômeno que surge num ambiente de sofisticação burguesa e vai aos poucos conquistando corações e ganhando feições tipicamente brasileiras, num movimento que não exclui a política, podendo-se dizer que por aqui este esporte foi reinventado. O futebol explica o mundo e ilustra de maneira certeira nossas diferenças regionais. Porque se há diferenças que a história estabeleceu entre os povos que habitam o território nacional elas estão espelhadas na maneira como o futebol é praticado nos extremos desse país. Nosso veneno e nosso remédio é o futebol, diz José Miguel Wisnik, quando explica que o drible de corpo e as acrobacias de Garrincha nos remetem à estética barroca forjada por mestres como Aleijadinho e Mestre Valentim ou Manoel da Costa Ataide. Já o pragmatismo voluntarioso do atleta gaúcho contrapõe-se à fantasia da pratica futebolística carioca, dando uma vez mais ideia do quão variada nossa sensibilidade pode ser. E esse longo preâmbulo foi necessário à introdução do assunto que considero aqui, qual seja: o advento do modernismo entre nós, ou melhor, o advento dos modernismos que nossa diversidade cultural, social e econômica (não necessariamente nessa ordem) patrocinou. A hegemonia do modernismo nascido sob a égide de um projeto político paulistano tem sido paulatinamente contestada na medida em que o progresso econômico de regiões antes excluídas dos jogos do poder, existindo agora, como nunca antes, a possibilidade de surgir um ponto de vista polivalente, poliétnico, pluricultural, contrariando a ideia de uma situação que comporte em arte (mas não só nela) uma sensibilidade monolítica, unidimensional, monótona como o latifúndio da cana. 1922. São Paulo era e ainda é uma cidade sem marcos naturais ou artificialmente criados pelo homem. Quase toda grande cidade (mas só elas) possui alguns, no nosso caso a comparação com o Rio de Janeiro ou com a grandiosidade da selva Amazônica coloca São Paulo em excepcional desvantagem. Afinal, São Paulo são ideias, novamente nas palavras do professor José Miguel Wisnik. Numa paisagem, seja ela urbana rural ou selvagem, os marcos são necessários para que nela nos localizemos, o deserto é só o deserto tedioso e hostil até que nele surjam marcos que 29
Modernismo, modernismos o definam e mesmo humanizem, e as cidades seriam amontoados insalubres, ajuntamentos desconjuntados e sem a personalidade que a atuação humana não lhe confere a partir da arquitetura, do espaço planejado ao convívio e o ideal de habitação. 1922 é um marco na paisagem cultural brasileira, um marco nos termos daquele mencionado acima. Mas o recente interesse dos brasileiros por seu próprio país, motivado quem sabe pela passada efeméride dos 500 anos do “achamento” do Brasil, a ascensão econômica do país, e, como já foi dito, a consolidação de certo processo democratizante, tem criado o ensejo para pensarmos 22 em termos mais justos por generosos. Marco sim, marco simbólico, sobretudo, que sinaliza a busca de um grupo que impingiu um projeto que se pretendia comum a toda nacionalidade na sua abrangência missionária. Essa busca por marcos simbólicos já vinha sendo empreendida anteriormente, nas artes plásticas. Sob a égide da Academia Imperial de Belas Artes, posteriormente Escola Nacional de Belas Artes, ocorreu o advento da pintura de caráter histórico tão bem representadas por artistas como Manuel de Araujo Porto Alegre (1806 – 1879), Victor Meirelles (1832 – 1903), e na pintura de gênero do paradigmático Almeida Junior (1850 – 1899). Mas também a procura da cor local na paisagem tão característica da pintura de João Batista da Costa e do surpreendente Eliseo Viscontti (1866-1944) encontrou esse projeto do nacional nas artes em progresso em cores outras que não as modernas. Os nomes mencionados compõem um leque largo que contempla o apogeu e o declínio do academicismo no Brasil e pavimentam o caminho para novas pesquisas e proposições que vão desaguar no modernismo. O esforço presente pretende compreender que o modernismo em arte, mas não só nela, é oriundo da vontade de entronização de uma mitologia propriamente nossa no centro das discussões sobre a cultura erudita e popular nacional. O modernismo como réplica e recusa dos padrões estéticos forjados pela filosofia acadêmica em arte vinha sendo processado no Rio de Janeiro muito antes da data que simbolicamente pretende inaugurar essa estética entre nós. E me parece natural que assim seja, pois essa ruptura tem haver com anseios por mudanças que na capital da então incipiente República brasileira se faziam sentir de maneira epidérmica. 30
Senão vejamos: “É forçoso atendermos às condições do nosso meio, para avaliar desse mérito, que você pretende descobrir: a artezinha que possuímos esta cediça, a senilidade invadiu a Academia; chegou a hora da derrocada, os deuses foram-se. O Pedro Américo já deu o que podia, o Meireles esta esgotado; dessa geração entanguida, que foi o fruto temporão de uma arvore transplantada e não cuidada resta-nos o que se pode ver na pinacoteca e a nova glorificação do Bernardelli, na escultura...O que é certo é que esperávamos alguém, pedíamos alguma coisa.” Gonzaga Duque, Mocidade Morta, 1900.
