Carlos Drummond de Andrade
Rubem Braga
Fernando Sabino
Paulo Mendes Campos
Ruy Castro
Stanislaw Ponte Preta
Assalto.................................................................................................... 6 Automóvel: Sociedade Anônima.......................................................... 17 Como Ser Brasileiro em Portugal (Sem Dar Muito Na Vista)........... 29 Condôminos.......................................................................................... 12 Da Utilidade Dos Animais..................................................................... 9 Eloquência Singular............................................................................. 34 História de Um Nome.......................................................................... 20 Macacos Me Mordam........................................................................... 23 O Telefone............................................................................................ 31 Recalcitrante........................................................................................ 26 Salvo Pelo Flamengo.............................................................................. 3
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SELEÇÃO DE CRÔNICAS
Paulo Mendes Campos
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esde garotinho que não sou flamengo, mas tenho pelo clube da Gávea uma dívida séria, que torno pública neste escrito. Em 1956, passei uma semana em Estocolmo, hospedado em um hotel chamado Aston. Era primavera, pelo menos teoricamente, havia um congresso internacional na cidade, os hotéis estavam lotados, criando contratempos para turistas do interior ou estrangeiros. A recepção do Aston, por exemplo, vivia sempre cheia de gente implorando por um quarto ou discutindo a respeito de uma reserva feita por telegrama ou telefone. Estava há dois ou três dias na cidade, quando me pediram para receber um brasileiro e encaminhálo ao hotel, onde lhe fora reservado de fato um apartamento. Era uma hora da madrugada quando entramos no hotel e me encaminhei até o empregado do balcão, dando-lhe o nome do meu amigo e lembrandolhe a reserva. O funcionário, homem
de uns sessenta anos e de uma honesta cara escandinava, tomou uma atitude estranha e difusa, que a princípio me surpreendeu e ia acabando por me indignar: ele não confirmava a existência da reserva, nem deixava de confirmar. Como começasse a protestar, vi que seu rosto tomava uma expressão aflita; eu entendendo cada vez menos. Quando passei a exigir o apartamento com alguma energia, o homem, trêmulo, nervoso, pediu-me desculpas e trouxe afinal a ficha de identificação. Foi aí que vi levantar-se da penumbra de uma saleta contígua o gigante. Se o leitor conhece um homem forte, mas muito forte mesmo, imagine uma pessoa duas vezes mais forte, e terá uma vaga idéia desse gigante que veio andando até nós, botando ódio pelos olhos e espetacularmente bêbado. O monstro passou por mim com desprezo e, agarrando o empre-
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gado pela gola do uniforme, entrou a sacudi-lo e insultá-lo em sueco. Às vezes, éramos arrolados nessa invectiva, pois o gigante nos apontava enquanto dizia coisas. O empregado, demonstrando possuir um bom instinto de conservação, deixava-se sacolejar à vontade. Rosnando assustadoramente, o ciclope foi sentar-se de novo na saleta, onde só então dei pela presença de outro sujeito, também bêbado, mas sinistramente silencioso. É hoje, pensei. Sair do meu Brasilzinho tão bom, fazer uma viagem imensa, para ser trucidado sem explicação por um bêbado. O fato de ser na Suécia, onde arbitrários atos de violência não são comuns, ainda tornava mais absurdo, um absurdo existencialista, o meu triste fim. Indaguei do empregado o que se passava. Ficou mudo. Insisti na pergunta, e ele, sussurrando desamparadamente, explicou-me que o gigante estava a pensar: primeiro, que não conseguira vaga no hotel por ser sueco e estar embriagado; segundo, que nós conseguíramos por ser americanos, norte-americanos. Ora, se meu amigo de fato era meio ruivo, seu jeitão era mineiro; quanto a mim, se fosse americano, só poderia ser filho de portugueses. Por outro lado, o meu
inglês amarrado não deixava a menor dúvida sobre a questão de ser ou não ser americano. Só mesmo um sueco bêbado em uma madrugada de neve e vento iria supor que fôssemos americanos. Mas agora era o próprio gigante que bradava para nós com sarcasmo e ira: — American! American! Fiquei um pouco mais esperançoso, acreditando que ele falasse inglês, e disse-lhe, exagerando minha alegria e meu orgulho por isso, que não éramos americanos coisa nenhuma, éramos brasileiros. Não entendeu ou talvez pensou que estivéssemos covardemente a renegar a nossa pátria, voltando a vociferar, em um esforço lingüístico que contraía todos os músculos de seu rosto: — American! Dollar! No like! As palavras em si significavam pouco, mas a maneira de exprimi-las era de uma eloqüência que teria destruído Catilina muito mais depressa que os discursos de Cícero. Durante alguns minutos mantivemos os dois uma polêmica oratória nestes termos:
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— American! — No, brazilian! — American! — Brazilian!
Essa versátil discussão ia levarme ao abismo, quando de súbito me pareceu que a palavra "brazilian" havia penetrado por fim em sua testa granítica. Descontraindo os músculos, o gigante me perguntou: — Brazil?! No american? Brazil? Não tinha certeza se ele estava me gozando, mas sua expressão era tão estranhamente deslumbrada e infantil, que afirmei cheio de entusiasmo: — Yes, Brazil! Ele se levantou, cambaleou, aproximou-se, apontou meu amigo: — Brazil? — Brazil, Brazil. Veio chegando, sorrindo, em pleno estado de graça, e gritou com alma, como se saudasse o nascimento de um mundo novo: — Flamengo!! Flamengo!! Imediatamente, o gigante entrou em transe e começou a fazer problemáticas firulas com uma bola imaginária, mas dando a entender cabalmente o quanto ele admirava (admirava é pouco: o quanto ele amava) o malabarismo dos nossos jogadores. O gigante se desencantara, virando menino. A certa altura, depois de fazer um passe de letra, parou e confessou-me com um orgulho caloroso: — I Flamengo! I Rubens!
Ele não era sueco, não era gigante, não era bêbado, não era um ex-campeão de hóquei (conforme soube depois), era Flamengo, era Rubens. Depois cutucou-me o peito, tomado de perigosa dúvida: — You! Flamengo? Que o Botafogo me perdoe, mas era um caso de vida ou de morte, e também gritei descaradamente: — Flamengo! Yes! Flamengo! The Greatest one!
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Carlos Drummond de Andrade
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a feira, a gorda senhora protestou a altos brados contra o preço do chuchu:
— Isto é um assalto!
Houve um rebuliço. Os que estavam perto fugiram. Alguém, correndo, foi chamar o guarda. Um minuto depois, a rua inteira, atravancada, mas provida de admirável serviço de comunicação espontânea, sabia que se estava perpetrando um assalto ao banco. Mas que banco? Havia banco naquela rua? Evidente que sim, pois do contrário como poderia ser assaltado? — Um assalto! Um assalto! — a senhora continuava a exclamar, e quem não tinha escutado escutou, multiplicando a notícia. Aquela voz subindo do mar de barracas e legumes era como a própria sirena policial, documentando, por seu uivo, a ocorrência grave, que fatalmente se estaria consumando ali, na claridade do dia, sem que ninguém pudesse evitá-la.
