O toque da Sua mão

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Título: O Toque da Sua Mão Autora: Ana Maria Sepúlveda © copyright para Língua Portuguesa: Publicadora SerVir, S.A. Rua da Serra, nº1 - Sabugo 2715-398 Almargem do Bispo Telef.: 219626200 Fax: 219626201 E-mail: publicadora@pservir.pt Direcção: Enoque Pinto Direcção de Redacção: Paulo Sérgio Macedo Revisão de Texto: Corpo Redactorial Capa: Marta Rodrigues Pereira Diagramação: José Luís dos Santos

1ª Edição em Portugal Maio / 2009 1500 Exemplares Impressão e Acabamento: Gráfica Europam, Lda. – Mem Martins Não é permitida a reprodução total ou parcial deste livro (texto, imagens e maqueta) nem o seu tratamento informático, nem a transmissão de nenhuma forma ou por qualquer meio, seja electrónico, mecânico, por fotocópia, gravação ou outros meios, sem a autorização prévia e por escrito dos titulares do Copyright. I.S.B.N. 978-972-8891-52-7 Depósito Legal -


Nota dos Editores Ele faz coisas tão grandiosas,

que se não podem esquadrinhar; e tantas maravilhas,

que se não podem contar.

Job 5:9 O livro que acaba de abrir, prezado(a) leitor(a), faz parte de uma colecção com o título “Colecção Testemunho”. Este conjunto de livros reúne, em conjunto ou isoladamente, histórias, episódios e experiências reais, de que tivemos conhecimento e que achámos proveitoso e oportuno partilhar consigo. Através desses testemunhos, irá participar da alegria ou da angústia, da esperança ou da dúvida, da bênção da cura ou do conforto divino face ao sofrimento, que cada um dos autores vivenciou e que fazem parte da experiência de vida de cada ser humano. Em todos eles, sentirá a importância do amor de Deus na vida dos Seus filhos, de todos os que O amam. Nem sempre a Sua resposta é recebida no momento ou na forma que se espera, mas Deus está sempre presente. Nem sempre no desfecho de uma história se vê nitidamente a bênção, mas o maior milagre é a compreensão da permanência do amor de Deus. Como editores, tencionamos recolher, preparar e publicar alguns dos exemplos que nos mostram que Deus permanece presente, ao lado do cristão nos seus proble-

mas, e ao leme da Igreja nos seus desafios.


É nosso desejo que, pelo conhecimento e tomada de consciência da intervenção de Deus na vida de pessoas como nós e o Seu papel no enfrentar das dificuldades, possa também encontrar razões para acreditar e confiar que Ele quer acompanhá-lo(a), sempre, mesmo nos momentos de dor e de desespero. Acompanhá-lo(a) numa caminhada que terminará com o Seu abraço e a revelação de tudo o que nela não conseguiu aceitar ou compreender. Que a certeza do Seu amor e do Seu cuidado o acompanhem sempre nesse caminho. Os Editores

Índice Nota dos Editores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3 Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10 Incertezas... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 Nas Mãos de Deus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20 Dias de Angústia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32 Sendas Dolorosas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39 Deus Proverá . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48 Salvo por Milagre . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57 Notas Finais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61


Prefácio Nascido na Póvoa de Varzim aos vinte e oito dias de Dezembro de 1975, o Miguel é o segundo filho do casal José Luís e Ana Maria. Desde muito jovem demonstrou muita sensibilidade e inclinação para tudo o que fossem artes, com vocação especial para o desenho e pintura, dom que herdara do avô materno com quem conviveu bastante. Todavia, procurava esconder essa tendência natural por detrás duma espécie de introversão, que dificilmente conseguia disfarçar e que, muitas vezes, era para nós motivo de algum cuidado. Dos três filhos foi ele, no entanto, aquele que sempre mostrou maior gosto por actividades desportivas e vida ao ar livre, tendência que tem cultivado ao longo da sua vida. O irmão mais velho, o Luís, tornara-se, com o rolar dos tempos e o aumento de confiança mútua, o amigo e confidente com quem desabafava e se aconselhava sempre que a vida o recomendava, e de quem sempre esperava (e ainda hoje espera) uma orientação sincera e sensata. Com o Pedro, o irmão mais novo, foi crescendo aos poucos uma afinidade especial, muitas vezes escondida numa cumplicidade de ideias e princípios, cheia de intimidades, mas sincera e salutar. Assim cresceram até resolverem as suas vidas e cada um, para nosso e seu desconsolo, partiu para uma nova terra de adopção, distantes entre si.


O Miguel foi para a sua querida Lousã, o seu refúgio aos fins-de-semana quando necessitava de encontrar um pouco de tranquilidade, na sua curta, mas atribulada estadia na propriedade então da família, situada ali perto, em Figueiró dos Vinhos, onde fixara residência algum tempo depois de casar com a Telma. Ali, em Figueiró, montaram um pequeno laboratório de prótese dentária. As coisas, no entanto, não lhes correram de feição. Fecharam o laboratório e regressaram à Póvoa de Varzim para, mais perto da família, reorganizarem a sua vida. Montaram um novo laboratório de prótese, mas, também esse, por pouco tempo. As contingências da vida levaram o casal a deslocar-se para a Lousã, à procura da estabilidade emocional, financeira e familiar que teimava em não chegar, mas que era indispensável para prepararem o seu futuro. E aí vivem, desde então, uma vida simples e sossegada, longe da agitação de grandes urbes. Podem finalmente usufruir de ar mais puro, tranquilidade e dessa estabilidade que almejavam, acrescendo a tudo isso a criação de condições que lhes permitem praticar as actividades de que tanto gostam e tirar partido do prazer inigualável da Serra. No meio de tudo isto, nasceu-lhes o Hugo, o seu filhinho amado. Foi então que, inesperadamente, surgiu a doença. – Diagnóstico: Linfoma Não-Hodgkin, Grau Quatro. Terrível! Um arrepio percorre-lhe velozmente a espinal medula. E pergunta de si para si: – Porquê eu? Pratico uma vida saudável, faço exercício físico, tenho uma alimentação muito cuidada, tento levar uma vida calma... Estranhos caminhos esses! Um misto de cepticis


mo e esperança coabitam entre si num restrito espaço. Uma amálgama de sentimentos impele a sua e a nossa mente para pensamentos que não entendemos para onde nos levam. Por um lado, todo aquele clima de perplexidade e incerteza; por outro, momento a momento, a mão de Deus operando. Ao tomarem conhecimento do que estava a acontecer, um inúmero grupo de familiares e amigos de toda a parte, numa onda de solidariedade sem limites, dá as mãos e, numa prova de fé inigualável, pondo de lado crenças ou convicções, junta-se em oração para pedir a Deus que intervenha na vida do Miguel. Essa onda espalhou-se por muitos locais de Portugal, do Brasil, dos Estados Unidos, da Suécia, da Itália (onde a nossa Leninha– que viveu grande parte da sua juventude lado a lado com os nossos filhos – exerceu uma acção digna duma verdadeira irmã), da Ucrânia, de tanto lado nos chegavam notícias de preces e de súplicas em favor do Miguel, e a única coisa que conseguíamos fazer era agradecer e esperar. Também o inexcedível apoio que lhes foi dado por vizinhos e outras pessoas integradas na sociedade local os surpreendeu e ajudou a enfrentar tempos que, de outro modo, seriam muito mais dificilmente contornáveis. Eram gestos de amizade, de convicção, fervor, e confiança, prova inequívoca de que aquela força que vem mesmo do íntimo do coração existe e que, contramaré, transforma momentos de medo e ansiedade numa amálgama de soluções que tudo remove e ultrapassa, enchendo o nosso coração de gratidão, de alegria… e de louvor! No fim de tudo isso, graças a tão grandes gestos de amizade e ao amor do nosso Deus, o Miguel recuperou da sua doença, tendo dado por terminados


os tratamentos. Deus ouviu as orações de todos nós: O milagre aconteceu! – Senhor – pedia com emoção – sei que vais agir… Peço-Te que, quando o fizeres, o faças com força, de forma inequívoca, para que não restem dúvidas do Teu poder… e através desse gesto de amor, possas ser honrado e glorificado! Que poder! Tremendo é o Senhor nosso Deus. Ele agiu, o Miguel está curado! Aceita, ó Deus, a gratidão dos teus servos! Alguns, os mais cépticos, na sua forma estranha de ver a vida, exteriorizam com ironia: – Milagres? Não acredito em milagres… – e lá no seu íntimo – … mas lá que os há, isso há! O Milagre deu-se. Este é o nosso testemunho vivo por tão grande dádiva do Todo-poderoso. Em oração pedimos-Lhe protecção para todos aqueles que O amam e que a Ele se achegam, suplicando-Lhe que opere grandes milagres na sua vida! A todos vós agradecemos o empenho e amizade manifestados. José Sepúlveda


Vagidos magoados, Uma lágrima de alegria Vista nos olhos De quem sofreu… E acordei! Fui eu, O bafo da vida Que te bateu… E do amor nasci!... JS


Introdução Grande é o Senhor

e mui digno de louvor…

Salmo 48:1 (I Parte)

Ao escrever este pequeno testemunho, tenho como principal motivo render a Deus a Glória, a Honra e o Louvor que só Ele merece, pois Ele é o mesmo ontem, hoje e eternamente. Hoje, tal como no passado, Deus manifesta-Se passo a passo na nossa vida e, embora muitas vezes não perceptíveis para nós, ainda existem milagres. A história que vos vou relatar é disso uma prova viva. Antes de vos contar a história do meu filho Miguel, farei algumas apresentações para que, no decorrer da mesma, possam relacionar entre si os intervenientes. Vamos, pois, às apresentações... Fazemos parte duma família tradicional Adventista do Sétimo Dia. O meu nome é Ana Maria, sou filha de um Pastor Adventista já falecido, José Pedro Sincer, e de Maria Amélia. Casei com o José Luís e temos três filhos, os quais criámos com muito amor e cuidado nos caminhos de Deus. O mais velho chama-se Luís, é casado com a Maria Manuela (Nela), enfermeiro de profissão; o Miguel, casado com a Telma Cristina e pai do Hugo Miguel; e o Pedro, casado com a Eunice Maria (Nice) e pai da Joana. 10