Na alvorada do século XX, Luiz Gonzaga Duque Estrada (1863 – 1911), conhecido como Gonzaga Duque, publica o romance Mocidade Morta, marco da estética simbolista entre nós. É um romance de revolta, critica e sátira social, que narra a saga dos Insubmissos, grupo de jovens artistas (e outros nem tanto) reunidos num cenáculo a conspirar, no Rio da Belle Époque, pela renovação das artes no Brasil. Gonzaga Duque escreve a partir de um ponto de vista privilegiado, posto que era o principal crítico de arte a atuar no Brasil de então. Espécie de Vasari brasileiro, a ele devemos o mapeamento da cena artística que precedeu a Semana de 22. E essa cena é muito menos estática e decadente do que nos fazem crer os apólogos do modernismo paulista. De fato, se tomarmos o exemplo do caso de dois pintores cariocas – os irmãos João e Arthur Timótheo da Costa –, artistas negros oriundos da Escola de Belas e que atuaram começo do século XX, compreenderemos que mais do que pavimentar o caminho para a explosão do modernismo em São Paulo, o que existiu no Rio de Janeiro foi na verdade a explicitação de uma sensibilidade que não podia mais ser contida pelas normas do “bem fazer” acadêmico, como percebeu Gonzaga Duque. 31
Modernismo, modernismos João, o mais jovem dos Timótheo, foi laureado em 1907 com o Prêmio de Viagem a Europa por conta da sua participação com a pintura Antes da Aleluia, na Exposição Geral da Escola de Belas Artes. Tanto quanto seu irmão, Arthur exprime, já antes de sua estadia na Europa, o ambiente cosmopolita da então capital federal, e impregna sua obra de um sentido que alguns chamam de Pré-Moderno, termo que designa um trabalho de transição entre a academia e o modernismo, mas que também pode designar aquele grupo que não foi canonizado como moderno pela historiografia de arte no Brasil. O caso dos Timótheo trás ainda uma agravante: são pintores negros, debatendo-se com dificuldades que os levarão precocemente à morte trágica, situação que não é inédita em se tratando de artistas com esse perfil. A forma da arte moderna foi forjada a partir de elementos buscados na Europa e, num certo sentido, a academia e a inteligência paulista avalizaram esse modelo, bem como os procedimentos que identificam a atitude moderna. Essa busca estava em acordo com a necessidade e as demandas econômicas e políticas da elite paulista. Os índices de modernidade surgidos fora dessa esfera de influencia não eram considerados como tal, sendo desse modo preteridos. Contudo, tais índices são verificados na produção das artes gráficas desenvolvidas no Rio de Janeiro, e ousamos dizer do nascente Samba Urbano, ou nas crônicas de um João do Rio. Não se trata de, ao constatarmos a existência de outras forças impulsionadoras do fenômeno moderno entre nós, desconsiderarmos o esforço do movimento inaugurado em São Paulo. Num certo sentido esse movimento paulista atendia ao apelo de uma certa ideologia de caráter civilizador, certo sentido desbravador e vanguardista. O mérito em torno das questões levantadas pelos artistas capitaneados por Mario de Andrade continua intacto, o que o Brasil plural assinala é que o fenômeno moderno entre nós foi muito mais matizado, mais rico e generoso e correspondeu à complexidade e à heterogeneidade da nossa cultura. O ano de 1922 é um marco entre outros que pontua a construção dessa nossa civilização original e mestiça ainda em gestação.
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Bibliografia
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Na internet
Museu Afro Brasil www.museuafrobrasil.org.br
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Capítulo 4
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urante muito tempo a literatura, para além de característica distintiva de uma classe letrada e erudita, constituiu-se como o espaço de reflexão e crítica por excelência da sociedade brasileira, servindo à expressão de diversas correntes de pensamento e posturas políticas dos homens letrados. O domínio das humanidades alcança o mundo acadêmico e científico apenas na ocasião da fundação da Universidade de São Paulo, em 1934. Até então, como o Brasil só possuía escolas superiores voltadas à profissionalização – Direito, Engenharia, Medicina, entre outras –, era principalmente por meio de obras literárias que circulavam e eram debatidas as principais ideias e reflexões sociais, culturais e políticas do país. Um exemplo do potencial que os escritores ostentavam perante a opinião pública foi o papel desempenhado pela geração de 1870, com nomes do calibre de Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, Capistrano de Abreu e Silvio Romero, todos liberais democratas e abolicionistas, e, em sua maioria, republicanos. Intelectuais engajados, empenharam-se em construir uma
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Novas leituras, novos rumos: escritores modernistas e a formação da cultura nacional nação e remodelar o Estado para modernizar a estrutura social e política do país. Por isso foram diretamente responsáveis pelas transformações que mudaram o cenário político, econômico e social que tomaram corpo na Abolição (1988) e na Proclamação da República (1889). A nova ordem que se estabeleceu com a Primeira República trouxe sensíveis mudanças. A abolição da escravidão e a imigração, bem como a crescente industrialização, colaboraram com um vertiginoso processo de urbanização, sobretudo em São Paulo e no Rio de Janeiro. O desenvolvimento da ciência e da técnica na Europa foi absorvido pelo Brasil, trazendo novas formas de produção, de relações de trabalho e de consumo. Um novo tipo de jornalismo decorrente das renovadas técnicas de impressão, transforma também o papel da literatura, forçando os escritores a se adaptarem e conviverem junto aos novos meios de comunicação, como a fotografia e o cinema. A sociedade urbana que se modelava inspirava-se nos ventos culturais e científicos vindos da Europa desenvolvendo novas linguagens culturais. O advento do Modernismo na literatura está, portanto, intimamente ligado à conjuntura histórica brasileira das primeiras décadas do século XX. Além de um grande exercício crítico em resposta ao eclipse da Primeira