Memória da Cidade Curitiba

Page 1


O que é aquilo que passamos a denominar

vezes aparecem como contraditórias – preservação

“patrimônio”? Quais suas relações com os espaços das

e desenvolvimento, mobilidade e proteção, inclusão

cidades e com nosso cotidiano? Lembrar, tecer a teia da memória, escrever histórias, marcar espaços, objetos com essas duas dimensões: a história e as memórias. Apesar de serem espaços cotidianamente utilizados, atravessados, vividos, as cidades são gigantescas experiências humanas raramente discutidas fora de círculos de pesquisa e de gestão absolutamente restritos. O patrimônio cultural, por sua vez, é tomado muitas vezes de modo naturalizante, ou seja, como se ele nascesse como tal e seu estabelecimento fosse óbvio e imediato. Desta forma Memória da cidade: patrimônio urbano no Brasil pretende abrir ao público diverso uma discussão absolutamente contemporânea

pesquisadores que se encontram da chamada “linha de frente” do tratamento do patrimônio é o de, sem perder a dimensão protecionista, tornar o patrimônio cultural um “bem” efetivamente coletivo e gerador de desenvolvimento humano, questão até então negligenciada. Não devemos esquecer que a maioria absoluta do patrimônio cultural brasileiro, e boa parte do patrimônio da humanidade, é essencialmente urbano, o que implica em estar nos espaços mais dinâmicos processos que o põe cotidianamente em xeque.

e fundamental para o futuro das cidades: qual a relação

O projeto Memória da Cidade, iniciado há

que estabelecemos com elas? Quais são seus benefícios

alguns anos por pesquisadores do Museu Paulista

a serem preservados? Quanto dessa experiência

da Universidade de São Paulo, e que paulatinamente

urbana se tornou problema? Como nos relacionamos

agregou pesquisadores de inúmeras outras instituições,

(relacionaremos) com a memória materializada no

busca justamente – de diversos modos – ampliar essa

CURITIBA CURSO LIVRE DE 22 A 30 DE AGOSTO

patrimônio cultural e como os mantemos de modo vivo, de intervenções, de ações que vertam a teoria e o debate

1ª Edição

eternamente, dinâmicas? As discussões em grande

em práxis. O curso, que agora se materializa neste livro,

medida se restringem a questões técnicas de legislação,

é uma dessas ações: traz discussões, temas, debates,

de prática, de método, que não abordam o problema

mas procura não encerrar as possibilidades de uso, de

Conceito Humanidades

central que é o de conciliar dimensões que muitas das

desdobramentos, de novos movimentos.

Joacir Navarro Borges

Rodrigo da Silva

Curitiba 2011

Rodrigo da Silva (Coordenação)


O Centro Histórico de Curitiba: da vila à cidade

Joacir Navarro Borges*

“A cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas” Ítalo Calvino – “As cidades Invisíveis” A cidade nasce, cresce e se desenvolve no espaço geográfico e na duração temporal. Cada geração acrescenta, retira ou transforma algo, formando camadas que vão se sobrepondo ao longo do tempo, atendendo às múltiplas demandas humanas incidentes sobre o tecido urbano. É nesse sentido que proponho um olhar sobre o centro histórico de Curitiba, um espaço que registra na trama de suas ruas, praças, largos, edifícios e monumentos as necessidades sociais, políticas, econômicas e culturais dos que ali viveram e passaram em diferentes épocas, contribuindo para a formação de uma paisagem urbana que estabelece um permanente diálogo entre memória, história e patrimônio. O centro histórico de Curitiba compreende a região que, a partir da Praça Tiradentes e do Largo Coronel Enéas, se espraia subindo em direção às Ruínas do São Francisco e descendo em direção à Rua 15 de novembro e à antiga estação ferroviária.

* Doutor em história pela UFPR. Membro do CEDOPE – Centro de Documentação e Pesquisa dos Domínios Portugueses da UFPR.


Logo foram formalizados os primeiros pedidos

secular modelo da instituição municipal portuguesa,

de sesmarias nos arredores do núcleo urbano nascente.

tal qual estava disposto nas Ordenações Filipinas.

