® ANO 4, EDIÇÃO 19
OUT/NOV 2010 EDITORIAL
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Primeiras palavras Igreja, uma necessidade
MARCOS SIMAS
PORTAS ABERTAS
CH INFORMA
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Em destaque Eventos de grande porte em 2010 estimulam retomada da obra missionária mundial
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Curtas e diretas
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Aconteceu
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Registro
awking vira a casaca/ Meninas cristãs violentadas no Afeganistão H Felicidade a R$ 11 mil / O alto custo da morte / Caio Fábio na LBV
Finalmente o Vaticano toma posição contra pedófilos Bíblia chega ao profundo abismo no Chile Censo do IBGE será impreciso sobre a religião no país 25 anos do Vale da Benção Congregação Cristã no Brasil faz 100 anos
MATÉRIAS E ARTIGOS
16 Desgaste do Corpo
MAURICIO ZÁGARI
Movimento de contestação à institucionalização da Igreja cresce, mas líderes apontam essencialidade da comunhão
20 O caminho, a verdade e a vida
KATELYN BEATY
Os cristãos devem convidar as pessoas a uma comunhão concreta de amor com o Senhor
PRI SATHLER
24 Espaço de qualidade
VANESSA PORTELLA
Consolidação da presença feminina no pastorado leva à busca por novos modelos de liderança
28 Abba, muito mais que um clamor
RUSSEL D.MOORE
O cuidado com os órfãos revela uma dimensão do imenso amor de Deus por seus filhos
32 A filantropia e o Leviatã
VALTER GONÇALVES JR
Nova lei reacende discussão sobre ação social e papel do Estado.
38 Caleidoscópio da diversidade
JOHN W.KENNEDY
Congresso Lausanne III quer abrir espaço para o protagonismo de setores emergentes da Igreja na evangelização mundial
40 A Reforma do Século 21
GLOBAL CONVERSATION / LAUSANNE III
Quase quinhentos anos depois da Reforma, líderes cristãos compartilham sonhos de mudanças
46 Nem sal, nem luz
CARLOS FERNANDES
Para o bispo Robinson Cavalcanti, a Igreja Evangélica tem perdido a oportunidade de interferir políticamente no país
D I V U L G A Ç Ã O
CH CULTURA
Livros, música, filmes e as artes
MARCOS STEFANO
51 Bíblia do futuro Lançada a Glow, versão high-tech das Escrituras 52 Para que serve Deus Philip Yancey questiona a fé em seu novo livro, lançado no Brasil 53 Recomendamos Livros, filmes e música
PONTO DE VISTA J O A K I M B U C H W A L D / S X C
55 Cartas LEITORES + Humor RUBINHO PIROLA 56 Vida Plena Silêncio de todos os tipos ESTHER CARRENHO 58 Renovare Religião x espiritualidade EDUARDO ROSA 60 Reflexão Entre a sinagoga e o areópago RICARDO AGRESTE 62 Os outros seis dias Uma garotinha CARLO CARRENHO 64 Últimas palavras Responsabilidade cidadã CARLOS QUEIROZ FOTO DE CAPA POR
BYLLWILL/ISTOCK
Revista Cristianismo Hoje Conteudo cristão para mudar as pessoas que mudam o mundo www.cristianismohoje.com.br Cristianismo Hoje é uma publicação bimestral da Msimas Editora Ltda.
PRIMEIRAS PALAVRAS
EDITOR
Igreja, uma necessidade Apesar de tudo, pessoas são salvas ali
Quem somos Cristianismo Hoje é uma publicação evangélica, nacional e independente, que tem como objetivo informar, encorajar, unir e edificar a Igreja brasileira, comunicando com verdade, isenção e profundidade os fatos ligados ao segmento cristão, bem como o poder transformador do Evangelho a todos os seus leitores
A revista tem uma parceria com o grupo Christianity Today International, um dos mais importantes grupos de mídia cristã do mundo, com 6 revistas e 44 sites de conteúdo
Conselho Editorial Betty Bacon, Carlos Buczynski, Eleny Vassão, Eude Martins da Silva, Marcelo Augusto Souto, Mário Ikeda, Mark Carpenter, Nataniel Gomes, Nelson Bomilcar, Richard Werner, Ronaldo Lidório, Volney Faustini, Ziel Machado e William Douglas
Editor Marcos Simas
Diretor de redação e jornalista responsável
M A R C O S S IM A S
M
uita gente entra e sai decepcionada das igrejas diariamente. Mesmo sem nenhuma estatística confiável para isso, as razões para a evasão são muitas: desapontamento com erros da liderança, desentendimentos com outros membros e frustração com doutrinas rígidas demais são algumas delas.
Contudo, nada anda afastando mais as pessoas das igrejas do que a ênfase exagerada nas questões materiais. Denominações que exploram seus fiéis, pastores que vinculam as bênçãos de Deus a ofertas financeiras e promessas de fé não cumpridas costumam ser as principais alegações de quem se afasta da comunhão. Fato é que, ultimamente, falar mal da igreja virou moda. Seja nas comunidades alternativas que se formam à margem da chamada igreja institucional, seja no território livre da internet, o que mais se vê são críticas à Igreja, como um todo, e
Carlos Fernandes – MTb 17336
às denominações, em particular. Os desigrejados – termo que é usado na matéria
Jornalistas desta edição
de capa desta edição para identificar um contingente que não para de crescer –
John W. Kennedy, Marcos Stefano, Mauricio Zagari, Valter Goncalves Jr e Vanessa Portella
Colunistas Carlo Carrenho, Carlos Queiroz, Eduardo Rosa, Esther Carrenho, Ricardo Agreste e Rubinho Pirola
Revisora
apresentam muitos argumentos, e boa parte deles, evidentemente, fazem sentido para quem se decepcionou com a igreja. Mas são muitos os insatisfeitos que apenas criticam o ministério alheio, sem a menor misericórdia ou mesmo sem medir as
Alzeli Simas
consequências que tais atos e palavras farão no coração de irmãos na fé que pensam
Colaboradores desta edição
de modo diverso. É gente que usa todos os espaços disponíveis para extravasar seus
John R. Franke, Russell D. Moore e Treici Schwengber
Arte SZcomunicação
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piores sentimentos, sem observar as advertências de Jesus sobre o cuidado que se deve ter para não levar os outros ao tropeço. Não seríamos, como comunidade evangélica, mais fortes se pudéssemos nos ajudar, ao invés de apenas nos criticarmos? Até que ponto criticar ajuda alguém a se
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desenvolver melhor? Ora , todos nós temos, de alguma maneira, certas frustrações
Informações
ou reservas em relação a pastores e lideres que um dia passaram em nossa vida.
faleconosco@cristianismohoje.com.br
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Assim como temos os mesmos sentimentos também em relação a nossos pais ou
Editora LUA
filhos – todavia, isso não impede que haja amor e respeito nessas relações. Liderar,
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Diretor executivo: Moacir Feldenheimer
Diretor de redação: Romualdo Venâncio
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Assistente financeira: Angela Nascimento
Assistente de marketing: Raquel Maria da Silva
Distribuição
sem dúvida, é difícil. E só o sabe quem já exerceu liderança. Além do mais, é preciso estar dentro de uma instituição para se poder atuar criticamente em relação a ela – ao menos, para que as críticas tenham mais legitimidade. Criticar, sim. Falar a verdade, sempre. Mas sem amor e respeito, nunca. Afinal, foi através da Igreja, o Corpo de Cristo, e de suas expressões locais, que a maioria absoluta dos crentes pôde chegar aos pés de Jesus. Esta é uma edição especial, que marca os três anos de circulação de CRISTIANISMO HOJE. A ocasião é marcada pelo lançamento de uma nova concepção gráfica que está alinhada com o que há de mais moderno no mundo editorial,
DINAP
e celebra o aumento da tiragem para 40 mil exemplares. Um belo presente
Impressão
aos leitores, anunciantes e colaboradores que têm nos prestigiado esse tempo
Gráfica Bandeirantes Tiragem – 40.000 exemplares ISSN 1982-3614
todo. Boa leitura!
8 Pastor não queimou Corão, mas fatura com notoriedade 9 Papa finalmente joga pesado com pedófilos 10 Religiosos criticam critérios do Censo 10 PARA PENSAR 9 REGISTRO 25 anos do Vale da Bênção 12 Congregação Cristã no Brasil faz 100 anos 14
CURTAS & DIRETAS Stephen Hawking vira casaca em relação a Deus
Em destaque: Cem anos depois da Conferência Missionária Mundial de Edimburgo, quatro eventos de grande porte mobilizam a Igreja para o tema das missões no mundo atual
Um panorama da Igreja, da sociedade e da religião
Cem anos depois da histórica Conferência Missionária Mundial de Edimburgo, na Escócia, quatro grandes eventos voltados ao tema das missões mundiais são uma bela homenagem ao missionário inglês William Carey, idealizador do encontro de 1910. Dedicado à evangelização do mundo, Edimburgo-1910, organizado por John Mott, foi o clímax da paixão missionária que ardeu ao longo de todo o século 19, que levou a fé cristã aos quatro cantos do mundo de então. Agora, em 2010, a ênfase principal é justamente resgatar a vocação missionária da Igreja mundial, cada vez mais embotada diante da indiferença de boa parte da cristandade mundial em relação ao “Ide” de Jesus. Em locais tão distintos como Tóquio, no Japão; Boston, nos Estados Unidos; Cidade do Cabo, na África do Sul; e Edimburgo, onde tudo começou, líderes cristãos e entidades missionárias têm discutido, ao longo deste ano, maneiras de reacender a paixão pelas almas sem Cristo e de oferecer respostas evangélicas às demandas da modernidade. Em todos estes encontros, uma certeza – a de que a construção de um mundo novo, em Cristo, é possível.
Tóquio
Edimburgo
Cidade do Cabo
Boston
Período:
11 a 14 de maio
2 a 5 de Junho
16 a 25 de outubro
4 a 7 de novembro
Público:
Cerca de 1 mil líderes de organizações missionárias e paraeclesiásticas
300 participantes, a maioria clérigos. A cerimônia de encerramento teve a presença de 1 mil religiosos e convidados
4,5 mil líderes evangélicos, representantes de organizações cristãs e dirigentes denominacionais de todo o planeta
Com inscrição aberta, o evento, promovido pelo Boston Theological Institute, deverá atrair, além de missionários, estudantes, professores e teólogos envolvidos com o estudo das missões
Homenageados:
Ralph Winter (1924-2009), o missiólogo que pôs o foco de atenção dos evangélicos nos “povos não alcançados”
O organizador da conferência de 1910, John Mott, e V.S. Azariah (1874-1945), bispo indiano cujo apelo “Dê-nos amigos” tornou-se um clamor pelo estabelecimento de igrejas indígenas
O teólogo britânico John Stott, presidente de honra do Comitê Lausanne e organizador da I Conferência da série, em 1974, na Suíça
Brian Stanley, diretor do Centro para Estudos do Cristianismo Mundial e autor de um marcante relato histórico sobre a conferência de 1910
Prioridade estabelecida:
Completar a tarefa de evangelização e discipulado de cada grupo de pessoas
“Desconstruir limites” na Igreja, seja em termos eclesiológicos, políticos, econômicos e daí por diante
Mobilizar cristãos para “soluções globais” concernentes a temas como pobreza, meio ambiente, epidemia de Aids, avanço do Islã, novas tecnologias, bioética e outros
Aprofundar os participantes no estudo do tema de missões, fomentando o debate e novas iniciativas
Ênfase:
Deus confiou a esta geração mais oportunidades e recursos para completar a tarefa de fazer discípulos do que a qualquer outra antes
Diante das desigualdades e das divisões na Igreja e no mundo, o cristão é chamado ao arrependimento, à reflexão crítica sobre os sistemas de poder e ao uso responsável dos recursos
Oferecer uma resposta coesa e bem fundamentada para os problemas globais, estimulando a união da Igreja e do movimento evangelical em torno de uma agenda cristã
Além das críticas dentro do meio cristão e entre as religiões acerca da missão, o surgimento da pós-modernidade secular desafia a real relevância do cristianismo e, por conseguinte, o seu poder de alcance
Momento marcante:
Quando a conferência terminou, o pastor japonês Reiji Oyama pediu desculpas às nações invadidas por seu país, como a China, e pelas atrocidades cometidas pelas forças japonesas. Em retribuição, representantes da Rede Cristã Global pediram perdão aos japoneses pelos ataques nucleares perpetrados pelos Estados Unidos na II Guerra Mundial. Num clima de comoção espiritual, mais pedidos de perdão se sucederam
Dias antes da conferência, Daryl Balia foi forçado a renunciar o cargo de diretor internacional e sua presença foi barrada no evento. Ele acusou publicamente outros organizadores de racismo e agressão, denunciando que os organizadores lhe pediram que convidasse um bispo de Uganda considerado homofóbico para ser o orador principal, com o que não concordou
A conferência será transmitida ao vivo através de mais de 400 sites e de um grandioso sistema multimídia, que permitirá a interatividade com milhões de pessoas em 60 países. A plataforma virtual de CapeTown 2010 disporá de tecnologia avançada para construir uma aldeia global em torno do encontro. No período de preparação para o evento, uma série de reuniões e diálogos (como a série Global Conversation) têm mobilizado líderes cristãos
Apresentação do Atlas do Cristianismo Global e a participação, como preletores, de Brian McLaren e Ruth Padilla DeBorst
Outubro/Novembro 2010
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“Com Deus até o inferno” A Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos está estimulando seus sócios a entrarem na Justiça contra o apresentador José Luiz Datena, da Rede Bandeirantes de televisão. Os militantes anti-Deus alegam que sofreram preconceito em uma declaração de Datena feita no programa Brasil urgente. Numa de suas intervenções, o apresentador, ao comentar um crime bárbaro, disse que o ato demonstra “a falta de Deus” no coração de muitas pessoas. Já foram distribuídas ações contra Datena e a Bandeirantes na Justiça. Indagado sobre o assunto, Datena manteve o tom que o consagrou no programa: “Não tenho nada contra quem não acredita em Deus. Eu acredito, e vou com ele até o inferno!”
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País com elevados níveis de vida, educação e saúde pública, o Japão é, paradoxalmente, um dos campeões mundiais em casos de depressão e suicídios. Só no ano passado, 33 mil japoneses deram cabo da própria vida. Alarmado, o governo do país resolveu pela primeira vez revelar o custo do problema, a fim de chamar a atenção da sociedade: em 2009, os suicídios custaram ao país US$ 32 bilhões (cerca de 58 bilhões de reais).
MENOS FOME Estudos da ONU apontam que diminuiu a quantidade de famintos no mundo: Em 2009, eles eram
1,05 bilhão
Em 2010, são 925 milhões
925
milhões
O alto custo da morte
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Sansão na telinha Depois de Ester, a rainha da Pérsia, a Rede Record anunciou que sua próxima série com temática bíblica será a história de Sansão e Dalila. O drama, baseado nos relatos do livro de Juízes sobre o herói hebreu
R E C O R D
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7 : D I V U L G A Ç Ã O / R E D E
que votar no PT significa apoiar a “iniqui“Deus não é necessário para que o unidade estatizada”, uma vez que políticos verso exista”. Com afirmações como da legenda estariam apoiando medidas esta, o astrofísico britânico Stephen anticristãs, como a legalização do aborto Hawking jogou um balde de água fria e a implantação de uma suposta ditanaqueles que o consideravam um ciendura gay no país. Um dirigente do PT, tista aberto à possibilidade da existência Enio Verri, disse estranhar que um pastor divina desde o lançamento, em 1988, “proferisse mentiras”. “Assim, ele certade seu best-seller Uma breve história do mente não entrará no céu”, ironizou. tempo. Naquela obra, Hawking dizia que não há qualquer incompatibilidade 3 Meninas cristãs entre a noção de um Deus e a ciência e violentadas que entender as leis que regem o uniO aumento do número de casos de estuverso seria como “ler a mente de Deus”. pro praticados por muçulmanos contra Agora, contudo, o cientista, de 68 anos meninas cristãs no Afeganistão tem preoe preso à cadeira de rodas em função de cupado a Igreja local. Só nos últimos três uma doença degenerativa, dá mostras meses, mais de 15 casos foram relatados, de que voltou atrás. “Não é necessário inclusive de abusos contra crianças de 12 invocar a Deus para acender o pavio e anos. Os criminosos são, na maioria das colocar o universo em marcha”, declara vezes, estudantes de madrassas (escolas o estudioso em seu novo livro, The great islâmicas). “Eles dizem que os cristãos design (“O projeto grandioso”), lançado são inimigos, e que farão coisas ainda mês passado em coautoria com o colega piores”, relatou o pastor Shakeel Jave, da Leonard Mlodinov. Para a imprensa briIgreja Pentecostal Unida, a uma fonte da tânica, o livro foi interpretado como Compassion Internacional. Segundo o uma virada de casaca do astrofísico. pastor, as autoridades do distrito policial local recusam-se a registrar as ocorrên2 PT contra pastor cias. Um agente admitiu a pressão de Um vídeo em que o pastor Paschoal líderes muçulmanos para que agresPiragine Jr, da 1ª Igreja Batista de Curisões a cristãos não sejam investigadas. tiba (PR), pede aos crentes para que não 4 Felicidade a R$ 11 mil votem nos candidatos do Partido dos Trabalhadores, o PT, nas eleições deste Dinheiro compra a felicidade? Talvez sim, ano, deu pano para manga. Divulgado mas ninguém precisa ser rico para ser no fim de agosto, o vídeo, com cerca de feliz – basta não ser pobre. A conclusão 15 minutos de duração, foi assistido por é de estatísticos americanos que analicerca de 1 milhão de pessoas nas primeisaram um enorme banco com os dados ras semanas. Piragine, com a voz calma, de 450 mil pessoas. E descobriram um diz na gravação, realizada em sua igreja, valor a partir do qual mais riqueza não
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Hawking vira a casaca
B A N D E I R A N T E S
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5 : D I V U L G A Ç Ã O / T V
Acontecimentos importantes sobre a Igreja cristã
A B E R T A S
significaria necessariamente maior bem-estar: o equivalente a R$ 11 mil por mês. “A partir desse valor, ter mais dinheiro não representa tanta diferença”, explica o professor Daniel Kahneman, Prêmio Nobel de Economia em 2002 e coautor da pesquisa.
CURTAS & DIRETAS
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3 : P O R T A S
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PARA PENSAR
por Marcos Simas
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Renascer condenada A Igreja Renascer em Cristo foi condenada pela 4ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo a indenizar duas vítimas do desabamento de seu templo-sede, na região central da capital paulista, em janeiro de 2009. As autoras da ação vão receber, cada uma, R$ 10 mil por danos morais e indenizações para cobrir gastos médicos já efetuados e tratamentos que se fizerem necessários. A igreja pode recorrer. Na tragédia, nove pessoas morreram e mais de cem ficaram feridas.
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Nas terras de Golias Gate é citada na Bíblia uma única vez, em referência à terra natal do filisteu Golias – o gigante que foi derrotado por Davi na mais famosa luta narrada nas Escrituras.
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Radicalismo oportunista A bravata do pastor Terry Jones, que anunciou que queimaria exemplares do Corão no dia 11 de setembro – data em que foram lembrados os nove anos do atentado terrorista contra os Estados Unidos, ação atribuída à rede muçulmana Al-Qaeda –, teve consequências que foram muito além de quinze minutos de fama. Jones, líder da igreja Dove World Outreach Center, na Flórida, saiu da obscuridade para as manchetes de todo o mundo e viu as vendas de seu livro panfletário O Islã é do diabo dispararem. Fortalecido, o religioso tem granjeado apoios em várias partes do mundo para sua campanha contra a construção de uma mesquita e de um centro islâmico em Nova Iorque, o que considera uma “provocação aos cristãos da América”.
BÍBLIAS PARA O MUNDO As Sociedades Bíblicas Unidas (SBU) registraram um aumento de 3% no total de bíblias distribuídas no mundo em 2009, em relação ao ano anterior, com um total de quase 30 milhões de novas bíblias. Confira a quantidade de exemplares das Sagradas Escrituras distribuídas por região (em milhões de unidades):
“Sobram razões para afirmar-se que o neopentecostalismo deixou de ser protestante ou até mesmo evangélico. É uma nova religião; uma religião simplória na resposta aos problemas nacionais, supersticiosa na prática espiritual, obscurantista na concepção de mundo, imediatista nas promessas irreais e guetoizada em seu diálogo cultural” Ricardo Gondin, pastor da Igreja Betesda, conferencista e escritor
12,1 10
“Não devemos equilibrar nossos orçamentos à custa dos pobres” Ban Ki-Moon, secretário-geral da Organização das Nações Unidas, para mais de 140 líderes mundiais
5,15
Total: 29,3
2,1 Europa / Or. Médio
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Edir Macedo, bispo líder da Igreja Universal do Reino de Deus, referindo-se à TV Record, controlada pela denominação
Ásia/Pacífico
de força descomunal que acabou traído pela Pois agora a localidade esquecida no amante, terá 16 capítulos e será exibido em tempo volta à baila, depois que arqueójaneiro do ano que vem. Com Fernando logos israelenses encontraram vestígios Pavão e Mel Lisboa — lançada em 2002 pela de um templo filisteu no que seriam Globo, na minissérie Presença de Anita — nos os resquícios da cidade. As ruínas, na papéis principais, o seriado terá locações região sul de Israel, remontam ao décimo em Minas Gerais e em áreas do Nordeste século antes de Cristo, período compaque lembram desertos. O departamento tível com aquele em que viveu Davi. de teledramaturgia da Record anunciou também que já está trabalhando em outra 11 Casuísmo religioso minissérie bíblica, A história de Davi, que A Indonésia está prestes a alterar a lei que será mais longa e terá capítulos diários. estabelece os cultos cuja prática é permitida em seu território. O país, muçulmano, 8 Caio Fábio na LBV reconhece oficialmente, além do próprio Acostumado a polêmicas, o pastor Caio Fábio islamismo, o budismo, o hinduísmo e o D’Araújo Filho, dirigente da igreja Camicristianismo, nas expressões protestante nho da Graça, em Brasília, anunciou que e católica. O Tribunal Constitucional Indoagora está na Legião da Boa Vontade, a LBV. nésio pode ampliar os casos de repressão Calma, o religioso não aderiu aos ensinos de legal contra atos considerados blasfemos espiritualidade universalista e ecumênica da às religiões estabelecidas – na verdade, entidade. É que ele divulgou em seu site que um casuísmo para favorecer a fé islâmica, a sua comunidade passou a reunir-se, desde majoritária. De acordo com o miniso mês passado, no Parlamundi, um amplo tro de Assuntos Religiosos da Indonésia, local de reuniões da LBV na capital federal. Suryadharma Ali, a intenção é proteOs encontros acontecem todo domingo. ger os fundamentos de “fé e doutrina”.