República – regionalista e oligárquica – constituiu, em seu amadurecimento, um esforço propositivo de definição da identidade nacional brasileira frente ao cenário mundial de incerteza e insegurança decorrentes da Primeira Guerra Mundial. A importância simbólica do centenário da Independência, em 1922, vem coroar o significado do movimento modernista na conjuntura histórica do país naquele momento. Até então, desde os princípios da República, os escritores intelectuais, já despidos do protagonismo político do fim do Império, para garantir seu sustento, viam-se limitados ao funcionalismo, ao mecenato da elite e ao jornalismo, onde se expressavam por meio de crônicas, reportagens, poesias e comentários críticos sobre os mais variados assuntos. Enquanto uns escritores cediam aos gostos e desejos do público leitor, principalmente da elite letrada, outros mais inconformados procuravam se mobilizar para influir mais diretamente nas decisões do Estado. Por uma via ou por outra, ficavam eles reféns dos poderes, do gosto e dos recursos da oligarquia. À Academia Brasileira de Letras (fundada em 1897) coube o papel 36
de regular uma produção literária convencional que fosse bem aceita pela ideologia dominante. Nas duas primeiras décadas do século XX, a ABL muito promovera uma variedade de gêneros europeus de tendências não raro díspares, como o Naturalismo, o Parnasianismo e o Simbolismo, destacando nomes como Aluísio Azevedo (1857-1913), Olavo Bilac (18651918) e Cruz e Souza (1861-1898), respectivamente, bem como o Realismo e suas variações – naturalista, regionalista e mundano – dentro do qual se destacaram, por exemplo, Aluísio Azevedo, Monteiro Lobato (1882-1948) e certamente seu fundador Machado de Assis (1839-1908), cuja importância dispensa comentários. Alguns desses escritores desenvolveram pontos de vista mais críticos sobre a realidade brasileira abordando temas como miséria, isolamento geográfico, exploração econômica, sexualidade e crítica social. Dois escritores em especial ousaram passar dos limites aceitáveis pela elite oligárquica veiculando, por meio de linguagens literárias inéditas, propostas políticas que incluíam medidas de integração nacional e a modernização do Estado brasileiro. Euclides da Cunha e Lima Barreto representavam dois extremos de um leque de possibilidades de leituras que a Primeira República abrira. Suas propostas se baseavam em temas e dicotomias que desenvolviam em suas obras como índio/negro, interior/litoral, terra/mar, imigrantes/ nativos, futuro/passado, evolução/tradição, racionalidade/irracionalidade. Euclides da Cunha, inspirado e inconformado pela situação que presenciou na Guerra de Canudos (1896-1897), em Os Sertões (1902), valoriza a figura do sertanejo como força do homem comum brasileiro e chama a atenção para a contradição existente entre o progresso material das áreas urbanizadas e da burguesia industrial ascendente e o atraso que marginalizava populações e as terras isoladas do interior. Formalista, materialista e determinista, apoiava-se em explicações científicas e se dirigia à velha elite intelectual. Já de forma oposta, Lima Barreto, idealista e relativista, lança mão de uma linguagem mais próxima do comentário jornalístico em voga com doses de humor e sarcasmo dirigidos contra o pedantismo patriótico, a falsa ciência e as contradições da ideologia oficial, como pode se observar no protagonista de Triste Fim de Policarpo Quaresma (1911), que defendia a adoção do Tupi, que não dominava, como língua oficial. 37
Novas leituras, novos rumos: escritores modernistas e a formação da cultura nacional No que diz respeito aos suportes e meios de divulgação e circulação da literatura e uma nova proposta estética, Monteiro Lobato presta uma contribuição significativa ao ajudar a criar espaços para expressão e interação de diversos escritores intelectuais, ilustrados por artistas como a Revista do Brasil (1916-1925), a Companhia Editora Nacional (1925) e posteriormente, com Caio Prado Junior, a Editora Brasiliense (1943). Definiu assim um ramo de negócios do qual os modernistas sempre lançariam mão. Lobato inovou ainda mais ao ingressar no mercado de livros infantis criando séries com personagens baseados principalmente no folclore paulista. Esses e diversos outros escritores, por vezes de tendências e posicionamentos diferentes, eram cidadãos membros de elites intelectuais, vinculadas ou não à atividade governamental, que buscavam gerar condições objetivas para realizar seu projeto social e reconduzir o país ao desenvolvimento e à unidade de forma alternativa às oligarquias tradicionais que governavam o país naquele momento. Dos escritores e intelectuais paulistas que liderariam o movimento modernista, todos, exceto Mário de Andrade, haviam passado pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco, na capital paulista. Eram dotados de significativo capital social e estavam em constante correspondência, produzindo revistas e folhetins culturais ilustrados com seus próprios recursos e neles veiculando seus textos e suas ideias. O movimento modernista, assimilando as tendências e contribuições das vanguardas europeias, mais que uma nova proposta de linguagem e estética, significou uma nova proposta de leitura da realidade brasileira e uma ampliação do espaço político dessas elites letradas, o que só se fez possível em decorrência da crise política da oligarquia vigente e a expectativa generalizada de uma orientação que atendesse aos clamores de mudança. Por volta de 1920, contestações apareciam por todos os lados, fosse pela sequência de greves operárias desde 1917, fosse pela inquietação que se espalhava entre os militares no prenúncio das revoltas tenentistas e da Revolução de 1930. No contexto urbano-industrial, o negro, o mestiço, o operário, o imigrante e o campesino desterrado se faziam irresistivelmente presentes e entravam na vida política em larga escala. 38