Em 1661, Balthazar Carrasco dos Reis requereu sesmaria

Naquele momento a localidade de Curitiba contava

5

às margens do rio Barigui. Em 1668, “o Capitão Mateus

com apenas noventa fogos ou domicílios. O pelourinho

Martins Leme morador nesta povoação de Nossa

foi reinstalado na praça onde se localizavam a igreja

Senhora da Luz dos Pinhais, diz que ele suplicante não

e as casas de alguns moradores. De início a Câmara

tem terras para lavrar e agasalhar sua família conforme

Municipal funcionou com certo improviso, pois

A presença de população de origem portuguesa na baía de Paranaguá e no planalto de Curitiba levou à

suas posses, pelo que pede (...) meia légua de testada

não havia sequer um local próprio para a reunião e

organização dos primeiros núcleos urbanos conforme o modelo municipal lusitano ainda no meado do século XVII.

de uma roça que tem defronte de seu curral, de outra

Em 26 de dezembro de 1648, nascia a Vila de Nossa Senhora do Rosário de Paranaguá.1 Em 10 de setembro de 1648,

banda do rio Barigui.”6

O início do núcleo urbano

e despachando na igreja ou mesmo em suas “casas de

Eleodoro Ébano (Ébano Pereira) recebeu carta patente para vistoriar as minas da Serra de Paranaguá.2 Em uma

O segundo ato de posse ocorreu em 4 de

moradas”.

informação dirigida ao Governador Antonio Galvão, em 12 de junho de 1651, Ébano Pereira declara textualmente que

novembro de 1668, quando Gabriel de Lara mandou

A “criação das justiças” procurou mitigar os

já havia estado nos Campos de Curitiba em 1639.3

“levantar pelourinho em seu nome, por convir assim

problemas típicos de um núcleo urbano, pois visava

o serviço d’el Rei e acrescentamento do donatário;

coibir “os mores desaforos” e “insultos de roubos”, que

famílias constituindo alguns arraiais de mineradores no planalto curitibano. O ouro logo se esgotava obrigando os

e visto o requerimento dos moradores ser justo

se estavam procedendo “por não haver a dita justiça

mineradores a se deslocarem para outro local, impedindo, assim, a formação de um núcleo urbano permanente na

mandou levantar pelourinho com todas as solenidades

na dita povoação” por ser o capitão “já decrépito e não

necessárias em paragem e lugar decente nesta praça”.7

lhe obedecerem”. Tal situação dava margem à prática

Tiradentes, nas proximidades do rio Ivo. Em torno desse sítio central ergueram uma capela e iniciaram a construção

Desde então, Curitiba passou a contar com a tutela do

geral da violência andando “todos com armas na mão”.

das primeiras casas. Dessa época pioneira não restou vestígio arquitetônico. Então vamos buscar compreender a

capitão povoador Mateus Leme, permanecendo assim

Havia uma clara percepção de que a tradicional ordem

formação desse núcleo inicial a partir de alguns relatos documentais. A ereção da capela foi o primeiro ato de fundação

até 1693.

das coisas - “paz, quietação e bem comum deste povo”

da vila de Curitiba como um enclave cristão em meio aos pagãos.4 A maior parte dos sucessivos atos de fundação

O terceiro ato fundador da vila foi o

- encontrava-se desequilibrada pelo crescimento da

da vila de Curitiba ocorreu na ausência do Estado português. Todavia, ocorreram conforme suas regulamentações e

estabelecimento das autoridades municipais. A vila

população e pela decadência da autoridade local até

prescrições.

nasceu em 29 de março de 1693, enquadrada pelo

então exercida por Mateus Leme. Baseados nesses

CARDOSO, Antonio Jayme; WESTPHALEN, Cecília Maria. Atlas histórico do Paraná. Curitiba : Livraria do Chain Editora. 1986. p.34 MOREIRA, Júlio Estrella. Eleodoro Ébano Pereira e a fundação de Curitiba à luz de novos documentos. Curitiba : Editora da UFPR. 1972. p. 99. 3 Idem. p. 126 - 127. 4 PEREIRA, Magnus Roberto de Mello; SANTOS, Antonio César de Almeida. Camara Municipal de Curitiba: 1693-1993. Curitiba : sn, 1993. p. 19. Vou seguir a perspectiva desses autores segundo a qual o processo de formalização institucional da vila de Curitiba não aconteceu de uma só vez, mas antes através de diversos atos de fundação que cobriu o período de meados do século XVII até as correições do ouvidor Pardinho no início da década de 1720. 1 2