Moleques de carrinho corriam em todas as direções, atropelandose uns aos outros. Queriam salvar as mercadorias que transportavam. Não era o instinto de propriedade que os impelia. Sentiam-se responsáveis pelo transporte. E no atropelo da fuga, pacotes rasgavam-se, melancias rolavam, tomates esborrachavamse no asfalto. Se a fruta cai no chão, já não é de ninguém; é de qualquer um, inclusive do transportador. Em ocasiões de assalto, quem é que vai reclamar uma penca de bananas meio amassadas? — Olha o assalto! Tem um assalto ali adiante! O ônibus na rua transversal parou para assuntar. Passageiros ergueram-se, puseram o nariz para fora. Não se via nada. O motorista desceu, desceu o trocador, um passageiro advertiu: — No que você vai a fim de ver o assalto, eles assaltam sua caixa.
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Ele nem escutou. Então os passageiros também acharam de bom alvitre abandonar o veículo, na ânsia de saber, que vem movendo o homem, desde a idade da pedra até a idade do módulo lunar.
Barracas derrubadas assinalavam o ímpeto da convulsão coletiva.
— A loura assalta em São Paulo. Aqui é a morena.
Era preciso abrir caminho a todo custo. No rumo do assalto, para ver, e no rumo contrário, para escapar. Os grupos divergentes chocavam-se, e às vezes trocavam de direção: quem fugia dava marcha a ré, quem queria espiar era arrastado pela massa oposta. Os edifícios de apartamentos tinham fechado suas portas, logo que o primeiro foi invadido por pessoas que pretendiam, ao mesmo tempo, salvar o pêlo e contemplar lá de cima.
— Uma gorda. Está de metralhadora. Eu vi.
Janelas e balcões apinhados de moradores, que gritavam:
— Minha Nossa Senhora, o mundo está virado!
— Pega! Pega! Correu pra lá!
— Vai ver que está caçando é marido.
— Eles entraram na kombi ali adiante!
— Não brinca numa hora dessas. Olha aí sangue escorrendo!
— É um mascarado! Não, são dois mascarados!
Outros ônibus pararam, a rua entupiu. — Melhor. Todas as ruas estão bloqueadas. Assim eles não podem dar no pé. — É uma mulher que chefia o bando! — Já sei. A tal dondoca loura.
— Sangue nada, tomate. Na confusão, circularam notícias diversas. O assalto foi a a uma joalheria, as vitrinas tinham sido esmigalhadas a bala. E havia jóias pelo chão, braceletes, relógios. O que os bandidos não levaram, na pressa, era agora objeto de saque popular. Morreram no mínimo duas pessoas, e três estavam gravemente feridas.
— Olha ela ali!
Ouviu-se nitidamente o pipocar de uma metralhadora, a pequena distância. Foi um deitar-no-chão geral, e como não havia espaço, uns caíam por cima de outros. Cessou o ruído. Voltou. Que assalto era esse, dilatado no tempo, repetido, confuso? — Olha o diabo daquele escurinho tocando matraca! E a gente
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com dor-de-barriga, pensando que era metralhadora! Caíram em cima do garoto, que soverteu na multidão. A senhora gorda apareceu, muito vermelha, protestando sempre: — É um assalto! Chuchu por aquele preço é um verdadeiro assalto! ==========================
Glossário Perpetrar = Cometer, praticar (ato mau). Alvitre = Lembrança, sugestão, parecer. Dondoca = Mulher de boa posição social, ociosa e fútil. Convulsão = Agitação violenta. Cataclismo. Espasmo muscular. Apinhado = Completamente cheio. Amontoado. Aglomerado. Matraca = Instrumento de percussão que produz estalos secos usado liturgicamente na Semana Santa. Pessoa tagarela. Soverter = Sumir-se.
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Carlos Drummond de Andrade
T
erceiro dia de aula. A professora é um amor. Na sala, estampas coloridas mostram animais de todos os feitios. É preciso querer bem a eles, diz a professora, com um sorriso que envolve toda a fauna, protegendo-a. Eles têm direito à vida, como nós, e além disso são muito úteis. Quem não sabe que o cachorro é o maior amigo da gente? Cachorro faz muita falta. Mas não é só ele não. A galinha, o peixe, a vaca… Todos ajudam. — Aquele cabeludo ali, professora, também ajuda? — Aquele? É o iaque, um boi da Ásia Central. Aquele serve de montaria e de burro de carga. Do pêlo se fazem perucas bacaninhas. E a carne, dizem que é gostosa. — Mas se serve de montaria, como é que a gente vai comer ele? — Bem, primeiro serve para uma coisa, depois para outra. Vamos adiante. Este é o texugo. Se vocês
quiserem pintar a parede do quarto, escolham pincel de texugo. Parece que é ótimo. — Ele faz pincel, professora? — Quem, o texugo? Não, só fornece o pêlo. Para pincel de barba também, que o Arturzinho vai usar quando crescer. Arturzinho objetou que pretende usar barbeador elétrico. Além do mais, não gostaria de pelar o texugo, uma vez que devemos gostar dele, mas a professora já explicava a utilidade do canguru: — Bolsas, malas, maletas, tudo isso o couro do canguru dá pra gente. Não falando na carne. Canguru é utilíssimo. — Vivo, fessora? — A vicunha, que vocês estão vendo aí, produz… produz é maneira de dizer, ela fornece, ou por outra, com o pêlo dela nós
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preparamos ponchos, mantas, cobertores, etc. — Depois a gente come a vicunha, né, fessora? — Daniel, não é preciso comer todos os animais. Basta retirar a lã da vicunha, que torna a crescer… — E a gente torna a cortar? Ela não tem sossego, tadinha. — Vejam agora como a zebra é camarada. Trabalha no circo, e seu couro listrado serve para forro de cadeira, de almofada e para tapete. Também se aproveita a carne, sabem? — A carne também é listrada? — pergunta que desencadeia riso geral. — Não riam da Betty, ela é uma garota que quer saber direito as coisas. Querida, eu nunca vi carne de zebra no açougue, mas posso garantir que não é listrada. Se fosse, não deixaria de ser comestível por causa disto. Ah, o pinguim? Este vocês já conhecem da praia do Leblon, onde costuma aparecer, trazido pela correnteza. Pensam que só serve para brincar? Estão enganados. Vocês devem respeitar o bichinho. O excremento — não sabem o que é? O cocô do pinguim é um adubo maravilhoso: guano, rico em nitrato. O óleo feito com a gordura do pinguim… — A senhora disse que a gente deve respeitar.