Incertezas… 10 de Novembro de 2006 O meu netinho faz dois anos mas, como é sexta-feira, os seus pais decidiram festejar o seu aniversário apenas no Domingo e então reunir toda a família. Porém, os meus outros dois filhos e noras resolveram já hoje, no fim dos trabalhos, deslocar-se até à Lousã, onde residem o Miguel e a sua família para, juntos, aproveitarem ao máximo o fim-de-semana, irmãos, cunhadas e sobrinhos. Afinal, ainda são mais de duzentos quilómetros que os separam e estes encontros, por não poderem ser muito frequentes, são sempre bem-vindos. Ao jantar, no meio de animada conversa e brincadeira, o Miguel comenta com o Luís que nunca mais lhe passa algo que, desde Agosto, o incomoda ao engolir seja o que for. No início, pensara que a garganta estivesse inflamada ou arranhada e até começou a tomar pastilhas para a amaciar. Agora, até ao descer a água pela garganta sentia um incómodo, como se ali estivessem “duas gargantas”. O irmão fica um tanto estupefacto e todos se apercebem, na verdade, do tal ruído que o Miguel tenta que eles oiçam. Entretanto, a Nela na sua perspicácia, e tendo sido há alguns anos operada à tiróide, começa a olhar para o pescoço do cunhado, pela camisa entreaberta e nota, junto à clavícula esquerda dois pequenos inchaços para os quais de imediato chama a atenção do Luís. Este, ao vê-los, pretende de imediato ir com o irmão ao 11


hospital, mas o Miguel recusa-se, dizendo que “é tarde, amanhã é Sábado e temos que nos levantar cedo para ir à Igreja”. E acabaram por ir todos dormir. Todos, excepto o Luís, que não consegue encontrar o sono e, naquela noite, mentalmente, começa a antever um filme de terror. 11 de Novembro de 2006 Hoje, Sábado de manhã, já preparados para se dirigirem à Igreja, o Luís pede ao irmão que lhe faça a vontade: deixariam todos na Igreja e iriam os dois ao Hospital Universitário de Coimbra. – Nem penses, isto não é nada e depois, amanhã, é a festa de aniversário do menino. Imagina que querem que fique internado para exames? Não, vou depois, na segunda ou na terça-feira. Lá foram todos à Igreja, mas, naquele momento e durante toda a manhã, os pensamentos do Luís, volta não volta, dirigiam-se para o irmão. Ao almoço, não se contendo mais, o Luís disse para o Miguel: – Prepara-te para ires comigo ao Hospital esta tarde, pois não dormi nada esta noite e já não me vou embora sem saber o que é que tens aí. – Bom, se achas mesmo que é assim tão urgente, então está bem, vamos lá. E é assim que, na tarde de 11 de Novembro, curiosamente dia do meu aniversário, o Miguel entra no Hospital Universitário de Coimbra (HUC), para, sem saber, dar início a um longo processo que iria mudar drasticamente a sua vida, a da esposa e do filho e a de cada um de nós, seus familiares, atingindo mesmo a vida de muitos amigos. Ao ser atendido nas urgências do HUC, e efectua12


da a habitual triagem, o Miguel é encaminhado para observação no serviço de Otorrino (ORL), cujo médico, após observação, disse desconfiar de um quisto branqueal congénito, que podia só agora ter-se ulcerado e estar a manifestar-se. Pediu a realização duma ecografia, que veio a confirmar a existência duma substância líquida ou pastosa na região da saliência que era visível na base do pescoço. Disse então poder tratar-se dum abcesso, com acumulação de líquido por ulceração do quisto. Pediu ainda a opinião de um outro colega do mesmo serviço. Decidiram pela realização de uma laringoscopia indirecta para tentar observar a laringe. Após a realização desta, o colega referiu não ver nada de anormal na área visível, mas o que quer que fosse estaria mais abaixo. Então, observam-se duas atitudes diferentes por parte dos médicos: O primeiro diz: – Isso não é nada de preocupante. Vá descansado, marque consulta para Janeiro e, então, tratamos disso. O outro, porém, sugere a realização de um TAC cervical. E disse ao colega: – Afinal, temos uma vaga para o dia vinte e quatro. Vou marcar-lhe consulta para esse dia e vou passar-lhe uma TAC que quero que traga consigo nessa data. Refere, no entanto, que, se a TAC fosse marcada ali no serviço, poderia ter que esperar cerca de três meses. Se o Miguel conseguisse que a médica de família a pedisse e fosse feita no espaço desses quinze dias, seria excelente. O Luís disse, então, que nem que fosse necessário pagar a TAC particularmente o Miguel estaria lá daí a quinze dias com os resultados. 13


12 de Novembro de 2006 Foi assim que eu, o meu marido e a minha mãe, ao chegarmos à Lousã para o aniversário do nosso netinho, somos confrontados com esta péssima notícia, ainda que, para já, cheia de incertezas. – O que será? Um quisto? Algo relacionado com a tiróide? Bem, há que aguardar até ao dia vinte e quatro e manter a calma. Não deve ser nada de muito grave! “Sim”, pensava, “porque afinal, ele é saudável. Tem cuidado com a alimentação, não fuma nem bebe, e mais ainda, pratica desportos…” Conseguiram que o exame ficasse pronto mesmo na véspera da consulta e, no dia vinte e quatro, a Telma acompanhou o Miguel ao hospital. Ao abrir o envelope e olhar para as imagens, o médico de otorrinolaringologia, espontaneamente, exclama: – Mas que grande maçaroca aqui está, claro que tinha mesmo de sentir incómodo ao engolir! Vai, então, chamar outros colegas e, num repente, a sala enche-se com médicos especialistas: tiróide, cardiologia, etc.. Decidem fazer-lhe uma biopsia aspirativa, a fim de extraírem daquela massa anormal algum líquido para análise. Primeiro, uma agulha longa e fina, depois, outra mais grossa e… nada, nenhum líquido! Parecia uma massa compacta. Apesar de tudo, por descarga de consciência, fizeram um esfregaço com o material obtido, que enviaram para análise. Em Vila do Conde, eu e o meu marido estávamos a almoçar. Olhei para o relógio e comentei: – Como terá corrido a consulta? Vou telefonar-lhes quando acabarmos de comer. Quase de imediato, tocou o telemóvel. Era a Telma 14


que, em pranto, me pedia que orássemos. As coisas por lá estavam mal. Os médicos entravam e saíam. Falavam entre dentes e por gestos. O Miguel estava traumatizado, porque sofrera bastante com a punção. Agora, tinha sido levado para mais exames. Equacionavam a hipótese de ficar internado. Os médicos apenas comentavam entre si que nunca tinham visto nada assim. O tumor estava a comprimir-lhe as artérias coronárias e a traqueia. Daí, ultimamente, ele se queixar também de algum cansaço e certa dificuldade em respirar e mesmo quando comia. O nosso almoço terminava ali. Avisei a minha mãe para que metesse alguma roupa num saco de viagem e eu fiz o mesmo. Telefonei aos restantes filhos, pondo-os ao corrente da situação, para o caso de vir a ser necessário deslocarem-se até junto do irmão. Prepararam-se e aguardaram notícias nossas. Rapidamente, metemo-nos à estrada a caminho de Coimbra. Quando já íamos em viagem, recebemos novo telefonema dando-nos a conhecer que, finalmente, após outros exames, o cardiologista disse não ser nada relacionado com o coração e que os médicos da tiróide o tinham mandado para casa e que voltasse lá no dia trinta, a fim de efectuarem novos exames. Aí, já lhe diriam concretamente o que era e qual a data da operação. Sim, porque aquela massa não podia ficar ali. Continuámos a nossa viagem até à Lousã, para darmos ânimo e forças ao nosso filho e à nossa nora. Encontrámo-lo aparentemente calmo. Mas, no Domingo, ao fim da tarde, notámos que começou a isolar-se. Dentro dele iniciava-se uma luta e havia inúmeras perguntas sem resposta… sobretudo, muitas dúvidas! Tínhamos na lembrança um passado de perguntas 15


e imagens desagradáveis e agora “um nó” apertava a nossa garganta. Conversei bastante com a minha mãe e com o Luís. À mente da minha mãe, que aos vinte e um anos perdera o único irmão, então com vinte anos, com uma doença na altura rara e pouco conhecida – um linfoma de Hodgkin – vêm todas as recordações do sofrimento e perda daquele ente querido e, com profundo desgosto, convence-se de que o neto padece da mesma enfermidade. Quanto a mim, ao falar com o Luís, equaciono uma série de hipóteses: bócio mergulhante, cancro na tiróide, coágulo, tumor benigno. – E se for um linfoma, Luís, o que vai acontecer? Ó meu Deus, eu não quero perder o nosso Miguel! Quanto ao meu marido, a recuperar duma depressão, recusava aventar o que quer que fosse e que tivesse um cunho tão negativo. Momentos bem dolorosos para todos. Para acrescer a tudo isto, o Miguel soubera há algum tempo atrás que o patrão não lhe fizera os descontos para a Segurança Social. Bonito! Como ia ele pensar em deixar de trabalhar, sem sequer ter direito aos tratamentos e à baixa por doença? É que, afinal, era ele o principal ganha-pão do lar, uma vez que tinham decidido, quando nasceu o Hugo, que a Telma deixaria o seu emprego para poder cuidar e educar melhor o menino nos caminhos do Senhor. É certo que, desde então, e com muita eficiência, a Telma tem contribuído sempre com a sua “indústria” caseira de comidas pré-cozinhadas (rissóis, croquetes, tartes, etc.) para o equilíbrio financeiro do lar, mas isso apenas poderia funcionar como um suplemento e não como substituição do ordenado que o marido aufe16


ria. Além disso, mesmo recebendo o subsídio de baixa por doença, teriam um grande corte no seu orçamento mensal. Como sobreviver? “Ó, meu Deus, já não basta a doença! E se for prolongada? E se o patrão não colocar em dia os descontos?” As nossas mentes giram agora num turbilhão de pensamentos, de preocupações. Tantas interrogações sem resposta! As noites tornam-se longas e difíceis. Ou não adormecemos, ou acordamos sempre com imagens e pensamentos que nos enchem de preocupação. Chega o dia trinta de Novembro e com ele a ânsia dum desfecho feliz. Afinal, apenas chega mais uma decepção para aumentar a nossa preocupação. A equipa médica de cirurgia cardio-toráxica reunira-se e achou por bem não efectuar mais exames. Decide que a operação será realizada em quinze de Dezembro. – Não sabemos ao certo o que isso é – diziam os médicos – mas, seja o que for, tem que ser retirado. E a única forma de o fazer é operá-lo, serrando o externo. Trata‑se de uma cirurgia bastante delicada e de recuperação prolongada – mais ou menos seis meses, exigindo bastantes cuidados. Certamente não tornará tão cedo a poder andar de bicicleta e não pense mais voltar a praticar desportos muito violentos. Então down-hill, esqueça! Que desgosto! O meu filho gosta de canoagem, rappel, slide e outras actividades ao ar livre mas, acima de tudo, down-hill. Ele próprio montou, peça por peça, uma linda bicicleta que, à data, ainda não tinha tido a oportunidade de testar no terreno. Já não lhe serviria para nada. Pensa então em vendê-la. Pelo menos daria para realizar algum dinheiro, com o qual fariam face a despesas inadiáveis prestes a aparecer. 17


Aconselhamo-lo a que o não fizesse. Tínhamos consciência de quanto ele gostava da bicicleta e os sacrifícios que fizera para a construir. E agora, embora ele não o quisesse demonstrar, sabíamos bem quanto se sentiria triste ao desfazer-se dela desta maneira. – Não a vendas. Se Deus permitir, daqui a dois ou três anos, poderás andar novamente, pelo menos em terreno que não seja tão acidentado. Afinal sempre é uma máquina montada por ti, uma filha tua! Deus está ao leme, tudo se vai resolver! Contactámos familiares e amigos para os inteirar da situação e pedir as suas orações. As nossas preces iam no sentido de que Deus fizesse o que fosse melhor e permitisse que as decisões dos médicos fossem tão‑somente as que Ele desejava para o nosso filho.