Boletim do Archivo Municipal de Curitiba – Documentos para a História do Paraná. - vol. VII. Curitiba : Impressora Paranaense. 1906. p. 9. Doravante citado como BAMC. Obs: na transcrição das fontes impressas e manuscritas procedeu-se a atualização ortográfica. 6 Idem. p. 5. 7 BAMC. v. I. p.3. 5


argumentos, os moradores da localidade pediram que

“continuando as ruas que estão principiadas e em forma

fosse “servido permitir a que haja justiça nesta dita

que vão todas direitas por corda, e unindo-se umas

vila”8 , pois somente a atuação das “justiças” poderia

com as outras, e não consintam que daqui por diante,

retomar o equilíbrio perdido, levando o povo a viver

se façam casas separadas e sós porque além de fazerem

conforme a ordem tradicional tida e havida como base do bem comum nas sociedades do Antigo Regime. A

expostos a insultos”.9 Assim como este, vários outros provimentos impuseram regras para a construção das

no fato dela representar a justiça comum no sentido

casas e para a formatação das ruas e das quadras da

de ser comunitária. Em outras palavras, através de sua

Curitiba colonial. Os provimentos setecentistas foram

auto-organização judiciária, a comunidade dispunha

tão efetivos que ainda no século XIX as posturas municipais curitibanas estavam retomando aquele

manter a ordem desejada. Nesse sentido, a criação

padrão.

das vilas de Paranaguá e Curitiba se vinculou a um processo de tomada de posse de um território já habitado anteriormente e que necessitava de ser dotado de instituições capazes de garantir a ordem social no contexto urbano nascente.

A concepção de cidade veiculada pelas posturas municipais do início do século XIX tinha como módulo constitutivo a quadra retangular, perfeitamente adensada, vista a partir da rua com um conjunto compacto de fachadas, delimitadas por

O quarto ato de fundação da vila está representado na vinda do ouvidor Raphael Pires Pardinho, quando, após quatorze meses fazendo suas correições, redigiu seus célebres provimentos em

deveriam separar o público do privado. Por essa ótica qualquer espaço livre entre uma casa e outra comprometia a visão do conjunto. Uma quadra em que houvesse espaços vagos, fosse um lote ainda não ocupado, ou ocupado por uma habitação em ruína ou fora do alinhamento predial, era uma quadra

as instituições como o meio urbano da localidade. Segundo o ouvidor as casas deveriam ser construídas

como um todo.10

Todos os trechos entre aspas deste parágrafo foram retirados do “Requerimento para a criação das justiças” que os moradores da localidade levaram ao Capitão Mateus Leme em 24 de março de 1693. BAMC. v. I. p. 4. 9 BAMC. v. I. p. 19. 10 PEREIRA, Magnus Roberto de Mello. Semeando iras rumo ao progresso. Curitiba : Editora UFPR. 1996. p. 93. 8


De fato, a concepção urbana expressa pelos

- época que ainda preservava muitas construções do

provimentos do ouvidor Pardinho e nas posturas

praça pública, na Igreja ou mesmo na casa do próprio

século XVIII - mostram que o núcleo urbano da vila de

municipais do século XIX pode ser observada em

juiz ordinário ou do tabelião. Foi o que aconteceu no

Curitiba se reunia num quadrilátero em torno do que

dia três de fevereiro de 1697, quando “em pousadas do

hoje são as praças Tiradentes e José Borges de Macedo,

colonial de Curitiba e nas construções que sucederam

juiz ordinário João de Carvalho Pinto se ajuntaram os 12

A casa do Concelho e a cadeia

na direção do Largo da Ordem, onde hoje se encontram

foram construídas somente a partir das ordens do

as únicas construções remanescentes do setecentos: a

esse casario que ainda estão em pé no centro histórico de Curitiba.

