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JOSÉ GOLDENBERG
Distúrbios musculoesqueléticos e imunológicos
capítulo
DIAGNÓSTICO DOS DISTÚRBIOS MUSCULOESQUELÉTICOS
Antonio Carlos Ximenes Camila Guimarães
Elementos Essenciais para DIAGNÓSTICO
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Distúrbios musculoesqueléticos e imunológicos
INTRODUÇÃO As doenças reumatológicas podem comprometer as estruturas musculoesqueléticas de forma isolada (setorial), como ocorre no reumatismo de partes moles, ou envolver o tecido conjuntivo como um todo, com características clínicas de uma síndrome sistêmica, a exemplo das doenças difusas do tecido conjuntivo como a artrite reumatoide (AR), o lúpus eritematoso sistêmico (LES), as vasculites e as dermatopolimiosites. Essas doenças reumáticas são causas significativas de dor, incapacidade física e, em alguns casos, podem comprometer todo o organismo, com riscos de evolução para o óbito. São também causas de exuberantes impactos socioeconômicos, sendo a terceira causa de afastamento de trabalho na previdência social. O diagnóstico dos pacientes com queixas clínicas musculoesqueléticas devem ser estruturados de maneira global, por meio de uma história clínica completa e detalhada, acompanhada de um minucioso exame físico e, muitas vezes, com a complementação de exames laboratoriais, imagenológicos e histopatológicos (Tabela 1). O objetivo inicial do examinador, importante para direcioná-lo quanto aos diagnósticos diferenciais apresentados pelo paciente, é determinar se a queixa musculoesquelética é: a) articular/não articular; b) inflamatória/não inflamatória; c) sistêmica/não sistêmica; d) evolução aguda/crônica. A investigação diagnóstica deve-se iniciar na identificação do paciente por idade, gênero, raça, profissão e sua procedência. A idade é muito importante para ajuda diagnóstica de algumas doenças musculoesqueléticas, sendo elas hereditárias, como a doença de Marfan e a hemofilia (prevalentes na infância), ou adquiridas, como a febre reumática na infância, a artrite idiopática juvenil até os 16 anos, as espondiloartrites em adultos jovens e a osteoartrite e a arterite de células gigantes no senil. Referente ao gênero, a AR e as doenças do tecido conjuntivo são mais comuns em mulheres, enquanto a espondilite anquilosante e a artrite gotosa predominam em homens. A gota, aliás, raramente acomete as mulheres antes da menopausa. Os fatores ocupacionais são importantes no diagnóstico quando associados a atividades repetitivas, ou que podem desencadear microtraumas. Os sintomas musculoesqueléticos também podem estar associados a alguma lesão (ou trauma) relacionada a atividade esportiva. Tabela 1. Organograma diagnóstico das doenças musculoesqueléticas História clínica Exame físico Provas de atividade inflamatória Determinação de autoanticorpos Sorologias específicas Sinoviograma Imagenologia
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AVALIAÇÃO DIAGNÓSTICA PELA HISTÓRIA CLÍNICA A história clínica deve ser detalhada e enfatizar aspectos cronológicos, localização anatômica da queixa principal, relação com atividade física ou repouso, características de episódio agudo ou insidioso e se existe envolvimento sistêmico associado. O acometimento articular deve ser avaliado quanto à duração, ao número de articulações envolvidas, à simetria e predominância em membros superiores ou inferiores (Tabela 2). A avaliação das estruturas periarticulares é igualmente fundamental, incluindo tendões, enteses e bursas. Importante salientar que a doença pode não ser essencialmente articular, por isso é fundamental a procura por outros sinais e sintomas que, quando presentes, fazem pensar num quadro sistêmico predominante como a febre na doença de Still, eritema cutâneo no lúpus e dermatomiosite, mialgias e fraqueza muscular na polimiosite e polimialgia reumática, rigidez matinal nas espondiloartrites e AR, púrpuras e anemia nas doenças difusas do tecido conjuntivo, tromboembolismo na síndrome antifosfolípide (SAF). O acometimento de outros órgãos pode ser a primeira manifestação clínica de uma doença musculoesquelética, como os olhos na doença de Behçet, espondiloartrites e na sarcoidose; o trato gastrintestinal na esclerodermia e na doença inflamatória intestinal; e o Sistema Nervoso Central no LES, na SAF e nas vasculites. Indagar, também, quanto aos antecedentes pessoais (abortos de repetição, passado de tromboembolismo) e familiares (doenças difusas do tecido conjuntivo, espondiloartrites e doenças por deposição de cristais em outro integrante familiar).