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S.O.S. Sós! Será que estamos realmente sós? Na Natureza podemos observar toda a beleza da mão do Criador e sentir em cada flor, regato, água e até nos animais todo o seu amor! Sós, mas sempre acompanhados por esse Ser invisível que pôs em nossa mente descobrir o impossível e avançar com segurança sabendo técnicas, não perdendo a

Esperança

de que mais além há sempre algo a descobrir se tivermos fé e coragem e não quisermos desistir.

O aprender, o cair, o levantar

e sobretudo o não deixar de lutar, existem no ser humano desde o nascer ao morrer e fazem parte da sua personalidade e existência.

Mas nesta luta muitas vezes desigual entre Homem e Natureza e entre cada animal, só merece vencer quem não perder o Norte,

quem não temer a morte e num grito de esperança

S.O.S. em Deus depositar a sua confiança.

AMS

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Nas Mãos de Deus Aquietai-vos e sabei que Eu sou Deus; serei exaltado entre os gentios; serei exaltado sobre a terra. Vinde, contemplai as obras do Senhor… Salmo 46:10 e 8 (I Parte)

13 de Dezembro de 2006 Amanhã, o Miguel deverá dar entrada no Hospital para a cirurgia que vai ter lugar no dia quinze. Os nossos corações não se contêm com tanta ansiedade... Surpreendentemente, ao fim da tarde a Telma recebe um telefonema do Hospital, já fora da hora do expediente, no qual é informada de que a operação foi cancelada. – Cancelada, porquê, o que se passa? – Não sei nada sobre isso – respondem – apenas sei que já deveria ter saído e ainda aqui estou porque me mandaram transmitir-lhe essa informação. Muito boa noite. Algum tempo depois, o Miguel chega do trabalho, ficando estupefacto ao receber a notícia. Telefonam-nos de imediato a transmitir-nos o sucedido. O meu coração estremece. Depois bate descompassado… Penso no pior! Alguns momentos depois, na minha mente surge uma luz: “Pediste que Deus dirigisse tudo”, pensei. “Pois bem, aceita apenas e acredita que Ele está ao leme.” 20


E com confiança aguardámos a chegada de mais notícias. Era quarta-feira. Como habitualmente, na Igreja tínhamos reunião de oração. Uma vez mais, pedimos a Deus força e confiança para aceitarmos os Seus planos e direcção. Na quinta-feira, dia catorze, logo de manhã, uma vez que não seria internado, o Miguel prepara-se para ir trabalhar, não sem antes passar no Hospital para falar com os médicos, a fim de se inteirar dos motivos que levaram à mudança de planos. À entrada confronta-se com uma telefonista, que lhe diz: – O senhor por aqui? Eu não lhe telefonei a dizer que não ia ser internado? O que veio cá fazer? – Não é consigo que quero falar, mas sim com os cirurgiões. – Não há nada sobre o que falar – retorquiu – já lhe transmiti o que devia saber. Saia-me da frente. – Já lhe disse que vim falar com os médicos – respondeu, não escondendo alguma irritação – não me faça perder a paciência! Por um acaso, aparecem os médicos da equipa que efectuaria a intervenção e dizem: – Ah, o senhor já chegou? Vamos dar orientações para ir para a enfermaria e já iremos lá falar con­sigo. – Para a enfermaria? – diz o Miguel surpreendido. – Então ontem recebi um telefonema desta senhora a dizer que não vou ser operado!... Estou aqui para saber o que se passa. – Não, deve haver engano! Claro que vamos operá‑lo! Vamos lá esclarecer isto. Ao fundo do corredor, providencialmente, surge o 21


médico que lhe tentara fazer a biopsia. Traz na mão um documento. E diz: – Este senhor não vai ser operado. Fui eu que pedi para o contactarem por telefone. Tenho aqui o resultado da punção que fiz e mandei analisar. Segundo estas análises, ele não pode ser operado. Daqui em diante serei eu a tomar conta deste caso. Não esclareceu o Miguel sobre o resultado das análises, apenas pediu aos colegas da equipa que o seguissem, pois gostaria de os pôr ao corrente da situação. Então, o Miguel resolve informar o Luís da situação e mostra-se bastante apreensivo. – O que é que os médicos sabem e não me dizem? – perguntava o Miguel. Ao ver a preocupação do irmão, apreensivo e adivinhando a situação, o Luís de imediato entra em contacto com um médico amigo que trabalhava no HUC e pede-lhe para tentar saber o que realmente se passa. Este promete-lhe que, no dia seguinte de manhã, já teria algumas notícias. 15 de Dezembro de 2006 Conforme o combinado, o Luís telefona para o médico amigo e este diz-lhe com alguns rodeios que, de facto, tinham chegado os resultados da biopsia e que se pensava tratar-se de algo não operável, que necessitaria de outro tipo de tratamento. Querendo ser esclarecido totalmente e dum modo aberto e frontal, o Luís pediu ao médico que fosse sincero com ele e que lhe dissesse se seria um “Linfoma de Hodgkin”, uma vez que anteriormente tiveram na família um caso semelhante, na pessoa de um seu tio-avô. Com alguma contenção e cuidado, o médico foi dizendo que havia fortes suspei22


tas de um linfoma, mas não-Hodgkin. Na verdade, este seria bem mais agressivo. Agravavam-se as suspeitas. Após este telefonema, o Luís ligou para o Miguel e, com especial carinho mas também grande frontalidade, transmitiu-lhe as suspeitas de que ele teria um tumor nos vasos linfáticos e que o tratamento passaria por sessões de quimioterapia e/ou radioterapia, conforme o que viesse a confirmar-se e dos resultados que se viessem a conseguir. Qualquer cirurgia de remoção não poderia ser equacionada de momento. – Linfoma? – desabafa o Miguel. – Linfoma, meu Deus? Será mesmo verdade? Jesus, os nossos castelos estão a ruir!... … Nesse ano o Natal seria festejado em nossa casa. Como de costume, comecei a enfeitá-la logo no início do mês. Ao ter conhecimento destas notícias, tinha parado tudo, diante da expectativa da operação do Miguel. Agora, após o impacto da notícia da sua suspensão, volto ao início e começo a olhar numa nova perspectiva: “Graças a Deus, o nosso filho não fará essa operação, que o incapacitaria durante tanto tempo. Assim, ele, a sua esposa e o seu filhinho poderão uma vez mais juntar-se a nós durante esta quadra, que por norma nos proporciona momentos felizes no seio da família. Depois, veremos como tudo irá correr. Colocámo-lo nas mãos de Deus. Até aqui eu posso entender o Seu amor e cuidado, não só para com o nosso filho mas também para com todos nós.” O Natal chegou. Com ele, a alegria do reencontro da família. Tentamos nesta quadra proporcionar um clima de amor, paz e felicidade, desta feita ocultando‑nos numa aparente normalidade em que cada um evita 23


deixar transparecer sinais da angústia ou perplexidade que percorria o nosso coração. 28 de Dezembro de 2006 Há trinta e um anos, recebi como dádiva de Deus e prenda retardada de Natal o nosso Miguel. Hoje, dia vinte e oito de Dezembro, aniversário do Miguel, dia que desejávamos fosse de muita alegria, recebemos a notícia de que ele vai ser operado a quatro de Janeiro. “Afinal sempre vai ser operado?”, pensava. “Que tipo de operação é esta? Concretamente, o que será que ele tem? Ó meu Deus, continua a dirigir a equipa que vai operá-lo. Não permitas que cometam algum erro que ponha a sua vida em risco!” Mergulhados em todas estas angústias, chegámos ao fim de 2006. Surge 2007, um novo ano cheio de dúvidas e de interrogações. No íntimo de todos nós, também se respira esperança… e muita fé. 3 de Janeiro de 2007 Hoje, eu, o meu marido, a minha mãe, a Telma e o Miguel encontramo-nos no HUC, onde amanhã será submetido à intervenção cirúrgica agendada. A equipa reuniu-se há pouco com o Miguel e explicou-lhe todos os procedimentos. Irão fazer-lhe uma incisão no pescoço e, se possível, tentarão retirar toda a massa que lhe invade a garganta; isto se não for aquilo que as análises acusam. De outro modo, terão de optar por outro tipo de abordagem. Todos estamos confiantes e com a tranquilidade possível. Despedimo-nos do Miguel. Parecia muito calmo e confiante. Deixámo-lo com um sorriso de esperança, dissemos uma ou outra palavra de encorajamento e cir24