Igreja da Ordem e a casa Romário Martins. Achados

Os pontos quentes da vila de Curitiba

quentes” no interior das cidades da Baixa Idade Média.

da Câmara disponham fazer-se o mais breve que puder

arqueológicos recentes, revelaram que ainda no início

casas para o conselho e cadeia, pois não é decente que

do século XIX aquele quadrilátero era cortado por

esteja esta vila já a tantos anos e conservem outros mais

caminhos e constituía o próprio centro da povoação,

13

sem as ter.”

Estes pontos representavam as três funções mais

A construção foi erigida no sítio onde

observadas pelos transeuntes atuais da Praça Tiradentes.

importantes no contexto urbano: a função religiosa

atualmente está localizado o equipamento público

Podemos imaginar que este espaço servia à passagem

(igrejas, mosteiros, santuários), a função econômica

denominado como “Arcadas do Pelourinho”, na praça

e ao encontro daquelas pessoas que habitavam a

(mercado, lojas, ruas de artesãos) e a função política

Prefeito José Borges de Macedo. Tratava-se de uma

localidade e seu entorno ou daqueles que estavam

(concelho). O autor também salientou que os paços

situação privilegiada no contexto urbano, pois estava

apenas passando pela região. Este quadrilátero era um

municipais só apareceram tardiamente em muitas

situada no próprio núcleo inicial da vila. O pelourinho

daquelas cidades, enquanto que a Igreja era a primeira a se fazer presente logo acompanhada pela função 11

econômica. Algo parecido aconteceu em Curitiba. Já

concentrados os “pontos quentes” da pequena vila. Era há uma placa comemorativa indicando sua antiga

um espaço marcado pelo poder eclesiástico, onde os

localização.

cultos sagrados eram conduzidos pelo vigário local na

vimos que o núcleo de povoamento surgiu em torno

O núcleo urbano da vila concentrava os espaços,

Igreja Matriz. Era também um espaço econômico, onde

de uma capela ainda na década de 1650. Até 1721,

os lugares e os meios sociais onde os curitibanos

comerciantes e artesão desenvolviam suas atividades e,

porém, a vila de Curitiba sequer dispunha de casa de

encontravam as condições apropriadas para a elaboração

Câmara e cadeia.

das atitudes comuns. Imagens datadas do século XIX BAMC. v. I. p. 89. BAMC. v.. I. p. 21.

12

LE GOFF, Jacques. O apogeu da ciade medieval. São Paulo: Martins Fontes. 1992. p. 34-36.

11

partes destas antigas ruas estão expostas e podem ser

13

e da justiça na medida em que a Câmara e a cadeia


foram erigidas alí. Este espaço era o locus privilegiado das sociabilidades públicas. Espaço de convivência,

anotado no documento, indicando que se tratava de

encontro, conversação, diálogo e intercâmbio onde as

uma pessoa “estante nesta vila”.

relações sociais se estreitavam, onde se apreendiam

A antiga Câmara foi demolida após sofrer

e estruturavam os costumes da localidade. Espaço

um incêndio no início do século XX. A julgar pela

onde os poderes estavam materializados nos edifícios da Igreja Matriz e da Câmara, mas onde tais poderes

seguindo as linhas arquitetônicas que se tornaram

também estavam representados por todos aqueles atos

um padrão para as câmaras do Império Português. A

reais ou simbólicos que os revestiam e lhes davam um

descrição do prédio da Câmara da Bahia construído

sentido social.