— Claro. Mas o óleo é bom. — Do javali, professora, duvido que a gente lucre alguma coisa. — Pois lucra. O pêlo dá escova de ótima qualidade. — E o castor? — Pois quando voltar a moda do chapéu para homens, o castor vai prestar muito serviço. Aliás, já presta, com a pele usada para agasalhos. É o que se pode chamar um bom exemplo. — Eu, hem? — Dos chifres do rinoceronte, Belá, você pode encomendar um vaso raro para o living de sua casa. Do couro da girafa, Luís Gabriel pode tirar um escudo de verdade, deixando os pêlos da cauda para Teresa fazer um bracelete genial. A tartaruga-marinha, meu Deus, é de uma utilidade que vocês não calculam. Comem-se os ovos e toma-se a sopa: uma de-lí-cia. O casco serve para fabricar pentes, cigarreiras, tanta coisa… O biguá é engraçado. — Engraçado, como? — Apanha peixe pra gente. — Apanha e entrega, professora? — Não é bem assim. Você bota um anel no pescoço dele, e o biguá pega o peixe mas não pode engolir. Então você tira o peixe da goela do biguá.
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— Bobo que ele é. — Não. É útil. Ai de nós se não fossem os animais que nos ajudam de todas as maneiras. Por isso que eu digo: devemos amar os animais, e não maltratá-los de jeito nenhum. Entendeu, Ricardo? — Entendi. A gente deve amar, respeitar, pelar e comer os animais, e aproveitar bem o pêlo, o couro e os ossos. =======================
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Fernando Sabino
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porta estava aberta. Foi só eu surgir e arriscar uma espiada para a sala, o dono da casa saltou da mesa para receberme: — Vamos entrar, vamos entrar. Estávamos à espera do senhor para começarmos a reunião: o senhor não é o 301? Não, eu não era o 301. Meu amigo, que morava no 301, tivera de fazer repentinamente uma viagem, pedira-me que o representasse. O homem estendeu-me a mão, num gesto decidido: — Pois então muito prazer. Disse que se chamava Milanês e recebeu com um sorriso à milanesa a minha escusa pelo atraso. Desconfiei desde logo que fosse meio surdo — só mais tarde vim a descobrir que seu ar de quem já entendeu tudo antes que a gente fale não era surdez, era burrice mesmo. Conduziu-me ao interior do apartamento onde várias pessoas,
umas onze ou doze, já estavam reunidas ao redor da mesa. À minha entrada, todos levantaram a cabeça, como galinhas junto ao bebedouro. O apartamento era luxuosamente mobiliado, atapetado, aveludado, florido e enfeitado, nesta exuberância de mau gosto a que se convencionou chamar de decoração. O Milanês fez as apresentações: — Aqui é o Dr. Matoso, do 302. Quando precisar de um médico… Ali o Capitão Barata, do 304 — representante das gloriosas Forças Armadas. Dona Georgina e Dona Mirtes, irmãs, não se sabe qual mais gentil, moram no 102. Aquele é o Dr. Lupiscino, do 201, nosso futuro síndico… Suas palavras eram recebidas com risadinhas chocas, a indicar que vinha repetindo as mesmas graças a cada um que chegava. Cumprimentei o médico, um sujeito com cara mesmo de Matoso, o capitão com seu bigodinho ainda
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de tenente, as duas velhas de preto, não se sabia qual mais feia, o futuro síndico, os demais. O dono da casa recolheu a barriga e as idéias, sentando-se empertigado à cabeceira. Busquei o único lugar vago do outro lado e acomodei-me. A mulher do Milanês passou-me um copo de refresco de maracujá — só então percebi que todos bebericavam refresco em pequenos goles, aquilo parecia fazer parte do ritual, convinha imitá-los. Um dos presentes, solene, papel na mão, aguardava que se restabelecesse a ordem para prosseguir. — Desculpem a interrupção — gaguejei. — Podem continuar. Não havíamos começado ainda — escusou-se o Milanês, todo simpaticão. — Estávamos apenas trocando ideias. — Se o senhor quiser, recomeçamos tudo — emendou a Milanesa, mais prática. — Ali o nosso Jorge, do 203, dizia que precisávamos… — Perdão, quem dizia era o Dr. Lupiscino — e o nosso Jorge do 203, um rapaz roliço como uma salsicha de óculos, passou para o extrema. A esta altura interveio o capitão, chutando em gol: — Pode prosseguir a leitura. Alguém a meu lado explicou:
— O Dr. Lupiscino fez um esboço de regulamento. O senhor sabe, um regulamento sempre é necessário… O Dr. Lupiscino pigarreou e leu em voz alta: — Quinto: é vedado aos moradores… Espere — voltou-se para mim: — O senhor quer que leia os quatro primeiros? — Não é preciso — interveio o Milanês: — Os quatro primeiros servem apenas para introduzir o quinto. Vamos lá. — Quinto: é vedado aos moradores guardar nos apartamentos explosivos de qualquer espécie… O capitão se inclinou, interessado: — É isso que eu dizia. Este artigo não está certo: suponhamos que eu, como oficial do exército, traga um dia para casa uma dinamite… — O senhor vai ter dinamites em casa, capitão? — espantou-se uma das velhas, a Dona Mirtes. — Não, não vou ter. Mas posso um dia cismar de trazer… — Um perigo, capitão! — Meu Deus, as crianças — e uma senhora gorda na ponta da mesa levou a mão à peitaria.
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— Pois é o que eu digo: um perigo — tornou o capitão. — Devíamos proibir. — Pois então? Ninguém entendia o que o capitão queria dizer. Ele voltou à carga: — E imagine se um dia a dinamite explode, mata todo mundo! Não, é preciso deixar bem claro no regulamento: “NÃO é vedado ter em casa explosivos de qualquer espécie…” — NÃO é vedado? Quer dizer que pode ter? — desafiou o autor do regulamento, já meio irritado. — Quer dizer que não pode ter explosivos — respondeu o capitão, quase a explodir. O capitão não sabia o que queria dizer a palavra vedado — e dali não passariam nunca se o Jorge, do 203, não tivesse levantado a lebre: — Vedado é proibido, capitão. Vedado explosivo: proibido explosivo. — Vedado proibido? Confundia-se, mas não dava o braço a torcer: — Eu sei, mas acho que devíamos deixar mais claro que é proibido. Isto de explosivo é perigoso, vedado só é pouco, se vamos proibir, é preciso a palavra NÃO. Para dar mais ênfase, compreendem? NÃO é vedado…
— Continue — ordenou o Milanês. O capitão vedado pela própria ignorância, calou o bico. O Dr. Lupiscino continuou a leitura e em pouco já ninguém estava prestando atenção: todos concordavam com a cabeça ao fim de cada artigo, quando o homem corria os olhos pela sala, para recolher aprovação. O Milanês, a certa altura, sugeriu que interrompessem o regulamento em favor da eleição do síndico — já se fazia tarde e dali haveria de sair um síndico naquela noite. A Milanesa aproveitou para ir lá dentro buscar mais refresco. — Sugiro que aclamemos o nome do Dr. Lupiscino para síndico — disse uma das velhas, desta vez a Dona Georgina. Todos aprovaram, menos o Milanês que, pelo jeito, queria ser síndico também. — Estamos numa democracia — falou, tentando o engraçadinho: — E sem desfazer os méritos ali do nosso preclaro Dr. Lupiscino, acho que devemos lançar mão da mais importante das instituições democráticas: o voto secreto. — Não precisa ser secreto — sorriu o Lupiscino, certo da vitória: — Somos poucos, todos conhecidos, quase uma família…
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— Que acha o 301? — perguntoume o Milanês, tentando conquistar o meu voto. Eu, porém, incorruptível, votaria no Lupiscino — a menos que a dona da casa, até o momento da eleição, se lembrasse de servir-me alguma coisa além de refresco de maracujá. Disse que preferia não intervir, já que apenas representava um dos proprietários.