cunstância: – Eh, campeão, vais vencer esta! Logo a seguir, regressámos à Lousã. 4 de Janeiro de 2007 Esta manhã vai ter lugar a cirurgia. A ansiedade é grande, a incerteza de como irá decorrer também. Sabemos que deverá ser uma intervenção demorada, a menos que… não corra como o esperado. Às dez horas, recebemos um telefonema avisando que o Miguel está a entrar no bloco operatório. Os nossos corações elevam-se em preces ao Senhor. Quarenta e cinco minutos depois, recebemos novo telefonema, avisando que o Miguel saíra do bloco. “Já?”, pensei. Troco um olhar com a minha mãe, sem palavras, mas dum modo que as duas bem entendíamos: “Bem, Senhor, ele está nas Tuas mãos. Tem misericórdia de nós e dá-nos forças para aceitar a Tua vontade!”, orei. De imediato, dirigimo-nos ao HUC e procurámos o cirurgião, que se encontrava ainda no bloco. Uma chuva de SMS’s são enviados para familiares e amigos, pedindo as suas orações para intercessão junto de Deus em favor do Miguel. Foram muitas e confortantes as mensagens recebidas, que surgiam como bálsamo naqueles momentos difíceis e eram um refrigério para a alma. Após algum tempo de espera, entre duas operações, o médico apareceu. Olhou para nós. Após a nossa pergunta: “Como correu, Sr. Doutor”. Com um ar carregado e grave, disse-nos: – Bem, em relação ao Miguel gostava de falar convosco com calma. Aguardem-me, por favor, na sala de espera. Com estas palavras, que provocaram em nós um 25


sentimento de que queriam ganhar tempo e coragem para nos falar, os nossos corações pareciam saltar-nos do peito. Olhámo-nos uns aos outros ansiosos, com os olhos rasos de lágrimas. E ali ficámos, cheios de ansiedade, a aguardar a passagem de momentos que pareciam não ter fim. Algum tempo depois, surgiu um médico ainda jovem da equipa (o mesmo que na primeira consulta, nas urgências, lhe mandara fazer a TAC) e que, com alguma contenção, nos procurou explicar o que todos adivinhávamos. Evitando falar com clareza, socorreu-se de uma série de termos técnicos que dificilmente nos davam uma ideia real da situação, mas que, com algum esforço, fomos traduzindo nas entrelinhas. O Miguel tinha mesmo um linfoma… Não podia ser operado. E agora? Passado mais algum tempo, encontrámo-nos com o cirurgião-chefe da equipa, com quem faláramos no bloco e que não era senão o mesmo que lhe fizera a primeira biopsia. Disse-nos, dum modo mais directo e sem esconder alguma frieza nas palavras, que lamentava muito mas… “Ao abrir, não gostei nada do que vi. Mantive o Miguel a dormir, retirei um pouco de tecido para análise e esperei pelo resultado. Infelizmente, foi confirmada a suspeita. É um linfoma…” – E agora, Sr. Doutor, o que há a fazer? Quais as expectativas? – perguntei. – Bom, agora há que esperar cerca de três semanas para se identificar o tipo de linfoma, o grau de desenvolvimento e o tratamento que, em princípio, passará por quimioterapia, seguida de radioterapia e a seguir o transplante de medula. – E quais as perspectivas, senhor Doutor? Há esperanças? 26


– Bem, ele é jovem. Depende muito do tipo e do grau. Cada caso é um caso. Lamento muito, mas da minha parte nada mais posso fazer. Respondi-lhe então: – Agradecemos-lhes muito o que fizeram até aqui e todo o cuidado que tiveram com o Miguel. Estamos certos de que Deus os colocou no seu caminho. Temos a certeza de que Deus estará ao seu lado e pedimos-Lhe que vos continue a orientar no vosso trabalho. Muito obrigado por tudo. Dirigimo-nos para o quarto do Miguel, depois de enxugadas as lágrimas. O médico pedira-nos para não lhe dizermos o que se passava. Queria ser ele e a equipa a pô-lo ao corrente da situação. Assim, quando o vimos, reparámos que ele apalpava o pescoço, procurando a costura que devia ir de um ao outro lado. Ao constatar que apenas ocupava uma pequena zona, perguntou‑nos o que sabíamos. Desculpámo-nos, dizendo que esperávamos a chegada do Luís para este contactar com o médico. E fomos queimando o tempo, falando-se de bicicletas, de histórias passadas, misturadas com palavras sem qualquer nexo. Por sorte, um dos seus companheiros de quarto, acabado de chegar, era também um apaixonado por down-hill, possuindo à sua cabeceira uma série de revistas desportivas. “Que bom!”, pensámos. No entanto, no seu olhar víamos pairar uma sombra de tristeza que nem os sorrisos deixavam esconder. Ao fim da tarde, o Luís e a Nela apareceram. Logo o sentimos mais confiante e animado, distraindo-se mais com as conversas. Afinal, era o seu confidente, o seu conselheiro, que ali estava para lhe dizer: – Vamos, Miguel, vamos lá vencer mais esta batalha! Assim, dois dias depois, o Miguel deixou o hospital, 27


após a equipa cirúrgica lhe ter explicado que mandara uma pequena amostra para análise e que, infelizmente, não tinham conseguido tirar a restante massa por comprometer alguns órgãos vitais. Por isso, iriam recorrer a outra abordagem. Agora, havia que esperar duas ou três semanas para se saber em concreto os resultados da biopsia. As três semanas pareceram-nos uma eternidade. Esperávamos ansiosamente pelas análises e, a 25 de Janeiro, o Miguel recebeu a chamada do hospital para saber finalmente o prognóstico. Todos esperamos nervosamente as notícias. Finalmente, já à noite e pelo telemóvel, a Telma diz-nos que é um linfoma Tipo B, Grandes Células. O Miguel é encaminhado então para hematologia e a médica, ao chamá-lo para a consulta, surpreende-se ao ver um jovem com tão bom aspecto e diz-lhe: – O senhor está com um excelente aspecto, ninguém diria o que tem. Certamente já lhe explicaram tudo o que se passa. – Não – respondeu o Miguel. – Oh, é sempre a mesma coisa, a mim calha-me sempre a pior parte! Sente-se, vamos conversar. Vamos ter que lhe fazer uma PET e um mielograma. Vai fazê-los no dia 1 de Fevereiro. Assim, saberemos ao certo qual a extensão do linfoma e também se a medula está ou não afectada. Na data aprazada, ao injectarem o líquido radioactivo para a PET, o Miguel esteve muito mal. Após o exame, descobrem que, para além do pescoço e tórax há mais órgãos afectados, não sabendo nós ao certo quais nem quantos. Fazem então o mielograma. A sangue frio, na anca do Miguel é introduzida uma espécie de 28


agulha comprida e larga mas espiralada (trocater) que, à medida que vai penetrando no osso, age como um parafuso e ao ser retirada traz no interior medula com a superfície óssea que perfurou, deixando uma ferida larga e profunda. O Miguel sente dores terríveis e, a chorar, com as mãos na cabeça, pergunta a Deus o porquê de ter que passar por tudo aquilo. Abraçada a ele, também a médica chora, enquanto lhe diz: – Força, meu filho, então?! Soubemos, então, que a medula já estava afectada. “Meu Deus”, orei. “Tive tantas esperanças que o problema estivesse localizado! Afinal, está mais espalhado do que pensávamos. Eu bem sei que, para Ti, tanto importa o pouco ou muito, pois o Teu poder é infinito.” Como foi difícil conciliar o sono nessa noite! Ao fim de algumas horas, exausta, adormeci, para voltar a acordar madrugada dentro e, novamente, na minha mente surgiram mil perguntas e dúvidas… e adormeci em oração. Constatei depois que este passou a ser o ciclo de uma boa parte dos meus entes queridos. Às vezes, conversávamos, ora pessoalmente, ora por telemóvel, tentando animar-nos uns aos outros. Os amigos e outros membros da família também nos telefonavam com frequência, dando-nos ânimo e manifestando a certeza de que as orações em favor do Miguel estavam chegando aos Céus. No dia em que tomámos maior consciência de que as coisas estavam muito mal, recebi um telefonema do Pr. António Amorim. Encontrávamo-nos em Trás-os-Montes, em casa de uns familiares que tínhamos ido visitar, para distrair. De uma forma geral, pu-lo ao corrente da situação e transmitilhe as dúvidas e preocupações que me assaltavam. Ele tentou confortar-me e, a dada altura, disse-me: 29


– Irmã Anita, penso que agora, de certa forma, a irmã está a sentir o mesmo que Deus sentiu quando enviou o Seu amado filho Jesus à terra, para morrer pela humanidade. Ao que eu respondi: – Sim, talvez seja verdade, só que Deus sabia de antemão o que ia acontecer, sabia que Jesus sairia vitorioso… e eu não sei qual vai ser o desfecho de tudo isto. Se Deus permitir que o Miguel morra, eu não sei quantos anos mais terei ainda que viver sem ele, nem sei como reagirei a esse lugar vazio que passarei a ter na minha vida. De qualquer modo, quero acreditar que Deus estará com cada um de nós e, acima de tudo, com o Miguel. A minha fé há-de continuar firme! De tarde, despedimo-nos daqueles familiares e regressámos. No decorrer da viagem, o meu pensamento não saía do Miguel e os meus olhos vertiam lágrimas continuamente. Olhando para o céu, reparei que este estava coberto de nuvens escuras e espessas, mas vi que do seu meio saíam raios de luz que pareciam lançar-se sobre a terra. Observei-os com mais atenção e verifiquei que, passado algum tempo, as nuvens escuras se afastaram, deixando antever o brilho do sol para de novo se cerrarem e voltarem por mais um tempo. Em momento algum esses raios de sol deixaram de ser vistos. Sinal de esperança! Apanhei a máquina e, num ápice, captei algumas imagens. Ainda com os olhos humedecidos, mas grata por aquele sinal de esperança, troquei com o meu marido algumas palavras, chamando-lhe a atenção para o que estava a presenciar. Foi quando as nuvens escuras desapareceram instantaneamente, como que por milagre. Agora, naquele céu azul, o sol brilhava sem cessar e assim permaneceu 30


até chegarmos a casa. Para mim, essas nuvens negras simbolizavam o estado da nossa vida e a tristeza que ia no coração de cada um; mas a luz que as atravessava era a presença de Deus, manifestando o Seu amor e limpando-as da escuridão que não permaneceu mas se dissipou, transmitindo-nos força e coragem para vencer esta provação. … Quando o Miguel tomou conhecimento da sua situação, procurou por diversos meios – através de vários livros institucionais, tratados sobre alimentação e tratamentos naturais e outros – inteirar-se do que deveria fazer para lutar contra a doença e fortalecer o seu organismo. Entre outras acções, dirigiu-se a Valongo para conversar com o mano Luís e, no dia seguinte, encaminhou-se para Lisboa para uma consulta com o Dr. Viriato Ferreira, médico adventista que, além de exercer medicina tradicional, é também grande conhecedor de medicina natural. Era seu propósito fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para enfrentar a doença e minorar os efeitos dos tratamentos de quimioterapia, caso viesse a aceitar fazê-los, coisa sobre a qual ainda não tinha tomado uma decisão. Desde logo, colocou totalmente de lado a carne e o peixe. Começou a praticar uma alimentação à base de vegetais, muitos deles consumidos crus. Também passou a tomar várias vezes ao dia diversos sumos de legumes, citrinos e outros frutos ricos em antioxidantes. Entretanto, a médica de hematologia comunica-lhe que irá iniciar as sessões de quimioterapia a 6 de Fevereiro.