no século XVI pode descrever também a Câmara de

Este quadrilátero e suas adjacências era também

Curitiba no século XVIII, pois ambos ostentavam

o lugar de moradia da maior parte da população que

“aquela arquitetura e divisão interna que se tornaram

habitava a sede da vila. Era o espaço onde as pessoas

clássicas: paço municipal em cima, cadeia em baixo,

estavam mais próximas, onde o contato físico ou

localizados ambos num quadrado de taipa pesado e

visual era cotidiano. As pessoas que circulavam pelo

despretensioso.”14 Essa descrição baseou-se numa carta

lugar tinham seus movimentos constantemente

escrita da Bahia em 1551 pelo mestre de obra Luis Dias:

devassados pelos olhares alheios. Em um núcleo urbano tão pequeno, qualquer pessoa estranha seria

casa daudiencia e câmara em syma”.15

imediatamente reconhecida e o anonimato devia ser

A disposição arquitetônica da Câmara em cima

impossível. Disso nos dão testemunho as escrituras

e cadeia em baixo pode causar repulsa aos parâmetros

públicas, nas quais o tabelião local invariavelmente

do bom urbanismo e da boa arquitetura penitenciária

indicava que a pessoa que estava em sua presença –

contemporânea, mas àquela época essa disposição

quando moradora da vila - era sua conhecida e, quando

aproximativa revelava-se facilitadora do cotidiano

ZENHA, Edmundo. O município no Brasil (1532-1700). São Paulo : IPE. 1948.p. 26. LEITE, Serafim. História da colonização portuguesa do Brasil, vol. III. p. 363. Apud. ZENHA, Edmundo. O município no Brasil (1532-1700). São Paulo : IPE. 1948. p. 26. 14 15



17

administrativo e judiciário, pois, como pode ser observado na documentação, os réus que estivessem presos eram facilmente citados e compareciam de

Esta mesma

18

função já existia nas cidades medievais.

Na vereança de 11 de setembro de 1751 “se

pronto perante os juízes para responderem nos processos em que estavam envolvidos.

era majoritariamente pobre e dependia do cultivo de pequenas hortas e pomares ou a criação de porcos e galinhas. Isso levou muitos moradores a exercerem tais atividades no rocio da vila ou mesmo em áreas mais

capitão Miguel Rodrigues Ribas e o procurador do

afastadas.

Tendo o espaço da vila por referência, podemos

concelho o capitão Manoel Gonçalves de Sam Payo, e

Tal fato coloca a questão relativa à casa rural e

imaginar como corriam os atos da administração

tendo-se tocado o sino com os mais sinais costumados

a casa urbana na Curitiba colonial. A casa rural era a

comunitária. A Câmara deveria dispor de instrumentos

que se observa nesta Câmara não apareceu mais

casa de morada para muitas das famílias curitibanas,

de comunicação que viabilizassem o diálogo entre

local onde se realizava a produção agropecuária ou de deferir a vários requerimentos de partes que se

mineral. A casa urbana, por sua vez, estava mais

onde a maioria das pessoas não sabia ler ou escrever,

nos fazia”.19

vinculada à sua representação pública. Esta casa servia

portanto a escrita devia veicular menos mensagens que

enquanto instrumento de comunicação das sessões da

às suas estadias na vila, quando seus proprietários

as palavras, os gestos, os sinais e os toques sonoros. Em

Câmara à população local, pois a vila ainda resumia-se

participavam dos ritos religiosos (missas, casamentos,

12 de dezembro de 1739 o ouvidor Manoel dos Santos

ao entorno do núcleo inicial.

batismos), resolviam suas demandas junto à Câmara,

Lobato fez um provimento em Curitiba no qual: “Achou que para o bom regime desta povoação se precisava de um sino em os paços da Câmara desta dita vila não só

comercializavam suas produções ou compravam

O urbano e o rural

gêneros no comércio local. Vale lembrar que no o que possibilitava, mesmo aos que não eram ricos

na dita Câmara mas também para as audiências dos 16

juízes ordinários e de órfãos desta vila.”