Américas
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África
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“Como a Igreja Universal trabalha de forma totalmente lícita, é necessário atender o que a legislação determina, de modo que temos que ter um contrato de locação com a Rede Record, pagar os preços de mercado pela transmissão da programação e contabilizar tudo isso, a fim de fazermos tudo dentro da lei”
“O Islã deve se transformar na religião de toda a Europa” Muamar Khadafi, presidente da Líbia, a uma plateia de 500 mulheres na Itália. Cada uma recebeu 80 euros – o equivalente a cerca de R$ 215 – para ouvir seu discurso
Fonte: SBU
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D I V U L G A Ç Ã O
Pressionado, o papa Bento XVI sancionou pacote de medidas mais duras contra padres pedófilos
RELIGIÃO
Jogo duro Vaticano adota regras que aumentam punições para sacerdotes pedófilos da Redação
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Vaticano adotou medidas mais duras para combater a mazela da pedofilia no sacerdócio. Após ser acusada pelo mundo de acobertar crimes sexuais praticados por clérigos durante décadas, a Igreja Católica anunciou um pacote de mudanças em seus estatutos, com o objetivo de impedir ou ao menos inibir delitos dessa natureza. A partir de agora, por exemplo, o prazo prescricional avança de dez para 20 anos, contados a partir da data em que a vítima de eventual crime sexual praticado por um padre atinja a maioridade. As novas normas preveem ainda penas para uso ou divulgação de material pornográfico envolvendo menores e que leigos poderão ser designados para os Tribunais Eclesiásticos, numa tentativa de contornar o corporativismo de batina no julgamento dos casos. O documento, intitulado Normas sobre crimes mais graves, foi apresentado à imprensa pelo porta-voz do Vaticano, monsenhor Federico Lombardi. As novas leis foram sancionadas pelo papa Bento XVI e tornam mais rigoroso o estatuto anterior, promulgado por seu antecessor João Paulo II em 12
CRISTIANISMO HOJE
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2001, após uma enxurrada de críticas à Igreja – não só pela ocorrência dos crimes, como pelo acobertamento com que normalmente os casos são tratados. O próprio chefe atual da Igreja Católica foi acusado de fazer vista grossa para atos de pedofilia praticados por seus subordinados, na época em que era bispo de Munique, na sua Alemanha natal. O documento, no entanto, não estabelece a obrigação de que líderes de paróquias e dioceses denunciem os crimes de que tomem conhecimento à Justiça comum – uma das principais reivindicações das associações de vítimas de pedofilia e seus advogados. SOLIDARIEDADE
Bíblia no abismo
Mineiros soterrados no Chile recebem microexemplares das Escrituras da Redação
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resos a quase 700 metros de profundidade numa mina de cobre que desmoronou no Chile há quase dois meses, os 33 mineiros sobreviventes só deverão ser resgatados, segundo as estimativas, em novembro.
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Mas, até lá, poderão ter momentos de paz e crescimento espiritual no fundo da terra. Além de receberem mantimentos, água, remédios, itens de higiene e até videogames portáteis por um duto, os mineiros ganharam exemplares da Bíblia Sagrada. A iniciativa foi do pastor adventista Carlos Parra Diaz, da região de Atacama, onde fica a mina San José, onde ocorreu o acidente. Diaz conseguiu pequenos exemplares das Escrituras, que pudessem passar pelo duto. Cada Bíblia desceu acompanhada de uma lupa para facilitar e leitura e com uma marcação no Salmo 40, cujo texto, que tem tudo a ver com a situação dos homens, diz: “Esperei confiantemente pelo Senhor; ele se inclinou para mim e me ouviu quando clamei por socorro. Tirou-me de um poço de perdição, de um tremedal de lama; colocou meus pés sobre a rocha e me firmou os passos”. O pastor escreveu ainda uma dedicatória personalizada para cada mineiro e a frase: “Estamos orando por vocês”. DEMOGRAFIA
Censo impreciso A NOVA FAMÍLIA BRASILEIRA A Síntese de Indicadores Sociais do IBGE mostra que o perfil da família brasileira mudou muito nos últimos dez anos: A quantidade de pessoas por domicílio caiu de
3,4 para 3,1 Casais sem filhos passaram de
13% para 17% A família tradicional (formada por homem, mulher e filhos na mesma casa) já não é maioria: se disseram nesta situação apenas
47% Em compensação, a quantidade de adultos que vivem sozinhos já é de
11% E as mulheres que cuidam sozinhas dos filhos são
17%
Líderes cristãos criticam critérios usados pelo IBGE para quantificar o pertencimento religioso da Redação
O
Censo 2010, que está na fase de totalização de dados, já está na mira das lideranças católicas e evangélicas. Padres e pastores questionam o fato de apenas 10% dos entrevistados terem sido questionados acerca de seu pertencimento religioso – o que, segundo eles, pode distorcer tremendamente as estatísticas. O arcebispo do Rio de Janeiro, Orani Tempesta, solicitou à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) que orientasse os fiéis a responder claramente à pergunta: “Que digam que são católicos, e não, simplesmente, cristãos”, apelou Tempesta. Já os evangélicos criticam o caráter excessivamente genérico do questionário elaborado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que não faz diferença entre grupos denominacionais, mesmo no caso de crenças antagônicas, como a dos Testemunhas de Jeová e os pentecostais, por exemplo.
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que realmente faz jus ao nome: o Vale da Bênção. Situado em Araçariguama, cidade próxima a São Paulo, o Vale da Bênção é um complexo social, educativo e espiritual que atendeu só no ano passado mais de 2 mil crianças e adolescentes diretamente, fora as mais de 8,5 mil pessoas e centenas de famílias beneficiadas pela instituição. “Temos tido o privilégio de ser canal de bênção para milhares de crianças. O Vale da Bênção é uma realidade divina”, comemora Jonathan. Tais resultados se tornaram possíveis graças à aquisição de uma grande propriedade, à margem da Rodovia Castelo Branco, onde hoje funcionam a Cidade da Criança, o Colégio Vale da Bênção, a Creche Gotinhas de Vida e o Centro Comunitário Vou Vencer, além de casas-lares e de um
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Famílias apoiadas
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inguém sabe dizer exatamente como é que nascem sonhos – se é a partir de uma ideia ou se, contrariamente, são eles que inspiram os projetos. O fato é que da união entre a motivação e o idealismo é que surgem iniciativas capazes de mudar a vida de muita gente. Uma dessas iniciativas está completando 25 anos agora em 2010, e quem vê o que é hoje a Associação Educacional e Beneficente Vale da Bênção (AEBVB) percebe que ela ultrapassou em muito a ideia de seu fundador, o pastor e missionário Jonathan Ferreira dos Santos. Foi ele quem, em 1985, resolveu dar ao seu ministério uma dimensão essencialmente social, amparando crianças carentes no centro de São Paulo. De um centro de assistência a crianças montado no bairro da Lapa, o sonho ganhou força e deu origem a um lugar
Crianças e jovens atendidos diretamente nas unidades
Associação Vale da Bênção atua há 25 anos oferecendo educação, inserção social e base cristã a milhares de crianças e adolescentes por Carlos Fernandes
seminário teológico. A entidade administra ainda a Casa Nova Vida e o Programa Liberdade Assistida, na cidade de Sorocaba, além do Núcleo de Proteção Psicossocial e o Centro de Referência Ação Família, na capital. “Nossa missão é garantir direitos básicos a menores em situação de risco social”, sintetiza Jonathan. Considerada de Utilidade Pública Federal, Estadual e Municipal, a AEBVB conta hoje com equipes multidiscipli8.560 nares que atendem ao público interno e externo. Parte importante do trabalho é realizado junto ao Poder Judiciário. Além do amparo a menores infratores, a instituição tem intermediado junto às 2.040 Varas de Família processos de adoção de crianças ou sua reinserção familiar. Tudo é mantido graças ao repasse de recursos públicos, parcerias, doações e da renda oriunda, entre outras fontes, 480 do aluguel de parte das instalações para eventos, retiros e congressos. “Ao longo desses anos, temos buscando sustentabilidade através de ações que venham O trabalho do Vale da ao encontro de nossa missão e valores”, Bênçao em números diz Tércio Oliveira, pastor e diretor de Números relativos a 2009 Programas Sociais da entidade. 8 Atividades culturais, educativas, sociais e espirituais envolvem quase 2 mil menores no Vale da Bênção
Pessoas beneficiadas pelos projetos
Missão de servir
A R Q U I V O
Templo-sede da Congregação Cristã lotado de fiéis: com mensagem pentecostal ortodoxa e pregando hábitos recatados, denominação espalhou-se pelo país
HISTÓRIA
Avivamento, tradição e gigantismo Desconhecida até pelos evangélicos, Congregação Cristã no Brasil chega aos 100 anos com mais de 2,5 milhões de fiéis por Marcos Stefano
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oi num casebre na pequena Santo Antônio da Platina, no interior do Paraná, que há exatos cem anos nasceu aquela que hoje é – embora ainda bastante desconhecida – a segunda maior igreja pentecostal do país. Fruto do pioneirismo espiritual de um imigrante italiano, a Congregação Cristã no Brasil (CCB) cresceu sem alarde, pregando uma mensagem de viés ortodoxo e sem fazer propaganda de si mesma. Segundo dados do Censo (não o atual, ainda em apuração, mas aquele realizado em 2000), a denominação já tem 2,5 milhões de fiéis, número expressivo mesmo no contexto brasileiro. 16
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Seus 18 mil templos, com arquitetura característica, espalham-se por todo o território nacional e, segundo dados próprios, a igreja está presente em 60 países, inclusive Egito, Japão e a ainda fechada China. Mesmo depois de tanto tempo e apesar de seu gigantismo, bastante gente ainda desconfia da Congregação Cristã (CCB) e até a tacha como seita. Muito, evidentemente, por causa do isolamento da igreja em relação às demais denominações evangélicas. Embora não digam com todas as letras, seus membros costumam se referir à igreja como a única correta. Sectarismo à parte,
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NÚMEROS Congregação Cristã do Brasil
2,5 milhões de fiéis
18 mil templos no Brasil
60 países têm presença da denominação
como explicar que uma organização religiosa que rejeita métodos modernos de divulgação, não utiliza rádio ou televisão, não produz nenhum tipo de publicação além de seus pontos de fé e seu hinário e não realiza cruzadas ou pregações em lugares públicos tenha se expandido dessa maneira? Para seus líderes, não existe outra explicação, senão a bênção de Deus. Mas a razão também pode ser encontrada no estilo de trabalho praticado desde suas origens pelo homem que trouxe a fé pentecostal para o Brasil: o italoamericano Luigi (ou Louis) Francescon. Nascido em Udine, na Itália, em uma família católica,
“ANUNCIAR A MENSAGEM” Mesmo com a inevitável assimilação cultural, a denominação mantém uma forte presença interiorana. Como rejeita todo tipo de propaganda além das pregações nos cultos e do evangelismo pessoal, acaba se dando melhor em cidades menores, nas quais a via
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Francescon converteu-se ao presbiterianismo aos 26 anos, já nos Estados Unidos. Em Chicago, passou a se reunir com um grupo ligado ao movimento Holiness, e, em 1907, abraçou a fé avivada na igreja do pastor William Durham. Foi Durham que, mais tarde, também influenciaria Daniel Berg e Gunnar Vingren, os fundadores da Assembleia de Deus – a gigante pentecostal surgida em Belém (PA) em 1911 e que anos depois se tornaria a maior igreja evangélica brasileira. Tendo recebido do Senhor, segundo contava, a tarefa de levar a mensagem do batismo no Espírito Santo à colônia italiana, Francescon e outro compatriota crente, G.Lombardi, foram para a Argentina em 1909. Em janeiro do ano seguinte, abriram uma igreja nos subúrbios da capital Buenos Aires, a Assemblea Cristiana. Animados com o sucesso inicial, os missionários chegaram a São Paulo em março do ano seguinte. Os resultados não foram bons, e Lombardi preferiu voltar à Argentina, enquanto Francescon foi a Santo Antônio da Platina visitar um amigo evangélico, também italiano. Logo começaram a fazer cultos onde aconteceram as primeiras conversões e foi aberta a primeira igreja. O ano era 1910. Ciente de que tinha nas mãos uma grande obra a desenvolver, o missionário tornou-se conhecido. Convidado a pregar em italiano na Igreja Presbiteriana do Brás, em São Paulo, falou da doutrina pentecostal. Não deu outra: sua mensagem avivada provocou uma divisão. Aqueles que aceitaram a doutrina do Espírito juntaram-se a alguns crentes vindos das igrejas batista e metodista, bem como a convertidos do catolicismo. Aquele foi o embrião da denominação. A Congregação cresceu rumo ao interior paulista seguindo a rota dos imigrantes e, dali, espalhou-se pelo país.
O pioneiro Luigi Francescon diante do casebre onde nasceu a denominação, no interior do Paraná: raízes rurais
familiar de divulgação funciona mais. Nas grandes metrópoles, mesmo com belíssimos e espaçosos templos, seu crescimento nos últimos tempos é bem menor, se comparado com outras denominações pentecostais e neopentecostais. “Nossa única missão é fazer o trabalho de Deus”, proclama Norival Marques, um dos quatro anciãos da sede da denominação, no Brás, em São Paulo. Sem aceitar conceder uma entrevista, ele conversou informalmente com a reportagem. A igreja não tem a figura do pastor. Quem exerce a liderança espiritual são os anciãos, cargo a que apenas homens de certa idade têm acesso, e pelo qual não recebem remuneração alguma. Atualmente, o principal ancião da denominação é Jorge Cury. Os cultos se desenrolam num ambiente sóbrio. Com mulheres com seus véus e saias recatadas, à direita, e homens à esquerda do templo, os fiéis permanecem compenetrados durante a liturgia. Todos os obreiros envergam ternos e parte importante da celebração é preenchida pela música. O destaque dado ao louvor musical transformou a igreja nos últimos tempos em um dos principais celeiros de talentos da música clássica no Brasil. Além das canções congregacionais, entoadas por todos, os testemunhos são destaque no culto. Até a hora da pregação, ninguém sabe quem vai ministrar a Palavra. Também não há preparação de sermão. Tanto a revelação de quem será o mensageiro quanto a inspiração para a mensagem são, segundo os congregacionalistas, dadas por Deus na hora.
Por isso, todos os crentes são incentivados a buscar a direção divina em qualquer assunto. Ao que tudo indica, o tempo não passou muito para a Congregação Cristã nesses últimos cem anos. Mas, se a essência da mensagem é a mesma, o tamanho de seus templos e a quantidade de pessoas que os frequentam mostram que muita coisa mudou desde os tempos de Francescon, que morreu aos 98 anos, tendo passado dez deles, de maneira descontínua, no país. Até hoje, o respeito ao pioneiro é tamanho que seu texto sobre as origens é o único que essa igreja de cultura eminentemente oral se permitiu publicar. Atencioso, Norival explicou alguns aspectos da CCB. De acordo com o ancião, o trabalho social e a cooperação mútua entre os membros são características importantes da denominação. Ele confirma a rejeição da igreja às coisas mundanas, inclusive a literatura. “Outras luzes, não queremos”, frisa. Sobre o centenário, ressaltou a importância da história. “Relembrar a data é importante, assim como aprender com tudo que já aconteceu”, frisa o religioso. “Isso vale para todos, já que o pentecostes se espalhou por todas as igrejas”. Mesmo assim, a CCB não terá nenhuma comemoração ou evento especial. “Fomos chamados para anunciar a mensagem de Jesus e todos os nossos esforços estão canalizados nisso. Essa é a melhor maneira que encontramos para agradecer ao Senhor pelo centenário da obra e, mais uma, vez mostrar a diferença da Congregação Cristã”, encerra Norival. 8
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do Corpo Movimento de contestação à institucionalização da Igreja cresce, mas líderes apontam essencialidade da comunhão
por Mauricio Zágari
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Igreja Evangélica brasileira está cansada. E é um cansaço que vem provocando mudanças fortes de paradigmas com relação aos modelos eclesiásticos tradicionais. Ele afeta milhões de pessoas que se cansaram de promessas que não se cumprem, práticas bizarras impostas de cima para baixo, estruturas hierárquicas que julgam imperfeitas ou do mau exemplo e do desamor de líderes ou outros membros de suas congregações. Dessa exaustão brotou um movimento que a cada dia se torna maior e mais visível: o de cristãos que abandonam o convívio das igrejas locais e decidem exercer sua religiosidade em modelos alternativos – ou, então, simplesmente rejeitam qualquer estrutura congregacional e passam a viver um relacionamento solitário com Deus. O termo ainda não existe no vernáculo, mas eles bem que poderiam ser chamados de desigrejados. No cerne desse fenômeno está um sentimento-chave: decepção. Em geral, aqueles que abandonam os formatos tradicionais ou que se exilam da convivência eclesiástica tomam tal decisão movidos por um sentimento de decepção com algo ou alguém. Muitos se protegem atrás da segurança dos computadores, em relacionamentos virtuais com sacerdotes, conselheiros ou simples irmãos na fé que se tornam companheiros de jornada. Há ainda os que se decepcionam com o modelo institucional e o abandonam não por razões pessoais, mas ideológicas. Outros fogem de estruturas hierárquicas que promovam a submissão a autoridades e buscam relações descentralizadas, realizando cultos em casa ou em espaços alternativos. A percepção de que as decepções estão no coração do problema levou o professor e pastor Paulo Romeiro a escrever Decepcionados com a graça (Mundo Cristão), livro onde avalia algumas causas desse êxodo. Embora tenha usado como objeto de estudo uma denominação específica – a Igreja Internacional da Graça de Deus –, a avaliação abrange um momento delicado de todo o segmento evangélico. Para ele, o epicentro está na forma de agir das igrejas, sobretudo as neopentecostais. “A linguagem dessas igrejas é dirigida pelo marketing, que sabe que cliente satisfeito volta. Por isso, muitas estão regendo suas práticas pelo mercado e buscam satisfazer o cliente”. Romeiro, que é docente de pós-graduação no Programa de Ciências da Religião da Universidade Mackenzie e pastor da Igreja Cristã da Trindade,
em São Paulo, observa que essas igrejas não apresentam projetos de longo prazo. “Não se trata da morte, não se fala em escatologia; o negócio é aqui e agora, é o imediatismo”. Segundo o estudioso, a membresia dessas comunidades é, em grande parte, formada por gente desesperada, que busca ajuda rápida para situações urgentes – uma doença, o desemprego, o filho drogado. “O problema é que essa busca gera uma multidão de desiludidos, pessoas que fizeram o sacrifício proposto pela igreja mas viram que nada do prometido lhes aconteceu.” Se a mentalidade de clientela provocou um efeito colateral severo, a ética de mercado faz com que os fiéis passem a rejeitar vínculos fortes com uma única igreja local, como aponta tese acadêmica elaborada por Ricardo Bitun. Pastor da Igreja Manaim e doutor em sociologia, ele usa um termo para designar esse tipo de religioso: é o mochileiro da fé. “Percebemos pelas nossas pesquisas que muitas igrejas possuem um corpo de fiéis flutuantes. Eles estão sempre de passagem; são errantes, andam de um lugar para outro em busca das melhores opções”, explica. Essa multiplicação das ofertas religiosas teria provocado um esvaziamento do senso de pertencimento, com a formação de laços cada vez mais temporários e frágeis – ao contrário do que normalmente ocorria até um passado recente, quando era comum que as famílias permanecessem ligadas a uma instituição religiosa por gerações. Para Bitun, a origem desse comportamento é a falta de um compromisso mútuo, tanto do fiel para com a denominação e seus credos quanto dessa denominação para com o fiel. O descompromisso nas relações, um traço de nosso tempo, impede que raízes de compromisso – não só com a igreja, mas também em relação a Deus – sejam firmadas. “Enquanto está numa determinada igreja, o indivíduo atua intensamente; porém, não tendo mais nada que lhes interesse ali, rapidamente se desloca para outra, sem qualquer constrangimento, em busca de uma nova aventura da fé”, constata. Modelo desgastado O desprestígio do modelo tradicional de igreja, aquele onde há uma liderança com legitimidade espiritual perante os membros, numa relação hierárquica, já não satisfaz uma parcela cada vez maior de crentes. “As decepções ocorrem tanto por causa de líderes quanto de outros crentes”, aponta o pastor Valdemar Figueiredo
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Igreja virtual Gente como Pércio e Loba compartilham algo em comum, além da busca por uma espiritualidade em moldes heterodoxos: são ativos no ambiente virtual, seja por meio de blogs ou através de ferramentas como o twitter e outras redes sociais. É cada vez maior a afluência de pessoas das mais diversas origens denominacionais à internet, em busca de comunhão, instrução e edificação. O pastor Leonardo Gonçalves lidera a Iglesia Bautista Misionera em Piura, no Peru. Mestre em teologia, edita o blog Púlpito cristão. “Quando comecei esse trabalho, passei a conhecer muitas pessoas que estavam insatisfeitas com os rumos que o evangelicalismo brasileiro estava tomando”, revela. “Neste processo, alguns começaram a ver o blog como uma alternativa à Igreja, ou até mesmo como uma igreja virtual”. Leonardo lida com esse tipo de público diariamente no blog. “Geralmente, são pessoas extremamente ressentidas. Consideram-se vítimas de líderes abusivos e autoritários e relatam que tiveram sua autonomia violada e a identidade quase banida em nome de uma mentalidade de rebanho que não refletia os ideais de Cristo.” Outro que considera natural essa migração em busca de uma comunhão cristã que prescinde da igreja tradicional é o marqueteiro e blogueiro presbiteriano Danilo Fernandes, editor do blog e da newsletter Genizah Virtual. Voltado à apologética, seu trabalho tem causado polêmicas e enfrentado resistências, inclusive de líderes eclesiásticos. “Pessoas cansadas de suas igrejas estão buscando pregadores com boas palavras, o que as leva à internet”. Para ele, buscar comunhão virtual em chats e outras mídias sociais é uma tendência. “A massa está desconfiada por traumas do passado; é gente machucada, marcada, ferida, gente que viu seus ídolos caírem”, conclui. Ele mesmo tem atendido diversas pessoas que o procuram para desabafar ou pedir conselhos. Um resultado dessa busca por comunhão no ambiente virtual é o surgimento de grupos como o Clube das Mulheres Autênticas (CMA). Nascido de uma brincadeira entre mulheres cristãs que se conhecem apenas virtualmente, o grupo tem como lema “Liberdade de ser quem realmente se é”. A bacharel em direito Roberta Oliveira Lima, de 31 anos, é uma das integrantes. Ex-membro da Igreja Batista da Lagoinha, em Belo HoriBitun aponta a crise na ideia de zonte (MG), ela afastou-se de muitas compromisso: “Mochileiros da fé” das práticas ensinadas no modelo congregacional e se diz em busca de uma igreja “sem excessos”. Ela se define como “uma pessoa desigrejada, mas não desviada dos princípios do Evangelho”. Segundo Roberta, o CMA supre carências que a igreja local já não preenchia mais. “Nosso espaço tem sido um local de refúgio, acolhimento e alegrias”, relata. Ela garante que, até o momento, o grupo não sentiu falta de uma figura sacerdotal. “Aquilo que nos propomos a buscar não
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Filho, da Igreja Batista Central em Niterói (RJ). Para ele, um fator-chave que provoca a multiplicação dos desigrejados é a frustração em relação a práticas e doutrinas. “Nesses casos, geralmente quem se decepciona é quem se envolve muito, quem participa ativamente da vida em igreja”. Com formação sociológica, o religioso diz que o fenômeno não se restringe à esfera religiosa, já que todo tipo de tradição Alderi diz que pessoas se afastam da tem sido questionada pela igreja, entre outros fatores, pela falta de acolhimento, centralização da liderança e sociedade. “Há uma tendênfrustração com doutrinas cia ampla de se confrontar as instituições de modo geral”, diz Valdemar, que é autor do livro Liturgia da espiritualidade popular evangélica (Publit). O jovem Pércio Faria Rios, de 18 anos, parece sintetizar esse tipo de sentimento em sua fala. Criado numa igreja tradicional – ele é descendente de uma linhagem de crentes batistas –, Pércio hoje só frequenta cultos esporadicamente. “Sinto-me muito melhor do lado de fora”, admite. “Estou cansado da igreja e da religião”. A exemplo da maioria das pessoas que pensam como ele, o rapaz não abriu mão da fé em Jesus – apenas não quer estar ligado ao que chama de “igreja com i minúsculo”, a institucional, que considera morta. “Reconheço o senhorio de Cristo sobre a minha vida e sou dependente da sua graça”, afirma. E qual seria a Igreja com i maiúsculo, em sua opinião? “O Corpo de Cristo, que continua vivo, e bem vivo, no coração de cada cristão.” Boa parte dos desigrejados encontra no território livre da internet o espaço ideal para exposição de seus pontos de vista. É o caso de uma mulher de 42 anos que vive em Cotia (SP) e assina suas mensagens e posts com o inusitado pseudônimo de Loba Muito Cruel. À reportagem de CRISTIANISMO HOJE, ela garante que é uma ovelha de Jesus, mas conta que durante muito tempo foi incompreendida e rejeitada pela igreja. “Desde os nove anos, estive dentro de uma denominação cheia de dogmas e regras rígidas, acusadora e extremamente castradora”. Na juventude, afastou-se do Evangelho, mas o pior, diz ela, veio depois. “Retornei ao convívio dos irmãos tatuada e cheia de vícios, e ao invés de ser acolhida, não senti receptividade alguma por parte da igreja, o que acabou me afastando mais ainda dela. Percebi o quanto os crentes discriminam as pessoas”, queixa-se. Loba conta que, a partir dali, começou uma peregrinação por várias igrejas. Não sentiu-se bem em nenhuma. “Percebi que nenhum dos líderes vivia o que pregava. Isso foi um balde de água fria na minha fé”, relata. Hoje, ela prefere uma expressão de fé mais informal, e considera possível tanto a vida cristã como o engajamento no Reino de Deus fora da igreja – “Desde que haja comunhão com outros irmãos de fé, que se reúnam em oração e para compartilhar a Palavra, evangelizar e atuar na comunidade”, enumera.