AVALIAÇÃO DIAGNÓSTICA PELO EXAME FÍSICO Assim como a história clínica, o exame físico deve ser completo, corroborando a investigação de uma doença sistêmica associada. Fundamental é o conhecimento anatômico da topografia humana para a realização de um bom exame reumatológico, a correta identificação das estruturas envolvidas, a extensão do acometimento e se houve ou não perda de função dessas estruturas. O exame musculoesquelético depende de uma inspeção detalhada, palpação, movimentação e uma variedade de manobras específicas para cada estrutura envolvida, com exceção de Tabela 2. Caracterização do acometimento articular Duração Número de articulações envolvidas Distribuição
Padrão Sintomas constitucionais
Aguda Crônica (> 6 semanas) Monoarticular Oligoarticular (até 4 articulações) Poliarticular (5 ou mais articulações) Simétrica Assimétrica Cumulativa Migratória Inflamatório Não inflamatório Febre Perda de peso
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algumas articulações que não permitem tal avaliação como as articulações zigoapofisárias, nas quais se torna necessário o exame de imagem para melhor definição diagnóstica. A inspeção orienta e avalia quanto à simetria dos membros, tanto superiores como inferiores, os vícios de postura, as alterações de coloração da pele, cicatrizes, pápulas, urticárias, descamações, fístulas, nodulações e alterações ungueais. A palpação auxilia no diagnóstico de alterações de temperatura, crepitações, presença de edema e se este é proveniente da cavidade articular (derrame e proliferação sinovial) ou de um envolvimento periarticular (no qual o edema se estende para além da margem do espaço articular), bastante característico no dedo em salsicha. Há necessidade de caracterizar as alterações como tendo um substrato inflamatório ou degenerativo. Os marcadores de um substrato inflamatório valorizam a presença dos sinais clássicos da inflamação: calor, aumento de volume e rubor local, como descrito por Celsius, além da impotência funcional articular. As artropatias degenerativas evidenciam pequena atividade inflamatória, sendo um aspecto importante na avaliação diagnóstica, enquanto as artropatias metabólicas e infecciosas têm uma expressão clínica de grande atividade inflamatória ao exame clínico (dor, calor e rubor das articulações envolvidas). Em relação aos movimentos articulares, estes devem ser realizados em todos os planos, de maneira ativa e passiva, com avaliação da amplitude de movimento por meio de um goniômetro e comparação com o membro contralateral. As limitações de movimento são frequentemente causadas por derrame articular, dor, crepitação, deformidades e contraturas. A crepitação articular é a manifestação proeminente no curso da osteoartrite, sendo mais bem avaliada pela palpação. As contraturas e as deformidades podem ser secundárias a trauma ou a um processo articular agressivo prévio, podendo se caracterizar por destruição ligamentar, anquilose, subluxações ou alterações erosivas.