A explosiva Semana de Arte Moderna de 1922, primeira manifestação pública do movimento, após o choque inicial, inaugurou um grande processo de renovação artística e literária assimilando várias matrizes culturais de forma original e propositiva. À frente da ala mais inovadora e combativa estavam Mário e Oswald de Andrade, de São Paulo. Juntaramse a eles Manuel Bandeira e Ronald de Carvalho, vindos do Rio de Janeiro e orientados por Graça Aranha. Na capital federal, a tradição urbana, mais antiga que a capital paulista, havia gerado expressões culturais mais resistentes e menos agressivas. A nova proposta estética da Semana contou ainda com os pintores Emiliano Di Cavalcanti e Anita Malfatti, do escultor Victor Brecheret e do músico Villa-Lobos, estes também do Rio de Janeiro. Embora a Semana tenha ocorrido em São Paulo, a participação de intelectuais e escritores do Rio de Janeiro foi fundamental para o sucesso do movimento. Desde praticamente as campanhas pela libertação dos escravos até então, a maior parte da produção (e de leitores) das obras literárias no Brasil se encontrava no Rio de Janeiro. Com tradição urbana mais antiga e consolidada, havia manifestações culturais mais consistentes na capital federal. No aprofundamento crítico das posições modernistas teve importante papel a revista Estética (1924-1925), dirigida por Sérgio Buarque de Holanda e Prudente de Moraes Neto. A partir do Rio de Janeiro e de São Paulo a renovação literária se espalhou pelo Brasil inteiro por meio de correspondências entre os autores e suas publicações. Nesse sentido Mário de Andrade presta enorme contribuição. Diversos periódicos além da Estética passam a divulgar as tendências modernistas. Em São Paulo Oswald de Andrade funda a revista a Revista de Antropofagia (1928-1929). Em Minas Gerais, surge a Revista (1925-1926), de Carlos Drummond de Andrade, João Alphonsus, Emílio Moura e Pedro Nava. No Recife, Gilberto Freyre foi o teórico e a figura central na assimilação de um regionalismo modernizador, conjugando as novas tendências modernistas ao forte movimento tradicionalista pernambucano. Além das revistas, logo vários livros começaram a ser lançados incorporando as novas linguagens do modernismo. A novidade eram os temas voltados à busca da identidade brasileira associada a um impulso nacionalista renovador e propositivo, mérito que se deve em grande parte a Mário e Oswald, respectivamente. 39
Novas leituras, novos rumos: escritores modernistas e a formação da cultura nacional Mário de Andrade, além de escritor, revelou ser um exímio pesquisador de folclore e cultura popular. Já na década de 1920 se empenhou a trabalhar no projeto que, em 1938, tomaria a forma da Missão de Pesquisas Folclóricas, financiada pelo Departamento de Cultura de São Paulo. Nas missões, chegou a viajar pelo norte e nordeste do país fazendo diversos outros registros de suas pesquisas, a exemplo de fotografias e gravações de cantos populares com fonógrafo. Sua preocupação com a questão da identidade nacional tem muito a ver também com sua própria experiência pessoal de mulato oriundo de família modesta, tendo ascendido socialmente por meio dos seus esforçados investimentos em capital cultural. Já Oswald de Andrade, com o Manifesto Antropofágico (1928), inaugurando a Revista de Antropofagia, dialoga com o cosmopolitismo europeizante em voga até então propondo uma assimilação destruidora e recriadora da cultura europeia numa tradução autêntica e brasileira das tendências das vanguardas europeia que tanto influenciaram os modernistas. Subvertendo a máxima vigente até então, que atribuía à miscigenação o suposto atraso brasileiro, Oswald defende que justamente por meio desse suposto que o Brasil poderia devolver à velha cultura europeia o sentido de moderno. Mesmo após o arrefecimento do modernismo enquanto movimento literário e artístico, ambas as questões ainda são bastante presentes e longe de superação no pensamento brasileiro, das artes às ciências humanas, passando também pela política. Apesar da profunda repercussão do modernismo como movimento cultural e social que propôs uma reavaliação das matrizes culturais brasileiras por meio de uma nova e original linguagem artística, não havia entre seus membros orientação ou projeto político nacional, embora encarassem os diversos aspectos da realidade brasileira com olhar crítico. Com as transformações políticas dos anos 1930 é que os intelectuais modernistas terão a oportunidade de se posicionar e participar ativamente na modernização do país. Enquanto Mario de Andrade e Carlos Drummond de Andrade desempenharão papel ativo no alto escalão do Estado Novo, Oswald de Andrade e Monteiro Lobato se filiam ao Partido Comunista e engrossam as fileiras de oposição ao governo Vargas. 40
A renovação nacional proposta por Getúlio Vargas percorria desde a profunda reforma e modernização da máquina estatal até a formação de um novo homem brasileiro, da educação ao trabalho. Seu governo, centralizador e autoritário, passa a interferir em todos os domínios de atividade. No que diz respeito à cultura, fez dela negócio oficial, intervindo em todos os setores de produção, difusão e conservação do trabalho intelectual e artístico. Para tanto, por meio do Ministério de Educação e Saúde administrado por Gustavo Capanema, os intelectuais modernistas prestariam exímio serviço à ditadura do Estado Novo, sob o álibi de tutores e porta-vozes do conjunto da sociedade. Mário de Andrade, por exemplo, é recrutado para elaborar o anteprojeto e trabalhar junto ao arquiteto Lúcio Costa na criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN, atual IPHAN – para o qual prestaria serviços como representante paulista até sua morte. Carlos Drummond de Andrade foi chefe de gabinete do ministro Gustavo Capanema de 1934 a 1945, tendo também trabalhado para o SPHAN até 1962. Augusto Meyer foi convidado por Vargas para criar o Instituto Nacional do Livro onde trabalhou por décadas. Esses e outros escritores, associados a intelectuais do porte de Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre, colaboraram ainda com arquitetos, dentro do MES na constituição do que viria a se transformar na arquitetura moderna brasileira, entre eles Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Foi assim que se tornaram modelos de excelência da classe dirigente da época e suas obras, dentro e fora do Estado, se converteram em paradigma do pensamento político e da cultura brasileira.