“Galho seco” “Falta de acolhimento pela comunidade, o desgaste provocado pelo estilo centralizador e carismático de liderança e frustração com as ênfases doutrinárias contribuem para esse fenômeno”, concorda o pastor Alderi Matos, professor de teologia histórica no Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper, em São Paulo. Mas ele destaca outro fator que empurra as pessoas pela porta de saída dos templos: “É quando uma igreja e seus líderes se envolvem em escândalos morais e outros”. A paraibana C., de 37 anos, é um exemplo de gente que fez esse penoso percurso. Ela relata uma história de abusos e falta de princípios bíblicos na ccongregação presbiteriana onde foi membro por mais de quinze anos, culminando com um caso de violência doméstica de que foi vítima – sendo que o agressor, seu marido, era pastor. “Havia perdido completamente a alegria de viver, ao me deparar com uma realidade bem distante daquela que o Evangelho propõe como projeto para a vida”. C. fala que conviveu em um ambiente religioso adoecido pela ausência do amor de Cristo entre as pessoas: “Contendas sem fim, maledicência impiedosa e muitos litígios entre pessoas que se diziam irmãs”. Este ano, C. pediu o divórcio do marido e tem frequentado um grupo alternativo de cristãos. “Rompi com a religião. Hoje, liberta disso, tudo o que eu desejo é Jesus, é viver em leveza e simplicidade a alegria das boas novas do Evangelho”. Ela explica que, nesse grupo, encontrou pessoas que vivenciaram experiências igualmente traumáticas com a religião e chegaram com muitas dores de alma, precisando ser acolhidas e amadas. “Temos nos ajudado e temos sido restaurados pouco a pouco. No âmbito do grupo, um ambiente de confiança foi formado, de modo que compartilhar é algo que acontece naturalmente e com segurança.” “As pessoas anseiam por ver integridade na liderança. Quando o discurso não casa com a prática, o indivíduo reconhece a hipocrisia e se afasta”, avalia o bispo primaz da Aliança das Igrejas Cristãs Nova Vida (ICNV), Walter McAlister. Para ele, se os modelos falidos de igrejas que não buscam o senso de comunhão e discipulado – como
os que denuncia em seu livro O fim de uma era (Anno Domini) – não mudarem, o êxodo dos decepcionados vai aumentar. Apesar de compreender os motivos que levam as pessoas a abandonarem a experiência congregacional, o bispo é enfático: “Nossa identidade cristã depende da coletividade e, portanto, de um compromisso com uma família de fé. Sem isso, a pessoa não cresce nas virtudes cristãs e deixa de viver verdadeiramente a sua fé. Como um galho solto, seca e morre”. “O fenômeno dos desigrejados é péssimo. Somos um corpo, nunca vi orelhas andando sozinhas por ai”, diz Paulo Romeiro. O pastor Alderi, que também é historiador, recorre à tradição cristã para defender a importância da igreja na vida cristã. “Da maneira como a fé cristã é descrita no Novo Testamento, ela apresenta uma feição essencialmente coletiva, comunitária. A lealdade denominacional é importante para os indivíduos e para as igrejas. Quem não tem laços firmes com um grupo de irmãos provavelmente também terá a mesma dificuldade em relação a Deus”, sentencia. Sinais do Reino Dentro dessa linha de pensamento, é possível até mesmo encontrar quem fez uma jornada às avessas, ou seja, da informalidade religiosa para o pertencimento denominacional. Responsável pelo blog Lion of Zion, Marco Antonio da Silva, de 31 anos, é membro da Comunidade da Aliança, ligada à Igreja Presbiteriana do Brasil, em Recife (PE). Ele afirma que redescobriu sua fé na igreja institucional. “Para alguns militantes virtuais mais radicais, isso seria uma heresia, mas tenho uma família com necessidades que uma igreja local pode suprir – e a congregação da qual faço parte supre essa lacuna muito bem”, afirma. “Existe desgaste, autoritarismo e inoperância em todos os lugares onde o homem está”, reconhece o pastor e missionário Nelson Bomilcar. Ele prepara um livro sobre o tema, Paulo Romeiro, o fenômeno é baseado nas próprias observa- Para prejudicial: “Somos corpo. Nunca vi ções do segmento evangélico ovelhas andando sozinhas” a partir de suas andanças pelo país. “Podemos ficar cansados e desencorajados, mas temos que perseverar e continuar amando e servindo a Igreja pela qual Jesus morreu e ressuscitou”. Como músico e integrante do Instituto Ser Adorador, Bomilcar constantemente percorre congregações das mais variadas confissões denominacionais – além de ser ligado a seis igrejas locais, ele congrega na Igreja Batista da Água Branca, em São Paulo. “Continuo acreditando na Igreja do Senhor. Estou na igreja porque fui colocado nela pelo Espírito Santo. É possível viver o Evangelho na comunidade, apesar de todas as suas ambiguidades, para balizarmos aqui e ali sinais do Reino de Deus. Tenho sido testemunha disso.” 8
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requer tal figura”, alega. “Pelo contrário, temos entre nós alguns feridos da religião e abusados por figuras sacerdotais clássicas. O nosso objetivo maior é compartilhar a vida e o Evangelho que permeia todos os centímetros de nossa existência”, descreve, ressaltando que, para isso, não é Danilo diz que cada vez mais pessoas recorrem necessário adotar à internet para expressar sua espiritualidade uma postura proselitista. “Mas nosso objetivo jamais será o de substituir a igreja local”, enfatiza.
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MATÉRIA DE CAPA
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ESPECIAL
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O caminho, a verdade e a vida
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são moldadas por nossa cultura – as músicas que escutamos, os filmes que assistimos, os livros que lemos. Nós, por outro lado, aprendemos sobre amor ao olhar para Jesus. Ele é a encarnação do gracioso caráter de Deus, do verdadeiro amor. Esse amor não é uma noção abstrata ou um conjunto de sentimentos; antes, é caracterizado pela ação de Deus, na pessoa de seu filho Jesus. Comprometer-se com Jesus como o caminho significa que não precisamos conhecer a natureza do amor divino antes do tempo. Nós não podemos deixar que nossa cultura nos diga o que é o amor. Ao invés disso, nosso entendimento de verdadeiro amor – o amor de Deus –, é moldado pela forma particular pela qual o Pai ama através de Jesus. O próprio Filho de Deus exemplificou o caminho do amor em sua missão no mundo. Ele fez isso quando foi à sinagoga em Nazaré no sábado e citou as palavras do profeta Isaías: “O Espírito do Senhor é sobre mim, pois que me ungiu para evangelizar os pobres. Enviou-me a curar os quebrantados do coração, a pregar liberdade aos cativos, e restauração da vista aos cegos, a pôr em liberdade os oprimidos, e a anunciar o ano aceitável do Senhor” (Lucas 4.18-19). Ao chamar os discípulos e criar a comunidade do caminho, o Salvador nos chama a nos unirmos a ele em seu sofrimento e luta pela liberação da raça humana das forças das trevas. Já em sua conversa com Zaqueu, o coletor de impostos que após encontrar-se com ele prometeu dar metade de seus bens aos pobres e restituir a quem havia defraudado, Cristo foi enfático: “Hoje veio a salvação a esta casa, pois também este é filho de Abraão.
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m meio a um mundo com tanta diversidade religiosa, o que significa dizer que Jesus é o caminho, a verdade e a vida? Historicamente, cristãos têm afirmado categoricamente muito mais do que isso, ao defender a unicidade de Cristo como o Filho de Deus. Para eles, Jesus é nada menos do que o Deus encarnado, em quem a plenitude divina habita em forma humana. De maneira simplificada, pode-se dizer que tal profissão de fé significa olhar para Jesus a fim de descobrir a forma pela qual o Senhor age no mundo. Como encarnação divina do amor e da missão de Deus, Cristo exemplifica seu caminho neste mundo. Ele estava com Deus no começo, conforme enfatiza o evangelho segundo João, e foi enviado não apenas para falar à humanidade sobre Deus, mas também para nos mostrar ao homem como Deus deseja que ele viva. E de que forma o Senhor deseja que vivamos? A resposta mais curta é a de que espera que amemos: “Amados, amemo-nos uns aos outros; porque o amor é de Deus; e qualquer que ama é nascido de Deus e conhece a Deus. Aquele que não ama não conhece a Deus; porque Deus é amor” (I João 4.7-8). A pergunta que se segue, todavia, seria uma só: “O que é o amor?”. Muitos acreditam que sabem o que é amor. Amor, numa análise mais elementar, é aquilo que nos faz sentir bem. Amor não julga. Amor significa não precisar dizer “me desculpe”. À luz da fé cristã, no entanto, tais respostas soam inadequadas; erradas, até. Acontece que essas ideias comuns sobre amor
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por John R. Franke
First published in Christianity Today, copyright © 2010. Used by permission, Christianity Today International
Os cristãos devem entender que sua tarefa não é a de apenas apresentar verdades intelectuais abstratas ou meros valores morais ao mundo, mas convidar as pessoas a uma comunhão concreta de amor com o Senhor
Porque o Filho do homem veio buscar e salvar o que se havia perdido”. Então, a Igreja, seguindo os padrões estabelecidos por seu fundador, existe para salvar o perdido e proclamar as boas novas da salvação em Cristo. Por isso, evangelismo é central para a libertadora e reconciliadora missão de Deus. O terceiro texto que tipifica o cerne do Evangelho está na carta de Paulo aos Filipenses 2.6-8, segundo o qual Jesus esvaziou-se a si mesmo, “tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens; e, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz”. Fidelidade à missão de Jesus significa imitar sua humilhação, ao considerar o próximo mais do que a nós mesmos. Este é o caminho de Jesus, e afirmá-lo como tal significa o reconhecimento de que ele nos mostra quem Deus é e como age no mundo, bem como a unicidade de seu caráter e missão. Ao contrário do dito popular, não são todos os caminhos que levam a Deus. O caminho de Jesus não é apenas uma proposta de espiritualidade de outro mundo, ou um ativismo social que pode ser visto como alternativa de vida. Ao invés disso, é o caminho da humilhação e da autonegação por amor dos outros.
conclusão têm levado muitos a, como Pilatos – que, candidamente, indagou de Cristo o que seria a verdade –, agirem de forma cínica. Todavia, a crença cristã de que Jesus é a verdade sugere uma resposta que traz esperança. A verdade não existe para ser encontrada, em sua forma final, em noções abstratas ou teorias, mas em Jesus Cristo, o único Filho de Deus; portanto, a verdade encarnada. À luz dessa perspectiva, para conhecer a verdade é necessário relacionar-se com essa pessoa que é a verdade divina. Jesus é categoricamente diferente de todos os outros profetas, testemunhas e mensageiros de Deus. Ele é todas estas coisas; e muito mais – juntamente com o Pai e o Espírito, Jesus é o próprio Deus. No evangelho de João, essa afirmação é feita pela identificação de Jesus como o verbo de Deus, a viva e ativa palavra de Deus, a base da criação: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens. E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam” (João 1.1-5). João explicitamente revela o que ele quer dizer ao chamar Jesus de verbo de Deus – e certamente se refere a algo mais do que apenas uma verdade abstrata: “Porque a lei foi dada por Moisés; a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo. Deus nunca foi visto por alguém. O Filho unigênito, que está no seio do Pai, esse o revelou” (João 1.17-18). Jesus, portanto, é apresentado como a grande verdade de Deus; a verdade encarnada, ativa, relacional e graciosa. Dizer que Cristo é a verdade acarreta uma série de implicações. A primeira delas é a de que não podemos limitar nosso entendimento a seu respeito como um mero mestre moral e líder religioso de destaque; tampouco podemos identificá-lo apenas como um gênio que caminhou entre nós. Isso seria comprometer o entendimento das verdades básicas acerca
Nosso entendimento de verdadeiro amor – o amor de Deus –, é moldado pela forma particular pela qual o Pai ama através de Jesus
RESPOSTA DE ESPERANÇA Por outro lado, o que significa dizer que Jesus é a verdade em um mundo cheio de diferentes propostas de verdades que competem entre si? Especulações complexas e de difícil
de sua pessoa. Quando advogamos em favor da unicidade de Jesus, afirmamos que ele está em uma categoria completamente diferente da de Moisés, Buda, Maomé ou qualquer outro líder religioso. Por certo, muitos deles disseram grandes verdades; contudo, tais verdades se sustentam como tais apenas se apontam para a verdade de Deus, isto é, a vida e obra de Jesus Cristo, a suprema Verdade. Uma segunda consequência da afirmação é a reação à tendência cultural de que qualquer coisa pode ser a verdade. Nestes tempos pós-modernos, cada vez mais as pessoas
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A Igreja tem a audácia de insistir que algumas coisas permanecem verdadeiras, apesar do contexto, das crenças ou opiniões particulares palavras, são uma só em virtude dessa relação mútua. Desde o princípio, e assim será por toda a eternidade, a relação do Deus triúno se caracteriza pela existência do amor. De fato, não há outro Deus que não o Pai, o Filho e o Espírito, unidos em amor desde os tempos eternos. E o amor que caracteriza a relação trinitária revela de forma perfeita a vida de Deus. O Senhor não cria homens para que tenha alguém para amar. A criação revela o amor expansivo de Deus, já que, ao formar o homem, deu vida a uma realidade que não é divina como a sua, e estabelece com ela uma aliança de amor, graça e bênção, atraindo-a a uma vida de comunhão em amor. Participar desta comunhão é o que chamamos de vida. Jesus, 24
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John R. Franke é professor de Teologia Missional no Biblical Seminary, Hatfield, na Pensilvânia (EUA)
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Sem negar o ensino tradicional de que a unidade do Pai, Filho e Espírito está fundada em uma única essência e substância, pensar em Deus nestes termos pode parecer um tanto abstrato. Mas a unidade de Deus também pode ser entendida através da ideia de relacionalidade. As três pessoas da Trindade, embora completamente distintas umas das outras, estão unidas de tal forma que há uma interdependência entre elas; em outras
D A N I E L
AMOR EXPANSIVO
como o único Filho de Deus, vive eternamente nesta condição de amor, e chama a humanidade a fazer parte desta vida através dele. E a Igreja, comunidade dos seguidores de Cristo, é chamada a experimentar essa vida, essa comunhão relacional baseada no amor. Assim, cabe a ela demonstrar ao mundo o propósito de Deus para toda a criação. O povo de Deus, que compartilha o Espírito Santo, participa deste eterno amor, representando seu Senhor perante um mundo caído, refletindo o caráter do Criador. Somente através desta relação, e de forma comunitária, nós podemos verdadeiramente mostrar como Deus é, pois ele é a comunidade do amor, a eterna dinâmica relacional desfrutada pelas três pessoas da Trindade. Uma vez mais, as consequências disso são imensas. Elas envolvem apologética e evangelismo. Reconhecendo que Jesus não é apenas a verdade, mas também a vida, os cristãos devem entender que sua tarefa não é a de apenas apresentar verdades intelectuais abstratas ao mundo, na forma de meros valores morais e uma cosmovisão diferente, mas convidar as pessoas a uma comunhão concreta de amor com o Senhor – uma comunhão vivida aqui e agora na vida da Igreja. Ser um cristão significa participar da vida em Jesus Cristo, já que ele participa da vida do Deus triúno. Essa abordagem da vida é tão única que o crente não pode abandoná-la, como se houvesse alguma outra possibilidade de seguir a Deus ou viver espiritualmente. Negar a unicidade de Jesus como a Vida acaba por comprometer o ensino bíblico da triunidade de Deus. Isso, consequentemente, compromete a essência da missão evangélica de testemunhar o amor de Deus no mundo. Ao tentar testemunhar a unicidade de Cristo ao mundo relativista no qual está inserida, a Igreja de Jesus precisa abandonar a ideia de que isso é algo que se possa demonstrar mediante a exibição de provas definitivas, principalmente àqueles que estão predispostos a negar a argumentação bíblica. Está para além das limitações humanas a possibilidade de produzir nos outros fé para que consigam enxergar a Jesus como ele é. No entanto, o chamado do Corpo de Cristo continua sendo o de testemunhar e demonstrar o significado da pessoa e do amor de Jesus para a fé cristã. A crença de que Jesus é nada menos do que o próprio Deus vindo ao mundo em forma humana molda nosso entendimento de cada aspecto do pensamento cristão. A enorme diversidade de igrejas e confissões cristãs não é um problema a ser resolvido; antes, é um sinal da bênção do Senhor. Na verdade, a fé cristã bíblica só pode ser caracterizada pela pluralidade. Em meio à diversidade, os filhos de Deus devem permanecer unidos nesse ponto básico – o de que Jesus é o caminho, a verdade e a vida. Se a Igreja não permanecer firme neste ponto, tudo o mais será abalado, inclusive a vocação cristã de refletir a imagem de Deus e de sermos corpo de Cristo no mundo. 8
T R A D U Ç Ã O :
constroem suas próprias verdades e querem vê-las aceitas pelos outros. Tal abordagem implica no fato de a verdade ser determinada por fatores particulares. Relativismos culturais negam que um conjunto específico de ideias, crenças ou práticas possa se estabelecer como verdades absolutas. Por isso, é impossível ver as pessoas chegando a um consenso no que diz respeito à verdade; o único consenso que costumamos ver é o da afirmação da não existência de verdade absoluta. Assim, tudo passa a ser uma questão de interpretação: a minha, a sua, a nossa, a deles; e todas são igualmente boas. A Igreja cristã tem a audácia, no meio deste contexto, de insistir que algumas coisas permanecem verdadeiras, apesar do contexto, das crenças ou opiniões particulares. Nem tudo o que é tido como verdade é, de fato, verdadeiro. Algumas crenças, ainda que sejam sustentadas de forma sincera, são falsas – e isso deve ser afirmado com humildade, porque a mensagem cristã é a de que o Evangelho não é uma verdade particular dos cristãos, mas um presente de Deus para todo homem. Tampouco pode o cristão afirmar que conhece a verdade de forma completa, o que somente Deus pode fazer. O que é dado ao homem conhecer acerca da verdade foi revelado através de Jesus. Assim, cristãos não podem defender o relativismo moral sem que, assim, comprometam a doutrina de que Deus, fonte de toda verdade, fala em e através de Jesus, a Verdade. Por essa razão, a afirmação de Cristo como a Verdade é um grande desafio para as idéias abstratas tão em voga no mundo de hoje.
G U A N A E S
O CAMINHO, A VERDADE E A VIDA
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COMPORTAMENTO
}
Espaço de qualidade Consolidação da presença feminina no pastorado leva à busca por novos modelos de liderança
por Vanessa Portella
D
R I C K
S Z U E C S
esde os tempos em que cabia às mulheres a exclusiva tarefa de ficar em casa, cuidando dos afazeres domésticos e dos filhos, elas são maioria nas igrejas. Basta visitar um culto para se ter a impressão de que as mulheres são muito mais numerosas que os homens nas igrejas. Mas só há relativamente pouco tempo têm tido acesso ao local de mais destaque no templo: o púlpito. Ultimamente, o ministério feminino tem ganhado força, num mundo onde cada vez mais as mulheres se destacam. Em mais e mais igrejas evangélicas – tradicionais, pentecostais ou neopentecostais –, a figura das pastoras, diaconisas, presbíteras e até bispas já se tornou rotineira, situação bem diferente do que ocorria no passado, quando ao gênero feminino eram reservados cargos de menor visibilidade, como cuidar de crianças ou lecionar na Escola Dominical. A Igreja Evangélica brasileira chega à segunda década do século 21 com uma face mais feminina do que nunca. Segundo as estatísticas da organização Servindo Pastores e Líderes (Sepal), quase 60% dos crentes brasileiros são mulheres. E, embora ninguém goste de assumir qualquer discriminação, é fato notório que a membresia feminina demorou bastante para sair das posições eclesiásticas periféricas e conseguir ascender à liderança. Mas que fique claro que não foi uma transformação consciente, planejada – como acontece com 26
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a maioria das mudanças de natureza social, a revolução feminina evangélica é parte de um todo. “A Igreja passou a responder às necessidades da sociedade e essa mudança de paradigma se deu na medida em que a sociedade abriu-se para a liderança feminina nas mais diversas áreas”, diz o missionário Luis André Bruneto, coordenador de pesquisas da Sepal. O pesquisador situa tal metamorfose num passado recente. “Essa abertura à mulher ocorre nas décadas de 1970 e 80, e vai se refletir na Igreja principalmente nos anos 90, exatamente a época em que o segmento evangélico mais se pulverizou e cresceu”, aponta. O surgimento de milhares de novas congregações evangélicas, fenômeno religioso contemporâneo no país, é uma explicação. “Isso se deu devido à necessidade de líderes que a própria Igreja possui”, acrescenta Bruneto. E as mulheres foram naturalmente pondo a mão no arado. Agora, essa Igreja chega à segunda geração de líderes mulheres perguntando-se o que elas têm de melhor a oferecer. Embora, naturalmente, ainda haja muitas resistências à liderança de saias – e o Novo Testamento, de acordo com a ótica da interpretação, pode tanto legitimar como rejeitar o pastorado feminino –, diversas igrejas já se utilizam do trabalho das obreiras há bastante tempo. Denominações tradicionais como a Metodista e a Luterana adotam há muito tempo o pastorado feminino, franqueando às mulheres até cargos de direção em suas organizações.
A R Q U I V O
P E S S O A L
AVANÇO OU REGRESSO?
O
pastor Carlos Osvaldo Cardoso Pinto, reitor e professor de exegese e teologia bíblica do Seminário Bíblico Palavra da Vida (SBPV), reconhece a essencialidade da atuação da mulher na obra de Deus, mas é cauteloso na sua análise do ministério pastoral feminino: CRISTIANISMO HOJE – Como o senhor enxerga o avanço feminino na Igreja brasileira? CARLOS OSVALDO – “Avanço” é um termo que a Igreja, acriticamente, tomou de empréstimo da sociedade secular que a cerca. Creio que ainda serão necessárias duas ou três gerações para que possamos avaliar se houve ou não progresso nessa questão. Deveríamos olhar para outras latitudes onde esse suposto avanço ocorreu há cerca de
“PROVEITO”
deve passar necessariamente por qualidades tipicamente femininas, como a doçura e a afetividade. Em seu novo livro, O resgate do feminino (Editora Mundo Cristão), ela diz que o ambiente competitivo acabou roubando das mulheres aqueles aspectos comportamentais que sempre as diferenciaram dos homens, com consequências na qualidade da vida afetiva e espiritual – e que isso precisa ser revisto. “As mulheres assumem muitas atividades na igreja, e isso é movido por sua paixão pelo Reino de Deus”, diz (ver quadro pág.26). “A participação da mulher em posições de liderança trouxe muito proveito para a Igreja”, endossa o pastor Carlos Barcelos, da Igreja Batista do Morumbi, em São Paulo. “Considero importante o olhar feminino, que contribui para a ampliação de percepções dos vários problemas que uma comunidade pode enfrentar”. Defensor do mérito, independentemente do gênero, Barcelos diz que o papel a ser exercido pela mulher na igreja depende de suas capacidades e habilidades. “Toda posição de liderança, seja preenchida por um
Sonia considera lamentável que ainda existam igrejas dominadas apenas por homens. “Vejo isso como um equívoco muito grande, pois a Palavra de Deus ensina exatamente o contrário. Jesus valorizou as mulheres. Elas foram criadas da mesma forma que os homens, com todo o potencial que eles têm também”. Para ela, o direito de exercer papel de destaque é tanto dos homens como das mulheres. “Na nossa Confederação, estamos preocupadas como Marta Watts esteve um dia, em impulsionar as mulheres de hoje a buscarem cada vez mais o seu lugar na Igreja e no mundo”, explica. Tal lugar, segundo a psiA pastora Blanche: cóloga Isabelle Ludovico, “Sensibilidades particulares”
duas décadas e perguntar se as denominações que adotaram posturas “progressistas” estão mais santas, mais evangelísticas, mais missionárias e mais bíblicas. Percebemos que as mulheres têm mais oportunidades de preparo e horizontes mais amplos (particularmente na área missionária), mas cremos que também houve perdas qualitativas importantes. No SBPV, as alunas são treinadas para serem, entre outras funções, missionárias e educadoras cristãs. Elas também são treinadas para serem pastoras? Não treinamos nossas alunas para o pastorado, mas para o pastoreio. Creio que há uma ênfase indevida no pastorado como função, em detrimento do pastoreio como ministério. O Novo Testamento indica com razoável clareza que a mulher, particularmente a mulher mais experiente, com uma história familiar de sucesso como esposa e mãe, tem enormes
oportunidades de pastoreio e mentoria, oportunidades essas que terão que ceder espaço às intensas atividades administrativas, legais e às vezes burocráticas do pastorado. Entendo que uma visão neotestamentária do ministério da mulher não inclui o pastorado, embora privilegie o pastoreio. Qual o posicionamento do seminário sobre as mulheres exercerem posições de pastoras, líderes e até bispas em algumas denominações? É nossa convicção que em termos da igreja local a liderança deve seguir o que é proposto, por evidência e por inferência, no Novo Testamento. Questões de liderança denominacional e de instituições paradenominacionais devem ser avaliadas individualmente, pois não são objeto de mandamento ou orientação apostólica. Uma função executiva numa junta educacional, por exemplo, é, em nosso entender, muito diferente de um presbiterato ou pastorado.