O sino

do ouvidor Pardinho diferenciava claramente o

ter uma casa rural e uma casa urbana. A “riqueza

espaço urbano do espaço rural. As casas deveriam ser

estava associada ao número de cabeças de gado e de

construídas formando uma quadra compacta. Esse

escravos. As casas de morada e algumas benfeitorias

também avisava a população local sobre as sessões e

não mereciam nem mesmo descrição muito detalhada

audiências realizadas na Câmara. Uma Câmara tão

agrícolas de subsistência no interior do núcleo

importante como a da Bahia também contava com um

urbano. No entanto, a população das vilas coloniais

nos inventários”. 20 Esse fenômeno fora comum a muitas localidades

16

BAMC. v. II. p. 47. BOXER, Charles R. Portuguese society in the tropics. Madison: The University of Wisconsin Press. 1965. p. 98. 18 LE GOFF. Op. cit. p. 194-196. 19 BAMC. Vol. XXII, p. 27. grifo meu 17

FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 356

20


coloniais brasileiras. Em Curitiba, ao mesmo tempo

Tal característica parece ter sido comum no

em que se consolidava o núcleo urbano em torno do

Brasil. Em 1676, uma representação da municipalidade

Largo da Matriz (atual Praça Tiradentes), o povoamento

baiana denunciou que “as pessoas que servem neste

foi se espraiando pelos arredores, formando uma zona

Senado vivem em suas plantações no Recôncavo”.21

rural que se irradiava, a partir da vila, sertão adentro.

Em seu estudo sobre a sociedade caipira na área

As grandes extensões de terras a serem exploradas, a natureza extensiva da agropecuária, a busca de metais e

povoamento esparso, com movimentos cíclicos em

pedras preciosas e a utilização da mão-de-obra indígena

direção às pequenas aglomerações urbanas do sertão,

conjugaram-se como forças centrífugas, reforçando

cuja maior ou menor integração em sua estrutura

o caráter misto - urbano e rural - da povoação. Basta

dependia da proximidade espacial e também da

lembrar que as primeiras terras concedidas por cartas

condição econômica, que os mais aquinhoados

de sesmaria na década de 1660, situavam-se às margens

demonstravam por meio da posse “de casas vazias

do rio Barigui, a alguma distância do núcleo urbano

durante a semana, não raro durante meses, ocupadas

em formação. Assim, muitos moradores de melhor

com certa continuidade apenas nas quadras festivas ou

condição econômica, moravam em suas propriedades

eleitorais.”22 Saint-Hilaire observou esse fato em suas

rurais a distâncias relativamente grandes do núcleo

andanças pela Comarca de Curitiba em 1820. “Curitiba

urbano, mas mantinham também suas casas na vila,

mostra-se tão deserta, no meio da semana, quanto a

sendo efetivamente ocupadas por seus proprietários

maioria das cidades do interior do Brasil. Ali, como em

quando de suas estadias na sede da vila para participar

muitos outros lugares, quase todos os seus habitantes

de festejos religiosos, eleições camarárias, comprar ou

são agricultores que só vêm à cidade nos domingos e

vender mercadorias e resolver pendências de natureza

dias santos trazidos pelo dever do ofício divino.”23

judiciária, dentre tantos outros motivos que possam ser enumerados.

Nesse sentido, as casas e moradas referidas na

documentação

BOXER, Charles R. Portuguese society in the tropics. Madison: The University of Wisconsin Press. 1965. p. 99. CANDIDO, Antônio. Os parceiros do rio bonito. São Paulo: Duas Cidades, 1979. p. 61 23 SAINT-HILAIRE. Auguste de. Viagem pela Comarca de Curitiba. Curitiba : Clichepar, 1995. p. 106-107. 21 22

eram

estas

casas

urbanas,


que, muitas vezes, serviam mais como meio de

Província do Paraná, cujo território até então pertencia

hospedagem temporária que de moradia permanente

à Província de São Paulo. Em 15 de julho de 1854, o

necessariamente fechadas. Alguns indícios sugerem

antiga vila de Nossa Senhora da Luz, agora cidade de

que diversos proprietários podiam manter parentes,

Curitiba, como capital da Província do Paraná. A capital

criados, agregados, administrados ou escravos nessas

da nova província contava com pouco menos de seis

casas urbanas, os quais poderiam servir de elo de

mil de habitantes.

transmissão entre a vila e a propriedade rural. Além de

Um mapa de Curitiba datado de 1850 revela que

lugar de viver e produzir, as casas de moradas “eram

a cidade ainda se resumia aos arredores do Largo da

também lugar de articulações políticas, administrativas

Matriz (atual Praça Tiradentes). A elevação da cidade

e sociais.”24

à condição de capital da Província deu impulso ao crescimento urbano. Em 1860, a cidade já crescia para