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Bibliografia
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m dos capítulos mais importantes do movimento moderno no Brasil foi o papel que seus intelectuais desempenharam junto ao Estado Novo (1937-1945). Intelectuais modernistas foram cooptados pelo governo de Getúlio Vargas, especialmente pelo Ministério da Educação e Saúde (MES), para forjar um novo homem brasileiro, uma nova nação e um novo futuro. Arquitetos e outros intelectuais modernos encamparam as políticas culturais do Estado Novo, encontrando um caminho para aplicar na prática seus valores, sua estética e narrativa, transformando-os em sinônimos de cultura nacional. Nesse sentido os arquitetos modernos desempenharam papel essencial, construindo literalmente um Estado Novo, tanto em obras de edifícios públicos ou projetos de habitação popular, quanto na criação de monumentos, novos ou selecionados do passado como patrimônio. Havia diversas influências das vanguardas europeias na arquitetura no Brasil nos anos 20, muito em função das atividades da elite industrial paulista que, além de atrair milhares de imigrantes europeus, se espelhava nos centros irradiadores de cultura fora do
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Arquitetando a cultura nacional: Os modernos e a construção de uma identidade brasileira país. Tendências como a art nouveau e a art decó eram trazidas, sobretudo, por italianos e alemães, pregando funcionalidade e otimização dos recursos na construção e universalização do estilo dos edifícios. As ideias da Bauhaus e de Le Corbusier começavam a circular em círculos brasileiros e diversos arquitetos já experimentavam propostas modernistas em suas obras com resultados bem distintos e ecléticos. Pouco a pouco, a ascensão do fascismo e do nazismo despertou um apreço pelo nacionalismo e pela monumentalidade que encontraria bastante eco na imagem do Estado Novo de Getúlio Vargas. No Rio de Janeiro, enquanto os engenheiros urbanistas apostavam nos progressos materiais da ciência e da técnica nas reformas urbanas, o debate acerca de qual seria o estilo da arquitetura brasileira ficava ao encargo dos acadêmicos da Escola Nacional de Belas Artes que, incorporando algumas tendências modernas, forjaram um estilo arquitetônico inspirado na arte tradicional brasileira: o neocolonial. É desse meio que surge Lúcio Costa, um dos principais protagonistas do que ia se constituir como o movimento moderno brasileiro na arquitetura. O modernismo na arquitetura não partilhou dos ânimos iniciais da explosiva Semana de Arte Moderna de 1922 e, nesta época, nem ainda se esboçava como programa. A primeira casa do arquiteto russo Gregori Warchavchik, à Rua Santa Cruz, em São Paulo (1925), detonou a primeira aproximação entre arquitetos e os intelectuais da Semana. Warchavchik realizou uma construção funcional e econômica, influenciado pela Bauhaus e pela ideia de “máquinas de morar” de Le Corbusier, aproveitando a luminosidade e a ventilação naturais, sem ornamentação ou qualquer alusão passadista. A adaptação de materiais e técnicas construtivas disponíveis no Brasil e o uso de plantas nativas no jardim, embora não tenham sido preocupações assumidas do arquiteto, encontraram eco no nacionalismo para o qual pendiam os intelectuais da Semana naquele momento. Warchavchik, merecendo inclusive elogios de Mário de Andrade, chegou a desenvolver projetos junto com os principais pintores modernos como Tarsila do Amaral e Brecheret. Rapidamente alcançou a atenção de Le Corbusier, que o convida para ser delegado da América Latina no CIAM, e de Lúcio Costa que, nomeado diretor da ENBA já no governo 46
Vargas, convoca-o para colaborar na reformulação do ensino acadêmico na Escola. Juntos, Costa e Warchavchik ainda abririam um escritório de arquitetura no Rio de Janeiro. Embora em um período curto e turbulento marcado pela oposição com os acadêmicos tradicionalistas e o rompimento com os partidários do neocolonial, Lúcio Costa desenvolve afinidade com um grupo de intelectuais que o apoiavam: Gregori Warchavchik, Affonso Eduardo Reidy, Alexandre Buddeus entre outros. Seriam os ensinamentos de Le Corbusier associando técnica, arte e sociedade na arquitetura e no urbanismo, que ofereceriam a Lúcio Costa e seus colegas a coesão necessária para formar a base do que seria traduzida como arquitetura moderna brasileira anos depois. Em 1934, Gustavo Capanema, ao assumir o Ministério de Educação e Saúde no governo Vargas, cercou-se de intelectuais modernistas, a maioria ligada à elite mineira da qual ele mesmo fazia parte. Ao longo de seu governo, entre seus assessores estavam Rodrigo Melo Franco de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Mário de Andrade. Também colaboravam frequentemente nas atividades do MES Gilberto Freyre, Cecília Meirelles, Villa-Lobos, Candido Portinari e Vinícius de Morais. Fora Rodrigo Melo Franco de Andrade quem convocara Lúcio Costa para a direção da ENBA, em 1930. A política de Getúlio Vargas era afirmar seu Estado como Novo em oposição a uma república Velha. O objetivo era criar um novo homem brasileiro, uma nova nação, voltada para o futuro e livre do estigma de atraso em relação à Europa, geralmente atribuído à miscigenação herdada da sociedade escravista. Era essa a missão de Capanema e, para executá-la, o projeto dos intelectuais modernistas bem serviu. Da necessidade de Capanema construir uma nova sede para o seu ministério, na busca de uma expressão arquitetônica que sintetizasse a identidade nacional que se queria criar, começa a se forjar uma arquitetura moderna e brasileira. Convidado por Capanema para fazer um novo projeto da nova sede do MES, Lúcio Costa reúne uma equipe de arquitetos modernistas como Carlos Leão, Affonso Reidy, Jorge Moreira, Ernani Vasconcelos e Oscar Niemeyer, que já havia trabalhado em seu escritório. Costa e Capanema, apelando inclusive ao próprio presidente Getúlio Vargas, conseguem atrair Le Corbusier para ser o consultor do grupo. 47
Arquitetando a cultura nacional: Os modernos e a construção de uma identidade brasileira A equipe apresenta, após longos debates e obras (1937-1945), um edifício cuja expressão arquitetônica defendia retomar estruturalmente (e não estilisticamente, como acusavam os neocoloniais) técnicas construtivas tradicionais do período colonial, como as construções sobre estaca, as treliças e o pau-a-pique, utilizando recursos econômicos e funcionais contemporâneos como os pilotis, os brise-soleils e o concreto armado. Para completar o edifício, encomendaram obras de diversos artistas como o pintor Cândido Portinari e o paisagista Roberto Burle Marx, que, inspiradas nas obras dos principais literários modernistas, especialmente Oswald e Mário de Andrade, combinavam vanguarda e tradição. Portinari fez um afresco com os principais ciclos econômicos do Brasil para a sala de reuniões anexa ao gabinete do ministro e, na área externa, um painel de azulejos azul e branco com o poema “Azul e Branco” de Manuel Bandeira. Burle Marx utilizou, pela primeira vez, espécimes da flora local no jardim que ocupa o espaço livre sob o edifício. A retomada de valores da tradição com vistas ao futuro ao futuro foi um argumento decisivo com que Lúcio Costa conseguiu superar o debate com seus interlocutores defensores do neocolonial no projeto da sede do MES. Daí a valorização das tradições coloniais portuguesas e da miscigenação como elementos caracterizadores do homem brasileiro. Vale lembrar que o pensamento de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, respectivamente com Casa Grande e Senzala (1933) e Raízes do Brasil (1936), já transformava o pensamento brasileiro e respaldava a argumentação do movimento moderno de forma bastante consistente. O discurso moderno sobre a tradição brasileira garantiu ainda mais uma vitória para seus representantes perante o Estado Novo. Em 1937, com base no anteprojeto que requisitara ao escritor Mário de Andrade, Rodrigo Melo Franco de Andrade cria oficialmente o Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – o SPHAN, atual IPHAN – de que foi diretor entre 1937 e 1967. Colaboraram também direta e indiretamente das atividades do órgão Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Lúcio Costa entre outros garantindo ao órgão um consistente lastro intelectual e um rigor técnico-burocrático que garantiram o sucesso do órgão para além de qualquer governo. 48