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A obreira, vinculada à Sociedade de Missões Estrangeiras das Mulheres da Igreja Episcopal do Sul nos Estados Unidos veio com a tarefa de educar crianças e moças. No mesmo ano, fundou o Colégio Piracicabano, em Piracicaba (SP), que hoje é conhecido como Centro Cultural Marta Watts. Criou ainda um colégio em Petrópolis (RJ) e outro em Belo Horizonte (MG), colaborando sempre com as mulheres para que tivessem acesso à educação num tempo em que este direito lhes era constantemente negado. A ênfase nestes estabelecimentos era “ministrar uma educação liberal às moças para que seu horizonte intelectual e espiritual se ampliasse, preparando-as para agir com independência”, conforme o lema do Marta Watts.
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Outras, como a Igreja do Evangelho Quadrangular (IEQ) – esta, de linha pentecostal –, têm nas suas origens a marcante presença feminina. Foi a canadense Aimee Mcpherson que fundou a organização, em 1923, nos Estados Unidos. Hoje, a Quadrangular está em mais de uma centena de países, inclusive no Brasil, onde é uma das dez maiores denominações evangélicas. “Essa participação da mulher é ativa, fluente e expressiva”, concorda a coordenadora nacional das Mulheres Quadrangulares, Mara de Barros Flores. “Já está provado que temos a capacidade, o amor e a unção necessários para o crescimento da Igreja”. Ela acredita que as denominações que rejeitam a participação feminina efetiva em cargos de liderança estão perdendo tempo. “A ajuda feminina é ativa, fluente e expressiva”. Na IEQ, mulheres atuam em todas as funções eclesiásticas, chegando a ocupar 50% do ministério. E não basta ser simplesmente casada com um pastor – a candidata ao púlpito precisa seguir os trâmites estatutários e ter o mesmo estudo e preparo dos colegas de terno. “Além, claro, do chamado, da vocação e da liderança necessárias para estar à frente de uma igreja como pastora titular.” Sonia do Nascimento Palmeira, presidente da Confederação de Mulheres da Igreja Metodista do Brasil, cita o exemplo de Marta Watts, primeira missionária da denominação a chegar ao país, para destacar a importância do protagonismo feminino na obra de Deus.
EXERCÍCIO DOS DONS
V A N E S S A
P O R T E L A
Blanche Bruno, pastora de missões e aconselhamento da Igreja Cristã Casa da Rocha, acha que o mais importante é o exercício dos dons para abençoar a congregação. “O Espírito é o mesmo que age em todos, mas Deus criou a mulher com sensibilidades
Lia Casanova, do movimento Desperta Débora: “Como, quando e onde Deus quiser”
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AFETIVIDADE E DEPENDÊNCIA DE DEUS Autora do livro O resgate do feminino, a psicóloga Isabelle Ludovico conversou com CRISTIANISMO HOJE sobre os novos papéis sociais da mulher e sua aplicação na esfera religiosa: CRISTIANISMO HOJE – Qual a importância da participação feminina na liderança cristã? ISABELLE LUDOVICO – A contribuição das mulheres na liderança da igreja é legítima, já que o Espírito distribui os dons conforme lhe apraz e não conforme o sexo. Mas esta participação precisa levar a uma transformação do modelo de liderança, de um modelo hierárquico – com um líder solitário à frente da igreja –, para um modelo de corpo, com um colegiado de pastores e líderes, homens e mulheres, numa igreja onde todos são chamados a contribuir conforme os dons que receberam. As mulheres podem ser chamadas a exercer estas funções a serviço de Deus, em prol do Corpo de Cristo. A modernidade concedeu espaços antes inimagináveis às mulheres. Em contrapartida, qual foi o preço disso? Com as conquistas profissionais, as mulheres acabaram assumindo uma dupla jornada de trabalho, pois ainda não conseguiram dividir as responsabilidades com a casa e as crianças. Assim, elas ficam estressadas e sua relação amorosa é tensionada por tantas cobranças. Elas, muitas vezes, acabam sozinhas, pois o homem se ressente e tende a se retrair e se fechar. As mulheres estão em crise com o modelo da “amélia” que era dependente do marido e não tinha projeto de vida pessoal. Elas têm medo de perder as conquistas que lhes garantiram certa autonomia e poder. Mas resgatar o feminino não significa abrir mão de sua dignidade, de sua capacidade. Significa dar prioridade à sua capacidade relacional, à qualidade de suas relações, inclusive como esposa, mãe e profissional. No livro, a senhora fala no resgate do princípio feminino. Em quê isso se aplica ao contexto eclesiástico? O resgate do principio feminino, tanto por homens como por mulheres, tem consequências na qualidade da vida afetiva, inclusive com Deus. Ele desperta a capacidade de escuta e valores como a entrega, a paixão, a dependência, a humildade, o discernimento, a compaixão. As mulheres assumem atividades na igreja movidas por paixão pelo Reino de Deus. O ativismo de homens e mulheres empobrece a vida espiritual e seria importante dar novamente prioridade à intimidade com Deus, para que as ações sejam fruto desta intimidade, e não, substituto dela.
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particulares”, diz a obreira. “Nossos mecanismos de percepção são diferentes dos homens, e por isso o papel feminino, tão importante na família e no trabalho, também o é no âmbito da igreja”. Blanche, que juntamente com o marido, José Bruno, eram bispos na Igreja Renascer em Cristo até o ano passado, acredita que a igreja não funciona por causa dos cargos que as pessoas nela ocupam, mas pelo cumprimento do chamado de seus membros. “Quando isso acontece, cada um está no seu devido lugar, seja homem, seja mulher.” A jovem Alyne Romeiro, assistente pedagógica e membro da Igreja Cristã da Trindade, avalia como seria uma igreja sem a participação de mulheres na liderança. Ela atua no ministério de louvor e organiza eventos para os jovens em sua igreja e acredita que Deus chama a cada um individualmente, independente do sexo. “Uma igreja sem mulheres à frente, diz, seria uma igreja de poucas atividades e criatividade, onde alguns detalhes passariam despercebidos. ‘Deus nos fez criativas, mais emocionais, preocupadas com detalhes, mais ouvintes, temos maior facilidade em abrir mão de nossas coisas’”. Alyne não consegue se imaginar sentada, sem fazer nada. Não só pelo fato de ser filha de pastor, mas sim pelo fato de ser cristã. “É como se eu fosse devedora. Se quero que todos sejam alcançados por essa graça, preciso trabalhar para isso e trabalho por amor e gratidão ao Senhor”, declara. A valorização que Cristo fez da figura feminina é lembrada por Lia Casanova, ligada ao Ministério Desperta Débora, como principal endosso a uma participação cada vez mais ativa da mulher na obra de Deus. “Tenho firme convicção de que Deus nunca se agradou da forma como a mulher passou a ser tratada ao longo da história, por isso Jesus se deu ao trabalho constante de mostrar aos homens como devemos ser consideradas”, advoga. Ligada a um movimento nacional de oração integrado exclusivamente por mulheres, ela lembra o exemplo de grandes mulheres de fé na Bíblia, como Maria, a mãe de Jesus, e Madalena, que não negou seu Mestre nem nos momentos de maior perigo. “Nós somos feitas por Deus e devemos nos colocar nas suas mãos para que possa nos usar para seu serviço e sua glória quando, onde e como quiser.”
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homem ou mulher, demanda do líder o cultivo de uma vida cheia do Espírito, pois as decisões tomadas afetam a vida de muitas pessoas”, pondera. Por isso mesmo, acrescenta, a mulher não deve deixar de lado suas características para sentir-se aceita. “Quando a mulher pretende agir como homem, está no caminho da falha.” O pastor sugere um reestudo hermenêutico do texto bíblico de I Timóteo 2.11, que comumente é usado para justificar uma suposta posição secundária da figura feminina no contexto da Igreja. Para ele, a expressão “ficar em silêncio” deve ser entendida num contexto de disputa por autoridade, inclusive sobre o homem. “Toda situação em que o homem se retrai e a mulher entra no espaço deixado por ele costuma trazer problemas sérios”, analisa. Às mulheres com destaque na igreja, Barcelos aconselha, sobretudo, que se submetam àquilo que o Espírito Santo lhes indicar. “Isso não pode ser contrário ao que a Bíblia ensina e nem uma bandeira reivindicando posições. Se determinada irmã tem convicção de um chamado, trabalhe com paciência até que surja a oportunidade de pô-lo em prática.”
First published in Christianity Today, copyright © 2010. Used by permission, Christianity Today International
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ADOÇÃO
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Abba, muito mais que um clamor O cuidado com os órfãos revela uma dimensão do imenso amor de Deus por seus filhos
por Russell D.Moore
O C L A U D I A D
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I S T O C K P H O T O
orfanato na antiga União Soviética era estranhamente silencioso. Embora estivesse cheio de crianças e bebês de colo à espera de adoção, o local era estranhamento quieto. Não havia vozes infantis ou choros ecoando pelos corredores. O silêncio chamou tanto nossa atenção que ficamos incomodados. “Por que está tudo tão quieto?”, perguntou-me Mary, minha mulher, enquanto o funcionário nos conduzia até a sala onde os gêmeos Sergei e Maxim, de um ano, nos seriam apresentados. Aquela era a primeira de nossas duas visitas ao país para tratar da adoção internacional, processo que, àquela época, era dos mais burocráticos. Havia miséria e mau cheiro no local, mas o que incomodava mesmo era a total quietude daquele estabelecimento. Parecia um velório, com a diferença de que, num velório, ainda há pessoas falando baixo. O silêncio continuou enquanto entrávamos no quarto dos meninos. O pequeno Sergei (agora Timothy) sorriu para nós, dançando para cima e para baixo segurando na grade do seu berço. Já Maxim (agora Benjamin) ficou prestando atenção ao que acontecia. Mas nenhum dos dois emitia sequer um som. Nós ficamos ali por algum tempo, lendo para eles historinhas que não podiam entender. As crianças pareciam interessadas, mas não se ouvia sua voz em nenhum momento. Todos os dias nós entrávamos e saíamos do orfanato na hora marcada, e sempre em meio àquele estranho silêncio. Com o passar 30
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dos dias, percebemos que aquelas crianças não choravam porque perceberam que não fazia diferença. As crianças eventualmente aprendem a parar de chorar se ninguém for atender ao seu chamado por comida, por conforto, por amor. Ninguém atendia aquelas crianças. Por isso elas permaneciam quietas. No último dia da viagem, Mary e eu chegamos ao momento que mais temíamos desde que recebemos nossa autorização para adoção. Teríamos que dizer adeus para os meninos e, pela lei, esperaríamos nos Estados Unidos a legalização da papelada estar completa para, só então, retornar para buscá-los definitivamente. Depois de abraçá-los e beijá-los, nós caminhamos pelo corredor silencioso com lágrimas nos olhos. Foi quando nós ouvimos o grito. Era Maxim manifestando-se pela primeira vez, como se soubesse que, finalmente, teria alguém para ouvi-lo. Em algum nível primal, ele sabia que agora tinha um pai e uma mãe. Nunca vou esquecer como os cabelos dos meus braços se arrepiaram quando ouvi o grito daquela criança. Ali naquele orfanato soviético, fui atingido, talvez pela primeira vez, pela força das passagens que versam sobre o clamor por Abba no Novo Testamento. E me surpreendi com o quão pouco eu entendia sobre isso até aquele momento. Famílias, como a Bíblia nos diz, refletem algo eternamente verdadeiro acerca de Deus. É a paternidade de Deus, de quem toda a família no céu e na terra recebe o nome, conforme Efésios 3.14-15. Nós sabemos como deveria ser a paternidade humana baseados na atitude do nosso Pai em relação a nós. O inverso também é verdade. Nós vemos algo da paternidade de Deus em nosso relacionamento com os pais terrenos. Jesus nos diz que a provisão e a disciplina dos nossos pais revelam o amor ativo de Deus por nós (Mateus 7.9-11). O mesmo princípio se aplica à adoção. Adoção é, por uma perspectiva, o mesmo que Evangelho. Nossa identidade e nossa herança estão fundadas na nossa adoção em Cristo. Logo, cuidar do órfão é também missão. Nisso, nossa adoção nos impele a nos unirmos a Cristo na defesa dos pobres, dos marginalizados, dos abandonados e dos órfãos. Sem o aspecto missional, a doutrina da adoção se tornará facilmente mera metáfora; só mais uma forma de dizer “salvo”. O grito do pequeno Maxim mudou tudo – mais, penso eu, do que o veredito do juiz deferindo a adoção ou a entrega a nós da documentação autenticada. Foi o momento em que ele, na certeza de que seria ouvido, deixou de ser um órfão e se tornou um filho. Foi também o momento em que eu me tornei um pai; de fato, e não apenas pela lei. Desde então tenho lido as passagens de clamor por Abba nas epístolas aos Romanos e aos Gálatas como elas foram inicialmente pregadas: como um borbulhar de familiaridade, uma equivalência espiritual de uma criança sussurrando “papai” ou “paizinho”. Intimidade relacional certamente está presente nesses textos – daí o porquê da escolha de Paulo por uma palavra tão pessoal – mas, definitivamente, ela não é sentimental. Afinal de contas, as Escrituras falam que o Espírito de Jesus leva nossos corações a clamar “Abba, Pai!” (Galatas 4.6). Jesus clama “Abba, Pai” quando grita “com grande clamor e lágrimas” pedindo livramento no Jardim do
Getsêmani. Semelhantemente, a doutrina da adoção nos mostra que nós “gememos” com a criação “enquanto aguardamos ansiosamente pela adoção como filhos, a redenção dos nossos corpos” (Romanos 8.23). Esse é o grito do crucificado.
CLAMOR DA ADOÇÃO O Evangelho da adoção desafia-nos, antes de tudo, a nos reconhecermos como órfãos espirituais. Ele nos compele a enxergar o nosso universo caído – e nossos próprios reinos egocêntricos dentro dele – como não sendo do jeito que deveria ser. Com nossa ênfase evangelística na oração do pecador, os evangélicos deveriam reconhecer isso mais frequentemente do que fazem. “Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo”, diz a Escritura, e nós insistimos nisso com razão. Mas raramente percebemos o quão desesperada – e quão libertadora – essa invocação é. Nós presumimos que é um clamor somente para o começo da caminhada cristã, e não para ser repetido durante o trabalho contínuo do Espírito. Nós crescemos complacentes nesse tempo presente, confortáveis demais para clamar por um Pai que só podemos perceber pela fé. O clamor Abba da nossa adoção define quem somos e a qual família pertencemos. É por isso que as Escrituras dão testemunho de que a doutrina da adoção tem tudo a ver com a unidade da Igreja, mantendo distantes as divisões entre judeus e gentios, escravos e livres, homem e mulher, rico e pobre. Nenhum de nós nasce naturalmente como filho de Deus, tendo direito a toda essa graça, toda essa glória. E não somente os gentios foram adotados nessa família. Os cristãos judeus também receberam a adoção – sim, Abraão foi o pai dos israelitas, mas também ele era um gentio antes de se juntar à família de Deus. Nós, cristãos, recebemos os novatos na fé porque, em Cristo, nós também fomos recebidos antes. Ou a nossa identidade e a nossa herança estão fundadas em Jesus ou em nada mais. A adoção e o movimento de cuidado dos órfãos nos ensinam algo revolucionário sobre o Evangelho. A princípio, eu fui relutante em adotar, porque presumia que uma criança adotada seria sempre mais distante do que uma criança gerada por mim. Que engano! E eu deveria saber que não era assim. Afinal de contas, não existem “filhos adotados” de Deus, como sendo uma categoria subsequente à adoção. A adoção nos fala sobre como
O Evangelho da adoção desafia-nos, antes de tudo, a nos reconhecermos como órfãos espirituais nós entramos na família de Deus – e, uma vez que estamos aqui, nenhuma distinção é feita entre aqueles que estão à mesa de jantar. Amor baseado em preservação e proteção de material genético pode fazer todo sentido numa visão darwiniana da vida, mas nunca na ótica cristã da realidade. Nossas igrejas precisam então demonstrar como amor e pertencimento transcendem as categorias do que é material. Porém, parece que Deus está usando famílias que adotam filhos para ensinar coisas ao seu povo. De fato, talvez nós ainda
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ABBA, MUITO MAIS QUE UM CLAMOR
questionemos tanto se crianças adotadas podem mesmo ser irmãos e irmãs porque ainda é muito raro vê-las nos bancos de nossas congregações. Alguns podem se perguntar como uma família afroamericana poderia amar um bebê ucraniano; ou como um adolescente haitiano poderia chamar um casal suíço de “mamãe” e “papai”. O movimento de adoção está desafiando a hegemonia empobrecida de nossa mesmice carnal quando mais e mais famílias na igreja estão começando a mostrar aos seus amigos crentes o significado da unidade na diversidade. Eis aí o motivo pelo qual a adoção e o cuidado do órfão podem, em última análise, fazer da Igreja uma contracultura. Essas ações
o próprio Evangelho. Mas essa dicotomia não resiste à revelação bíblica. A fé genuína opera através do amor, nos diz a Bíblia em Gálatas 5.6. A missão de Cristo nos mostra, como o teólogo Carl Henry lembrou à última geração de evangélicos, um Deus tanto de justiça quanto de justificação. Uma consciência que traz um peso pelos órfãos e não está cauterizada pela busca do acúmulo de coisas, e vai também sentir um peso pelos órfãos espirituais. Uma igreja que aprende a amar além das fronteiras da biologia vai aprender a estar em missão fora dos limites da geografia. Enquanto o Espírito leva mais cristãos ao cuidado dos órfãos, nós também devemos insistir que adoção não é apenas uma rota de fuga do evangelismo de crianças. É claro, os cristãos que adotam vão ensinar às suas crianças que o que eles acreditam é verdade e, em última análise, cheio de significado. Todo pai faz isso e, em alguma medida, não poderia fazer diferente. Assim, pais cristãos vão ensinar à sua criança a mensagem de Jesus, não importando como essa criança tenha chegado a sua casa. Mas isso não significa que adoção é simplesmente um meio para evangelizar, mais do que crianças concebidas biologicamente seja entendido como evangelismo reprodutivo. Assim como para aqueles que experimentaram a adoção do Evangelho, nós sabemos que é bom para todas as crianças que as mesmas tenham pais, mesmo que sejam pais que ainda não conheçam a Cristo. A paternidade de Deus é melhor compreendida em uma cultura onde as crianças sabem o que significa dizer “papai” e “mamãe”. As Escrituras caracterizam o Reino de Cristo como o Reino das crianças resgatadas. Salomão olha para o reinado final do ungido de Deus e canta: “Porque ele livrará ao necessitado quando clamar, como também ao aflito e ao que não tem quem o ajude. Compadecer-se-á do pobre e do aflito e salvará a alma do necessitado. Libertará as suas almas do engano e da violência e precioso será o sangue deles aos seus olhos” (Salmos 72.12-14). Quando nós lutamos pelos órfãos – nascidos ou por nascer –, estamos fazendo mais do que ativismo cultural. Uma cultura de adoção, cuidado do órfão e ministério para as mães em dificuldades anuncia com o que se parece o Reino de Deus e a quem ele pertence. Nós estamos lutando pela fé que de uma vez por todas foi entregue aos santos (Judas 3). O universo que nos cerca é assustadoramente silencioso, como um orfanato onde as crianças já não acreditam que podem ser ouvidas. Mas se nós ouvirmos com ouvidos atentos, poderemos escutar o desespero silencioso dos que estão chupando o dedo, ou dos berços balançando. Ao acolher os órfãos em nossos lares, podemos dizer ao universo tornado órfão o que significa pertencer a um Deus que acolhe o abandonado. Lembremo-nos de que fomos órfãos um dia, e que alguém veio procurando por nós; alguém que nos ensinou a chamá-lo Abba. Sejamos embaixadores daquele que ama as criancinhas, todas as crianças do mundo. Como ele, vamos acolher as crianças em nossos lares, nossas igrejas e nossas vidas, especialmente aquelas que, naturalmente, não iríamos querer. 8
Ao dizer que o cuidado do órfão é missional, não se pode afirmar que todo cristão é chamado para adotar ou ter a guarda de uma criança. Mas todo cristão é chamado para cuidar dos órfãos. Tal como acontece em todos os aspectos da missão de Cristo, há uma diversidade abundante de dádivas. Alguns têm lugar na sua mesa e no seu coração para compartilhar com alguém no próximo Natal. Outros são financeiramente agraciados para ajudar famílias que gostariam de adotar, mas não têm ideia de como fazer face às despesas. Outros podem trabalhar como babás enquanto famílias com crianças participam de audiências e preenchem formulários para a adoção. Ainda outros podem liderar viagens missionárias para ninar, abraçar e cantar para órfãos que talvez nunca sejam adotados. Pastores podem simplesmente perguntar se há alguém em suas congregações que possa ser chamado a adotar ou mesmo pessoas que possam patrocinar ou capacitar alguém que tenha tal chamado. E todos nós podemos orar – especificamente e urgentemente – pelos órfãos do mundo inteiro. Alguns podem ver um contraste entre o cuidado dos órfãos e outros ministérios sociais e evangelismo, talvez até mesmo com 32
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Russell D. Moore é pastor na Highview Baptist Church em Louisville e vicepresidente senior e deão da Escola de Teologia no Southern Baptist Theological Seminary em Louisville, Kentycky (EUA)
D A N I E L
CUIDADO MISSIONAL
T R A D U Ç Ã O :
são um ícone da realidade eterna do Evangelho. O Deus de Israel conclama consistentemente o seu povo a cuidar do órfão, da viúva e do imigrante (Deuteronômio 24.17-22). Ele mesmo se denomina como o “Pai dos órfãos” (Salmos 68.5). O Espírito nos guia não somente a clamar Abba no Evangelho cristão, mas também a ouvir o clamor dos fracos através da missão cristã. O cuidado do órfão é, por definição, missional. A carta de Paulo aos Romanos, que contém talvez a mais clara explanação da doutrina da adoção, não é um texto de teologia sistemática; é um manifesto missionário, chamando a igreja em Roma a unir-se ao apóstolo na tarefa de fazer Cristo conhecido entre as nações. Por isso, Tiago – o irmão de Jesus – nos diz que o cuidado das viúvas e dos órfãos é a essência da religião “pura e imaculada”. E o próprio Jesus, adotado pelo justo José, identifica-se com os “menores desses irmãos” (Mateus 25.40), e nos diz que seremos questionados se fizermos o mesmo. Os órfãos são os pequenos irmãos e irmãs do Mestre. E ele os ouve.