Mirtes. — Pois então seu ralo deve estar entupido: está pingando água no banheiro da gente. A outra velha confirmou silenciosamente com a cabeça a acusação terrível. Enquanto isso o Milanês providenciava a votação: cortou lenta e caprichosamente uma folha de papel em doze pedaços, distribuiu-os a cada um de nós: — E a urna? Onde está a urna?
— O senhor não é condômino? — estranhou a bem nutrida senhora da ponta da mesa. — Então quem é que está em cima de mim? Eu sou 202.
— Faço muito barulho, minha senhora?
A urna seria um horrendo vaso de alabastro. Nos solenizamos ao redor da mesa, exercendo o sagrado direito de voto. Procedeuse à apuração e o vencedor foi mesmo o Dr. Lupiscino, do 201, por esmagadora maioria: o Milanês ganhou apenas um voto, o seu próprio, naturalmente. E a Milanesa? Eu também, 301, ganhei um voto — mas não foi dela, desconfio que foi da senhora do 202, a do ralo entupido, que me proporcionava olhares à socapa. Felicitei o novo síndico, escusei-me e caí fora: ameçavam retornar ao regulamento, e o capitão dizia:
— Absolutamente — protestou ela, levando de novo a mão ao peito. — Mal ouço o senhor à noite descalçando os sapatos e botando os chinelos…
— Por “áreas comuns” entendase: escada, corredores, vestíbulo, entrada de serviço, garagem. E elevador, que é próprio, mas também não deixa de ser comum…
— A senhora é 202? — perguntou uma das velhas, novamente a Dona
À saída notei, de passagem, que o edifício não tinha elevador.
Expliquei-lhe que não era condômino — esta palavra era uma das razões pelas quais até então não tivera coragem de comprar um apartamento. — Estou representando o 301. Em cima da senhora deve estar ali o Dr. Matoso, que, se ouvi bem, é 302. Dr. Matoso sorriu amável, concordando:
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Glossário Empertigado = Aprumado, endireitado. Preclaro = Ilustre, famoso. Alabastro = Variedade muito branca e translúcida de gipsita (elemento mineral). Socapa = 1.disfarce, fantasia. 2.manha, astúcia.
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AUTOMÓVEL: SOCIEDADE ANÔNIMA Paulo Mendes Campos
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e você quiser, compre um carro; é um conforto admirável. Mas não o faça sem conhecimento de causa, a fim de evitar desilusões futuras. Saiba que está praticando um gesto essencialmente econômico; não para a sua economia, mas para a economia coletiva. Isso quer dizer que, do ponto de vista comunitário, o automóvel que você adquire não é um ponto de chegada, uma conquista final em sua vida, mas, pelo contrário, um ponto de partida para os outros. Desde que o compre, o carro passa a interessar aos outros, muito mais que a você mesmo. Com o carro, você está ampliando seriamente a economia de milhares de pessoas. É uma espécie de indústria às avessas, na qual você monta um engenho não para obter lucros, mas para distribuir seu dinheiro para toda a classe de pessoas: industriais europeus, biliardários do Texas, empresários brasileiros, comerciantes, operários
especializados, proletários, vagabundos, etc. Já na compra do carro, você contribui para uma infinidade de setores produtivos, que podemos encolher ao máximo nos seguintes itens: a indústria automobilística propriamente dita, localizada no Brasil, mas sem qualquer inibição no que toca à remessa de lucros para o exterior; os vendedores de automóveis; a siderurgia; a petroquímica; as fábricas de pneus e as de artefatos de borracha; as fábricas de plásticos, couros, tintas, etc.; as fábricas de rolamentos e outras autopeças; as fábricas de relógios, rádios, etc.; as indústrias de petróleo e muitos de seus derivados; as refinarias; os distribuidores de gasolina, as oficinas mecânicas; as lojas distribuidoras de autopeças; o Estado (através do tributo). Você já pode ir vendo a gravidade do seu gesto: ao comprar um carro, você entrou na órbita de toda essa gente, até ontem, você
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estava fora do alcance deles; hoje, seu transporte passou a ser, do ponto de vista econômico, simplesmente transcendental. Você é um homem economicamente importante — para os outros. Seu automóvel é de fato uma sociedade anônima, da qual todos lucram, menos você. Mas não fica nisso; você estará ainda girando numa constelação menor, miúda mas nada desprezível: a dos recauchutadores, eletricistas, garagistas, lavadores, olheiros, guardas de trânsito, mecânicos de esquina. Você pode ainda querer um motorista ou participar de alguma das várias modalidades de seguros para automóveis. Em outros termos, você continua entrando pelo cano. No fim deste, há ainda uma outra classe: a dos ladrões, seja organizada em sindicatos, seja a espécie de francopuxadores. As perspectivas de suas relações com os diversos setores supracitados são as seguintes: você pode ter sorte com o carro adquirido, mas pode também ter azar; as oficinas mecânicas, boas ou más, sempre lhe arrancarão um máximo de tutu com um mínimo de esforço; as fábricas de autopeças exploram os vendedores, os vendedores apelam para você; nos postos de gasolina, a lubrificação de seu carro pode ser
malfeita, o óleo pode não ser trocado, e na própria gasolina você pode ser lesado; uma oficina também pode causar a seu motor um dano irremediável ou trocar uma peça boa por uma peça ruim; o recauchutador pode dizer-lhe que seus pneus não prestam mais, a fim de vender-lhe pneus novos, e recauchutar os velhos para vendêlos a terceiros; o garagista e o mecânico poderão de vez em quando dar uma voltinha no seu carro, estando você de sorte se a batida que ele der for de pouca monta; o mecânico de esquina, muitas vezes indispensável, é prejuízo certo; o lavador jamais cumpre o trato de fazer o trabalho todos os dias; o guardador, se não for muito bem gorjeteado, reserva para você as piores vagas e manobra com o seu carro como se fosse um tanque de guerra; se você tem motorista, considere-se não o proprietário, mas o sócio dum automóvel: são os motoristas os melhores filhos, sobrinhos, netos, pais, tios e primos do Brasil, estando a todo momento precisando de visitar esses parentes enfermos; o guarda de trânsito, se é honesto, capricha na multa; caso contrário, capricha na facada; as companhias de seguro são ficções: no momento em que você bateu, ou foi batido por um motorista que tenha seguro
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contra terceiros, há de aprender dolorosamente que o valor dos contratos dessa natureza é muito relativo. Uma choldra para dizer tudo. Restam ainda os ladrões ou os outros ladrões: arrombam-lhe o carro, carregam pneus sobressalentes, espelhos, ferramentas, calotas, aros, rádio, antena, objetos deixados no porta-luvas e, pior que tudo, os documentos. Às vezes levam o carro todo; a polícia lhe dirá que não dispõe de meios para prender o ladrão. Como proprietário de automóvel, você ainda terá relações com outras pessoas; com o Serviço de Trânsito, que poderá entre outras picardias, esvaziar seus pneus; com os colegas motoristas, que preferem bater no seu para-lama a dar uma marcha à ré de meio metro; com pedestres e ciclistas imprudentes; com as crianças diabólicas que riscam a sua pintura, sobretudo quando o carro está novinho em folha; com os sujeitos que só dirigem de farol alto; com os barbeiros de qualidades diversas, alguns mortais; com a juventude transviada; com parentes e amigos, que o consideram um sujeito excelente ou ordinário, conforme sua subserviência à necessidade deles. Poderia escrever páginas e páginas sobre o automóvel que você
comprou ou vai comprar, mas fico por aqui: tenho de tomar um táxi e ir à oficina para ouvir do mecânico que o meu carro ainda não está pronto. De qualquer forma, não desanime com minha crônica: paga a pena ter carro, pois ser pedestre, embora mais tranquilo e mais barato, é ainda mais chato. A não ser que você tenha chegado, com Pascal, à suprema descoberta: a de que todos os males do homem se deve ao fato de ele não ficar quietinho no quarto. =.=.=.=.=.=.=.=.=.=.=.=.=.=.=.=.=.=.