AVALIAÇÃO DIAGNÓSTICA LABORATORIAL Os exames laboratoriais devem auxiliar na confirmação de um diagnóstico clínico. É importante que o clínico os solicite baseado em um critério originado da história e exame físico, evitando erros e custos financeiros desnecessários. As síndromes articulares, sejam mono, oligo ou poliarticulares, principalmente quando associadas a manifestações clínicas sistêmicas, devem seguir uma rotina de auxílio diagnóstico, incluindo, além do hemograma completo, a solicitação de provas de atividade inflamatória, como a velocidade de hemossedimentação (VHS), a proteína C-reativa (PCR) e a fração alfa dois e gamaglobulina por meio da eletroforese de proteínas séricas. Os resultados, quando elevados, indicam, em sua maioria, um subsídio inflamatório, não apenas de caráter autoimune (não são específicos para essa categoria de doença), mas também relacionado a quadros infecciosos e neoplásicos. É importante salientar que outras condições clínicas também podem alterar a VHS, como idade avançada, anemia, gravidez e obesidade, o que demonstra sua grande sensibilidade, porém pequena especificidade (Tabela 3). Os testes sorológicos de detecção de autoanticorpos como o fator reumatoide (FR) e o fator antinuclear (FAN) devem ser solicitados quando existem evidências clínicas relevantes de um substrato patogênico autoimune. Solicitações sem base clínica ou como teste de triagem podem
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Tabela 3. Causas de aumento da velocidade de hemossedimentação Doenças difusas do tecido conjuntivo Infecções bacterianas Neoplasias Lesão tecidual (cirurgia e trauma) Idade avançada
Anemia Obesidade Gravidez Uso de heparina Temperatura elevada
causar confusão em vez de auxílio diagnóstico, já que uma pequena parcela da população possui FR ou FAN positivos sem nenhuma doença associada. A interpretação de um FAN positivo depende do título e do padrão observado pela técnica de HEp2 (human epitelioma tipo 2). Os padrões homogêneo e pontilhado grosso são mais específicos para as doenças autoimunes e merecem atenção destacada por parte do médico com o paciente, enquanto o padrão pontilhado fino denso, quase sempre, representa uma interpretação de autoanticorpo não patogênico e sem correlação com as queixas clínicas expressas pelo paciente. As doenças osteometabólicas, principalmente a osteoporose, necessitam de uma avaliação diagnóstica precisa e rigorosa, principalmente na identificação das formas secundárias. Nessas situações e sempre baseado nos dados clínicos, deve-se solicitar um estudo osteometabólico incluindo dosagem sérica e urinária de cálcio, fósforo, bem como avaliação de função da tireoide e paratireoide (dosagem no sangue de T4 livre, TSH e PTH intacto), eletroforese de proteínas séricas, 25-hidroxivitamina D, além do perfil hormonal sexual feminino e masculino. As doenças infecciosas tanto virais, bacterianas comunitárias ou nosocomiais e fungos podem se expressar com manifestações musculoesqueléticas e, nesses casos, após uma detalhada história e exame físico, deve-se iniciar a investigação diagnóstica dessas possíveis etiologias com a solicitação de sorologias virais (principalmente para hepatite B e C, dengue, Epstein-Barr, HIV e toxoplasmose), hemoculturas e culturas (com meio apropriado) para bactérias Gram-positivas, Gram-negativas e fungos. Um exame laboratorial importante e que merece uma cuidadosa avaliação e atenção, principalmente em quadros de monoartrite aguda, é o sinoviograma ou a análise do líquido sinovial. Sua classificação em normal (ou não inflamatório), inflamatório, séptico e hemorrágico tem muita validade no diagnóstico das síndromes musculoesqueléticas. Essa análise deve ser iniciada no exame físico desse líquido ao se observar sua cor, seu aspecto e sua viscosidade (Tabela 3). O líquido sinovial normal tem coloração amarela e é límpido com alta viscosidade, principalmente pela grande quantidade de ácido hialurônico. Na presença de inflamação, o líquido se torna opaco, de coloração amarela escura e viscosidade diminuída, com aumento das células inflamatórias, predominando os polimorfonucleares (2.000 a 50.000 cels/mm3). Essas características são valiosas no diagnóstico da AR e nas artropatias por depósito. Já na artrite séptica, o líquido se torna turvo, algumas vezes purulento, com aumento da celularidade, chegando algumas vezes a 100.000 cels./mm3, também predominando polimorfonucleares (PMN). A cultura do líquido sinovial nesses casos é obrigatória, sendo realizada em meio apropriado para bactérias Gram-positivas, negativas e fungos. Nos casos de um líquido sinovial hemorrágico, diagnósticos diferenciais como neoplasias, hemofilias, trauma e tuberculose devem ser investigados (Tabela 4).