A . S . J R
A paternidade de Deus é melhor compreendida em uma cultura onde as crianças sabem o que significa dizer “papai” e “mamãe”.
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BRASIL
Projeto educacional da Visão Mundial voltado para crianças: novas legislações que interferem no trabalho de entidades filantrópicas gera preocupação no setor
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ma medida provisória, em 2008, acendeu o alerta para muita gente: o governo federal resolvera tocar no delicado setor das entidades filantrópicas. Delicado porque trata de duas questões particularmente sensíveis, tanto para a sociedade quanto para o governo: as ações de assistência e a isenção fiscal. Afinal, quando uma instituição voltada à caridade obtém seu Certificado de Entidade Beneficente, passa a ter imunidade em relação a tributos e contribuições sociais – uma carga pesada, que recai sobre todas as empresas. Além disso, tal entidade de caráter filantrópico, prevista na Constituição federal, tem um papel social a cumprir, socorrendo e gerando oportunidades para os mais pobres e atuando onde os governos geralmente não chegam. Durante o impasse em torno da MP das Filantrópicas, que foi derrubada, o líder do governo no Senado, Romero Jucá (PMDB-RR), prometeu à oposição, no início de 2009, que o assunto seria amplamente discutido no Congresso e na sociedade. Segundo Jucá, o objetivo do governo Lula era o de “moralizar a filantropia”. Aquele texto criava regras mais rigorosas, mas, segundo os críticos, dava anistia a entidades acusadas de irregularidades. Passados quase dois anos, com apoio do Congresso e sem muita discussão com a sociedade, o presidente Lula já sancionou a Lei 12.101/09 e dois decretos (7.237/10 e 7.300/10) para regulamentar as atividades das entidades beneficentes. As regras se somam a muitas outras, dispostas em leis, decretos, resoluções e portarias. 34
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Dentre as principais mudanças está a delimitação do trabalho das filantrópicas às áreas de assistência social, saúde e educação. No caso das entidades de assistência social, há exigência de gratuidade absoluta para os atendidos. Os cobiçados certificados de filantropia não estão mais a cargo do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), mas dos ministérios do Desenvolvimento Social, da Educação e da Saúde. E precisam ser renovados periodicamente. A lei também exige aplicação integral do superávit obtido pelas certificadas na manutenção e no desenvolvimento dos objetivos institucionais. O resultado já começa a ser sentido, enquanto especialistas analisam aspectos positivos e negativos da nova legislação. O consenso é o de que, se por um lado, a transparência dessas entidades agora é maior, por outro várias delas podem fechar as portas por não terem meios de se adaptar às novas exigências. “O governo pesou a mão”, avalia Gerson Pacheco, diretor nacional do Fundo Cristão para Crianças, instituição que, só no ano passado, investiu R$ 32 milhões em projetos voltados para levar desenvolvimento a algumas das regiões mais pobres do país, como o Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, e o Sertão de Cariri, que atravessa vários estados nordestinos. “A legislação tem efeitos moralizadores e enquadra a chamada ‘pilantropia’, que vinha prejudicando a todos”, reconhece Pacheco. “Mas hoje nenhuma outra entidade, autarquia, estatal ou empresa têm tanto controle e auditorias por parte do Estado como as filantrópicas”, declara, enumerando as novas exigências: são pelo menos 35 itens a ser atendidos para uma entidade receber o certificado, que depois precisa ser renovado, dependendo do caso, em apenas um ano.
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por Valter Gonçalves Jr (colaborou Treici Schwengber)
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ANova filantropia e o Leviatã lei reacende discussão sobre ação social e papel do Estado
Mãe e filho diante de cisterna aberta no Semiárido com recursos da Diaconia: para milhões de brasileiros, ONGs cristãs suprem lacunas deixadas pelo Estado
“TRANSPARÊNCIA DE AÇÕES” Para o pastor metodista, advogado e conselheiro suplente do CNAS, Renato Saidel Coelho, não há como dissociar as decisões dos governos de suas respectivas visões de mundo. “O movimento que vemos agora é claro. O governo tem se proposto a limitar o campo de atuação da assistência social”, afirma. No entendimento de Saidel, a lei delimitou o campo da assistência social, difereciando-o do chamado assistencialismo. “Vejo um ponto positivo, que o é de diminuir drasticamente as ações assistencialistas das nossas instituições, principalmente as vinculadas às diversas igrejas que, apesar de toda a sua boa vontade e desejo de implantar o Reino de Deus, não têm trazido ganhos sociais efetivos para o público atendido por elas”, diz, referindo-se ao tipo de ajuda que não vai muito além da distribuição de sopão aos mais carentes. Por outro lado, ele aconselha as diferentes entidades a analisar seu papel diante da política pública que está posta. Trata-se de decidir que caminho seguir. “Estou preocupado com muitas instituições que vão ter de mudar em completo, o que pode gerar o encerramento de suas atividades, com prejuízo para o público atendido e para a missão de Reino a que se propõem fazer”. Muitas organizações, diz, serão obrigadas a “ressignificar sua atuação”, o que pode levá-las a um grande impacto em seus orçamentos, dado o início do recolhimento de impostos e de contribuição social sobre a folha de pagamentos. Ele não vê problemas, por outro lado,
Veja as principais mudanças trazidas pela Lei 12.101/09 • A atuação das entidades beneficentes foi delimitada em três áreas: assistência social, saúde e educação; • A responsabilidade de conceder ou renovar os Certificados de Entidade Beneficente não é mais do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), mas dos ministérios do Desenvolvimento Social, da Educação e da Saúde; • As entidades são reconhecidas como rede complementar e parceiras do governo na prestação de serviços; • O processo de certificação pode ser acompanhado nos sites dos ministérios; • Os dados são divulgados pelo Cadastro Nacional das Entidades conforme a área de atuação; • Há fruição imediata da imunidade: a partir da certificação e cumpridos todos os requisitos, as entidades deixam de recolher as contribuições para a seguridade estabelecidas nos arts. 22 e 23 da Lei nº 8.212/91; • A gratuidade em 100% dos atendimentos é obrigatória no caso de entidades de assistência social. No caso de instituições no setor de saúde, a exigência de gratuidade é de 60%. Na educação, há exigência de uma bolsa integral para cada grupo de nove pagantes. Fonte: Legislação e Renato Saidel Coelho Outubro/Novembro 2010
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CENTRALIZAÇÃO “É natural que, quando se trata de moralizar um setor, a lei, em um primeiro momento, seja mesmo mais rigorosa, mas houve exagero”, continua, reconhecendo que era necessário mexer nas regras. Pacheco afirma que as entidades maiores, “sólidas”, não chegaram a sofrer com os efeitos da nova legislação. No caso dele, já estava tudo preparado: os projetos do Fundo Cristão, que atendem a 240 mil pessoas, são detalhadamente executados. “Em um mês, o Fundo Cristão estava com toda a documentação exigida, pois temos tudo muito organizado”, explica Pacheco, que depois de 32 anos como executivo de multinacionais, aposentou-se e dedica seu talento ao chamado Terceiro Setor, que para ele ainda carece de um real marco regulatório. “Muitas entidades não conseguirão se adaptar e morrerão”, prevê, lembrando que perder a isenção tem um custo tão alto que representa a diferença entre sobreviver ou não. De fato, há auditores de todos os lados: Ministério Público, Tribunal de Contas da União, Receita Federal, além dos Ministérios do Desenvolvimento Social, da Educação e da Saúde, e do próprio CNAS. Com isso, só quem souber falar muito bem a linguagem de contadores e de advogados especializados poderá gozar do Certificado de Entidade Beneficente. E este é um preço que nem todos têm condições de pagar. Pacheco dirige suas críticas especialmente à idéia de centralização que move as ações do governo. Para ele, o melhor modelo de assistência social, que funciona com sucesso em vários países desenvolvidos, é o que integra as ações governamentais e as da sociedade, por meio das empresas e das entidades beneficentes. No Brasil, porém, subsiste a compreensão de que tudo – especialmente as ações de cunho social – precisa estar nas mãos do governo. As últimas regras, para ele, fortaleceram essa tendência. “O grande prejuízo nesse processo foi o de eliminar a sociedade como agente participativo. No CNAS, todos os conselheiros são agora indicados pelo governo”, argumenta o executivo, que aponta outro problema: dependência demais das decisões de burocratas no âmbito dos ministérios. O resultado das novas regras pode ser o de concentrar mais poder na mão do Leviatã – definição de Estado concebida pelo pensador inglês Thomas Hobbes (1588-1679). É a velha questão ideológica em jogo. Para alguns, ação social é coisa a ser mesmo integralmente tocada pelo governo. E esta parece ser a visão majoritária no governo Lula. Já outros apontam as vantagens da ação social realizada em rede, a partir de iniciativas da própria sociedade, sem controle excessivo por parte do Estado.
na exigência de aplicação integral dos recursos da instituição em sua atividade fim. “Se uma entidade recebe um recurso para investir, ela o deve fazer de forma imediata”. Esta seria uma questão de “transparência de ações”. Saidel ressalta haver pontos da legislação que precisam de ajustes, em especial quando se trata das entidades voltadas ao atendimento de pessoas com deficiência e de idosos. De acordo com ele, não ficou claro se tais instuições também serão obrigadas a prestar assistência 100% gratuita. No caso das que se dedicam às pessoas com deficiência, é preciso que o governo defina mais claramente em que setor elas se enquadram: saúde, educação ou assistência social. A limitação da filantropia a estes três campos de atuação, aliás, é, na visão de Saidel, um dos pontos negativos da nova legislação. “Existem entidades de outras áreas. Cultura e trabalho, por exemplo”. Opinião semelhante é do pastor Carlos Queiroz, da Igreja de Cristo, que é diretor-executivo da organização beneficente Diaconia, que atua no Nordeste. “A legislação limita iniciativas em outros campos, como o da geração de emprego e renda”, afirma. “A recomendação, em casos assim, é de que se crie uma cooperativa ou uma Oscip”, explica, referindo-se às Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público. Para ele, as novas regras aumentaram a transparência, mas geraram mais burocracia.
MUDANÇA FORÇADA O professor Silvio Iung, ex-presidente do CNAS (maio de 2006 a março de 2008), considera que as normas provocam uma mudança forçada no caso das instituições que atuavam na transversalidade, ou seja, simultaneamente em diversos campos. “A lei obrigou a
uma segmentação que o cidadão desconhece. A facilidade em fiscalizar, argumento utilizado para esta segregação, não parece ser um motivo que a sociedade deveria aceitar e esperar do Estado, em especial se isto vem em prejuízo aos serviços que ela recebe”, critica. Iung não para por aí. “As entidades atuam nas políticas públicas porque o Estado não dá conta delas. A mobilidade das entidades permite suprir carências nas ações estatais. Para que esta função se mantenha, quanto mais ‘oficiais’ elas forem, tanto menos cumprem o papel supletivo para o qual são criadas.” Para ele, o Estado, por sua vez, não cumpre seu dever de realizar políticas efetivas justamente nos setores de saúde, ação social e educação. “Diante disso, absorver as redes sociais que o fazem não parece ser a melhor forma [de fornecer tais serviços]”. Para exemplificar, Iung, que é diretor-executivo da Rede Sinodal de Educação, cita o programa Prouni, que distruibui bolsas na rede privada de ensino. “A maioria desconhece que as bolsas do Prouni, no caso das entidades beneficentes, não são novas, não são do Ministério da Educação, mas são bolsas das próprias instituições. A Lei 12.101/10 [das filantrópicas] parece caminhar nesse sentido. O Estado quer mostrar como suas as iniciativas da sociedade civil”, diz. Segundo Iung, ao estabelecer regras sobre o uso de recursos superavitários, a legislação dificulta a “administração profissional” das entidades filantrópicas e coloca o Brasil na direção oposta à do resto do mundo: “É uma pena que a sociedade tenha caído no engodo de demonizar as entidades filantrópicas”. (Ver matéria coordenada na página 36)
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O chapéu alheio Ação social no Brasil ainda depende da generosidade estrangeira
“CULTURA DA DOAÇÃO” Situação similar vive a organização não-governamental Diaconia, uma das mais respeitadas do país. Ela conta com recursos provenientes da Alemanha para desenvolver seu trabalho no Nordeste do Brasil, centrado em temas como agricultura familiar, meio ambiente, infância e juventude. Diretor da entidade, o pastor Carlos Queiroz não identifica no país uma “cultura de doação”. Ele entende como missão da igreja não só doar, mas envolver-se na luta por melhores políticas públicas. “Sonhamos com um Brasil menos injusto. Uma das maiores economias do mundo, o país tem uma das maiores concentrações de renda”, lamenta. “Vamos ter que ajudar outros países, principalmente os de língua portuguesa”, diz por sua vez Gerson Pacheco, diretor do Fundo Cristão. 38
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brasileiro doa pouco? Dentre 153 países, o Brasil ficou em 76º lugar em um ranking internacional, o “Índice de Generosidade Mundial”, recentemente divulgado pela Charities Aid Foundation. Para medir o espírito solidário, foram feitas perguntas sobre doações a instituições de caridade, tempo gasto em trabalho voluntário e ajuda a estranhos. O trabalho mostrou que, além das condições de vida, fatores culturais entram em jogo na hora de abrir a mão. Talvez isso explique porque, no meio evangélico brasileiro, por exemplo, várias das mais conhecidas organizações filantrópicas ainda dependam da ajuda que vem do exterior. Tais entidades não se afligiram com a nova legislação para o setor. O que preocupa é um processo difícil de ser freado: a queda, no longo prazo, de recursos doados por estrangeiros para o Brasil, que dependerá, cada vez mais, da generosidade dos próprios brasileiros. “Nosso país começa a ser visto como rico. Há nações bem mais pobres na Ásia e na África, que tendem a receber mais doações”, explica Welinton Pereira, da diretoria de programas da Visão Mundial, organização voltada ao desenvolvimento sustentável de comunidades carentes e ao apadrinhamento de crianças. Segundo Pereira, dos 70 mil padrinhos que contribuem mensalmente para tirar crianças brasileiras da pobreza, só 10 mil são brasileiros. Ele vê três razões para a baixa participação local. Algumas com fundo teológico. “Nossa teologia é muito vertical, individualista”, avalia. Além disso, haveria uma preocupação exacerbada com a grandiosidade dos templos, o que consome a maior parte das doações dos evangélicos. Já a terceira razão é mais positiva. Haveria um grande “despertamento” das igrejas para a ação social, mas elas preferem investir nos seus próprios projetos, o que nem sempre funciona. “A Visão Mundial tem tecnologias eficazes no apoio a crianças e no desenvolvimento comunitário e isso pode ser compartilhado com as igrejas”, declara Pereira, que também atua na Rede Evangélica de Ação Social (Renas).
Menina saboreia refeição fornecida pelo Fundo Cristão para as Crianças: queda nas doações do exterior também ameaça continuidade do trabalho de organizações sociais
Ele vê, no Brasil, uma cultura de dependência do Estado e pouca participação nas ações de solidariedade. Além disso, aponta a necessidade de mudança de mentalidade de quem faz ação social. “Nosso jeitão é meio ‘missionário’ ainda; tem que profissionalizar, mobilizar recursos, ter boa administração”. Pacheco mostra o caminho das pedras: “O coeur são os ‘produtos programáticos’, que nem o governo tem. Será que o aluno sai da escola alfabetizado? O produto social precisa gerar aquilo a que se propõe”, alerta. 8
Nem sempre vale a pena
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Certificado de Entidade Beneficente garante, entre outras coisas, imunidade no pagamento de contribuições sociais ao INSS. Mas nem sempre vale a pena. O Centro de Cooperação para o Desenvolvi¬mento da Infância e da Adolescência (CCDIA) está organizado como associação e não corre atrás da burocracia estatal para obter o documento. “Nossa folha de pagamento não ultrapassa R$ 5 mil por mês. Não vale o esforço”, explica Fábio Pontes, que responde pela administração da entidade. “Que associação de pequeno porte tem à disposição contadores, administradores e advogados?” Ele observa que muitas organizações sofrem para obter títulos que não são adequados a seus tamanhos. A CCDIA – fundada por um professor de física que saiu da pobreza, Altair Souza de Assis – firma-se na idéia de missão integral e realiza diversas atividades educacionais, como aulas e apoio a alunos carentes de todas as idades. Há vida fora do certificado.
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Caleidoscópio da diversidade
Congresso Lausanne III quer abrir espaço para o protagonismo de setores emergentes da Igreja na evangelização mundial por John W. Kennedy
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um consórcio de líderes evangélicos mais jovens, mais etnicamente diverso e mais geograficamente variado do que jamais ocorreu até aqui. Se, na segunda edição, em 1989, em Manila (Filipinas), a presença marcante era de representantes das igrejas de nações que estavam deixando para trás o comunismo – como a própria União Soviética e países do Leste Europeu –, agora a vez é do Sul. Africanos, asiáticos e latinoamericanos prometem chamar a atenção do mundo para um fenômeno religioso deste início de século: a inversão da polaridade no protagonismo das missões mundiais. Desta vez, os americanos não estão dominando os bastidores do evento ou o programa em si. Somente cinco dos 25 membros do Conselho Consultivo, que desenvolveu o fundamento teológico e a visão estratégica de Cape Town 2010, são dos EUA. Não se trata, claro, de rejeitar o imenso legado anglossaxônico à cristandade, solidificado ao longo de séculos de diligente obra missionária, mas sim, de abrir espaço à pluralidade. “No passado, nós achamos que tínhamos alguma coisa a oferecer – e nós o fizemos,” atesta o pastor Leighton Ford, diretor de Programa de Lausanne-1974 e presidente honorário do Comitê Lausanne para a Evangelização Mundial. Segundo ele, os americanos vão deixar a Cidade do Cabo entendendo
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rimeiro, foi em Lausanne, na Suíça. No coração da Europa branca 2,7 mil líderes evangélicos de 150 nacionalidades reuniram-se em julho de 1974 para redefinir os rumos do movimento protestante. O encontro foi fundamental para a Igreja, que saiu dele com uma nova visão acerca de sua missão. Encabeçado por nomes como o do evangelista americano Billy Graham e o teólogo britânico John Stott, o I Congresso Mundial de Evangelização refletiu a geopolítica e a missiologia de então. Com a presença majoritária de líderes brancos do Ocidente, num tempo em que o crescimento massivo do cristianismo no mundo em desenvolvimento estava apenas começando, o evento teve como norte a matriz cristã europeia e americana. Nada mais natural, uma vez que igrejas dos Estados Unidos, Reino Unido e de outras potências protestantes do Velho Mundo eram as locomotivas da obra missionária. Mas agora, em outubro de 2010, o mundo é outro. E o III Congresso do Movimento Lausanne, que começa no dia 16 na Cidade do Cabo (África do Sul), será um caleidoscópio da nova ordem cristã mundial. Cape Town 2010 vai apresentar
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A Cidade do Cabo, na África do Sul: palco do mais importante encontro da Igreja Evangélico mundial dos últimos tempos
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“REACIONÁRIA OU PROATIVA?” O congresso na Cidade do Cabo será também uma oportunidade única para a divulgação de ideias em nível mundial. Essa é a primeira vez que um ajuntamento desse tipo será verdadeiramente global, via tecnologia. Haverá 400 sites-âncoras que vão providenciar links globais em sessenta nações. Participantes poderão interagir com os 4 mil congressistas na África do Sul em tempo real, a partir de instituições teológicas, sites missionários e igrejas por todo o mundo através da homepage www.lausanne.org. Tudo para discutir questões que a pós-modernidade trouxe para dentro dos arraiais evangélicos, como exploração sexual, consumismo, preservação ambiental e tantos outros. Cape Town 2010 abordará temas-chave que confrontarão a eficácia da Igreja na evangelização mundial – ideia consubstanciada no tema Deus em Cristo, reconciliando o mundo consigo mesmo, baseado no texto de II Coríntios 5.19. Em relação a outras crenças, é o Islã que ocupa a linha de frente das preocupações, e não apenas com a vinculação de setores muçulmanos com o terrorismo internacional, uma paranoia do Ocidente desde o 11 de Setembro. “Trata-se de um movimento mundialmente coordenado, agressivo e incrivelmente bem financiado”, diz Oh. “A Igreja precisa se perguntar se ela quer ser reacionária ou proativa em seu envolvimento”. No entanto, Cape Town 2010 deverá propor novas abordagens, livres de estereótipos. “É uma grande tentação a de enxergarmos os muçulmanos como inimigos, e não como pessoas que Deus ama,” alerta Ford. “Cape Town 2010 deve ser um lugar de acolhimento”, concorda o pastor e conferencista Rick Warren, da Igreja Comunitária de Saddleback, na Califórnia (EUA). Autor dos best-sellers Uma Igreja com propósitos e Uma vida com propósitos, Warren já treinou mais de 400 mil pastores em seus congressos ao redor do mundo e integra o Conselho Consultivo do evento. “Devemos sair dali dispostos a mostrar porque fazemos aquilo que fazemos.” 8
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DESCENTRALIZAÇÃO Outra preocupação dos organizadores é tirar o foco de nomes. Cape Town 2010 não terá personalidades de destaque. “Nós não estamos escolhendo as estrelas do mundo evangélico para trazer a palavra”, avisa o diretor do Comitê de Programa de Lausanne III, Ramez Atallah, secretário-geral da Sociedade Bíblica Egípcia. “Pessoas que venham em busca de grandes oradores e boa música ficarão desapontadas. Elas poderiam ficar sentadas em casa, assistindo televisão”. Segundo Atallah, o formato do evento favorecerá o fluxo democrático de ideias e a descentralização das atividades. Haverá seis congressistas por mesa discutindo as preleções, que serão mais breves do que as dos anos anteriores. Atallah diz que os líderes evangélicos ocidentais tendem a ser orientados por metas e resultados, adotando uma visão cristã do trabalho e da vida que imita o modelo empresarial. No seu entender, os ministérios serão muito mais produtivos para o Reino de Deus se investirem mais nos relacionamentos e menos na arrecadação de recursos. “Quando os americanos avaliam as coisas, por exemplo, eles o fazer a partir de uma
grade que é contra o modelo relacional que os africanos e muitas outras culturas esposam.” Aos 39 anos de idade, o pastor Michael Oh, americano de origem coreana, tem o perfil dos líderes que deverão influenciar Lausanne III. Presidente do Christ Bible Seminary de Nagoia, no Japão, ele é o responsável por pastorear os líderes mais jovens no evento. E eles serão muitos – segundo os organizadores, 55% dos participantes têm menos de 50 anos de idade. “Nós esperamos testemunhar o fortalecimento de uma cooperação geracional saudável e, querendo o Senhor, o início de uma deliberada transição de liderança a nível global,” espera Oh. “Será uma oportunidade incrível para os líderes mais jovens poderem interagir, orar juntos, adorarem ao Senhor, arrependerem-se e elaborarem estratégias ao lado de lideranças mais experientes.”
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a importância de ouvir e de serem ajudados por líderes de outras partes do mundo. Ford defende uma mudança de paradigma: “Agora, nós é que temos muito para receber. É uma mudança de atitude que vai trazer resultados”. Ele insiste na importância do estabelecimento de parcerias. “A questão de cooperação é vital, mas difícil de alcançar”, reconhece. “Mas a Igreja está crescendo rapidamente entre os mais pobres, e nós temos uma grande oportunidade de aprender com eles.” O presidente executivo de Cape Town 2010, Doug Birdsall, tem orientado meticulosamente o evento no sentido de incluir uma maior representatividade de pastores, estudiosos, acadêmicos, missionários, educadores e empresários. A maioria dos oradores escalados são da África, América Latina e Ásia, onde vivem hoje dois terços dos evangélicos do planeta. “Se é a Igreja toda, então precisa ser gente vinda do norte, sul, leste e oeste”, pontifica o dirigente. “Esses líderes, cuidadosamente escolhidos entre milhares de candidatos, vão representar a realidade demográfica, teológica e cultural da Igreja global”. Birdsall diz que evangelismo e justiça social devem andar de mãos dadas. À luz das sociedades pluralistas e do novo movimento ateísta, ele diz, os cristãos estão mais propensos a abraçar temas relacionados à justiça e à misericórdia, em detrimento das verdades fundamentais de que Jesus é o único caminho para Deus e de que a Escritura é a maior autoridade. “Há uma preocupação de que nossa mensagem possa ser ofensiva, então há uma tendência de subestimá-la porque respeitabilidade e simpatia são importantes para nós”, avalia. “Contudo, se nós fazemos qualquer coisa, mas não proclamamos a mensagem, então estamos pregando um Evangelho apenas parcial.”