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Dias de Angústia Na minha angústia clamei ao Senhor, e Ele me ouviu. (Salmo 120:1)

Sabendo a Telma da grande vontade que o Miguel tinha de poder juntar-se com os irmãos e embarcar uma vez mais numa dessas descidas de bicicleta na Serra da Lousã, pensou que seria bom que, antes de iniciar a quimioterapia, pudessem dar-lhe esse gosto, reunindo-os nessa aventura. Assim, o Miguel poderia usufruir da célebre bicicleta que, com carinho, montara peça por peça e que ainda não pudera desfrutar. Telefonou então aos cunhados para lhes pedir para irem lá passar o fim-de-semana. Era esta a única oportunidade, pois na terça-feira o Miguel iniciaria os tratamentos (ou não!) e não sabia se mais tarde o poderiam fazer. Por outro lado, sempre seria uma forma de o distrair e apoiar. Respondendo ao chamado, os irmãos, com mulheres e filhota, partem na sexta-feira ao fim do dia para a Lousã, esquecendo tudo para transmitirem ao irmão a força e a coragem de que ia necessitar. Não deixou, no entanto, de ser um fim-de‑semana atribulado. A Telma apanhou uma forte gripe e, para que não a pegasse ao Miguel, o que seria indesejável nesse momento, foi dormir para o quarto do filho, deixando este a dormir na cama, junto do pai. Para agravar a situação, na manhã seguinte, o Hugo 32


acorda cheio de febre. E agora? Será que o Miguel apanhou a gripe? Que maçada! Se assim fosse, não poderia iniciar o seu tratamento. Felizmente, não aconteceu. … Como já referi, desde o início o Miguel questionava-se se deveria ou não fazer quimioterapia. Tratar-se através de radioterapia era uma decisão mais pacífica para ele. Nesse Domingo, a Telma recebeu um telefonema de uma certa pessoa, cheia de boas intenções mas com pouco bom senso, que advertia de que o tratamento através de químicos não tinha a aprovação de Deus. Instigava para que não se submetesse a ele, porque em duas semanas estaria acabado. Dizia: – Ele que venha para minha casa, que eu trato-o só com remédios naturais. Prevaleceu o bom senso. A Telma, prudentemente, não referiu ao marido aquele telefonema. No dia seguinte é o próprio Miguel que recebe outra chamada no seu telemóvel, com a mesma advertência e proposta. Essa mensagem caiu como um tiro na já tão debilitada e martirizada cabeça do nosso filho. O Luís já regressara a casa no Domingo à noite, mas o Pedro ainda se encontrava na casa do Miguel, e, ao vê-lo tão calado e pensativo, após grande insistência, conseguiu saber de quem fora o telefonema que colocara o irmão em tal estado. Estou certa de que, por inspiração divina, o Pedro conseguiu ter com o irmão uma conversa bastante séria, em que o desafiou: – Dadas as circunstâncias, será de esperar que tu também apanhes gripe e, se assim for, a quimioterapia fica fora de questão, pelo menos por agora. Será esse, então, o sinal que Deus te dará para te dar a conhecer o que quer que faças. 33


Tentando distraí-lo de tudo o que se estava a passar, o Pedro convence o irmão a mais uma aventura na montanha. E conseguiu que essa Segunda-feira se passasse sem que o Miguel voltasse a referir o assunto e não reflectisse tanto nos problemas que lhe iam na alma. Por volta das nove horas da noite despede-se do irmão e regressa a casa, pois era imperioso que retomasse o trabalho no dia seguinte. Uma grande preocupação acompanhou-o durante a viagem. Afinal, era a vida do irmão que estava em jogo. Por volta das 21:30h, eu e o Luís chegámos à Lousã para acompanharmos o Miguel ao hospital no dia seguinte. O Luís teve uma longa conversa com ele, durante a qual referiu muitos textos da escritora cristã Ellen White. E oraram com fervor. Nessa madrugada, era já uma e trinta, deitámo-nos e o Miguel entregou a Deus as suas canseiras, dormindo sossegado o resto da noite, coisa que já há algum tempo não acontecia.

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Pedala, Miguel No princípio,

Jesus com outro olhar. Via um Jesus vigilante, Juiz que não esquecia eu olhava para

as coisas erradas que eu fazia sempre, a cada instante.

Ele estava ali, com Seu poder, Senhor e Fonte do saber. Reconhecia a Sua imagem mas não tinha coragem de

O conhecer.

… Mais tarde,

quando passei a conhecê-l’O, pareceu-me que a vida

era como um passeio de bicicleta

Jesus seguia atrás, de forma discreta, segurando-me e ajudando-me a pedalar. E tudo ficou mais belo! Não me lembro quando foi que Ele mudou para o meu lugar, e percebi que

só sei que desde esse dia a vida ficou cheia de alegria…

E queria cantar! … Conforme o tempo

voava como o vento e agora me tornara paciente, tudo era compreensível,

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todo o momento feliz e atraente…

Quando eu estava no comando, sabia onde queria chegar e quase sempre encontrava um caminho exequível.

Mas, incrível, não ficava satisfeito. Tudo aquilo era previsível… mas imperfeito… Depois que Jesus assumiu a liderança, cresceu-me a confiança. Dia a dia descobria que Ele conhecia atalhos maravilhosos, passei a subir montanhas, percorrer terrenos pedregosos, trajectos vertiginosos! Tudo o que tinha que fazer era segurar-me confiante e correr, correr, sempre adiante… Ele dirigia, e eu, contente, sorria! E conquanto aquilo me parecesse uma loucura

Ele apenas dizia: “Segura, Miguel, segura!” … Quando me sentia ansioso e preocupado, perguntava-Lhe: “Senhor, vamos por esse lado?” Ele sorria, e trocávamos olhares à porfia… Pouco a pouco foi crescendo a confiança. E quando às vezes me surgia a desesperança, Ele virava-Se para trás, 36


agarrava fortemente a minha mão… e zás!

Na Sua doce e mansa fala, dizia: “Pedala, Miguel, pedala!” Levou-me até pessoas que não conhecia; deu-me o dom do serviço e da alegria… Depois, olhava para mim… e sorria. Muitas das pessoas que trouxe até mim, apoiaram-me em momentos difíceis e ajudaram-me a superar obstáculos

e a prosseguir assim na minha caminhada.

…E, juntos, derrubámos toda a barricada! E dia após dia passei a pedalar

Sua companhia… Um dia, olhando para mim, olhos nos olhos, disse-me: “Entrega os dons que trazes na mochila na

aos amigos e vizinhos da montanha ou da vila.

Às tuas costas são abrolhos, ou espinhos, é supérflua… e pesada!” E, sorrindo, comecei a distribuí-los por todos que encontrava. Descobri então com alegria que quanto mais dava, mais recebia! E o meu fardo era mais suave e leve a cada dia…

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Ao princípio, não compreendia e vivia indeciso e com temor. Mas o Senhor conhecia bem os “segredos” da minha bicicleta, sabia como incliná-la em curvas arrojadas, como elevá-la para transpor obstáculos e valadas, lugares pedregosos, charcos lamacentos, proteger-nos de frios e de ventos, e no meio de tantas redundâncias, desmembrar caminhos e atalhos, encurtar distâncias... …e trabalhos! Aprendi a ouvi-l’O cantar ao pedalar nos caminhos mais incertos, aprendi a apreciar a planície infinda, estendida em espaços abertos, e cada dia mais linda…, mais linda! Senti o soprar da fresca brisa que nos desliza pela fronte, ao subir a serra, ao descer o monte… E eu sorria ao desfrutar tanta alegria! … Agora,

quando sinto que não posso ir mais além, olho em

Seu olhar sereno

que num aceno me sorri como quem diz:

– Estou aqui…

e com fraternal carinho, murmura baixinho:

“Pedala, Miguel, pedala, filhinho!...” 38

JS


Sendas Dolorosas Ainda que eu andasse

pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum,

porque tu estás comigo…

Salmo 23:4

6 de Fevereiro Logo de manhã, saímos da Lousã em direcção ao hospital. Eu, o Luís, o Miguel e a Sónia, sua vizinha, que desde o início sempre acompanhou a sua doença e que trabalha na Biblioteca do Hospital de Coimbra. Às oito horas teríamos que lá estar para a primeira sessão de quimioterapia. Antes ainda, o Miguel teria que fazer análises e ir à consulta, a fim de lhe serem explicados os procedimentos. Previamente, teria de assinar um termo de responsabilidade. Durante a viagem, o Miguel colocou um CD com alguns hinos que ouvia com regularidade nesta fase da sua vida. Percebia-se nele um forte nervosismo. Na sua e na nossa mente pairava a dúvida se ele aceitaria ou não submeter-se à quimioterapia. Ao chegarmos ao hospital e após as análises, o Miguel é chamado para a consulta com a médica de oncologia que o seguiria durante os tratamentos. À porta do consultório, o Miguel pede ao Luís que o acompanhe. Entraram. No corredor, em frente à porta que se fechava, eu e a Sónia aguardávamos ansiosas e apreensivas. Será que vai aceitar a 39


quimioterapia? Continuamente, os meus pensamentos elevavam-se em preces a Deus. Lá dentro, no consultório, o Miguel tomava a decisão da sua vida, talvez a mais difícil. Depois de a médica lhes ter explicado cuidadosamente os procedimentos, colocou frente ao Miguel uns papéis e disse-lhe: – Então, vamos assinar, está bem? O Miguel, meio sério, meio a sorrir, disse: – Não sei se será! A médica retirou os papéis e disse: – Diga lá, quais são as dúvidas? – Sabe, senhora doutora, toda a minha vida procurei levar uma vida saudável. Nunca bebi nem fumei e sempre evitei medicamentos. Por isso, custa-me aceitar introduzir no meu corpo algo que tem efeitos secundários tão fortes. E depois de um profundo silêncio: – Tenho um médico amigo que desde o início tem acompanhado a minha doença e me tem aconselhado em relação à alimentação e a alguns tratamentos naturais. Tem-me apoiado bastante. Importa-se que fale com ele e o ponha ao corrente de tudo o que me disse? – Não, Miguel, claro que não, quando quiser. – Então permite que eu lhe ligue agora? – Com certeza – responde, de algum modo surpreendida. O Miguel pegou no telemóvel e ligou para o Dr. Viriato. Ele atendeu e o Miguel pediu-lhe o favor de ouvir o que a doutora tinha para lhe comunicar. Pacientemente e de médico para médico conversaram. No final, a médica despediu-se, deixando claro que sempre que o doutor quisesse poderia falar com ela. Depois, passou novamente o telemóvel ao Miguel. 40