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Tabela 4. Classificação do líquido sinovial Não inflamatório Clara/amarela Cor Transparente Aspecto Alta Viscosidade Contagem total de leucócitos < 2.000/mm3 < 25% PMN Diferencial Negativa Cultura
Inflamatório
Séptico
Hemorrágico
Amarela Opaco Variável 2.000-50.000/mm3 > 50% PMN Negativa
Amarela Turvo Baixa 100.000mm3 > 90% PMN Positiva
Vermelha Opaco Não se aplica Não se aplica Não se aplica Variável
PMN: polimorfonucleares.
Outro parâmetro importante no sinoviograma é a pesquisa de cristais, sendo fundamental no diagnóstico diferencial de gota (presença de cristais de monourato de sódio) e pseudogota (presença de cristais de pirofosfato de cálcio).
AVALIAÇÃO DIAGNÓSTICA POR IMAGEM A radiografia convencional ainda é considerada muito importante para o diagnóstico de doenças articulares. Nas artropatias de evolução precoce são pouco úteis, podendo apenas revelar edema de partes ou desmineralização justa-articular. Sua maior utilidade é observada quando há alterações ósseas crônicas, como erosões e anquiloses ou história de trauma. A ultrassonografia com Doppler é útil na detecção de alterações periarticulares e articulares que não são totalmente esclarecidas com o exame clínico. Deve-se estar atento na interpretação e laudo diagnóstico, por ser um método examinador dependente. A tomografia computadorizada possibilita uma rápida reconstrução sagital, coronal e axial das imagens. É muito útil para avaliação do esqueleto axial e de articulações pouco visíveis à radiografia convencional, como as zigoapofisárias e nas fases iniciais da sacroileíte. A ressonância magnética foi um avanço significativo para a avaliação das estruturas musculoesqueléticas. Possibilita uma melhor avaliação das alterações articulares precoces (como o edema ósseo) e das estruturas periarticulares. Tem atualmente o inconveniente de ser um exame dispendioso e muitas vezes não disponível em muitas estruturas hospitalares para auxílio diagnóstico. A densitometria óssea é o exame padrão-ouro na ajuda diagnóstica da osteoporose. É importante no diagnóstico a avaliação dos parâmetros de escore T preconizados pela Organização Mundial da Saúde.
REFERÊNCIAS Cush JJ, Lipsky PE. Approach to articular and musculoskeletal disease. In: Braunwald E, Fauci AS, Kasper DL et al. Harrinson’s principle of internal medicine. Part 20, Section 3. 15th ed. New York: MacGraw-Hil. El-Gabalani HS, Robinson DB. Evaluation of the patient. History and physical examination. In: Klippel JH, Stone JH, Crofford LJ et al. Primer on the rheumatic diseases. 13th ed. New York: Springer; 2008. p. 6-14. Gordon DA. Approach to the patient with musculoskeletal disease. In: Goldman L. Cecil’s textbook of medicine. Part 21, Chapter 282. 21st ed. Philadelphia: WB Saunders; 2000. Sack KE. Physical examination of the musculoskeletal system. In: Imboden J, Hellman D, Stone D. Current diagnosis and treatment. Rhematology. 2nd ed. New York: McGraw Hill; 2007. p. 1-11. Woof A. History and physical examination. In: Hochenberg MC, Silman AJ, Smolen JS et al. Rheumatology. 4th ed. St. Louis: Mosby; 2007. p. 191-211. 8 |
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