A Reforma do A Reforma Protestante do século 16 foi uma revolução de proporções míticas. Estudiosos e teólogos com novas abordagens escriturísticas valeram-se das mudanças revolucionárias nas artes, na ciência e na política, bem como das grandes navegações e da inauguração do comércio internacional, para virar o mundo ocidental de pernas para o ar. O movimento iniciado em 1517 marcou não somente um retorno às raízes bíblicas, como também um salto para o futuro. Mas e agora, no século 21, o que os cristãos devem esperar e pelo que devem trabalhar para que vejam, a exemplo dos crentes de cinco séculos atrás, maiores mudanças acontecendo na Igreja? Nesse período final do Global Conversation, em preparação ao III Congresso Mundial de Evangelização, que acontece entre 16 e 25 de outubro, na Cidade do Cabo (África do Sul), quatro líderes oriundos de nações tão diferentes como Malásia, Argentina, Nigéria e Estados Unidos revelam suas esperanças e compartilham seus sonhos por maiores mudanças na Igreja global.
Resgate do sobrenatural por Hwa Yung
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ma das grandes surpresas do século 20 foi o crescimento expressivo das igrejas no mundo não ocidental. Uma surpresa ainda maior foi o fato de que as comunidades cristãs que cresceram mais rápido tenham sido tão fortemente orientadas para o sobrenatural. De acordo com o especialista em história da religião Philip Jenkins, esse destaque nos sinais e maravilhas de Deus foi um diferencial: “Nesse contexto de pensamento, a profecia é uma realidade diária; a fé curadora, o exorcismo e as visões são todos componentes da sensibilidade religiosa”, frisa o estudioso. Essa é a realidade de boa parte das igrejas surgidas recentemente na África, na Ásia e na América Latina. Como oriental, eu cresci num contexto de pensamento onde os espíritos ancestrais, os poderes demoníacos, os deuses e milagres de todo tipo eram característicos de nossa religiosidade. A educação moderna, a mais poderosa força por detrás da secularização, quase conseguiu me convencer de considerar tudo como superstição. Alguns desses elementos são claramente sobrenaturais, mas não todos. Uma leitura cuidadosa da Bíblia, bem como o enorme peso da evidência empírica, empurram-me de volta ao cristianismo do
Hoje, já se reconhece que muito do pensamento ocidental foi domesticado pela modernidade, com suas raízes no pensamento iluminista. O racionalismo autônomo iniciado por Descartes e o empirismo restrito, do qual Hume foi pioneiro, foram tão assimilados pela cosmovisão moderna que um universo mecanicista é tudo o que resta. A negação do sobrenatural resultante dessa visão aleijou em muito a teologia, conduzindo-a a, pelo menos, duas sérias consequências. A primeira é que a maior parte da teologia sistemática e pastoral dos nossos dias falha na abordagem acerca da realidade demoníaca, tanto no nível pessoal quanto no cósmico. Muitos estudiosos contemporâneos negam ou ignoram o tema por completo, mantendo a superficialidade em relação aos inúmeros textos bíblicos que mencionam o assunto. Assim, as referências de Paulo aos “principados e potestades” são reduzidas a meras estruturas sociológicas. E temas inegavelmente escriturísticos, como o pecado e o mal, são discutidos sem se fazer referência à ação demoníaca. Tais teologias acomodam-se bem na modernidade, mas não ajudam em nada aos pastores e evangelistas que ministram àqueles que estão endemoninhados ou debaixo de amarras espirituais. Se essas questões não forem discutidas apropriadamente, muitas pessoas, sobretudo as que não são ocidentais, tenderão a considerar o Evangelho impotente e irrelevante. A outra consequência é que os cristãos ocidentais frequentemente falham em acomodar as
Muitos estudiosos contemporâneos negam ou ignoram a realidade demoníaca, mantendo a superficialidade em relação aos inúmeros textos bíblicos que mencionam o assunto sobrenatural. Assim, eu me percebo fora de sintonia com muito da teologia ocidental. Aqui, ao menos os liberais foram consistentes, mas não os evangélicos. A maior parte dos liberais negou o sobrenatural, tanto na Bíblia como no presente; por outro lado, os evangélicos lutaram com unhas e dentes para defender a presença do miraculoso nas Escrituras, mas raramente associando-a à vida real. 42
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o Século 21
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Quase quinhentos anos depois da Reforma, líderes cristãos compartilham sonhos de mudanças
manifestações sobrenaturais do Espírito Santo em sua estrutura teológica. Até recentemente, o pentecostalismo clássico era tido como um tipo de religião aberrante, junto com várias versões de cristianismo que também levam a sério o ensino do Novo Testamento acerca dos dons espirituais. Porém, hoje, com o crescimento da aceitação que tanto o pentecostalismo como o movimento carismático têm experimentado no Ocidente, somado ao fato de que muitas das dinâmicas igrejas não-ocidentais estejam levando os milagres a sério, parece cada vez mais que a verdadeira aberração seja o cristianismo ocidental “comum”. A reforma do século 21 buscará reinserir o sobrenatural no coração do cristianismo. Isso vai resultar não apenas numa teologia bíblica mais saudável, mas também numa Igreja missional mais poderosa. O mundo vai, então, entender o que Jesus quis dizer quando proferiu as seguintes palavras: “Se é pelo Espírito de Deus que eu expulso demônios, então o Reino de Deus veio sobre vocês.” (Mateus 12.28).
viagens frequentes, tenho visto um número enorme de megaigrejas com altas taxas de crescimento numérico, mas com baixo grau de preocupação com a fidelidade ao Evangelho completo e às dimensões éticas do discipulado na vida como um todo. Pergunta-se o que teria acontecido com a visão de discipulado integral projetada em 1974 pelo I Congresso de Evangelização Mundial, consubstanciado no celebrado Pacto de Lausanne.
A grande questão relacionada a Cape Town 2010 é se o evento vai permitir ao Espírito usar a Palavra de Deus, tornando-se assim um trampolim para a necessária e urgente reforma da Igreja
Hwa Yung é bispo da Igreja Metodista da Malásia e membro da equipe de gestão para Cape Town 2010
Retorno aos princípios por Rene Padilla
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m problema fundamental das igrejas evangélicas mundo afora é a ênfase exagerada no crescimento numérico. Em nome dele, o Evangelho é diluído, os cultos são transformados em entretenimento e o mandamento de Jesus sobre fazer discípulos é substituído por uma estratégia de alistar o maior número possível de “convertidos” às fileiras das instituições religiosas. Nas minhas
Lausanne I é visto por muitos como o mais significativo ajuntamento evangélico mundial do século 20. Não é exagero dizer que o principal legado da conferência foi a redescoberta da absoluta importância das dimensões sociopolíticas do Evangelho para a vida e missão da Igreja. De acordo com o parágrafo cinco do Pacto de Lausanne, porque “Deus é tanto o Criador como o juiz de todas as pessoas,” os cristãos deveriam compartilhar da preocupação com a justiça e a reconciliação em toda a sociedade humana e com a libertação de homens e mulheres de todo tipo de opressão. A partir dessa perspectiva, a missão da Igreja não deve ser reduzida à proclamação oral do Evangelho, pois, segundo o que foi discutido naquela ocasião, evangelismo e envolvimento sociopolítico são ambos parte da nossa responsabilidade cristã – e a tradicional dicotomia
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entre evangelismo e responsabilidade social é, assim, praticamente descartada. Diversas consultas organizadas no período entre o fim dos anos setenta e início dos oitenta pela comissão teológica do Movimento de Lausanne – uma comissão presidida pelo britânico John Stott – exploraram a fundo as implicações dessas declarações e de outras similares feitas no pacto. As várias declarações que surgiram a partir dessas consultas providenciaram tanto uma base sólida como uma rica agenda para a ação cristã no mundo. Infelizmente, Lausanne II, sediado em Manila, nas Filipinas, no ano de 1989, falhou em dar sequência ao entendimento holístico da missão cristã. Em grande medida, isso só reafirmou a separação tradicional entre evangelismo e ação social, o que afetou muito profundamente a cristandade ocidental pelos últimos dois séculos – especialmente na sua expressão evangélica. A grande questão relacionada ao III Congresso Lausanne de Evangelização Mundial, que acontece este mês na Cidade do Cabo é se ele vai apenas repetir os impasses de Manila ou vai permitir ao Espírito usar a Palavra de Deus, tornando-se assim um trampolim para a necessária e urgente reforma da Igreja, no espírito de Lausanne I.
danças e orações dos estudantes, que a maioria deles trouxe elementos da Igreja Ortodoxa para a sua identidade evangélica. Muitos recitavam de cor longas porções da Escritura, um hábito que eles desenvolveram quando ainda estavam sob o regime comunista. Uns 700 estudantes estavam presentes, e fui informado de que cinquenta deles haviam saído para fazer evangelismo rural nas vilas. Mais tarde, naquela noite, sentamo-nos para comer injera, um tradicional pão etíope que se come com as mãos, utilizando-se tigelas fundas. Os estudantes etíopes não poderiam ser mais diferentes em cultura, experiência, tradição e aparência se comparados aos seus
Há uma tigela funda de identidade e herança evangélica, na qual todos nós precisamos comer. Essa tigela está repleta com diversos dons oferecidos pelos que estão nos confins da Terra
Rene Padilla é presidente emérito da Fundação Kairós, diretor da Editora Kairós e um dos membros fundadores da Fraternidade Teológica Latinoamericana
Expandindo nosso abraço por Ferni B. Adeleye
D
urante a minha mais recente visita à Etiópia, encontrei-me com estudantes na Universidade Addis Abeba para uma reunião da União Evangélica dos Estudantes e Graduados da Etiópia. Os estudantes fazem parte de uma notavelmente corajosa Igreja etíope que sobreviveu ao regime repressivo do ex-presidente Mengistu Haile Mariam. Os crentes tiveram que viver escondidos durante o período de seu governo, entre 1974 e 1991, enquanto o regime torturou e matou dezenas de milhares de cristãos. Mas, depois disso, a Igreja se levantou, testemunhando de maneira corajosa e vibrante. Na reunião de que participei, só a adoração durou uma hora. Então, chegou o momento de oração, seguido da pregação bíblica, durando mais ou menos duas horas e meia. Eu poderia afirmar, baseado nos cânticos, 44
CRISTIANISMO HOJE
antecessores em Oxford e Cambridge que, há 64 anos, iniciaram a Fraternidade Cristã InterVarsity – entidade que, mais tarde, transformou-se na Fraternidade Internacional de Estudantes Evangélicos. Porém, tanto quanto esses, eles também são parte da futura identidade do evangelismo global. A prática culinária etíope é como uma metáfora da realidade da Igreja de hoje. Há uma tigela funda de identidade e herança evangélica, na qual todos nós precisamos comer. Essa tigela está repleta com diversos dons oferecidos pelos que estão nos confins da Terra. E alguns dos melhores e mais interessantes alimentos do cardápio vêm dos recém-chegados na família evangélica. Além de afirmarmos a Reforma passada, que foi estabelecida em contextos particulares, nós devemos levar a sério os valores emergentes de novos centros de expansão cristã. Sim, o futuro da reforma evangélica deve levar a sério a diversidade global. Nós não podemos ser tudo o que Deus quer se não estivermos atentos ao mosaico global que o Senhor está construindo. Na parábola dos trabalhadores da vinha (Mt 20.1-16), o proprietário da terra contratou empregados em horários diferentes, porém pagou a eles o mesmo salário. Os primeiros trabalhadores aceitaram os termos de pagamento e teriam ido embora satisfeitos se os colegas não houvessem chegado em seguida. Ao invés disso, ficaram ressentidos com os que vieram depois. Algumas vezes, os evangélicos correm o risco de serem como eles, esperando a maior honra ou os maiores salários simplesmente porque chegaram primeiro. Nós temos visto coisas maravilhosas. Os pais fundadores da
A REFORMA DO SÉCULO 21
tradição evangélica estão agora cercados de beneficiários que fazem tudo o que podem para defender e preservar a herança deixada por eles. Isso é certamente uma verdade naqueles estudantes com quem eu cultuei a Deus. Contudo, enquanto o Senhor da colheita contrata mais trabalhadores, os mesmos devem produzir ideias novas que enriqueçam a herança. Não podemos permanecer prisioneiros do quadro cultural e histórico dos primeiros trabalhadores. Nossa maior preocupação deve ser a de aprender com aquilo que o Senhor da história está fazendo globalmente. Pode alguma coisa boa vir dos que foram antes os inimagináveis e diversos confins da Terra? Só saberemos se estivermos abertos para aprender.
o historiador Martin Marty, poderia ser um lugar diferente se Graham tivesse sido uma “pessoa má”. Uma estudante chinesa que não é crente disse-me que está escrevendo acerca de como Graham
por Leighton Ford
A
reforma da fé cristã é uma obra de Deus tão abrangente, profunda e histórica que está além do meu alcance e provavelmente também do III Congresso Lausanne sobre Evangelização Mundial. Eu opto por algo mais modesto, como “uma reforma de condutas”, conforme preconizou William Wilberforce. A frase original significava difundir um reavivamento social, mas nós podemos estreitar o foco mais modestamente para reformar a maneira de tratar os outros – tanto agindo com cortesia, como crentes, no modo com que nos relacionamos uns com os outros, e respeitosamente, como evangelistas, indo em direção àqueles que buscamos ganhar para o Senhor. Três eminentes pais do Movimento Lausanne – Billy Graham, John Stott e Jack Dain – exemplificaram, para mim, esse espírito de verdade e graça, de grande convicção acerca do Evangelho e de humildade em relação a si mesmos e aos outros. O mundo, sugere 46
Leighton Ford é presidente do Ministério Leighton Ford e presidente honorário vitalício do Comitê de Lausanne para Evangelização Mundial
D A N I E L
Agentes de reconciliação
T R A D U Ç Ã O :
Ferni B. Adeleye é secretário-geral adjunto para Parceria e Colaboração da Fraternidade Internacional de Estudantes Evangélicos e integrante da equipe do Pan-African Host para o III Congresso Lausanne sobre Evangelização Mundial
aproximou-se de outras nações com civilidade, “não com o punho fechado, mas com a mão aberta”. Quando tantos consideram os cristãos – e, especialmente, os evangelistas e missionários – como intolerantes e arrogantes, poderia ser um considerável avanço se de Cape Town 2010 surgisse uma Igreja proclamando e praticando um evangelismo generoso, refletindo a generosidade do Senhor Jesus. Nosso tema para o III Congresso de Evangelização Mundial vem das palavras de Paulo: “Deus em Cristo, reconciliando consigo o mundo”. Que maravilhoso privilégio que ele, então, cita: o de que nós podemos ser embaixadores de Cristo, como se Deus estivesse fazendo o seu apelo por nosso intermédio” (II Coríntios 5). Ou, como alguém parafraseou, “Deus nos transformou de inimigos em amigos, e nos deu a tarefa de também fazermos os outros tornarem-se seus amigos.” É assim que os pré-cristãos veem os evangelistas? Ou eles nos enxergam como beligerantes e opressores, uma gente que briga até entre si? Como, então, deveríamos nós, embaixadores, representar essas boas novas? Paulo foi claro ao enfatizar que uma das maneiras de fazer isso é não dar motivo de escândalo a ninguém. O apóstolo continua. “Ao contrário, como servos de Deus, recomendamo-nos de todas as formas”. Como? Não somente suportando reprovações por causa do Evangelho, mas também através da pureza, conhecimento, paciência, bondade, santidade de espírito, amor genuíno e o poder de Deus, conforme II Coríntios 6.3-7. Nós estamos tecendo juntos o coração e a verdade da mensagem do Evangelho com a beleza e graça do ministério evangélico. O espírito de Lausanne tem sido uma expressão dessa atitude. Deus queira que Cape Town 2010 seja um lugar onde crentes evangélicos venham juntos, ouçam uns aos outros com respeito, aprendam juntos em humildade e trabalhem e orem juntos em amor. Se o evento puder nos ajudar a nos tornarmos evangelistas mais generosos, refletindo a generosidade de Jesus, fazendo o Evangelho mais atraente em palavras, atos e espírito, isso pode significar um grande passo em direção à reforma, à transformação, ou – querendo Deus – ambos. 8
A . S . J R
Nós estamos tecendo juntos o coração e a verdade da mensagem do Evangelho com a beleza e graça do ministério evangélico
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ENTREVISTA
}
Nem sal, nem luz
Para o bispo Robinson Cavalcanti, a Igreja Evangélica tem perdido a oportunidade de interferir politicamente no país
por Carlos Fernandes
A descrença na classe política leva não só ao voto nulo, mas ao voto irresponsável. Quem sai perdendo é o povo e a consolidação do regime democrático em nosso país
CRISTIANISMO HOJE – Qual leitura o senhor faz do atual processo eleitoral brasileiro? ROBINSON CAVALCANTI – No Brasil, nós continuamos com um sistema eleitoral distorcido. Um candidato menos votado 48
CRISTIANISMO HOJE
pode ser eleito enquanto um outro, que obtenha mais votos, acabar derrotado para os cargos proporcionais. Continuamos também com casas legislativas que são o inverso da pirâmide social do país: há muita gente do topo e pouca gente da base. Os candidatos a cargo majoritário são escolhidos em processo fechado – ou seja, “escolhemos” entre os que foram escolhidos para que nós escolhêssemos. Assim, não há novos nomes, novas propostas. Enfim, estamos para escolher entre seis, meia dúzia
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Outubro/Novembro 2010
e duas vezes três. Como o voto obrigatório ainda é uma necessidade no nosso atual estágio político, votar em qualquer um somente beneficia os piores. Isso acaba levando o eleitor à desmotivação e à descrença na classe política, o que leva não só à abstenção e ao voto nulo ou em branco, mas ao voto irresponsável. Quem sai perdendo é o povo e a consolidação do regime democrático em nosso país. No fim de 2010, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deixa o poder, depois de oito anos. Qual é o seu legado para o país? Entra governo e sai governo, e a saúde, a educação e a segurança pública parecem não avançar. Lula se espelhou em Getúlio Vargas [presidente entre 1930-1945 e 1951-1954], mantendo os privilégios das elites, cooptando o sindicalismo, esvaziando os movimentos populares e estatizando o clientelismo. A cidadania
E S T E R
E
m meio ao processo eleitoral de 2010, CRISTIANISMO HOJE foi buscar a opinião de um dos maiores especialistas em política do segmento evangélico brasileiro. Robinson Cavalcanti, bispo da Diocese Anglicana do Recife (PE), define-se como um evangélico progressista, o que já lhe rendeu polêmicas – não apenas na seara política, mas também, comportamental. Autor de livros como Uma bênção chamada sexo, lançado no já distante ano de 1976, Cavalcanti nem sempre tem suas posições claramente compreeendidas pela Igreja. Apesar disso, o bispo não abre mão da defesa de princípios claros não só nas Escrituras, mas no que chama de o consenso histórico dos fiéis. Um deles diz respeito à homossexualidade, tema que já provocou rachas em sua denominação, por conta do avanço da teologia liberal. “Uma coisa é o reconhecimento da dignidade de todos os seres humanos e a afirmação de direitos civis isonômicos para todos os cidadãos de um Estado democrático de Direito e laico”, advoga. “Outra é a crença nas Sagradas Escrituras como revelação de preceitos éticos comportamentais válidos para todas as épocas, lugares e culturas”. Robinson Cavalcanti concedeu esta entrevista às vésperas do primeiro turno das eleições gerais:
T A M B A S C O
Cavalcanti: “A cidadania foi enfraquecida à base do pão e do circo”
foi enfraquecida à base do pão e do circo, e velas foram acesas para Deus, o diabo, todos os santos e todos os orixás. De algum tempo para cá, se tem registrado um descrédito não só dos candidatos e partidos, mas da própria democracia na América Latina. Isso é motivado pela falta de ética e de transparência, além da escassez de resultados transformadores no campo social, que reduzam as terríveis desigualdades sociais e regionais encontradas entre nós. E para o segmento religioso, o que fica? No passado, Lula foi dolosamente satanizado pela direita protestante e pelos clientelistas, mas terminou por cooptar essa gente com uma cota de favores. Basta ver quem está próximo dele. O presidente trocou frei Beto por Marcelo Crivella como conselheiro político. Ele distanciou-se da CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil] e jogou um pouco para cada plateia religiosa, como fez ao comparecer, recentemente, nas comemorações dos 150 anos da Igreja Presbiteriana do Brasil.
Na sua opinião, a Igreja corre o risco de perder seu papel profético na sociedade? Creio que sempre teremos segmentos da Igreja Evangélica exercendo o seu papel profético de consciência moral da nação, mas, no caso do Brasil de hoje, de maneira minoritária. A política como que “mundanizou” a Igreja, levando-a a dançar conforme a música dos nossos costumes corrompidos. A Igreja nunca estudou a fundo a questão da heterossexualidade dos seus membros, preferindo cair em um legalismo moralista, e
Vivemos hoje na Igreja o vazio de uma geração sem heróis, sem modelos de vida consagrada em liderança madura e ética, e a promoção de lideranças artificiais e caudilhescas
Dentro deste processo de esvaziamento político, as candidaturas evangélicas ainda mobilizam os eleitores crentes? Tenho sempre diferenciado o evangélico político – que é um cidadão honrado e capaz, que se credencia perante o conjunto do eleitorado e busca o bem comum – e o político evangélico, aquele que se elege com o voto de cabresto eclesiástico. Este é aquele que se elege à base do clientelismo, do corporativismo, daquela busca de favores e vantagens para as igrejas. Aí entram as candidaturas oficiais de igrejas, que começam a se desgastar – tanto, que a maioria não se elege. Essa prática é negativa para a maturidade política dos cristãos em uma sociedade multipartidária e de voto livre. Temas caros aos evangélicos, como legalização do aborto e das uniões homoafetivas, foram defendidos pelo governo federal nestes oito anos. O próximo governo deve aprofundar essa discussão com a sociedade? Questões como essas transcendem o atual governo, ou a atual coligação partidária. Elas são parte da agenda pós-moderna, e encontram defensores em todos os partidos. Nos Estados Unidos, por exemplo, é diferente. Lá, temas ligados à moral são divididos por linhas partidárias. Aqui, há gente contra e a favor em todos os partidos. Mas creio que os políticos brasileiros estão percebendo a reação dos segmentos religiosos da sociedade e tendem a moderar a ênfase nessas bandeiras.
agora está tendo que enfrentar a tempestade da onda homossexual secular. E a enfrenta da maneira mais equivocada, ora demonizando, ora fazendo corpo mole, e até justificando o comportamento homossexual, quando há lugar para uma reafirmação segura e lúcida dos princípios bíblicos entendidos ao longo da história da Igreja pelo consenso dos fiéis. Então, a Igreja regrediu na discussão da sexualidade? Fui o primeiro autor de um livro evangélico sobre sexualidade no Brasil, quando publiquei Uma bênção chamada sexo (ABU Editora) em 1976. Até hoje, continuo a pensar da mesma forma, e lamento não ter sido ouvido. A Igreja avançou em muitos aspectos, mas regrediu quanto à sexualidade. Hoje, temos um discurso rígido, no qual uma moral aparente convive com uma moral subterrânea, clandestina, dentro das igrejas. É um dualismo doentio e hipócrita. O tema não tem sido enfrentado com honestidade bíblica e abertura a contribuições científicas. A Igreja Evangélica no Brasil saiu de uma situação de gueto, até meados do século passado, a uma posição de segunda força religiosa do país, com intensa visibilidade social e econômica. Como a Igreja está chegando à segunda década do século 21? Devemos lembrar que não existia essa mentalidade de gueto antes, quando as missões das igrejas históricas chegaram aqui entre a segunda metade do século 19 e a primeira metade do 20. Aquelas igrejas advogavam uma participação social, uma influência civilizatória. Tudo começa a mudar com o golpe de 1964 e a disseminação da heresia de que crente não devia se meter em política. A partir dali, apagou-se a nossa memória histórica e houve o avanço do fundamentalismo de direita e do conservadorismo, ora alienante, ora adesista. Apelamos para o novo nascimento e ensinamos a reta doutrina, mas não a Outubro/Novembro 2010
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CRISTIANISMO HOJE
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ENTREVISTA ROBINSON CAVALCANTI
transformação do caráter que nos faz agentes de transformação histórica. A Igreja padece de um déficit de ensino. O período da ditadura, com a repressão, sem dúvida colaborou para aprofundar essa distorção. Voltamos à cena com a última Assembleia Constituinte, mas sem o legado histórico e sem um conteúdo ético. O futuro se afigura fragmentado e diversificado quanto ao modo de ser dos evangélicos na política. Espero que a nascente Aliança Cristã Evangélica Brasileira se constitua em um fórum de conscientização e mobilização, para que, ao menos, um setor da Igreja seja sal e luz. O neopentecostalismo brasileiro surgiu neste período pós-64. É correto denominá-lo de evangélico? O fenômeno neopentecostal é caracterizado pelo surgimento de seitas para-protestantes, já que não há vínculos históricos,
Teológica Lartinoamericana, a Aliança Bíblica Universitária, a Visão Mundial e outras organizações e pensadores. A Igreja Evangélica de hoje, ao contrário de outras ocasiões, não tem uma figura de destaque, que sirva de referência ao segmento. Esta carência, em sua opinião, traz mais vantagens ou prejuízos? O que vivemos hoje é o vazio de uma geração sem heróis, sem modelos de vida consagrada em liderança madura e ética. Alguns antigos líderes entraram em crise e até renegaram o seu passado, causando muito sofrimento. Por outro lado, vemos uma promoção de lideranças artificiais e caudilhescas, o que é muito pior. Diversos autores apontam uma crise no ensino teológico, causada, entre outros motivos, pela carência de genuínas vocações e pelo advento de teologias heterodoxas. Como acadêmico, que leitura o senhor faz do ensino teológico no país? Os seminários teológicos disseminaram-se por todo o país, o que é um aspecto positivo. Contudo, esse crescimento se deu de forma desordenada, com a consequente queda do nível acadêmico. Vemos escolas que são verdadeiros caça-níqueis e muita picaretagem. Além disso, temos a presença crescente da teologia liberal e vemos denominações que ainda não valorizam adequadamente a educação teológica. Mas, ainda assim, podemos dizer que temos muitos bons seminários em quase todos os estados do Brasil, entidades que procuram conciliar nível acadêmico, ortodoxia, piedade e ética.