Glossário Choldra = Coisa imprestável ou pessoa desprezível Picardia = Pirraça. Transviada = Corrompida, desencaminhada Subserviente = 1.Que serve às ordens de outrem. 2.Servil
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Stanislaw Ponte Preta
N
o capítulo dos nomes difíceis têm acontecido coisas das mais pitorescas. Ou é um camarada chamado Mimoso, que tem físico de mastodonte, ou é um sujeito fraquinho e insignificante chamado Hércules. Os nomes difíceis, principalmente os nomes tirados de adjetivos condizentes com seus portadores, são raríssimos, e é por isso que minha avó a paterna — dizia: — Gente honesta, se for homem deve ser José, se for mulher, deve ser Maria! É verdade que Vovó não tinha nada contra os joões, paulos, mários, odetes e — vá lá — fidélis. A sua implicância era, sobretudo, com nomes inventados, comemorativos de um acontecimento qualquer, como era o caso, muito citado por ela, de uma tal Dona Holofotina, batizada no dia em que inauguraram
a luz elétrica na rua em que a família morava. Acrescente-se também que Vovó não mantinha relações com pessoas de nomes tirados metade da mãe e metade do pai. Jamais perdoou a um velho amigo seu — o “Seu” Wagner — porque se casara com uma senhora chamada Emília, muito respeitável, aliás, mas que tivera o mau-gosto de convencer o marido de batizar o primeiro filho com o nome leguminoso de Wagem — “wag” de Wagner e “em” de Emília. É verdade que a vagem comum, crua ou ensopada, será sempre com “v”, enquanto o filho de “Seu” Wagner herdara o “w” do pai. Mas isso não tinha nenhuma importância: a consoante não era um detalhe bastante forte para impedir o risinho gozador de todos aqueles que eram apresentados ao menino Wagem. Mas deixemos de lado as birras de minha avó — velhinha que Deus
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tenha, em Sua santa glória — e passemos ao estranho caso da família Veiga, que morava pertinho de nossa casa, em tempos idos. “Seu” Veiga, amante de boa leitura e cuja cachaça era colecionar livros, embora colecionasse também filhos, talvez com a mesma paixão, levou sua mania ao extremo de batizar os rebentos com nomes que tivessem relação com livros. Assim, o mais velho chamou-se Prefácio da Veiga; o segundo, Prólogo; o terceiro, Índice e, sucessivamente, foram nascendo o Tomo, o Capítulo e, por fim, Epílogo da Veiga, caçula do casal. Lembro-me bem dos filhos de “Seu” Veiga, todos excelentes rapazes, principalmente o Capítulo, sujeito prendado na confecção de balões e papagaios. Até hoje (é verdade que não me tenho dedicado muito na busca) não encontrei ninguém que fizesse um papagaio tão bem quanto Capítulo. Nem balões. Tomo era um bom extremadireita e Prefácio pegou o vício do pai — vivia comprando livros. Era, aliás, o filho querido de “Seu” Veiga, pai extremoso, que não admitia piadas. Não tinha o menor senso de humor. Certa vez ficou mesmo de relações estremecidas com meu pai, por causa de uma brincadeira. “Seu” Veiga ia passando pela nossa porta,
levando a família para o banho de mar. Iam todos armados de barracas de praia, toalhas etc. Papai estava na janela e, ao saudá-lo, fez a graça: — Vai levar a biblioteca para o banho? “Seu” Veiga ficou queimado durante muito tempo. Dona Odete — por alcunha “A Estante” — mãe dos meninos, sofria o desgosto de ter tantos filhos homens e não ter uma menina “para me fazer companhia” — como costumava dizer. Acreditava, inclusive, que aquilo era castigo de Deus, por causa da idéia do marido de botar aqueles nomes nos garotos. Por isso, fez uma promessa: se ainda tivesse uma menina, havia de chamá-la Maria. As esperanças já estavam quase perdidas. Epílogozinho já tinha oito anos, quando a vontade de Dona Odete tornou-se uma bela realidade, pesando cinco quilos e mamando uma enormidade. Os vizinhos comentaram que “Seu” Veiga não gostou, ainda que se conformasse, com a vinda de mais um herdeiro, só porque já lhe faltavam palavras relacionadas a livros para denominar a criança. Só meses depois, na hora do batizado, o pai foi informado da antiga promessa. Ficou furioso com
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a mulher, esbravejou, bufou, mas — bom católico — acabou concordando em parte. E assim, em vez de receber somente o nome suave de Maria, a garotinha foi registrada, no livro da paróquia, após a cerimônia batismal, como Errata Maria da Veiga. Estava cumprida a promessa de Dona Odete, estava de pé a mania de “Seu” Veiga. ========================== Texto extraído do livro “A Casa Demolida”, Editora do Autor — Rio de Janeiro, 1963, pág. 175. ==========================
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SELEÇÃO DE CRÔNICAS
MACACOS ME MORDAM Fernando Sabino
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orador de uma cidade do interior de Minas me deu conhecimento do fato: diz ele que há tempos um cientista local passou telegrama para outro cientista, amigo seu, residente em Manaus: “Obséquio providenciar remessa 1 ou 2 macacos”. Necessitava ele de fazer algumas inoculações em macaco, animal difícil de ser encontrado na localidade. Um belo dia, já esquecido da encomenda, recebeu resposta: “Providenciada remessa 600 restante seguirá oportunamente”. Não entendeu bem: o amigo lhe arranjara apenas um macaco, por seiscentos cruzeiros? Ficou aguardando, e só foi entender quando o chefe da estação veio comunicar-lhe: — Professor, chegou sua encomenda. Aqui está o conhecimento para o senhor assinar. Foi preciso trem especial. E acrescentou: — É macaco que não acaba mais!