Embora o anteprojeto de Mário de Andrade fosse bastante ambicioso em abarcar toda a multiplicidade de manifestações culturais pelo país, na equipe reunida por Rodrigo Melo predominavam arquitetos modernos, entre os quais se destaca, novamente, Lúcio Costa. Daí a atuação do órgão federal ter como alvo quase exclusivamente bens edificados até bem recentemente. Dessa maneira, é uma questão chave para se entender o sucesso e a consolidação da arquitetura moderna no Brasil, o domínio dos arquitetos sobre o órgão encarregado de selecionar o que é importante do passado: de Ouro Preto a Brasília, os arquitetos modernos colocaram a si mesmos numa posição de sucessores da tradição construtiva brasileira. Enquanto Lúcio Costa atuava pelo SPHAN na criação de monumentos do passado, Oscar Niemeyer, o melhor aprendiz de Le Corbusier, encarrega-se de criar monumentos para o futuro. Lúcio Costa colabora com diversas reformas urbanas na cidade do Rio de Janeiro, derrubando sem pudor edifícios de arquitetura eclética. A nova arquitetura brasileira floresce em meados dos anos 30 com a sede do MES e a criação do SPHAN, amadurece com os projetos da Pampulha (1942) e do Parque Ibirapuera (1954) e se coroa como paradigma nacional na construção de Brasília (1956-1960), marcando a arquitetura moderna em quatro das mais importantes capitais do país. Não por acaso a arquitetura moderna não tarda a engrossar o repertório as fileiras do patrimônio nacional. O prédio do MEC foi tombado já em 1948, poucos anos após ficar pronto. Ainda nos anos 40 é tombada a Igreja de São Francisco de Assis, que compõe o complexo da Pampulha, em Belo Horizonte, de autoria de Oscar Niemeyer. A estação de hidroaviões do Rio de Janeiro, de Atílio Correia de Lima é tombada em 1957, e a Catedral de Brasília, também de Niemeyer, é tombada em 1967 (a extensão completa do plano piloto foi tombada em 1990). O SPHAN, fruto de uma das políticas públicas mais bem sucedidas no país, atraindo variada gama de intelectuais junto às suas atividades, muito colaborou para que se sedimentasse o mito moderno das três raças (branco, negro e índio) na formação do país. Em suas práticas de tombamento, entronizou na cultura nacional o barroco como arte tradicional brasileira por excelência, vide o poder icônico de Ouro Preto como cidade histórica até os 49
Arquitetando a cultura nacional: Os modernos e a construção de uma identidade brasileira dias de hoje. A escolha do barroco, além de ser uma arte relacionada ao mulato, portanto à miscigenação, máxima dos modernistas, faz transparecer os valores daquela elite mineira que predominava nos principais postos do MES, a começar pelo próprio Ministro Capanema, passando também por Rodrigo Melo Franco de Andrade e Carlos Drummond de Andrade. Outros estilos, como o ecletismo, fortemente caracterizador do período da República Velha, foram ignorados pelo órgão de preservação durante longas décadas. Toda essa conjuntura fez com que a arquitetura moderna no Brasil adquirisse contornos bem específicos em relação à forma que tomou na Europa e nos Estados Unidos. Aqui, não foi fruto de um desenvolvimento industrial com sua decorrente necessidade de reformas urbanas. Ao contrário, serviu de discurso mobilizador da industrialização no país. Outro aspecto importante é que, enquanto ao redor do mundo, a arquitetura moderna era promovida, inclusive por Le Corbusier, em forma de um Estilo Internacional, no Brasil ela se apresenta como discurso nacionalista e de Estado, com base em uma ideia de identidade brasileira construída por intelectuais ligados ao movimento, mesmo que para se afirmar tenha sido fundamental o aval de Le Corbusier e, em seguida, da comunidade de arquitetos no Pavilhão do Brasil na Feira de Nova York, em 1940. Tais contornos trazem consigo implicações políticas que são fundamentais para se compreender a história da arquitetura moderna no Brasil. Os intelectuais e artistas modernos foram trazidos a tiracolo por membros de uma elite mineira que, ao dominar postos no ministério responsável pela difusão de uma ideologia para o Estado Novo, entronizaram seus valores, sua ética e sua estética, especialmente na figura do mulato e no estilo barroco, numa bem sucedida política cultural que se sedimentou ao longo do século XX como sinônimo de cultura nacional, sobre todas as outras tendências e leituras possíveis. Assim, a arquitetura moderna no Brasil se constituiu e se consolidou a serviço do Estado, servindo ao discurso e à ideologia dos governos mais centralizadores e desenvolvimentistas, de Getúlio Vargas à Ditadura Militar nos anos 70, passando pelo nacional-desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek nos anos 50 e 60, tornando-se um grande paradigma ainda não superado que deixou muitas heranças pulverizadas no cotidiano e na mentalidade do brasileiro, bem como nas políticas públicas. 50
Glossário: Neocolonial: estilo de arquitetura em voga até a década de 1930, que retomava aspectos estilísticos das construções luso-brasileiras do Período Colonial com estrutura, técnica construtiva e funcionalidade adaptadas às técnicas contemporâneas. Ecletismo: na arquitetura quer dizer o estilo propagado pelo Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, que prezava pela funcionalidade e racionalização das técnicas construtivas com estilos e ornamentos que reuniam principalmente temas europeus. Tem a ver com a industrialização e desenvolvimento de novas técnicas construtivas típicos da República Velha (1889-1930), e foi muito difundido em São Paulo devido à grande presença de imigrantes europeus. CIAM (Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna): uma organização de pensadores da arquitetura moderna que realizaram uma série de eventos e conferências para discutir os caminhos do que se convencionou chamar Estilo Internacional, do qual Le Corbusier foi o representante mais destacado. Defendiam que a arquitetura e o urbanismo deveriam ser usados a favor do desenvolvimento econômico e social. Escreveram a Carta de Atenas definindo as balizas do urbanismo moderno. Bauhaus (1919-1933): Escola alemã de design, arquitetura e artes plásticas que se constituiu como um dos maiores centros de arte de vanguarda na Europa lançando as principais bases que iriam constituir a arquitetura moderna. Barroco: estilo artístico que foi trazido ao Brasil por missionários católicos no século XVII. Alcançou especial expressão na sociedade mineira difundida pelas irmandades religiosas e sociais compostas principalmente por mulatos. Sua expressão mais conhecida no Brasil é a arquitetura da cidade de Ouro Preto, especialmente das Igrejas e as esculturas de Aleijadinho. 51
Arquitetando a cultura nacional: Os modernos e a construção de uma identidade brasileira
Bibliografia
CAVALCANTI, Lauro. Moderno e Brasileiro: a história de uma nova linguagem na arquitetura (19301960). Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2006. FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2009. FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. São Paulo, Global Editora, 2006. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo, Cia das Letras, 1990. MICELI, Sérgio. Intelectuais à Brasileira. São Paulo, Cia das Letras, 2001. SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil 1900-1990. São Paulo, Edusp, 1997.