O fenômeno neopentecostal não tem vínculos históricos, teológicos ou doutrinários com a Reforma. Denominá-lo de “evangélico” é um desserviço ao conjunto do evangelicalismo no Brasil teológicos ou doutrinários desse segmento com a Reforma. Sendo assim, denominá-lo de “evangélico” é uma imprecisão e um desserviço ao conjunto do evangelicalismo no Brasil. Neste contexto, qual a diferença de significados entre os termos “evangélico” e “evangelical”? O termo evangélico, no continente europeu, é apenas sinônimo de protestante, mas na Inglaterra da primeira metade do século 19 adquiriu um sentido próprio – era a afirmação de uma herança que vem de John Wycliffe, passando pela Reforma, o puritanismo, o pietismo, o avivamento wesleyano e o movimento missionário, caracterizada por uma afirmação das doutrinas do credo e dos pontos convergentes das confissões de fé reformadas. Esse movimento enfatizava a autoridade das Sagradas Escrituras, a conversão ou novo nascimento, a busca de santidade e a obediência ao mandado missionário. Na década de 1850, foi criada a Aliança Evangélica, e os seus seguidores, como Wilberforce no passado ou John Stott no presente, sempre tiveram um compromisso social. O Movimento de Lausanne – com o seu Pacto – é uma das melhores faces do evangelicalismo mundial. Pode-se dizer que o evangelicalismo existe no Brasil? Bem, podemos dizer que o protestantismo brasileiro, dos seus primórdios até o golpe militar de 1964, era em sua grande maioria teologicamente evangélico, ou seja, evangelical. A presença do pentecostalismo, da escatologia pré-milenista e pré-tribulacionista e de algumas “missões de fé” acabaram por fortalecer o fundamentalismo a partir daquela data. O evangelicalismo progressista foi afirmado, nos últimos 40 anos, por entidades como a Fraternidade 50
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Mídia e Igreja Evangélica sempre tiveram uma relação de desconfiança, causada pelo preconceito, por parte da primeira, e pela fuga ao diálogo, comportamento típico da segunda. Para o senhor, como tem sido esse relacionamento hoje? A mídia, assim como a academia, as artes e o aparelho do Estado, estão hegemonizadas pela ideologia do secularismo travestida de laicismo. Essa corrente quer varrer da esfera pública o argumento religioso, confinado à irrelevância do interior dos tempos e dos lares, ou da subjetividade. No passado, havia o preconceito católico romano e marxista; hoje, o preconceito é oriundo do secularismo. Os protestantes são duplamente discriminados – ora são considerados irrelevantes do ponto de vista da notícia, ora estão no noticiário de maneira negativa ou sendo ridicularizados. Ao contrário da Igreja Católica e dos cultos afroameríndios, ainda não fomos nem assimilados nem legitimados como parte da cultura nacional. De nossa parte, no geral, temos pouca produção midiática que concorra para reverter esse quadro. O que há de bom ainda está voltado para o público interno, e muito pouco para o público externo. 8
52 Ética ministerial debate o caráter do homem de Deus 53 53 MÚSICA Michael W.Smith se reinventa com Wonder 53 DVD Portas Abertas lança documentário sobre perseguição no Irã 53
LIVROS Para que serve Deus, de Yancey, é lançado no Brasil Garimpo lança Efeito borboleta, de Glenn Packiam
LIVROS, FILMES, MÚSICA E AS ARTES
Bíblia do futuro Lançada a Glow, versão high-tech das Sagradas Escrituras por Marcos Stefano
A
tela do computador nunca foi tão abençoada. O público brasileiro já tem acesso à moderníssima Bíblia Digital Glow, lançada no Brasil pela Immersion Digital em parceria com a Sociedade Bíblica do Brasil (SBB) e a Casa Publicadora das Assembleias de Deus, a CPAD. O produto, que alia a mais recente tecnologia
digital aos eternos conteúdos das Sagradas Escrituras, vem com notas explicativas de cada passagem, cronologia histórica, milhares de imagens, mapas e vídeos. São 546 passeios virtuais em 360 graus, 2,3 mil fotos em alta resolução, 711 obras de arte, 140 mapas e 3 horas e 30 minutos de vídeos. Melhor ainda: tudo isso de forma interativa e fácil para qualquer um usar, mesmo os menos
NOVAS PERSPECTIVAS CRISTIANISMO HOJE – A Bíblia digital veio para revolucionar? NELSON SABA – É cedo para dizer tal coisa. Assim como a versão em papel, sua missão é comunicar a Palavra de Deus. A diferença é que o formato digital possibilita experiências que o papel não permite, com passeios virtuais,
habituados com as requintadas ferramentas virtuais. Mesmo antes de seu lançamento, CRISTIANISMO HOJE teve acesso exclusivo à Bíblia Glow para testar o produto. E a reportagem pôde comprovar que toda a badalação feita em cima dela nos Estados Unidos, onde está à venda desde o ano passado e recebeu o prêmio de “Bíblia do Ano 2010”, do Christian Book Award, não é exagero. O usuário pode ler qualquer trecho das Escrituras e mergulhar numa fascinante experiência de interação virtual. A leitura dos textos sagrados é facilitada pelo formato tradicional em que as versões bíblicas são apresentadas na tela – diferentemente de outros programas, a impressão que se tem é de estar lendo um livro em papel. A partir daí, é possível ter acesso quase instantâneo ao Atlas e à apresentação geográfica dos eventos bíblicos, ou à Linha do Tempo que organiza os fatos bíblicos cronologicamente. Mas imperdíveis mesmo são os passeios virtuais. Neles, o usuário pode andar pelas ruas e construções de Jerusalém nos tempos de Cristo (e conhecer como a cidade é hoje) ou explorar o Tabernáculo dos tempos de Moisés. Assim, de agora em diante, se durante um culto o pregador disser “vamos abrir as Escrituras” e muita gente sacar do bolso um celular, não estranhe mais. Essa é a revolução que a Bíblia Glow quer fazer.
CRISTIANISMO HOJE conversou com Nelson Saba, o brasileiro que idealizou a Bíblia Glow.
imagens, vídeos, mapas – tudo interativo e com uma enorme riqueza de conteúdo. Produtos como a Glow podem se transformar em ferramentas evangelísticas? Não tenho dúvidas sobre isso. Da mesma forma que levamos a Bíblia para outras línguas, povos e raças,
temos que entender que há muita gente que só consome ou usa predominantemente a mídia digital. Assim, plataformas digitais são essenciais para impactar e conectar as novas gerações. Também é muito mais fácil e sem tantos riscos entrar num país fechado ao cristianismo com um chip de celular ou usando a internet do que um livro físico.
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Entrevista
NA PRATELEIRA
Com Philip Yancey
Livros em destaque
brios hotéis da China comunista, para não ser apanhado pela polícia
secreta. Ouviu o relato dos estudantes cristãos da universidade Virginia Tech, aturdidos pelo assassinato de 32 de seus colegas dentro do próprio campus. Já participou de uma convenção sobre evangelização de prostitutas e ouviu várias delas contarem os mais sinistros e desesperadores episódios. “Quando me envolvo nessas situações extremas, não consigo deixar de pensar: de que serve Deus em todos esses momentos?”, questiona. Pois foi somente após um desses tenebrosos momentos – ocorrido quando esteve em Mumbai, na Índia, em 2008, e presenciou o ataque terrorista em que 165 pessoas foram massacradas – que o jornalista decidiu encarar de frente seus questionamentos. Que são, diga-se de passagem, os mesmos que todos os cristãos se fazem a si mesmos, mas na maioria das vezes não têm coragem de buscar respostas. Para que serve Deus, seu mais novo e aguardado livro, lançado primeiramente no Brasil com a presença do próprio autor, no mês de setembro, é o resultado de toda essa reflexão. Como o romancista que aproveita a efemeridade do jornalismo para eternizar acontecimentos marcantes e extrair inspiração de histórias reais de superação, o escritor de Maravilhosa graça revela os bastidores de dez de suas mais marcantes viagens. Em todas elas, foi como convidado para falar sobre como Deus age, para analisar com sensibilidade e profundidade o que a fé pode oferecer a públicos distintos como camponeses perseguidos no Oriente Médio, estudantes traumatizados nos Estados Unidos ou mulheres que passaram a vida como escravas do sexo num canto qualquer da Ásia. Tema recorrente em suas obras, mais uma vez o papel prático de Deus no mundo moderno está presente aqui também. Ao discutir como “o Deus de toda consolação” atua na vida das famílias das pessoas vitimizadas pela vida ou por seus semelhantes, Yancey, na verdade, busca a essência da verdadeira fé bíblica, perdida em tempos nos quais boa parte das igrejas prefere propagandear que só a prosperidade financeira e material é indício de bênção e confiança no Senhor. E que ninguém o acuse de simples teórico – em um dos capítulos, o autor conta como foi experimentar de perto a angústia da morte, após um acidente de carro que por pouco não custou sua vida. 54
CRISTIANISMO HOJE
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M A R C O S
cano Philip Yancey já viu de tudo. Realizou entrevistas nos mais som-
CRISTIANISMO HOJE – O senhor veio ao Brasil lançar seu livro e já se declarou um entusiasta da Igreja Evangélica brasileira. Qual sua análise sobre ela? PHILIP YANCEY – Eu conheço muitas igrejas, não só nos Estados Unidos, como em diversas partes do mundo. Vejo que em muitas dessas igrejas já não há mais vida. Mas aqui, no Brasil, vejo sinais de vida.
O senhor é um crítico da Igreja moderna, como diz em seu livro Perguntas que precisam de respostas. Como encontra motivação para permanecer na igreja, mesmo sabendo de todos os seus erros e problemas? Eu cresci na igreja e sei que a igreja tem seus erros. Minha família pode ter características estranhas e coisas de que não gosto, mas ainda assim, é minha família. Não me divorcio de minha mulher apenas porque faz algumas coisas de que não gosto, já que também há coisas que faço de que ela não gosta. Então, a solução não é fugir e ou deixar a igreja. Se Jesus nos coloca juntos – na família ou na igreja –, precisamos saber como podemos encontrar uma maneira de viver em harmonia, servindo uns aos outros.
Um de seus best-sellers é Maravilhosa graça. A graça é uma boa solução para a Igreja do século 21? A relação é clara entre a fé e a graça. E a graça é a base da Igreja. Ela é a única maneira de passarmos por cima de nossas diferenças. Eu não sou melhor do que ninguém, porque, pela graça, vejo que sou igual a todos. Então, penso que a graça é a única maneira de respeitarmos um ao outro.
O senhor é considerado por muitos como um cristão liberal, por conta das coisas que escreve. É por isso que Para que serve Deus traz tantos questionamentos? O maior problema sobre o que escrevo ou falo é o que o cristianismo pensa de si mesmo. Não vivo ou dependo do dinheiro da igreja, então sinto-me livre para escrever o que penso. Como jornalista que sou, procuro escrever sobre as dúvidas que tenho – e sei que outras pessoas tambem têm.
S I M A S
E
m suas andanças e palestras mundo afora, o jornalista e escritor ameri-
CRISTIANISMO HOJE conversou com exclusividade com Philip Yancey durante sua participação no estande da Editora Vida, que o trouxe ao Brasil para a ExpoCristã, em São Paulo, no mês de setembro:
C L A R A
POR PHILIP YANCEY (EDITORA MUNDO CRISTÃO, 288 PÁGINAS)
M A R I A
Para que serve Deus — Em busca da verdadeira fé
“A GRAÇA É A SOLUÇÃO PARA A IGREJA”
T R A D U Ç Ã O :
FÉ PROVADA NA PRÁTICA
S T E F A N O
por Marcos Stefano
Recomendamos Letras, sons e imagens
LIVROS FORMANDO HOMENS DE DEUS Ética ministerial
JAMES E. CARTER E JOE E. TRULL 320 PÁGINAS EDIÇÕES VIDA NOVA
HHHHH Diante de tantos escândalos e problemas enfrentados por pastores e ministros cristãos na atualidade, o debate levantado por James Carter, um pastor calejado por 30 anos na obra, e Joe Trull, professor e editor do periódico Christian ethics today, precisa ser conhecido por quem quer trabalhar para Deus. Em Ética ministerial, eles discutem as questões morais do dia a dia, o velho dilema vocação versus profissão, relacionamentos dos ministros e temas espinhosos e recorrentes nos tempos atuais – como abusos sexuais, atuação política e administração financeira. Partindo do princípio de que um líder não nasce pronto, a obra não somente orienta, como também desafia os líderes cristãos a uma análise de seus comportamentos e do testemunho de fé e vida que têm dado.
VOLTA ÀS ORIGENS
Uma introdução aos escritos do Novo Testamento ERICH MAUERHOFER E DAVID GYSEL 624 PÁGINAS VIDA ACADÊMICA – EDITORA VIDA
HHHHH Mesmo após quase 2 mil anos de acirrados debates, não são poucas as dúvidas que pairam sobre os textos do Novo Testamento. Afinal, quem foram os verdadeiros autores dos evangelhos? Em seus escritos, João sofreu influência dos gnósticos? Atos dos Apóstolos é um escrito historicamente confiável? E o que dizer do simbolismo presente no Apocalipse? Uma introdução aos escritos do Novo Testamento trata com profundidade e ineditismo, pelo menos no Brasil, dessas e de várias outras questões. Suas longas e detalhadas referências englobam as opiniões dos principais especialistas, desde aquilo que foi dito pelos pais da Igreja até as teorias mais recentes, oferecendo uma boa base não somente para teólogos, mas também para quem deseja conhecer melhor as origens dos textos gregos da Bíblia Sagrada.
PEQUENAS AÇÕES, GRANDES TRANSFORMAÇÕES
qualidade musical, as letras são um atrativo à parte, com variadas referências à intimidade do músico – inclusive, de seu casamento, das lutas que enfrentou e de seu trabalho ministerial.
Efeito borboleta
GLENN PACKIAM GARIMPO EDITORIAL 192 PÁGINAS
LOUVOR COMO ARMA
HHHHH “O bater de asas de uma borbo-
Ressuscita
leta no Brasil poderia provocar um tornado no Texas?” Foi com essa pergunta, em 1963, que o matemático e meteorologista Edward Lorenz popularizou uma das mais polêmicas hipóteses da ciência moderna: o efeito borboleta. Dando apoio à Teoria do Caos, esse princípio propõe que ligeiras mudanças localizadas seriam capazes de produzir uma reação em cadeia de longo alcance. Trata-se da mais pura física – mas poderia também ser aplicada à espiritualidade? O criativo escritor Glenn Packiam, diretor da New Life School of Worship e integrante do corpo ministerial da comunidade New Life, em Colorado Springs, nos Estados Unidos, não apenas acha que sim, como escreveu um livro defendendo isso. Efeito borboleta, publicado no Brasil pela Garimpo Editorial, usa experiências e episódios da vida de Packiam para demonstrar como os menores gestos podem produzir grandes efeitos nas vidas de muitos. O mesmo vale para a Igreja de Deus, que precisa recuperar o mesmo compromisso e motivação que fizeram com que os atos de simples pescadores pudessem virar o poderoso Império Romano de pernas para o ar 2 mil anos atrás.
MINISTÉRIO IPIRANGA 11 FAIXAS CANZION BRASIL
CDs
RETRATO DA PERSEGUIÇÃO
HHHHH Um dos representantes mais destacados da moderna adoração musical no Brasil, o Ministério Ipiranga anuncia suas músicas como armas em uma guerra. Na verdade, a visão é ainda mais ampla: a música cristã deve ser profética, essencial para liberar o genuíno avivamento. Essa visão norteia o mais novo álbum do grupo, Ressuscita, lançado em parceria com a Canzion Brasil. O CD é uma coletânea, com canções inéditas e outras já conhecidas, cuja gravação foi realizada em duas etapas – a primeira, na própria Comunidade Cristã Ministério Ipiranga, em São Paulo; e a segunda, na Igreja Luz para os Povos, em Goiânia (GO). Entre as 11 faixas do trabalho, destaque para as inéditas Te quero, ó Pai, Acredito no meu Deus e a faixa título Ressuscita, que vem se destacando como música mais ouvida em diversas rádios com programação gospel do país.
DVDs Irã – Um brado de fé
A REINVENÇÃO DE MICHAEL W. SMITH Wonder
MICHAEL W. SMITH 12 FAIXAS SONY MUSIC
DOCUMENTÁRIO 54 MINUTOS (INGLÊS E PORTUGUÊS) MISSÃO PORTAS ABERTAS E GRAÇA FILMES
HHHHH Se uma galeria dos moder-
HHHHH Com 27 anos de carreira, 21 álbuns gravados e diversos prêmios conquistados, Michael W. Smith transformou-se em um dos ícones da música gospel. Mas, mesmo com tamanha rodagem, ele ainda continua surpreendendo. Seu mais novo disco, Wonder (“Maravilha”), que teve lançamento mundial realizado no Brasil, traz doze canções inéditas que tratam das contradições da vida moderna e exaltam a importância da fé em Deus. Para gravar este álbum, talvez o mais pessoal de sua carreira, o artista contou com uma nova banda, fez parcerias com diversos compositores e usou e abusou de recursos tecnológicos. Aliada à
nos heróis da fé fosse escrita, o nome do pastor iraniano Haik Hovsepian não poderia faltar nela. Um dos mais destacados líderes da Igreja Protestante no Irã, o assembleiano Hovsepian mostrou toda sua coragem ao expor as atrocidades do regime dos aiatolás islâmicos e denunciar a injusta prisão do ex-muçulmano e pastor Dibaj. O preço, porém, foi alto: em 1994, ele acabou assassinado em um atentado que até hoje continua envolto em circunstâncias misteriosas. Irã – Um brado de fé, primeiro vídeo lançado na nova parceria entre a Missão Portas Abertas e a Graça Filmes, foi produzido pelos filhos de Hovsepian e descortina a situação do Irã, um dos países que mais perseguem os cristãos no mundo.