A vila se torna cidade

além do rio Ivo. A partir da década de 1880, a construção da estrada de ferro favoreceu o crescimento da cidade

Com a abertura do Caminho do Viamão em 1731, começaram a surgir povoações na região dos Campos

XIX e início do XX, o crescimento apontava em todas

Gerais. A importância de Curitiba aumentou com o

as direções, impulsionado pela chegada de milhares de

desenvolvimento da economia tropeira ao longo do

imigrantes europeus e pelas linhas de bonde urbano.

século XVIII. Curitiba tornou-se sede da Comarca em

A aceleração do crescimento elevou o preço dos

1812. Impulsionada pelo tropeirismo e pela economia

terrenos na região central que ainda preservava muitas

da erva mate sua importância política e econômica só fez crescer ao longo da primeira metade do oitocentos,

casas térreas, elas foram demolidas para dar lugar a

até que, em 5 de fevereiro de 1848, foi elevada à categoria

sobrados em estilo eclético, muitos dos quais ainda

de cidade. Em 19 de dezembro de 1853, foi criada a

estão preservados. A própria Igreja Matriz construída

FARIA, Sheila de Casto. A colônia em movimento. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1998. p. 385..

24


no século XVIII foi derrubada em 1876 para dar lugar à

do entorno da Praça Eufrásio Correia. Em 2000 o Setor Histórico foi ampliado até a Praça Tiradentes

em 1893, ano em que se comemorou os 200 anos de

e suas imediações.25 Hoje, contemplar a paisagem do

Curitiba. A sede da prefeitura - o Paço da Liberdade –

centro histórico de Curitiba é observar o convívio de

Roteiro

foi construído em estilo art nouveau em 1916 na Praça Generoso Marques de frente para a Rua da Liberdade

é feita “das relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado”.26

construídas entre as décadas de 1920 e 1930 trazem em suas fachadas os símbolos estilizados do movimento paranista, como o pinhão e a araucária. Até o início da década de 1920 Curitiba era uma cidade sem arranha-céus. O primeiro foi o edifício Moreira Garcez que começou a ser erguido em 1927 em estilo art déco. A verticalização da cidade ganhou impulso nas décadas de 1940 e 1950, quando muitos dos antigos sobrados deram lugar a edifícios altos na região central. No início da década de 1970, algumas ruas do centro histórico de Curitiba tornaram-se calçadões

Praça Tiradentes: Núcleo inicial datado de meados do

Marechal Floriano Peixoto, Getúlio Vargas e, no pedestal

século XVII. Abrigou a primeira capela e as primeiras

mais alto, a estátua de uma mulher representando

casas da vila. No século XVIII, foi construída a igreja

a república devidamente encimada por um barrete

matriz em estilo colonial que foi demolida em 1876

frígio e segurando a bandeira nacional. Neste mesmo

para dar lugar ao novo edifício da matriz em estilo

pedestal mais abaixo a estátua de Benjamin Constant

neo-gótico que permanece até hoje como Catedral

Botelho de Magalhães e a imagem do Marechal

Basílica Menor de Nossa Senhora da Luz de Curitiba..

Deodoro da Fonseca no momento da Proclamação da

Até o início da década de 1880 o local foi era conhecido

República gravada em uma placa de bronze. No mesmo

como Largo da Matriz. Com a visita de D. Pedro II a Curitiba foi renomeado como Largo D. Pedro II. Após

positivista da bandeira nacional escritos em bronze. A

a proclamação da República em 1889 passou a se

praça também expõe em duas partes envidraçadas os

chamar Largo Tiradentes e depois Praça Tiradentes.

vestígios de antigos caminhos do início do século XIX

Os sucessivos nomes do logradouro demonstram a

achados por arqueólogos durante a última reforma. Em frente à Catedral estão o marco zero e o marco de

como a Rua 15 de Novembro. Ao mesmo tempo em que o plano diretor da cidade era implantado, ganhou força a idéia de preservação do seu patrimônio arquitetônico. Os limites do Setor Histórico foram determinados em 1971. Em 1974 a paisagem urbana da Rua 15 de novembro foi tombada. Em 1985 ocorreu o tombamento 25