Filmografia
Narradores de Javé. Brasil, 2004. Direção: Eliana Caffé. Oscar Niemeyer – A vida é um sopro. Brasil, 2007. Direção: Fabiano Maciel. O risco – Lúcio Costa e a Utopia Moderna. Brasil, 2003. Direção: Geraldo Motta Filho. Reidy – A Construção da Utopia. Brasil, 2009. Direção: Ana Maria Magalhães. Um Só Coração (minissérie). Brasil, 2004. Direção: Marcelo Travesso Ulysses Cruz e Gustavo Fernandez.
Na internet
IPHAN www.iphan.gov.br Instituto Pólis www.polis.org.br Unesco www.unesco.org.br Vitruvius www.vitruvius.com.br 52
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Capítulo 6
O
Arte plástica, Brasil moderno Claudinei Roberto da Silva
modernismo nas artes plásticas no Brasil tem como marco a Semana de 22, realizada entre os dias 13 e 18 de fevereiro, no Teatro Municipal de São Paulo. A palavra “moderno”, quando aplicada à arte, designava tudo que pertencia aquele tempo e contexto, um sinônimo para o que havia de “atual” e que se revestia de um sentido de pioneirismo à moda bandeirante. Como na acepção heróica do personagem, o bandeirante, pretendia-se desbravar o cenário artístico acanhado e conservador herdado da disciplina acadêmica. Cenário acanhado e conservador a ponto de autorizar o juízo de um Monteiro Lobato, escandalizado com a exposição pioneira de Anita Malfatti (1889-1964), em 1917.
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Arte plástica, Brasil moderno
Sejamos sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e tutti quanti não passam de outros tantos ramos da arte caricatural. É a extensão da caricatura a regiões onde não havia até agora penetrado. Caricatura da cor, caricatura da forma - caricatura que não visa, como a primitiva, ressaltar uma ideia cômica, mas sim desnortear, aparvalhar o espectador. A Propósito da Exposição Malfatti, O Estado de S. Paulo, 20/12/1917 O termo “vanguarda” é derivado de conceito militar e assinala uma tropa precursora, isto é, aqueles que assumem a dianteira no processo que precede o combate e derrota do inimigo e a conquista do seu território. Esse grupo é normalmente composto pela elite de qualquer exército. Não por acaso essa belicosidade sugerida pela palavra vanguarda é adotada pelas secessões de artistas e intelectuais que, na Europa do fim do século XIX e início do XX, protagonizaram movimentos artísticos de renovação. A arte contemporânea é devedora das realizações daquelas assim chamadas vanguardas históricas. A vanguarda recebeu entre nós a designação genérica de “arte moderna”. Vanguarda ou arte moderna que vai abrigar em seu bojo diversas vertentes e escolas artísticas muito variadas tais como o Expressionismo, o Cubismo, o Futurismo etc., que em comum tem dois compromissos: o ódio à disciplina acadêmica e aquilo que ele representa enquanto espelhamento da sensibilidade burguesa e o amor aos manifestos sem os quais estas revoluções não são possíveis. Considerando este ponto de vista verificamos o quanto, no Brasil, estamos atrelados às ideias derivadas do modernismo. Tanto aqui como na Europa o modernismo correspondeu a uma ruptura, não apenas significando o rompimento com os procedimentos técnicos e princípios artísticos das escolas que o precederam, mas também refletindo uma situação social e econômica, que entre nós correspondeu com o protagonismo político e econômico de São Paulo que alternava o poder com Minas Gerais, no que conhecemos como a “política do café com leite” (Partido Republicano Paulista e Partido Republicano Mineiro). 56
Citando Marx: “(...) a produção intelectual muda de natureza na proporção em que a produção material é mudada. As ideias dominantes em cada época sempre foram as ideias da classe dominante”. Apud John Kenneth Galbraith, A Era da incerteza, São Paulo: Ed. Livraria Pioneira, 1984, p.84. Explica-se assim, em parte, a prevalência dos paulistas no cânone artístico forjado em 1922. Na pintura e na escultura de matriz paulista existe um acentuado caráter europeu que vai fornecer o modelo a partir do qual se pretende entronizar no centro do debate artístico a ideia do moderno em arte. O pretendido cosmopolitismo de São Paulo devia muito aos imigrantes europeus que por aqui chegaram em grandes levas, particularmente italianos e espanhóis, atendendo às necessidades da incipiente indústria local e também da lavoura do café, ainda sua principal riqueza. Na escultura a participação desses imigrantes – como Galileo Emendabili (1898-19740) – é visível nas praças e nos monumentos fúnebres da cidade, o que torna alguns cemitérios, como o da Consolação, verdadeiros museus a céu aberto. Esse projeto modernista celebrado em 22, que saúda a Europa e pretende assimilar o Futurismo italiano capitaneado por Marinetti, reflete a predominância ainda naquele momento da voga que tornava a França e particularmente Paris a Meca da inteligência mundial. No Rio de Janeiro a francofilia é também herança das cortes do 2º Reinado, o francês era o idioma dos cultos, dos eruditos e da boemia refinada. No governo de Vargas, em 1937, é fundado sob os auspícios do ministro Gustavo Capanema o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), criado a partir de anteprojeto elaborado por Mário de Andrade. Neste momento o projeto de Brasil da ditadura Vargas abarca ou coopta o ideário de um modernismo que, abdicando da influência da Europa ou reconhecendo a obsolescência daquela proposta, abraça o nacionalismo e investiga as matrizes constituintes da brasilidade. Sintomaticamente, no mesmo período, como diretor do Departamento de Cultura da Cidade de São Paulo, Mário de Andrade cria a Missão de Pesquisas Folclóricas. 57