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56 RENOVARE Eduardo Rosa 58 REFLEXÃO Ricardo agreste 60 OS OUTROS SEIS DIAS Carlo Carrenho 62 ÚLTIMAS PALAVRAS Carlos Queiroz 64 VIDA PLENA Esther Carrenho
OPINIÕES E REFLEXÕES A RESPEITO DA IGREJA CRISTÃ
“Precisamos conhecer mais sobre o espiritismo para podermos falar com propriedade àqueles que têm sido enganados. ” Flabenilto Parreira
Espiritismo
Gostei muito da reportagem O espiritismo volta à cena [edição 17]. Eu não conheço toda a doutrina kardecista, só algumas coisas básicas, como a crença no contato com espíritos desencarnados e também na prática da caridade. Essas doutrinas constituem um grande perigo para quem não entende os princípios básicos do cristianismo. Juliano Lopes Eu fui espírita e me converti a Cristo. Antes, eu cria na bem montada doutrina espiritualista, mas ao ouvir a ministração da Palavra de Cristo, vi o quão enganado estava. Certamente, a crença no espiritismo invalida o sacrificio de Jesus na cruz. É Satanás se fazendo de bonzinho e praticando o engano, papel que lhe cabe perfeitamente. Aos homens, está ordenado morrerem uma só vez, vindo depois disto, o juizo. Essa é a verdade de Deus para as nossas vidas – o resto é mentira do diabo. Miriam Mattos
veneno para saber que não se deve tomar veneno, precisamos conhecer mais sobre o espiritismo para podermos falar com propriedade àqueles que têm sido enganados. Sem dúvida, evangelizar é preciso. E sem medo, pois maior é o que está em nós do que está no mundo. Flabenilto M.Parreira
Eleições
Sou catequista da Igreja Católica e gostei bastante dos textos Espiritualidade engajada [Coluna Reflexão, de Ricardo Agreste, edição 18] e Voto bom é voto laico [Coluna Os outros seis dias]. Todos nós, cristãos, temos que trabalhar em prol do Reino de Deus, independentemente da nossa religião. Silvia Carvalho Se o cristão não consegue usar o que tem à mão – o voto – para mudar a sociedade, o que é tão simples,
como pretenderá mudar a sociedade? A espiritualidade deve ser integral, e uma das maneiras de expressá-la é votar com consciência. Dizer que não é possível mudar as coisas através da política é sinal de alienação e desconhecimento do Evangelho. Basta lembrar que algumas pessoas transofrmadas por Cristo promoveram mudanças profundas em muitos momentos históricos. Guilherme Oliveira Será possível que a Noiva de Cristo sucumbiu à sedução do poder, como percebemos na atitude de servir como marqueteira de candidatos evangélicos e não-evangélicos que tomam sobre si mesmos o status de messias do povo? Só uma Igreja engajada, que some morros e invade rincões da pobreza; e que espaço para oferecer ajuda humanitária aos menos favorecidos voltará à sua chamada profética original – a de ser sal e luz neste mundo. Felipe Maia
Humor
Rubinho Pirola
Li a matéria e confesso que fiquei decepcionado com os argumentos utilizados. Nós, espíritas, não fazemos proselitismo; sequer convidamos as pessoas a frequentarem nossas casas. Um fato é incontestável: a existência de Deus, dos espíritos e de Jesus Cristo, que é nosso modelo e guia. Praticar a caridade, levando conforto e consolo aos necessitados é nosso lema. O espiritismo baseia-se no uso da razão e da fé racional. É recomendável meditar bastante nessa doutrina, para que ninguém venha a ser achado lutando contra as coisas de Deus. Jessé Azevedo Parabéns pela matéria. Foi muito esclarecedora. Que o povo de Deus possa se lembrar do que nosso Jesus disse: que a nossa justiça deve exceder à dos escribas e fariseus. Assim como não precisamos tomar
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VIDA PLENA
ESTHER CARRENHO
Silêncio de todos os tipos
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á vários tipos de silêncio. Alguns são tidos como sábios. Outros, como necessários para se alcançar a maturidade emocional e espiritual. Mas há também silêncios que revelam dificuldades e bloqueios que podem trazer prejuízo – tanto para quem silencia como para aqueles que vivem ao redor daquele que não se expressa. O primeiro desses silêncios, e no caso um silêncio prejudicial, é aquele de quem silencia por medo, embora precise falar e tenha o que dizer. Medo de errar, de ofender, de não ser aceito, de sofrer punição. Tal dificuldade em romper o silêncio pode ser consequência de várias situações decorrentes da fase de formação do indivíduo. Muitos filhos são proibidos de falar pelos pais. Não podem expressar suas opiniões e ideias; são obrigados a obedecer sem nenhuma explicação e não têm permissão para questionar. Se insistem, são punidos. E ainda há aqueles que são criticados pela forma, pelo tom de voz, pelo ritmo ou pelo jeito com que falam, sendo até ridicularizados por meio de zombarias. Pessoas assim precisam se conscientizar de que cresceram, tornaram-se adultos e podem agora expressar seus pensamentos e desejos. O segundo tem a ver com a avaliação que cada pessoa faz de si. Muitos se abstêm de falar porque têm vergonha das suas ideias, do que pensam; acreditam que o que têm a dizer não tem valor. Gente assim vive num tipo de esconderijo, ainda que no meio de um ajuntamento. Por causa da autoavaliação distorcida que fazem a respeito de si mesmas, se omitem, não participam e não revelam o potencial e o valor que possuem. Agindo assim, não se mostram, e em muitas situações a habilidade que possuem não é vista. Deixam, portanto, de cooperar para possíveis transformações no ambiente em que vivem. Um outro tipo de silêncio é aquele que surge quando o assunto a ser abordado é tão dolorido e difícil de ser expressado que a
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pessoa não consegue falar. A dor emocional é tão grande que só lhe resta silenciar, sufocada. Tal sofrimento é o resultado de alguma mágoa, ofensa, experiência ou uma situação não resolvida da sua história. A melhor forma de vencer este bloqueio é lidar, em primeiro lugar, com as memórias doloridas de que se tem lembrança. Ou seja, é necessário, antes de tudo, expressar toda a fala referente àquele assunto para tornar possível um esvaziamento da dor acumulada. Nesse processo, o indivíduo terá a oportunidade de fortalecer seus recursos internos e expressar o que tem em mente, sem se deixar engolir pela mudez emocional. O quarto tipo de silêncio é aquele que surge como retaliação ao interlocutor. Trata-se de situação comum entre cônjuges ou membros de uma mesma família ou grupo de pessoas próximas. A pessoa sabe que devia falar, mas silencia como punição ao outro. O uso da vingança pelo silêncio impede que a comunicação se estabeleça na solução de diferenças, conflitos e ofensas entre as pessoas que convivem entre si. E a consequência é óbvia – os problemas que prejudicam o relacionamento não são resolvidos. Mas há também o silêncio, que chamo de sábio, que surge por simples escolha. Muitas pessoas sabem o que falar, acreditam em si mesmas e não têm medo do interlocutor, mas ainda assim escolhem silenciar – ou porque julgam que o momento não é adequado para
se expressar, ou porque temem que o que for falado será usado como arma contra elas mesmas. Isso, sem falar naquelas situações em que o falante percebe que seus ouvintes não estão interessados no que ele tem, pode e sabe falar. Quantos de nós já não passaram pela situação incômoda de perceber que ninguém à nossa volta dá a mínima atenção ao que dizemos e que o melhor seria nem ter começado o assunto? O último tipo de silêncio é aquele de quem não se preocupa se tem ou não o que falar; apenas silencia para escutar o outro, ao mesmo tempo em que escuta também a si mesmo. Rubem Alves, em seu livro O amor que acende a lua, escreve exatamente sobre isso. Diz o escritor que há muitos cursos sobre oratória, mas nenhum de nós se preocupa em aprender a arte de escutar. O apóstolo Tiago já nos alertava, em sua epístola, para sermos “prontos para ouvir e tardios para falar”. E os escritores do Antigo Testamento, em várias ocasiões, usam o termo hebraico shemah em relação ao convite que Deus faz ao povo de Israel para escutá-lo. Ora, não se pode escutar nada se não houver silêncio. Que possamos nos expressar livre e corajosamente quando se fizer necessário em toda e qualquer situação. Mas que possamos, também, escolher o silêncio para ouvir da melhor maneira possível – e, principalmente, que saibamos silenciar quando falar não for conveniente. 8
Há quem silencie apenas para escutar o outro, ao mesmo tempo em que escuta também a si mesmo
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Que saibamos silenciar quando falar não for conveniente
RENOVARE
EDUARDO ROSA
Religião X espiritualidade
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A espiritualidade cristã afirma um Deus eternamente trino, mas historicamente se alicerça em Jesus. Nela, a verdade não é um dogma, mas sim, uma pessoa
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e a pessoa viva de Jesus, pela pálida caricatura de um ídolo, seja visível ou invisível. A segunda tragédia é tratar a espiritualidade cristã como se fosse algo fluido, sem rosto, sem âncora. Embora não seja a única espiritualidade presente no mundo, aquela que nasce de Jesus tem contornos definidos. É mistério, mas também encarnação visível do Deus invisível. É inclusiva, aberta a todos – mas exige transformação de mente e coração de todos que aceitam caminhar por suas sendas. É fundamentada nas experiências e nos relacionamentos, buscando o encontro com o coração do Pai. Esse tipo de espiritualidade, a cristã, não é dogmática, mas racional. Ela se afirma a partir de algumas definições que a fazem singular. Ela não se deixa conter por nenhum odre religioso, mas ao mesmo tempo permite-se reduzir a uma referência histórica. Confessa um Cristo cósmico, presente em toda a Criação, porém encarnado plena e unicamente na pessoa histórica de Jesus de Nazaré. Vivemos um momento no qual o desgaste da religião institucionalizada e a explosão de diferentes espiritualidades nos impõem um reencontro com os alicerces da espiritualidade vivida por Jesus. Um retorno ao ponto no qual o Filho disse que sua vontade consistia em fazer a vontade de seu Pai. Ao que o Pai replicou: “Este é o meu Filho amado, em quem eu tenho prazer”. 8
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A espiritualidade cristã afirma um Deus eternamente trino, mas historicamente se alicerça em Jesus. Eis a razão pela qual nesta espiritualidade a verdade não é um dogma, mas sim uma pessoa: “Disse Jesus, eu sou a verdade e a vida; ninguém vem ao pai sem mim” (João 14.6). O cerne da vida de Jesus era sua relação com o Pai por meio do Espírito Santo. Sua inquebrável conexão com o Pai dava-lhe a invejável tranquilidade de dormir na proa de um barco em meio a uma tempestade apavorante. Por tocar e ser tocado pelo Pai, o Filho de Deus conseguia tanto tocar em leprosos intocáveis como sentir o singular toque de alguém no meio de uma multidão de mãos; podia sentar-se para descansar na casa de suas amigas Marta e Maria e comer e beber na companhia daqueles com quem a religião não aconselhava a fazê-lo. Jesus é o verdadeiro religare, em quem o divino e o humano se unem no seu estado de plenitude. Duas tragédias podem se abater sobre a espiritualidade cristã. A primeira é quando ela é domesticada por uma religião, ainda que se denomine cristã. Nesse caso, valores são substituídos por regras; comunidades, por templos; relacionamentos, por doutrina; fraternidade. por denominação; devoção, por liturgia; conversação, por pregação; adoração, por espetáculo; serviço, por poder; graça, por lei; entrega, por consumo; ovelhas, por lobos;
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izer que há uma diferença entre religião, espiritualidade e espiritualidade cristã já virou lugar-comum. Mas é sempre conveniente estabelecer os limites entre elas. A religião resulta sempre de um caldo de crenças, convicções, definições e marcos concretos capazes de definir com certa precisão quem são os de dentro e os de fora. Religião e cultura estão intrincadas de tal maneira que, em muitos casos, não se sabe onde começa uma e termina outra. Conquanto sua etimologia – a origem é o termo latino religare – proponha a conexão, o religamento com o divino, a religião nem sempre pode ser considerada um ponto de contato com Deus. A religião é uma codificação de Deus, e por isso se apoia no dogma. Na mais elementar observação, é justo afirmar ser a religião uma criação humana para se aproximar de Deus. Já espiritualidade é uma expressão do espírito, dessa dimensão misteriosa do nosso ser; de algo em nós capaz de levar-nos para alguém fora de nós. Sim, há um espírito vivendo em nós – então, naturalmente, haverá espiritualidade. Ela não precisa ser criada; necessita, isto sim, ser cultivada, pois já existe como condição natural do ser humano. A espiritualidade não é resultante da cultura, embora aconteça sempre dentro de um contexto histórico. É fato que as barreiras culturais e religiosas são melhor transpostas pela via da espiritualidade. Neste sentido, enquanto a religião é sempre uma realidade doméstica, acontecendo no âmbito da familiaridade da casa e de seus moradores, a espiritualidade é “selvagem”; ela não se deixa conter pelo lugar, pelo rito, pelas pessoas. Antes, passa pela casa, mas habita mesmo o mistério e o desconhecido. A espiritualidade quer experimentar Deus sem a obsessão de defini-lo – por isso, ela se apoia não no dogma, mas na metáfora, que é plural nos seus significados. Na mais elementar observação, é justo afirmar ser a espiritualidade uma criação de Deus para se aproximar do ser humano.
S X C
Há um espírito vivendo em nós – então, naturalmente, haverá espiritualidade
REFLEXÃO
RICARDO AGRESTE
Entre a sinagoga e o areópago
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algo novo, mas lançar novas luzes sobre tudo o que já conheciam. Citou profetas do Antigo Testamento, sem qualquer preocupação em explicar que foram aqueles homens do passado – afinal, seus ouvintes os conheciam e respeitavam. Além disso, termina usando um conceito judeu, ao apresentar Jesus como “o Cristo”. E, assim, presenciou três mil conversões. Alguns capítulos adiante, lemos que Paulo, em Atenas, pregou para uma plateia formada pela elite pensante da época. Falou do mesmo Evangelho, mas em um formato bem diferente. Diante do areópago grego, começou perguntando o que se encontra na mente e no coração das pessoas. Em seguida, fez uso de conceitos que pertenciam à história e à cultura helênica, para só então apresentar o “Deus desconhecido”. O impacto da palavra de Paulo é impressionante! Alguns resistem fortemente, mas outros se rendem ao Evangelho. O que aconteceria se Pedro fizesse sua famosa pregação do dia de Pentecostes no areópago de Atenas? Provavelmente, os atenienses o desprezariam, pois não entenderiam o discurso. Não faria qualquer sentido para eles citações do profeta Joel ou do rei Davi, pois tais personagens lhes eram absolutamente desconhecidos. E falar em um Cristo, figura que não pertencia à tradição ateniense, teria como resultado incompreensão ou indiferença. Por outro lado, um Paulo falando
em “Deus desconhecido” diante de judeus na festa de Pentecostes provavelmente seria apedrejado. Os ouvintes ficariam indignados por ver conceitos pagãos sendo empregados em referência aos ensinos dos personagens do passado hebreu registrados nas Escrituras do Antigo Testamento. Hoje, muitos cristãos e igrejas vivem inseridos na cultura da sinagoga. Observam formatos litúrgicos que foram desenvolvidos ao longo dos anos a fim de que todos os iniciados na fé sintam-se confortáveis. Na verdade, são conceitos e palavras perfeitamente compreensíveis àqueles que já participam do ambiente há muitos anos; tudo é feito tendo em vista este público interno, os iniciados que conhecem os símbolos suficientemente. O grande problema é que vivemos no areópago. Assim, a Igreja que entende que a essência de sua missão é a comunicação do Evangelho aos que a cercam precisará aceitar o desafio de pregar perante o areópago. Isso, certamente, gerará certo desconforto aos iniciados, pois demandará mudanças, maior conhecimento e sensibilidade para com a cultura daqueles que queremos alcançar – e poderá, até mesmo, levar alguns pregadores a trocar os púlpitos por banquinhos, usar um MacBook ao lado da Bíblia e citar Luis Fernando Veríssimo e Chico Buarque de Holanda a fim de ajudar seus ouvintes a entender mais facilmente a mensagem da salvação. 8
Hoje, muitos cristãos e igrejas observam formatos litúrgicos desenvolvidos ao longo dos anos a fim de que os iniciados na fé sintam-se confortáveis
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á algumas semanas, uma revista de grande circulação no país publicou reportagem de capa intitulada A nova reforma protestante. Entre várias opiniões, citações e ideias de diversas pessoas expressas no texto, foi mencionado algo que acontece na igreja que pastoreio: “Os sermões são chamados, apropriadamente, de palestras e são ministrados com recursos multimídia por um palestrante sentado em um banquinho atrás de um MacBook. A meditação bíblica dominical é comumente ilustrada por uma crônica de Luis Fernando Veríssimo ou uma música de Chico Buarque de Holanda”. Não é preciso dizer que alguns manifestaram indignação com o que foi dito na matéria. Já imaginou, disseram, um pregador sentado em banquinho? E como pode alguém fazer uso de ideias “pagãs” para elucidar um conceito sagrado? Que irreverência! O que algumas pessoas que pensam assim não percebem é que há tanto tempo se encontram enclausuradas num modelo cultural de ser igreja que não conseguem mais distinguir entre o que é princípio bíblico e o que é modelo cultural construído ao longo dos anos. Por exemplo, pregar a Palavra de Deus com fidelidade é um princípio bíblico. Mas pregá-la de terno e gravata, atrás de um enorme e elevado púlpito de madeira, é um modelo cultural. Quem pensa assim passou a entender que a missão da Igreja é a manutenção das formas religiosas – sejam elas provenientes da cultura europeia do século 16 ou do caldo pop evangélico desenvolvido nas últimas décadas. E assim, a missão de comunicar o Evangelho àqueles que se encontram inseridos no mundo real tornou-se secundária ou esquecida. Segundo Atos 2, Pedro, diante de uma multidão de judeus, pregou o Evangelho fazendo uso da cultura desenvolvida nas sinagogas judaicas. Desde o início de sua mensagem, o apóstolo afirma que iria “esclarecer” algumas coisas. Ou seja, ele não se propõe a apresentar
S Z U E C S
Muitos não distinguem princípio bíblico de modelo cultural
OS OUTROS SEIS DIAS
CARLO CARRENHO
Uma garotinha
O
caso aconteceu no Rio de Janeiro, na hora do Jornal Nacional da Globo. A garotinha, de três anos, despediu-se de seu avô e foi direto para o carro do pai, Marcelo. A mãe, Ana Paula, acomodou-a em seu colo, no banco de trás, enquanto Marcelo acelerou seu Gol, de vidros escurecidos, em direção à casa da família, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Lá pelas tantas, a menina despertou de seu cochilo assustada. Foi aí que um carro emparelhou e seus ocupantes começaram a disparar contra a família. A garotinha mal teve tempo de começar a chorar quando a saraivada de tiros começou. Sua mãe abraçou-a fortemente para protegê-la e achou melhor sair do carro. Marcelo já tombara ferido sobre o volante. Do lado de fora do automóvel perfurado por vários tiros, Ana continuava protegendo sua filha com um abraço corajoso e heroico. A menina, assustada, continuava chorando quando percebeu que sua mãe perdera o equilíbrio. Foi preciso apenas uma bala. Na cabeça. E Ana Paula caiu morta. A garotinha ficou ali, chorando, em choque, sob o corpo já inerte, mas ainda protetor, da mãe. O outro carro disparou. A fuga foi tão rápida que ninguém anotou placa nem nada. O pai da garotinha foi levado ao hospital. Seguranças que estavam próximos à cena do crime resgataram a garotinha do local. Ela chamava pela mãe, que pela primeira vez não respondia a seus apelos. Aos três anos de idade, não se poderia esperar que compreendesse a dimensão da morte. Com o coração apertado, transeuntes cuidaram da garotinha até que seus familiares chegassem. Enquanto voltava ao aconchego familiar, a garotinha continuava a chamar pela mãe. Seus avós e tios não sabiam o que dizer. No hospital, o pai da garotinha passaria por várias cirurgias. Ninguém sabia se ele sobreviveria – e, caso resistisse, quais
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seriam as sequelas dos tiros. A polícia apareceu, mas não conseguiu desvendar os motivos da ocorrência. O pai e a mãe da garotinha não tinham ficha criminal, tampouco envolvimento com nenhuma prática ilegal. Tudo indicava que os bandidos haviam confundido o carro da família com o de algum rival. E aquela família fora destruída. No exato momento do ato de brutalidade que tirou da garotinha aquilo que tinha de mais precioso – sua mãe –, começava o horário político eleitoral na TV. Em todo o país, as telinhas mostravam políticos prometendo de tudo em troca dos votos dos cidadãos. Saúde, educação e emprego fazem parte de todos os discursos. E, claro, segurança também. Mas a garotinha não dá a menor importância aos rostos sorridentes que aparecem na TV. Ela quer apenas o sorriso de sua mãe. A um quilômetro da calçada onde Ana Paula morreu protegendo sua garotinha, milhares de caminhões cheios de produtos passam diariamente pela Via Dutra, estrada que liga as duas maiores metrópoles do país. Beneficiadas pela estabilidade da economia nacional, indústrias como as de brinquedos enchem as prateleiras das lojas. E crianças, como a garotinha, costumam ficar encantadas com eles. Mas ela agora pouco se importa. Não quer bonecas, sejam simples ou caras. Queria apenas o carinho de uma mãe.
Há no Brasil de hoje quase 200 milhões de pessoas que, infelizmente, já não se chocam com casos como o de Marcelo, Ana Paula e sua filhinha. Boa parte destes milhões de brasileiros formam uma instituição chamada Igreja – mas nem por isso, são diferentes dos outros. Como quase todos neste país, os crentes em Jesus não se chocam nem se importam com o que acontece à sua volta. E, ainda que o próprio Cristo tenha ordenado que se importassem, já não o fazem. Entre estes cristãos estão eu e você. E eu e você também já nos acostumamos com tragédias como a da garotinha. Não nos chocamos com fatos assim, a menos que vitimem a nós ou pessoas que nos sejam próximas. E, verdade seja dita, eu e você já não nos importamos. É hora de mudar. É hora de se chocar. É hora de se importar. É hora de agir. Não apenas com orações, mas com ação. Pense naquela garotinha, embaixo do corpo de sua mãe, que deu sua vida para salvá-la. Pense no choro daquela criança; imagine o que lhe passou pela cabecinha vendo sua mãe caída, tão perto e ao mesmo tempo, tão distante. Avalie que tipo de sentimento a garotinha, quando crescer, vai nutrir ao longo da vida. Olhe nos olhos lacrimejantes da garotinha; ouça seus gritos pela mãe. Chega de nos chocarmos apenas com o fato de não nos chocarmos, de lamentarmos nossa falsa impotência. Já não podemos deixar para amanhã. Eu e você temos de aceitar hoje o autêntico chamado cristão. É hora de salvarmos as mães de nossas garotinhas. 8
Há no Brasil de hoje quase 200 milhões de pessoas que, infelizmente, já não se importam com casos como o da garotinha
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E C H I A R T W O R K
Chega de nos chocarmos apenas com o fato de não nos chocarmos
ÚLTIMAS PALAVRAS
CARLOS QUEIROZ
Responsabilidade cidadã
A
paz é uma condição interior, um estado de alma. É o bem mais desejado por todos os seres humanos. Os personagens mais significativos da história da humanidade se dedicaram a construir a paz para as suas gerações. Jesus Cristo sempre falou e propiciou condições de paz para os seus seguidores – por isso mesmo, foi descrito pelos profetas como o Príncipe da paz. No Sermão da Montanha, o Mestre relaciona a paz como uma das principais virtudes na espiritualidade de seus discípulos. No mesmo contexto, ela é apresentada também como uma experiência sociopolítica. Nas narrativas bíblicas, a paz é decorrente da prática da justiça. Se reconhecemos a espiritualidade apenas como expressão religiosa e litúrgica, não há como esperar dela o desenvolvimento de uma cultura de paz; todavia, se entendida e praticada como um conjunto de valores e princípios essenciais à vida, podemos continuar sonhando com o resgate e preservação de uma vida em plenitude para todas as pessoas, tendo como fonte de inspiração a espiritualidade. A dignidade humana é o maior bem fecundado pela espiritualidade anunciada por Jesus Cristo. Afirmações bíblicas como “o Verbo se fez humano e habitou entre nós” ou “que todos tenham vida em abundância” anunciam a importância de uma espiritualidade que nos torne humanos ao máximo. Quando a espiritualidade toca todas as áreas da vida, as demais formas de expressão da existência são beneficiadas. A paz, por exemplo, se torna uma linguagem, uma comunicação nas mais variadas expressões – na literatura, na música, no humor e na política. Quando isso acontece, há sinais de que a paz se transformou em cultura. Sendo assim, continuamos acreditando que é possível se construir uma cultura de paz. 66
CRISTIANISMO HOJE
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Sem paz, o direito universal de se viver sob a garantia da preservação da dignidade humana fica submetido ao risco da violência. Todos somos dignos de nos percebermos e sermos acolhidos como pessoas e de termos garantido o respeito aos direitos que garantem o desfrute da vida. Assim, toda e qualquer ação, atitude ou omissão que ponha em ameaça essa dignidade e esse respeito é uma violência contra a dignidade humana. E, por mais que a violência seja também uma ameaça à paz, ela é, acima de tudo, uma oposição à dignidade humana. Portanto, o oposto da violência não é a paz – é a dignidade humana. As nossas expressões culturais e práticas cotidianas sinalizam nossas escolhas em relação à paz ou à violência. É como se a violência ou a paz viessem de uma fonte interior com o poder de se embrenhar em todas as formas de expressão humana – do convívio social à educação, da arte à religião. E faz parte de nossa responsabilidade cidadã desenvolver uma cultura de paz, a fim de que, pela justiça, a dignidade humana seja garantida e preservada. Isso se faz garantindo os direitos de todos, principalmente de todas as crianças, adolescentes e jovens e combatendo toda forma de violência contra indivíduos mais vulneráveis, como mulheres e idosos. Recentemente, o caso de uma iraniana condenada à morte por adultério chamou
a atenção do mundo. O fato chamou a atenção para a maneira como sociedades islâmicas tratam a questão dos direitos humanos, e o envolvimento dos brasileiros cobrando sua absolvição foi muito louvável. Mas, é muito preocupante que diariamente centenas e milhares de mulheres estejam sendo agredidas, violentadas e assassinadas sob o olhar omisso e indiferente de nosso povo e nossas autoridades. Esse silêncio injustificável é um indício de que a violência tornou-se parte da cultura brasileira contemporânea. O mundo necessita de pessoas que respeitam e lutam pela vida. Incrementar uma cultura de paz é a missão prioritária de nossa geração. Sim, todos somos responsáveis pela transformação de nossa realidade. Sementes de justiça, de amor e paz precisam ser plantadas antes que seja tarde demais. Vamos proclamar que todas as pessoas são iguais na essência e diante dos direitos básicos e universais. Não podemos abrir mão desse valor, que é também espiritual. O Evangelho nos propõe uma espiritualidade em que a vida é mais importante que os ritos religiosos e as pessoas, mais sagradas do que lugares, objetos ou dogmas considerados sagrados. Assim, a espiritualidade construtora de uma cultura de paz trilha pelos caminhos da vida, contra todas as formas de violência. 8
Vamos proclamar que todas as pessoas são iguais na essência e diante dos direitos básicos e universais
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A L D O M U R I L L O / I S T O C K P H O T O
O oposto da violência não é a paz – é a dignidade humana