Apenas mais umas palavras de ânimo do doutor Viriato. O Miguel desligou o telemóvel. Os olhares do Luís e da doutora cruzaram-se, expectantes, com os dele. Esboçando um sorriso tímido mas confiante, disse: – Vamos a isso. Aliviados, o Luís e a doutora deixaram escapar um sorriso de alegria. Esta, rapidamente, entregou-lhe de novo os papéis para assinar. O Miguel assinou-os e devolveu-os num instante. Colocando-os debaixo do braço, a médica abriu a porta e saiu, logo seguida pelos dois. O Luís, por detrás da cabeça do irmão, piscou o olho e sorriu para mim. Seguimos pelos corredores até à sala onde teriam lugar os tratamentos. Enquanto os dois avançam mais um pouco, a médica parou, olhou para mim e disse-me: – Vamos, coragem, ele vai precisar muito de todos vós e da vossa força. Tem aqui um filho muito lutador. Não quero ver nunca lágrimas nos seus olhos. Ele precisa de todo o vosso apoio. Entrámos na sala. Recostado numa cadeira extensível, o Miguel recebia agora os medicamentos que tanto nos assustavam, mas que sabíamos serem necessários. As horas passavam lentas enquanto, com precisão matemática, ao sinal das máquinas, uma enfermeira retirava a garrafa vazia e colocava outra cheia. Sempre químicos diferentes… Pela sala estendiam-se mais cerca de vinte cadeiras, a maioria das quais ocupada por doentes mais velhos. Todos os tipos de cancro. Terapias várias e perspectivas de vida diferentes. Após algumas horas, o Miguel, branco como a parede, inchado e um pouco estonteado, foi finalmente liberto da máquina. 41


Conduzindo com cuidado, para evitar muitos solavancos e atenuar um pouco as curvas, o Luís regressou connosco à Lousã onde, uma vez chegados, ajudou o irmão a deitar-se. Estávamos contentes, de certo modo, pois até aqui estava tudo a correr bem. Perto das dezoito horas, quando estávamos a preparar-nos para regressar a casa, o Miguel começou a vomitar compulsivamente e assim permaneceu cerca de uma hora. Depois, houve uma acalmia. Eu preparei‑me para ficar na Lousã. O Luís, porém, teria mesmo de regressar. O Miguel instigou-me a que regressasse com o irmão. Já se sentia melhor. Despedimo-nos a custo e regressámos. Essa noite, porém, ficaria marcada para o Miguel, a Telma e o Huguinho pois, pouco depois de sairmos, o Miguel teve nova sessão de vómitos que se prolongaram pela noite fora. Pelas seis da manhã tudo acalmou. Porém, só ao jantar foi possível ao Miguel comer qualquer coisa; até lá, o que quer que fosse que metesse no estômago, mesmo a água, era rejeitado. Cerca das dezassete horas do dia sete, recebemos um telefonema do Miguel, muito animado, no qual nos dizia que se sentia bem e que o tal alto que tinha no pescoço tinha desaparecido. Ficamos incrédulos e radiantes, já se vê, e eu disse-lhe: – Olha, filho, esse é o sinal que Deus te dá de que deves continuar com o tratamento. Deus deixa-nos tomar as decisões, certas ou erradas, mas só actua depois de fazermos a nossa parte e nos aproximarmos d’Ele, pedindo a Sua ajuda. Ele concedeu também ao ser humano a sabedoria necessária para ir descobrindo a cura para várias doenças, não só através de tratamentos naturais mas também, quando necessário, através de 42


químicos. Meu filho, deves continuar com todos os tratamentos naturais que tens feito, e mais que saibamos que sejam eficazes. Toma direitinho os sumos antioxidantes e come de tudo o que possa contribuir para minimizar os efeitos dos medicamentos. E foi assim que, nesse fim de tarde, nos despedimos, felizes e com a certeza do grande amor de Deus e do Seu cuidado pelo nosso filho. … Dezanove dias depois, tal como o Luís já nos tinha prevenido, os lindos cabelos encaracolados do Miguel começaram a ficar presos ao pente. Ao sermos confrontados com tal estado, sentimos um nó no estômago. Os efeitos negativos da quimioterapia estavam a fazer-se sentir. Que mais se seguiria? Foi então que o Miguel decidiu cortar o cabelo bem curto. No entanto, as entradas eram cada vez mais salientes e, no vigésimo-primeiro dia, os poucos cabelos que restavam acabaram por ficar quase por completo agarrados à almofada em que se recostou ao chegar a casa, depois da segunda sessão de quimioterapia. Restava-lhe agora uma penugem branca, que lhe dava um ar estranho de velhice prematura. Resolveu rapá-lo totalmente. Nessa segunda sessão entrámos no Hospital às oito da manhã e saímos já depois das dezasseis e trinta. Futuramente, de vinte e um em vinte e um dias, seria esta a rotina: Chegados ao hospital a primeira etapa era a análise ao sangue. Seguia-se a consulta com a médica. Esta, após se inteirar dos sintomas que se iam manifestando e, acima de tudo, de verificar os níveis sanguíneos, prescrevia as doses de tratamento a aplicar naquele dia. Graças a Deus, e devido aos tratamentos naturais, 43


o sangue do Miguel sempre permitiu que ele recebesse as doses previstas. Então, passava à sala de tratamentos, onde lhe era administrada com precisão uma série de medicamentos. A partir desta segunda sessão, passou também a receber anticorpos, cuja função era permitir que os químicos actuassem com mais força nas zonas afectadas. Passaram também a ministrar-lhe uma medicação que o ajudava a controlar melhor os vómitos compulsivos que tivera após a primeira sessão. Fomos todos tomando consciência de que o organismo dele não iria sempre reagir do mesmo modo após cada sessão. Uma coisa, porém, era comum: a partir do sexto dia e até ao nono ou décimo, o seu organismo atingia os valores mais baixos, chegando o Miguel a não ter forças para se levantar nem tão-pouco para pegar numa colher para se alimentar. Assim, a Telma, com grande dedicação e paciência, enfiava na boca do marido uma colher de papa de dez em dez minutos, chegando este a levar duas horas para tomar o pequeno-almoço. Por volta do almoço parecia que o Miguel ganhava um pouco mais de forças e lá se levantava. Comia e procurava vir até ao jardim apanhar ar puro e um pouco de sol. De cabeça rapada, resolvera usar um boné para de algum modo tentar não dar tanto nas vistas. Aos poucos, a sua memória ia ficando afectada. Por vezes, ia às compras, pagava e saía sem elas. Abria a arca frigorífica para ir buscar qualquer coisa e deixava-a aberta toda a noite. Perdeu telemóvel, mp3, chaves, etc.. As estradas que ele tão bem conhecia suscitavam-lhe dúvidas e o seu modo de conduzir, habitualmente tão cuidado, tornou-se irregular. 44


Sentado no jardim, com ar apático, mal via os vizinhos a passar. Estes saudavam-no e a maioria das vezes o Miguel só lhes retribuía já eles iam mais à frente. Pouco a pouco, também a sua paciência se esgotava. Qualquer ruído o incomodava. Tinha explosões de mau humor. Após uma das sessões de quimioterapia, chegou a passar um ou dois dias fechado num quarto. Como devia ser difícil a convivência entre ele, a esposa e o filhinho nesses momentos tão críticos! A certa altura, chegou mesmo a retirar-se de casa, durante três dias, a fim de evitar tornar-se violento com eles. Nós assistíamos impotentes e angustiados à decadência física e psíquica do nosso amado filho. Só mesmo Deus o poderia ajudar e acompanhar, pois ele nem sequer permitia, na maioria das vezes, a nossa presença. Era muito duro e chocante. Embora aceitássemos a sua vontade, nem sempre compreendíamos as razões, se é que as havia. Além dele, existiam a Telma e o nosso pequenino Hugo a precisarem de apoio e de distracção e nem a eles tínhamos acesso! Era através do telemóvel que eu procurava contactar a Telma, em momentos que eu presumia que o Miguel tinha ido dar uma volta. Hoje, sabemos o quão terríveis devem ter sido para o Miguel esses momentos, em que sentia o seu corpo a ser queimado, em que qualquer movimento o fazia transpirar em bica, todo e qualquer som lhe perturbava a mente esgotada. Claro que, quanto menos gente à sua volta, melhor! Durante todo este tempo encontrámo-nos com ele em algumas das sessões de quimioterapia, acompanhando todo o processo e permanecendo pontualmente em sua casa por uma noite, não se fosse repetir o episódio da primeira sessão. 45


Como ficávamos felizes quando, após as duas primeiras semanas tão críticas, o seu organismo recuperava forças e ele então se tornava tenuemente no Miguel que conhecíamos! Isso dava-nos ânimo e esperança. Com que ansiedade aguardávamos as análises, para saber se os seus órgãos permaneciam saudáveis! Esse era, estranhamente, o sinal para que lhe fosse aplicada na íntegra mais uma dose de químicos. Parece um contrasenso, mas era a realidade. Em todo este processo, e nas horas mais negras, a minha única tábua de salvação foi esse Deus em quem confio e a quem recorri vezes sem conta. Quando o meu estômago apertava e na garganta sentia um nó, fechava-me no quarto, falava com Deus e, uma vez mais, os colocava a ele, à sua esposa e ao seu filhinho nas Suas mãos de amor. Desde o início dos tratamentos e durante as horas de aplicação dos mesmos, eu pegava na minha Bíblia, lia os Salmos, cantava hinos de louvor e orava, pedindo a Deus que os medicamentos actuassem sobre os tumores, mas deixassem o mais intactos possível todos os outros órgãos do Miguel. E Deus ouvia, e Deus atendia! ... Em meados de Fevereiro, entre a primeira e a segunda sessão de quimioterapia, foi implantado ao Miguel um cateter central para administração de medicamentos e recolha de sangue. Esta cirurgia, que estava previsto fosse efectuada com anestesia geral, acabou por ser realizada quase a sangue frio, tendo o cateter sido posto numa posição errada. Essa acção acabou por provocar uma paragem cardíaca ao Miguel. Essa ocorrência poderia tê-lo deixado ali, inanimado para sem46


pre. Uma vez mais, Deus estava ao leme. Pouco tempo depois, o seu coração retomou o ritmo normal sem que tivesse necessidade de se recorrer a outros meios auxiliares. Esta situação fez com que o Miguel entrasse em estado de choque e ficasse sem falar durante cerca de duas horas. No fim de tudo isto, a Telma levou-o para casa. A noite foi um pesadelo e passada toda em claro. O Miguel ora transpirava imenso, ora tinha arrepios de frio. A Telma perdeu a conta das vezes que lhe trocou de pijama e de roupa da cama. Durante essas horas difíceis de vigília, o Luís manteve-se em contacto com eles e pedia-lhes que voltassem ao Hospital, porque os sintomas apontavam para que houvesse uma hemorragia interna. No decorrer da noite, a Telma chegou mesmo a chamar um casal de vizinhos para que a ajudassem a colocar o Miguel no carro. Este, porém, recusou o regresso ao Hospital. Chegadas as primeiras horas da manhã, depois de tanta insistência por parte do irmão, o Miguel, muito a custo, acedeu a ir novamente ao Hospital. Meteram-no na ambulância e, quando chegaram a Coimbra, pela graça de Deus, já o aguardava um excelente médico, que o observou, o ouviu com atenção e o tranquilizou. Durante algumas horas, efectuaram-lhe diversos exames. Graças a Deus, estava tudo bem e agora, já mais calmo, regressou a casa para descansar e recuperar, pois daí a cinco dias o cateter iria ser utilizado.