Arte plástica, Brasil moderno O arco de tempo entre 1922 até a criação do SPHAN em 1937 assiste a uma série de episódios que serão determinantes para que nas artes surja cada vez mais fortemente uma reação à ideia de modernismo postiço que espelhe o ponto de vista unidimensional e europeizante. São desse período a publicação do Manifesto Pau-Brasil (1926) de Oswald de Andrade (1890-1954) e o surgimento do Movimento Verde-Amarelo, de caráter conservador e marcadamente nacionalista. Em 1928, Oswald de Andrade volta à carga e lança o Movimento Antropofágico e, um ano depois, Noel Rosa lança seu primeiro sucesso: Com que Roupa. Em 1929 o mundo assiste atônito o “crack” da bolsa de Nova Iorque e no ano seguinte a Revolução de 30 põe fim à República Velha, entronizando no poder o gaúcho Getúlio Vargas. Getúlio que será contestado, mas não derrotado, por São Paulo na Revolução Constitucionalista de 1932, apoiada pela oligarquia cafeeira do Estado. São acontecimentos seminais que capturam a imaginação dos artistas e convocam muitos à ação, caso de Cândido Portinari, militante comunista sensível ao apelo da arte de teor social e de denúncia. A arte de caráter social, militante e politicamente engajada será uma das marcas de um projeto modernista para além do nacionalismo, e encontrará eco nas obras dos pintores Lasar Segall (1891-1957), Cândido Portinari (1903-1962), Emiliano Di Cavalcanti (1897-1976) e Clovis Graciano (1907-1988), na gravura de Oswaldo Goeldi (1895-1961) e nos Clubes de Gravura do sul do país. A polifonia própria ao modernismo brasileiro comporta sensibilidades matizes menos políticos, de lirismo aflorado e formalmente sofisticados como Alberto Guinard (1896-1962), Alfredo Volpi (1896-1988), José Pancetti (1902-1958) e Ismael Nery (1900-1934). O modernismo no Brasil corresponde à pretensiosa, mas não descabida, vontade de buscar símbolos comuns à nacionalidade e neste sentido podemos dizer que mesmo muito depois da morte da maioria dos artistas que protagonizaram o movimento, ele continua vivo sensibilizando a inteligência de artistas e intelectuais, pensadores da nossa história, não sendo arbitrário imaginar que muito do que os artistas da Nova Figuração e do Tropicalismo dos anos 60 e 70 realizaram têm relação estreita com o modernismo e seu generoso projeto.
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Bibliografia SUBIRATS, Eduardo. Da Vanguarda ao Pós-moderno. São Paulo: Ed. Nobel, 1984. AMARAL, Aracy. Arte para quê? A preocupação social na arte brasileira, 1930-1970. Subsídios para uma história social da arte no Brasil. São Paulo: Studio Nobel, 2003. AMARAL, Aracy. Artes Plásticas na Semana de 22. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972. LIMA, Marisa Alvarez. Marginália: arte e cultura na idade da pedrada. Rio de Janeiro: Salamandra, 1996.
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Autores Rodrigo da Silva Mestre e Doutorando em história social pela Universidade de São Paulo com especialização em história cultural pela mesma universidade. Coordenou os projetos “Curso introdutório de história da arte” (Caixa Cultural São Paulo, 2009 e 2010, Caixa Cultural Brasília, 2010), “Memória da Cidade: história e patrimônio em São Paulo” (Caixa Cultural São Paulo, 2010), “Os anos JK: a Era do Novo” (Caixa Cultural São Paulo 2010), o curso “História e imagem: introdução à história e percepção das artes visuais” na Caixa Cultural SP e, 2011, a exposição “As cartas ao Bom Jesus” também na Caixa Cultural SP em 2011, o curso Memória da Cidade: história e patrimônio no Brasil nas Caixas Culturais do RJ e Curitiba e a exposição “Marcas da Alma: uma viagem pela cultura afro-brasileira através das marcas corporais” na Caixa Cultural RJ em 2011, além de dezenas de projetos envolvendo a proteção e o fomento do patrimônio cultural brasileiro para o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN/MinC).
Marcelo Cardoso de Paiva Bacharel e Licenciado em História pela UNESP e USP (2007), atualmente desenvolve pesquisa de mestrado em História e Preservação da Arquitetura e Urbanismo pela FAUUSP. De 2005 a 2007 trabalhou na organização de acervos no Serviço de Documentação Textual e iconográfica do Museu Paulista da USP. Possui artigos publicados em revistas e trabalhos apresentados em eventos da área. É autor do livro Águas, Trilhos e Manacás – As Cores da Memória (2010).
Claudinei Roberto da Silva Licenciado em Educação Artística pelo Departamento de artes Plásticas da ECA-USP (1997), é coordenador do Núcleo de Educação do Museu Afro Brasil, além de professor de desenho, pintura e História da Arte no Ateliê OÇO. Em 2006, trabalhou na coordenação da monitoria da 27ª Bienal de Artes de São Paulo. Em 2011, participou como convidado do programa International Visitor Leadershi Program do Bureau of Educational and Cultural Affairs, nos Estados Unidos. Possui experiência como curador em exposições e coordenador de oficinas de Artes Plásticas, bem como textos publicados em catálogos e revistas da área.
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