SUTIL, Marcelo Saldanha; CIFFONI, Ana Lúcia; BARACHO, Maria Luiza Gonçalves. Boletim da Casa Romário Martins. Centro histórico: espaços do passado e do presente. Curitiba : Fundação Cultural de Curitiba. 2006. p. 119. 26 CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. Rio de Janeiro / São Paulo : O Globo / Folha de São Paulo : 2003. p. 15.

com a sucessão dos fatos históricos. A partir do início

pedra com a Cruz de Cristo que assinala instituição da

do século XX a Praça Tiradentes passou a contar com

municipalidade em 1693. A Praça Tiradentes também

uma série de monumentos que remetem diretamente à construção da memória republicana no meio urbano. Lá

entre o meado século XIX e a segunda metade do

estão em pedestais separados as estátuas de Tiradentes,

século XX.


Praça José Borges de Macedo: É praticamente uma

Praça Garibaldi: Antigo Largo do Rosário, abriga a Igreja do Rosário. O edifício atual em estilo barroco foi

pelourinho, que foi derrubado pelos patriotas em 1822, por ser um símbolo da opressão de Portugal sobre o

demolida em 1931. Defronte à igreja do Rosário encontra-

Brasil. Há uma placa assinalando o local de sua antiga

se o Palacete Wolf, construído em 1880. Subindo a Praça

localização.

encontra-se o palácio Garibaldi, cuja construção foi

Praça Generoso Marques: contígua à Praça José Borges

iniciada em 1887.

de Macedo, abriga o Paço da Liberdade, antiga sede da

Ruínas de São Francisco: Localizadas na Praça João

Prefeitura de Curitiba construída no início do século

Cândido ao lado do belvedere. Trata-se da construção

XX.

inacabada da igreja de São Francisco de Paula. A capela-

Largo Coronel Enéas: No século XVIII era o Páteo de Nossa Senhora do Terço, depois passou a se chamar Páteo de São Francisco das Chagas e posteriormente

para terminar a torre da matriz.

Largo da Ordem até 1917 quando passou a ostentar

Rua 15 de Novembro:

o nome atual. Contudo, a população continua a se

interesse histórico, desde o edifício Moreira Garcez e o

referir ao local como Largo da Ordem. Ali estão as

Palácio Avenida até o edifício histórico da Universidade Federal do Paraná de frente para a Praça Santos Andrade.

de 1737 e a Casa Romário Martins também do século

Praça Eufrásio Correia: Seu entorno abriga a sede da Câmara Municipal (Palácio Rio Branco), a Antiga

XX e o antigo bebedouro dos animais em seu centro.

Estação Ferroviária e o casario.

O calçamento preserva os antigos paralelepípedos.

Leme morador nesta povoação de Nossa Senhora da

Em suas adjacências estão a Casa da Memória e o

Luz dos Pinhais, diz que ele suplicante não tem terras para lavrar e agasalhar sua família conforme suas

modernas de concreto, aço e vidro que contrastam com

posses, pelo que pede (...) meia légua de testada de uma roça que tem defronte de seu curral, de outra banda do

São Francisco chegamos à Praça Garibaldi.

rio Barigui.”


Caixa Econômica Federal Presidenta da República Dilma Vana Rousseff Ministro da Fazenda Guido Mantega Presidente da Caixa Econômica Federal Jorge Fontes Hereda

Ficha Técnica Coordenação Geral Rodrigo da Silva Professores Prof. Ms. Carlos Eduardo França de Oliveira Prof. Dr. Joacir Navarro Borges Prof. Ms. Rodrigo da Silva Textos Prof. Ms. Carlos Eduardo França de Oliveira Prof. Dr. Joacir Navarro Borges Prof. Ms. Rodrigo da Silva Design e Editoração Camila Wingerter Ilustrações Paulo Galvão Produção e Edição Conceito Humanidades Assessoria Jurídica Perrotti e Barrueco Advogados Associados



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.