Ficou aterrado: o telégrafo errara ao transmitir “1 ou 2 macacos”, transmitira “1 002 macacos”! E na estação, para começar, nada menos que 600 macacos engaiolados aguardavam desembaraço. Telegrafou imediatamente ao amigo: “Pelo amor Santa Maria Virgem suspenda remessa restante”. Ia para a estação, mas a população local, surpreendida pelo acontecimento, já se concentrava ali, curiosa, entusiasmada, apreensiva: — O que será que o professor pretende com tanto macaco? E a macacada, impaciente e faminta, aguardava destino, empilhada em gaiolas na plataforma da estação, divertindo a todos com suas macaquices. O professor não teve coragem de aproximar-se: fugiu correndo, foi se esconder no fundo de sua casa. À noite, porém, o agente da estação veio desentocálo:
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— Professor, pelo amor de Deus vem dar um jeito naquilo. O professor pediu tempo para pensar. O homem coçava a cabeça, perplexo: — Professor, nós todos temos muita estima e muito respeito pelo senhor, mas tenha paciência: se o senhor não der um jeito eu vou mandar trazer a macacada para sua casa. — Para minha casa? Você está maluco? O impasse prolongou-se ao longo de todo o dia seguinte. Na cidade não se comentava outra coisa, e os ditos espirituosos circulavam: — Macacos me mordam! — Macaco, olha o teu rabo. À noite, como o professor não se mexesse, o chefe da estação convocou as pessoas gradas do lugar: o prefeito, o delegado, o juiz. — Mandar de volta por conta da Prefeitura? — A Prefeitura não tem dinheiro para gastar com macacos. — O professor muito menos. — Já estão famintos, não sei o que fazer. — Matar? Mas isso seria uma carnificina! — Nada disso — ponderou o delegado: — Dizem que macaco guisado é um bom prato...
Ao fim do segundo dia, o agente da estação, por conta própria, não tendo outra alternativa, apelou para o último recurso — o trágico, o espantoso recurso da pátria em perigo: soltar os macacos. E como os habitantes de Leide durante o cerco espanhol, soltando os diques do Mar do Norte para salvar a honra da Holanda, mandou soltar os macacos. E os macacos foram soltos! E o Mar do Norte, alegre e sinistro, saltou para a terra com a braveza dos touros que saltam para a arena quando se lhes abre o curral — ou como macacos saltam para a cidade quando se lhes abre a gaiola. Porque a macacada, alegre e sinistra, imediatamente invadiu a cidade em pânico. Naquela noite ninguém teve sossego. Quando a mocinha distraída se despia para dormir, um macaco estendeu o braço da janela e arrebatou-lhe a camisola. No botequim, os fregueses da cerveja habitual deram com seu lugar ocupado por macacos. A bilheteira do cinema, horrorizada, desmaiara, ante o braço cabeludo que se estendeu através das grades para adquirir uma entrada. A partida de sinuca foi interrompida porque de súbito despregou-se do teto ao pano verde um macaco e fugiu com a bola sete. Ai de quem descascasse preguiçosamente uma banana!
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Antes de levá-la à boca um braço de macaco saído não se sabia de onde a surrupiava. No barbeiro, houve um momento em que não restava uma só cadeira vaga: todas ocupadas com macacos. E houve também o célebre macaco em casa de louças, nem um só pires restou intacto. A noite passou assim, em polvorosa. Caçadores improvisados se dispuseram a acabar com a praga — e mais de um esquivo notívago correu risco de levar um tiro nas suas esquivanças, confundido com macaco dentro da noite. No dia seguinte a situação perdurava: não houve aula na escola pública, porque os macacos foram os primeiros a chegar. O sino da igreja badalava freneticamente desde cedo, apinhado de macacos, ainda que o vigário houvesse por bem suspender a missa naquela manhã, porque havia macaco escondido até na sacristia.
perseguia com pedras. Durante muito tempo, porém, sua presença perturbadora pairou no ar da cidade. O professor não chegou a servir-se de nenhum para suas experiências. Caíra doente, nunca mais pusera os pés na rua, embora durante algum tempo muitos insistissem em visitá-lo pela janela. Vai um dia, a cidade já em paz, o professor recebe outro telegrama de seu amigo em Manaus: “Seguiu resto encomenda”. Não teve dúvidas: assim mesmo doente, saiu de casa imediatamente, direto para a estação, abandonou a cidade para sempre, e nunca mais se ouviu falar nele.
Depois, com o correr dos dias e dos macacos, eles foram escasseando. Alguns morreram de fome ou caçados implacavelmente. Outros fugiram para a floresta, outros acabaram mesmo comidos ao jantar, guisados como sugerira o delegado, nas mesas mais pobres. Um ou outro surgia ainda de vez em quando num telhado, esquálido, assustado, com bandeirinha branca pedindo paz à molecada que o Página 25
SELEÇÃO DE CRÔNICAS
Recalcitrante Carlos Drummond de Andrade
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trocador olhou, viu, não aprovou. Daquele passageiro, escanchado placidamente no banco lateral, escorria um fio de água que ia compondo, no piso do ônibus, a microfigura de uma piscina. — Ei, moço, quer fazer o favor de levantar? O moço (pois ostentava barba e cabeleira amazônica, sinais indiscutíveis de mocidade), nem-teligo. O trocador esfregou as mãos no rosto, em gesto de enfado e desânimo, diante de situação tantas vezes enfrentada, e murmurou: — Estes caras são de morte. Devia estar pensando: Todo ano a mesma coisa. Chegando o verão, chegam problemas. Bem disse o Dario, quando fazia gol no Atlético Mineiro: Problemática demais. Estava cansado de advertir passageiros que não aprendem como viajar em coletivo. Não aprendem e não querem aprender. Tendo comprado passagem por 65
centavos, acham que compraram o ônibus e podem fazer dele casa-dapeste. Mas insistiu: — Moço! Ô moço! Nada. Dormia? Olhos abertos, pernas cabeludas ocupando cada vez mais espaço, ouvia e não respondia. Era preciso tomar providência: — O senhor aí, cavalheiro, quer cutucar o braço do distinto, pra ele me prestar atenção? O cavalheiro, vê lá se ia se meter numa dessas. Ignorou, olímpico, a marcha do caso terrestre. Embora sem surpresa, o cobrador coçou a cabeça. Sabia de experiência própria que passageiro nenhum quer entrar numa fria. Ficam de camarote, espiando o circo pegar fogo. Teve pois que sair do seu trono, pobre trono de trocador, fazendo a difícil ginástica de sempre. Bateu no ombro do rapaz:
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— Vamos levantar?
O outro mal olhou para ele, do longe de sua distância espiritual. Insistiu: — Como é, não levanta? — Estou bem aqui.
calorão de janeiro? Tenho que suar de pé? — Nunca vi suar tanto na minha vida. Desculpe, mas a portaria não permite. — Que portaria?