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Deus Proverá Entrega o teu caminho ao SENHOR; confia n’Ele, e Ele tudo fará. Salmo 37:5

Dois dias depois, o Miguel e a Telma foram ao Centro de Saúde para lhe serem efectuados os curativos. Regressaram a casa e a Telma foi deitar lixo aos contentores que se encontram à face da estrada do prédio onde habitam. Sentada ali ao lado, encontrava-se uma senhora idosa, que lhe perguntou: – A menina é a esposa daquele moço que tem cancro por todo o corpo? – Sim – responde a Telma com algum desconforto, preparando-se para rapidamente lhe dar as boas tardes e voltar para o carro para o guardar na garagem. – Olhe, menina, não leve a mal, eu nem conheço o seu marido, mas vocês agora devem ter dificuldades. Eu tenho aqui dez euros. Não é muito, mas queria dar‑lhos. Quase não sabendo reagir àquele acto inesperado, a Telma aceitou o dinheiro e agradeceu. Confusa, voltou para o carro e contou ao Miguel o ocorrido. Este saiu do carro e dirigiu-se à senhora, que lhe foi apresentada pela Telma. Agradeceu e voltaram. Já em casa, a Telma comenta com o Miguel: – Lembras-te, Miguel? Há dias contámos o dinheiro para a renda da casa. Faltavam-nos vinte euros. Agora 48


só nos faltam dez! Devemos ir à casa da senhora e agradecer-lhe, levando-lhe qualquer coisa. Não sei é bem o quê. Um bolo não pode ser, pois ela é diabética. Olha, lembrei-me que tenho ali uns rissóis. Vamos os dois ao fundo da rua, a casa da filha? Ela disse que ia para lá! E foi assim que, com uma pequena embalagem de rissóis, se dirigiram à casa indicada. De facto, ali encontraram a senhora na companhia da filha. Mandaram-nos entrar e, surpresa das surpresas, não é que, à despedida, a filha pega em dez euros e lhos entrega? Com o coração cheio de reconhecimento a Deus, regressaram a casa. Agora já tinham o total para a prestação. Louvado seja Deus, que nunca desampara os Seus filhos! Longe, na nossa casa, pensando no modo como poderíamos minorar o seu sofrimento, mal nos apercebíamos dessas preocupações, que, afinal, se nos fossem colocadas, seriam de fácil resolução. Uma semana depois, estava a Telma no jardim quando ouviu chamar. Era a filha da mesma senhora que a contactara. A Telma encaminhou-se para a sua casa, onde se encontrava também a mãe e outra vizinha. Entre as três, tinham comprado alguns bens alimentares para eles. Junto com estes, entregaramlhe uma quantia em dinheiro que recolheram junto de alguns membros da sua família. Através delas, um amigo cujo filho se encontrava numa fase crítica de doença enviou também um envelope com uma boa oferta em dinheiro. Atónitos e até um pouco chocados, o Miguel e a Telma começam a ser ajudados à esquerda e à direita! Nunca se tinham queixado ou sentido até aí necessidade de apoios de terceiros, pois nós, seus irmãos e tios, 49


desde o início, estávamos a acompanhá-los para que pudessem fazer face às suas primeiras necessidades (consultas, medicamentos naturais, alguns vindos do estrangeiro, frutas e alimentos, roupas, etc.). Contaram-me o que se estava a passar e eu senti que Deus, uma vez mais, estava a transmitir ao Miguel que deveria continuar com todos os tratamentos naturais e alimentação especial e que Ele jamais os abandonaria. Finalmente, compreendi como seria difícil para nós acorrer a todas as solicitações e despesas que a situação ocasionava, mas que eram necessárias para que nada lhes faltasse. Uma vez mais, Deus estava ao leme! … Passou-se uma semana. Uma amiga da Telma e do Miguel estava a estender roupa quando passaram umas senhoras, que se identificaram como sendo da Assistência Social, e a abordaram. Perguntaram-lhe se queria oferecer algum dinheiro a um jovem que estava com um grave problema de saúde. Tinha um menino de dois anos e morava na rua dos Codessais. Andavam a fazer uma recolha de fundos para o ajudar. No Sábado seguinte, na Igreja, essa amiga abordou a Telma e perguntou-lhe se sabia algo acerca dessa recolha de fundos, ao que a Telma respondeu nada saber. Mesmo assim, ela entregou-lhe um cheque pessoal, para ajudar. Dias depois, e como resultado da tal recolha, são-lhes entregues mais bens alimentares, em especial para o Huguinho. Entretanto, alguém no Centro de Saúde, bem ao corrente da situação dramática que o casal vivia, perguntou à Telma se estavam com dificuldades económicas. Ela 50


respondeu que, graças a Deus e até à data, tanto a família como vizinhos e amigos os tinham estado a ajudar. – Eu sei disso – respondeu – e por essa razão tomei a liberdade de lhe tocar neste assunto. A partir desse dia, essa pessoa tomou a iniciativa de falar com uma Instituição Religiosa que dispôs uma quantia a ser gasta mensalmente em determinado estabelecimento, em favor do Miguel e da Telma. Uma vez ou outra, amigos do Norte e do Centro do país visitavam o lar da Telma e do Miguel e à saída deixavam-lhes alguma ajuda. As bênçãos recebidas pelo casal eram tantas que acabavam por minimizar os contratempos provocados pela quimioterapia, pois cada dia Deus manifestava a Sua presença e amor. Um dia, uma senhora desconhecida dirigiu-se à Telma e entregou-lhe uma certa quantia em dinheiro, dizendo: – Olhe, menina, desculpe isto estar assim tudo em moedas, mas foi recolhido entre várias pessoas amigas e cada um deu o que pôde. Pensámos em comprar-lhe carne, mas alguém se lembrou que vocês têm uma alimentação diferente. Por isso, aqui têm para comprar os alimentos que consomem em vossa casa. Dias mais tarde, o Miguel e a Telma dirigiram-se a casa dessa senhora para lhe agradecerem pessoalmente. No fim da visita, esta entregou-lhes mais algum dinheiro, que já posteriormente tinha recolhido porta a porta entre vizinhos, amigos e parentes. Durante alguns meses e quase diariamente, Deus tocava o coração, mesmo de desconhecidos, que contribuíam das mais diversas formas para a recuperação do Miguel. 51


Na varanda apareciam sacos de limões, laranjas, beterrabas, couves e outros produtos hortícolas tão necessários para os tratamentos e alimentação especial do Miguel. Também aí apareciam muitas vezes mercearias e sacos de fraldas para a criança. Entretanto, num funeral realizado na Lousã, uma pessoa conhecida teve conhecimento da situação e enviou um cheque através de uma pessoa amiga do casal. Esta, ao dar-lhe o cheque, entregou-lhe também da sua parte mais algum dinheiro. Passaram alguns dias. Uma das igrejas adventistas do Norte, à qual pertencem um dos meus filhos e nora, enviou-lhes um cheque. Logo de seguida, receberam outro, duma igreja mais ao Centro. Outra igreja, também da área Centro, visitou-os e levou-lhes bens alimentares. Numa Sexta-feira, passava das 23:30h, prestes a iniciar uma noite de repouso, toca o telemóvel do meu marido. Despertámos um tanto sobressaltados, sobretudo quando se apercebeu de que a chamada era da Telma. Do outro lado da linha, ouve-a, eufórica, a chorar e a rir simultaneamente, que diz: – Desculpem acordar-vos a esta hora, mas nem imaginam o que nos aconteceu! – Então?! Diz lá! – exclama o meu marido. – Eu estava lá dentro no quarto e o Miguel estava na cozinha com uma vizinha, a falarem sobre Deus. Nisto, ouviram ruídos perto da porta da entrada. Quando o Miguel abriu a porta, ficou estupefacto e chamou-me. Imaginem que, desde a entrada da porta do prédio até à entrada do nosso apartamento só se viam caixas e caixas de mercearia, leite de soja, fruta, fraldas, roupa e sapatos para o Hugo e até para mim havia produtos 52


íntimos! Não podíamos deixar de vos transmitir a novidade. Deus tem sido tão nosso amigo! – Realmente, louvado seja Deus, que não vos tem abandonado! Fomos acordados por uma boa causa e agora todos iremos dormir uma vez mais com a certeza da protecção divina. … Algum tempo depois, pelo correio, receberam dois envelopes, um dentro do outro. Em ambos havia dinheiro. Até hoje nunca conseguiram saber ao certo quem os enviou. Todos os meses, a primeira senhora aparecia, contribuindo sempre com maiores ou menores quantias. Entretanto, uns amigos da Telma, que vivem em Lisboa, conhecedores dos problemas do casal, convidaram-nos a passar alguns dias com eles em Lisboa a fim de visitarem o Jardim Zoológico e efectuarem uma visita ao Badoca Parque, no Alentejo. Todas as despesas seriam custeadas por eles e era uma forma de lhes proporcionarem uns momentos diferentes, que permitissem fazer uma pausa no ritmo stressante de vida que levavam. Para isto escolheram uma altura em que o Miguel deveria estar com melhor disposição. Nesta ocasião, ele já ia na sexta sessão de quimioterapia e o seu organismo estava muito debilitado. Além disso, em casa, o Miguel só parava quando as suas forças não lhe permitiam ocupar-se com alguma actividade. Durante os tratamentos e quando sentia alguma energia, foi pintando a casa, decorou uma das paredes da sala com um painel de madeira e até retocou a pintura do nosso carro. Agora, seria mais difícil gerir os tempos em que não podia ou não devia fazer esforços. E o seu organismo, já debilitado, começou a ressentir­‑se. A boca encheu-se 53


de úlceras e tudo o cansava, transpirando muito. Já visitei o Jardim Zoológico e o Badoca Parque e – aparte a bondade da oferta dos seus amigos, pela qual expressamos a nossa gratidão – posso calcular quão difícil foi para o Miguel passar esses dias. Digo-vos sinceramente que só com a força que lhe foi dada pelo poder de Deus ele o fez. O certo é que conseguiu. Agradecemos aos amigos este gesto de solidariedade e ao Pai do Céu, que durante esses dias nunca o desamparou. Logo a seguir veio a sétima sessão de quimioterapia. Estávamos com muito receio de que, com todas essas avarias, o seu organismo se ressentisse de tal forma que provocasse alterações a nível sanguíneo ou outro, e assim não pudesse efectuar essa sessão. Esperei ansiosa a chamada da Telma, que me daria a conhecer os valores das análises e o início da sessão. Desde o princípio, antes de cada sessão, era feita essa comunicação entre nós, a minha mãe e os outros filhos e noras, para nessa ocasião iniciarmos uma corrente de oração como pedido de intercessão junto do nosso bom Deus, que só era interrompida quando, passadas umas horas, recebíamos a notícia de que o tratamento tinha terminado. Assim, quando o telemóvel tocou e a Telma me disse que tudo estava bem e que o Miguel se dirigia para a sala de tratamento, dei graças a Deus pelo Seu amor, compreensão e misericórdia. No decorrer da sexta consulta, tinham dito ao Miguel que a seguir às oito sessões previstas ele não poderia fazer de imediato o transplante de medula, porque o seu organismo não resistiria. Assim, a equipa médica tinha previsto um novo tratamento, surgido recentemente, ministrado através de quimioterapia oral. Isto, claro está, se ele concordasse, pois em Portugal seria 54


ele o primeiro a experimentá-lo. Nem os próprios médicos estavam ainda bem familiarizados com o processo. Se ele aceitasse, entregar-lhe-iam um dossier com os procedimentos, prós e contras, efeitos secundários, etc.. Teria de lê-lo e assinar o termo de responsabilidade. Assim sendo, após a oitava sessão, iniciaria o novo tratamento, que teria a duração de dois anos, seguindo-se então o transplante de medula. Continuaria a fazer exames regulares e consultas periódicas. Se os tumores desaparecessem entretanto, tudo bem, este procedimento continuaria até ao transplante. Se, contudo, não desaparecessem ou fossem reaparecendo após algum tempo, este tratamento cessaria de imediato, reiniciando nova série de oito sessões semelhantes às iniciais, a que se seguiria de imediato o transplante e… seria o que Deus quisesse.

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Meu Deus…

Quando chegaste em dia de alegria À minha casa onde há paz e amor, Eu partilhei o pão de cada dia Contigo, à minha mesa, meu Senhor. Mas, de repente, toda essa harmonia Num ápice ruiu e ao meu redor O bem e o mal brincaram à porfia E tudo se transforma em grande dor. E em oração me achego a ti, meu Deus; Pedidos mil sobem para os Céus De amigos sem ter fim, num só clamor! E, em tua meiga voz, disseste: Amigos, Ó! Vinde a Mim, cansados e oprimidos E Eu vos livrarei de toda a dor! JS

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Salvo por Milagre Porque os Meus pensamentos

não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos os

Meus caminhos, diz o SENHOR.

Isaías 55:8

Devo confessar-vos que, desde o início de todo este processo, me recusei sempre a aceitar a ideia de que o meu filho teria que se sujeitar a um transplante de medula. Embora sejam feitos aos milhares com sucesso, ocorreram com dois amigos nossos experiências que não desejávamos para o Miguel. Assim, de certa forma, ao saber que o transplante só se realizaria daí a dois anos, respirei de alívio e pensei: “Deus tem, passo a passo, realizado milagres na vida do Miguel. Por isso, no fim de tudo isto, poderá usar uma vez mais de misericórdia e poupá-lo ao transplante. Até lá, a luta continua, um dia de cada vez, lado a lado com Ele.” Chegámos ao dia três de Julho, oitava e última sessão desta série de quimioterapia. Curiosamente, neste dia os computadores encontravam-se avariados, as consultas atrasaram-se imenso e, em consequência de tudo isto, quando o Miguel foi para as máquinas, já era bastante tarde, tendo-lhe sido ministrado apenas parte do tratamento. Agora, teríamos que esperar um mês para que lhe fosse efectuada a PET e mais uma série de 57


análises. Só depois do resultado destes exames a equipa médica decidiria quais seriam, de facto, os métodos a utilizar no futuro. Chegou finalmente o tão ansiado dia e, após a PET ser efectuada, soubemos por portas e travessas que nos exames não se notavam vestígios de quaisquer tumores. – Meu Deus, que alegria, que felicidade! E a medula, como estará? Esperámos até ao dia oito de Agosto. Nessa manhã, a consulta foi completamente diferente. A médica olhou para a PET e confirmou o que nos tinham dito. O Miguel estava limpo dos tumores. Ao verificar as análises, um sorriso apareceu no seu rosto: – Miguel, a sua medula está a regenerar-se por ela própria! – E agora, senhora doutora, quando começamos com o novo tratamento? – Tratamento novo? Não, Miguel, a equipa vai ter de reavaliar a situação. A equipa vai reunir-se novamente, pois o que era, já não é… Volte no dia vinte e dois deste mês, por favor… e então conversaremos novamente. – Ah!, mas não saia ainda. Faça o favor de se dirigir à Sala de Tratamento, a fim de lhe ser aplicada a parte da oitava sessão que não lhe foi ministrada na sessão anterior, para respeitarmos o protocolo que assinámos. Que ironia! Recostado agora naquela cadeira que lhe trazia tantos temores e más recordações, ligado às máquinas, o Miguel sorria e, como que embalado por Deus, adormeceu. … 58


No dia vinte e dois de Agosto, o Miguel compareceu perante a equipa médica que, com satisfação, lhe comunica que ele está limpo. – E quando é que faço o transplante? – Que transplante? Miguel, você é um homem de sorte! Você está limpo, parece impossível, mas é verdade! Vamos dar-lhe alta. Agora irá passar apenas a consultas periódicas para controlo. Na verdade, o impossível para o ser humano é possível a Deus, e, uma vez mais, Ele provou o Seu imenso amor para connosco, ao agir de forma tão inequívoca na vida do nosso filho. Jamais me passou pela cabeça que Deus efectuasse de forma tão rápida o milagre final que ansiosamente esperávamos. Mas é verdade: o tempo de Deus não é o mesmo do homem! A Sua misericórdia é infinita e poupou-nos a mais e maiores sofrimentos. Por mais anos que vivermos, recordaremos sempre esta experiência maravilhosa. Deus é amor. Desejo deixar aqui o nosso bem-haja a todos os que, pelos mais diversos meios, tornaram esta experiência menos dolorosa e permitiram que o Miguel tivesse a cada momento a alimentação e medicação natural necessárias. A Deus, jamais terei palavras para demonstrar a minha gratidão, por mais que diga e por mais longa que seja a minha vida.

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Perante Ti! Curvo-me, pois, ó Pai, perante Ti E aceita, Senhor, o meu louvor. Deste-me tudo e bem mais do que pedi, Tu, ó Deus, és misericórdia, és Amor. AMS

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Notas Finais

Depois de todo este pesadelo, surgiram algumas sequelas da quimioterapia. Três meses após a cessação da sua aplicação, ainda causava efeitos nefastos e assim, por algum tempo, a garganta do Miguel ficou com algumas úlceras que, com tratamento adequado, acabaram por desaparecer. A partir da sexta sessão, também se manifestaram algumas alterações na tiróide e a médica chegou mesmo a colocar a hipótese do Miguel ter de tomar medicação para o resto da vida. Porém, ao fim de seis meses, já livre da quimioterapia e após novas análises, verificou-se que Deus achou por bem não deixar quaisquer vestígios nem da doença nem da quimioterapia. Nas últimas análises de controlo, a médica salientou que quem as observasse e não soubesse o que o Miguel tinha tido jamais diria que tinha passado o que passou. Assim, entregou-lhas, para que as guardasse como recordação e juntasse a outras do tempo em que tinha feito medicação. Uma vez mais, o amor de Deus superava todas as nossas expectativas. Desde os finais de Setembro de 2007, o Miguel retomou as suas habituais descidas de bicicleta pela serra. De Outubro a Dezembro conseguiu concluir o nono ano de escolaridade, através do programa Novas Oportunidades. Regressou ao trabalho em Fevereiro de 2008, ou seja, depois de um ano e um mês de baixa. Aos poucos, o Miguel tem retomado outras activida61


des desportivas: Espeleologia, Canoagem, Rappel, etc. Pela graça de Deus, exactamente um ano após tudo ter começado, pudemos, uma vez mais, tirar esta fotografia em conjunto, imagem de uma família que reencontrara a sua felicidade. Obrigada, meu Deus.

No dia 5 de Janeiro de 2008, na Igreja Adventista de Vila do Conde, o Miguel e a família apresentaram um programa de agradecimento e testemunho, com a presença de muitos dos que os acompanharam neste percurso. Foi uma forma simples de louvar a Deus pelas Suas bênçãos, nesta experiência com momentos de incerteza, mas também de alegria e gratidão.

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Início da quimioterapia – Miguel 'despede-se' da serra com os irmãos

Miguel e Telma depois de tudo passado

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P

orque é que Deus permite que o Sofrimento exista? Aqui temos, em poucas páginas, um estudo aprofundado sobre o Mal e o Sofrimento nas suas diferentes dimensões. Com a ajuda de numerosos exemplos bíblicos, O Enigma do Sofrimento pretende mostrar que o amor e a justiça de Deus não estão em causa neste problema. Corajosamente, este livro levanta questões verdadeiras e insiste no papel da Divindade nos nossos sofrimentos. Ele ajuda-nos a dar-lhes um sentido, para melhor os suportarmos, esperando que Deus seja “tudo em todos”.

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