— Eu sei, mas é preciso levantar. — Levantar pra quê? — Pra quê, não. Por quê. Seu calção está molhado de água do mar. — Tem certeza que é água do mar? — Tá na cara. — Como tá na cara? Analisou? Forrou-se de paciência para responder: — Olha, o senhor está de calção de banho, o senhor veio da praia, que água pode ser essa que está pingando se não for água do mar? Só se... — Se o quê?
— Aquela pregada ali, não está vendo? “O passageiro, ainda que com roupa sobre as vestes de banho molhadas, somente poderá viajar de pé”. — Portaria nenhuma diz que o passageiro suado tem que viajar de pé. Papo findo, tá bom? — O senhor está desrespeitando a portaria e eu tenho que convidar o senhor a descer do ônibus. — Eu, descer porque estou suado? Sem essa. — O ônibus vai parar e eu chamo a polícia. — A polícia vai me prender porque estou suando?
— Nada. — Vamos, diz o que pensou. — Não pensei nada. Digo que o senhor tem de levantar porque seu calção está ensopado e vai fazendo uma lagoa aí embaixo.
— Vai botar o senhor pra fora porque é um... recalcitrante. O passageiro figurado:
pulou,
trans-
— O quê? Repita, se for capaz.
— E daí?
— Re... calcitrante.
— Daí, que é proibido.
— Te quebro a cara, ouviu? Não admito que ninguém me insulte!
— Proibido suar? — Claro que não.
— Eu? Não insultei.
— Pois eu estou suando, sabe? Não posso suar sentado, com esse
— Insultou, sim. Me chamou de réu. Réu não sei o quê, calcitrante,
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sei lá o que é isso. Retira a expressão, ou lá vai bolacha. — Mas é a portaria! A portaria é que diz que o recalcitrante... — Não tenho nada com a portaria. Tenho é com você, seu cretino. Retira já a expressão, ou... Retira não retira, o ônibus chegou ao meu destino, e eu paro infalivelmente no meu destino. Fiquei sem saber que consequências físicas e outras teve o emprego da palavra “recalcitrante”. ==========================
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SELEÇÃO DE CRÔNICAS
Ruy Castro
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im, eu sei que não será culpa sua, mas se você desembarcar em Lisboa sem um bom domínio do idioma, poderá ver-se de repente em terríveis águas de bacalhau. Está vendo? Você já começou a não entender... Um casal brasileiro, amigo meu, alugou um carro e seguia tranquilamente pela estrada Lisboa-Porto, quando deu de cara com um aviso: “Cuidado com as bermas”. Eles ficaram assustados — que diabo seria berma? Alguns metros à frente, outro aviso: “cuidado com as bermas”. Não resistiram: pararam no primeiro posto de gasolina, perguntaram o que era uma berma e só respiraram tranquilos quando souberam que berma era o acostamento. Você poderá ter alguns probleminhas se entrar numa loja de roupas desconhecendo certas sutilezas da língua. Por exemplo, não adianta pedir para ver os ternos — peça para ver os fatos. Paletó é casaco. Meias são peúgas. Suéter é
camisola — mas não se assuste, porque calcinhas femininas são cuecas. (Não é uma delícia ?). Pelo mesmo motivo, as fraldas de criança são chamadas cuequinhas de bébe. Atenção também para os nomes de certas utilidades caseiras. Não adianta falar em esparadrapo — deve-se dizer pensos. Pasta de dente é dentifrício. Ventilador é ventoinha. E no caso gravíssimo de você ter de tomar uma injeção na nádega, desculpe, mas eu não posso dizer que é feio… Ah, que maravilha o futebol em Portugal! Um goleiro é um guardaredes. Só isso e mais nada. Os jogadores do Benfica usam camisola encarnada — ou seja, camisa vermelha. Gol é Golo. Bola é esférico. Pênalti é penálti. Se um jogador se contunde em campo, o locutor diz que ele se aleijou, mesmo que se recupere com uma simples massagem. Gramado é relvado ; muito mais poético, não é ?…
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Um sujeito preguiçoso é um mandrião. Um indivíduo truculento é um matulão. Um tipo cabeludo é um gadelhudo. Quando não se gosta de alguém, diz-se: “não gramo aquele gajo”. Quando alguém fala mal de você e você não liga, deve dizer: “estou-me nas tintas”; ou então: “estou-me marimbando”… Um homem bonito que as brasileiras chamariam pão, é chamado pelas portuguesas de pessegão. E uma garota de fechar o comércio, é, não sei porque, um borrachinho. Mas, o pior equívoco em Portugal, foi quando pifou a descarga da privada do meu quarto de hotel e eu telefonei para a portaria: “podem me mandar um bombeiro para consertar a privada?” O homem não entendeu uma única palavra. Eu devia ter dito: “Ó Pá, manda um canalizador para reparar o autoclisma da retrete”. Ruy Castro. “Viaje Bem”, Revista de bordo da VASP n° 8, 1978. ==========================
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O Telefone Rubem Braga
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onrado Senhor Diretor da Companhia Telefônica: Quem vos escreve é um desses desagradáveis sujeitos chamados assinantes; e do tipo mais baixo: dos que atingiram essa qualidade depois de uma espera na fila.
Não venho, senhor, reclamar nenhum direito. Li o vosso Regulamento e sei que não tenho direito a coisa alguma, a não ser a pagar a conta. Esse Regulamento, impresso na página 1 de vossa interessante Lista (que é meu livro de cabeceira), é mesmo uma leitura que recomendo a todas as almas cristãs que tenham, entretanto, alguma propensão para o orgulho ou soberba. Ele nos ensina a ser humildes, ele nos mostra o quanto nós, assinantes, somos desprezíveis e fracos. Aconteceu, por exemplo, senhor, que outro dia um velho amigo deume a honra e o extraodinário prazer de me fazer uma visita. Tomamos
uma modesta cerveja e falamos de coisas antigas — mulheres que brilharam outrora, madrugadas dantanho, flores doutras primaveras. Ia a conversa quente e cordial ainda que algo melancólica, tal soem as parolas vadias de cupinchas velhos — quando o telefone tocou. Atendi. Era alguém que queria falar ao meu amigo. Um assinante mais leviano teria chamado o amigo para falar. Sou, entretanto, um severo respeitador do Regulamento; em vista do que, comuniquei ao meu amigo que alguém lhe queria falar, o que infelizmente eu não podia permitir; estava, entretanto, disposto a tomar e transmitir qualquer recado. Irritou-se o amigo, mas fiquei inflexível, mostrando-lhe o artigo 2 do Regulamento, segundo o qual o aparelho instalado em minha casa só pode ser usado "pelo assinante, pessoas de sua família, seus representantes ou empregados".
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Devo dizer que perdi o amigo, mas salvei o Respeito ao regulamento; "dura lex sed lex"; eu sou assim. Sei também (artigo 4) que se minha casa pegar fogo terei de vos pagar o valor do aparelho — mesmo que esse incêndio (artigo 9) for motivado por algum circuito organizado pelo empregado da Companhia com o material da Companhia. Sei finalmente (artigo 11) que se, exausto de telefonar do botequim da esquina a essa distinta Companhia para dizer que meu aparelho não funciona, eu vos chamar e vos disser, com lealdade e com as únicas expressões adequadas, o meu pensamento, ficarei eternamente sem telefone, pois "o uso de linguagem obscena constituirá motivo suficente para a Companhia desligar e retirar o aparelho." Enfim, senhor, eu sei tudo, que não tenho direito a nada, que não valho nada, não sou nada. Há dois dias meu telefone não fala, nem ouve, nem toca, nem tuge, nem muge. Isso me trouxe, é certo, um certo sossego ao lar. Porém amo, senhor, a voz humana; sou uma dessas criaturas tristes e sonhadoras que passa a vida esperando que de repente a Rita Hayworth me telefone para dizer que o Ali Khan morreu e ela está ansiosa para gastar com o velho Braga o dinheiro de sua herança, pois me acha muito
simpático e insinuante, e confessa que em Paris muitas vezes se escondeu em uma loja defronte do meu hotel só para me ver sair. Confesso que não acho tal coisa provável: o Ali Khan ainda é moço, e Rita não tem o meu número. Mas é sempre doloroso pensar que se tal coisa acontecesse eu jamais saberia — porque meu aparelho não funciona. Pensai nisso, senhor: pensai em todo o potencial tremendo de perspectivas azuis que morre diante de um telefone que dá sempre sinal de ocupado — — quando na verdade está quedo e mudo na minha modesta sala de jantar. Falar nisso, vou comer; são horas. Vou comer contemplando tristemente o aparelho silencioso, essa esfinge de matéria plástica; é na verdade algo que supera o rádio e a televisão, pois transmite não sons nem imagens, mas sonhos errantes no ar. Mas batem à porta. Levanto o escuro garfo do magro bife, e abro. Céus, é um empregado da Companhia! Estremeço de emoção. Mas ele me estende um papel: é apenas o cobrador. Volto ao bife, curvo a cabeça, mastigo devagar, como se estivesse mastigando meus pensamentos, a longa tristeza de minha humilde vida, as decepções e remorsos. O telefone continuará mudo; não importa: ao
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menos é certo, senhor, que não vos esquecestes de mim. Rio, março de 1951. (R. B.)
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SELEÇÃO DE CRÔNICAS
Eloquência Singular Fernando Sabino
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al iniciara seu discurso, o deputado embatucou:
— Senhor Presidente: não sou daqueles que . . . O verbo ia para o singular ou para o plural? Tudo indicava o plural. No entanto, podia perfeitamente ser o singular: — Não sou daqueles que . . . Não sou daqueles que recusam... No plural soava melhor, Mas era preciso precaver-se contra essas armadilhas da linguagem — que recusa? — ele que tão facilmente caía nelas, e era logo massacrado com um aparte. Não sou daqueles que . . . Resolveu ganhar tempo: — . . . embora perfeitamente cônscio das minhas altas responsabilidades, como representante do povo nesta Casa, não sou . . . Daqueles que recusa, evidentemente. Como é que podia ter pensado em plural? Era um desses casos que os gramáticos registram nas suas questiúnculas de português: ia para o singular, não tinha
dúvida. Idiotismo de linguagem, devia ser. — . . . daqueles que, em momentos de extrema gravidade, como este que o Brasil atravessa . . . Safara-se porque nem se lembrava do verbo que pretendia usar: — Não sou daqueles que . . . Daqueles que o quê? Qualquer coisa, contanto que atravessasse de uma vez essa traiçoeira pinguela gramatical em que sua oratória lamentavelmente se havia metido logo de saída. Mas a concordância? Qualquer verbo servia, desde que conjugado corretamente, no singular. Ou no plural: — Não sou daqueles que, dizia eu — e é bom que se repita sempre, senhor Presidente, para que possamos ser dignos da confiança em nós depositada . . . Intercalava orações e mais orações, voltando sempre ao ponto de partida, incapaz de se definir por esta ou aquela concordância. Ambas com aparência castiça.
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Ambas legítimas. Ambas gramaticalmente lídimas, segundo o vernáculo: — Neste momento tão grave para os destinos da nossa nacionalidade. Ambas legítimas? Não, não podia ser. Sabia bem que a expressão "daqueles que" era coisa já estudada e decidida por tudo quanto é gramaticóide por aí, qualquer um sabia que levava sempre o verbo ao plural: — . . . não sou daqueles que, conforme afirmava . . . Ou ao singular? Há exceções, e aquela bem podia ser uma delas. Daqueles que. Não sou UM daqueles que. Um que recusa, daqueles que recusam. Ah! o verbo era recusar: — Senhor Presidente. Meus nobres colegas. A concordância que fosse pra o diabo. Intercalou mais uma oração e foi em frente com bravura, disposto a tudo, afirmando não ser daqueles que . . . — Como? Acolheu a interrupção com um suspiro de alívio: — Não ouvi bem o aparte do nobre deputado. Silêncio. Ninguém dera aparte nenhum. — Vossa Excelência, por obséquio, queira falar mais alto, que não
ouvi bem — e apontava, agoniado, um dos deputados mais próximos. — Eu? Mas eu não disse nada… — Terei o maior prazer em responder ao aparte do nobre colega. Qualquer aparte. O silêncio continuava. Interessados, os demais deputados se agrupavam em torno do orador, aguardando o desfecho daquela agonia, que agora já era, como no verso de Bilac, a agonia do herói e a agonia da tarde. — Que é que você acha? — cochichou um. — Acho que vai para o singular. — Pois eu não: para o plural, é lógico. O orador prosseguia na sua luta: — Como afirmava no começo de meu discurso, senhor Presidente… Tirou o lenço do bolso e enxugou o suor da testa. Vontade de aproveitar-se do gesto e pedir ajuda ao próprio Presidente da mesa: por favor, apura aí pra mim como é que é, me tira desta . . . — Quero comunicar ao nobre orador que o seu tempo se acha esgotado. — Apenas algumas palavras, senhor Presidente, para terminar o meu discurso: e antes de terminar, quero deixar bem claro que, a esta altura de minha exis-
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tência, depois de mais de vinte anos de vida pública. . . E entrava por novos desvios: — Muito embora . . . sabendo perfeitamente . . . os imperativos de minha consciência cívica . . . senhor Presidente . . . e o declaro peremptoriamente . . . não sou daqueles que . . . O Presidente voltou a adverti-lo de que seu tempo se esgotara. Não havia mais por onde fugir: — Senhor Presidente, meus nobres colegas! Resolveu arrematar de qualquer maneira. Encheu o peito e desfechou: — Em suma: não sou daqueles. Tenho dito. Houve um suspiro de alívio em todo o plenário, as palmas romperam. Muito bem! Muito bem! O orador foi vivamente cumprimentado. (F. S.)
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