APRESENTAÇÃO
Manoelzinho Salustiano foi criado desde cedo em terreiro de maracatu. Quando ele era pequeno, seu pai, o Mestre Salustiano, notou que o menino levava jeito pra brincadeira; mais ainda: que tinha talento pra “gritar”, no vocabulário dos brincantes, pra administrar, botar os grupos pra frente. Hoje, o bordadeiro e “gritador” é movido a paixão. Pela cultura popular, pelo maracatu, por Pernambuco. Virou simplesmente um ícone – cheio de história, de vida. Já Zé Estêvão zela pela sina de ser herdeiro do Maracatu Cambinda Brasileira, um dos mais tradicionais da Zona da Mata Norte pernambucana, com quase um século de existência (94 anos). Vive completamente sozinho no Engenho Cumbe, área rural de Nazaré da Mata. Tímido, conhece os mistérios que brotam do chão batido, alaranjado das bandas de lá. O mesmo que faz nascer o verde da cana e das ervas com talento pra cura. Ele sabe também do segredo que mantém vivo o maracatu deixado por sua mãe, Dona Joaninha. E aí tem...
Histórias assim povoam o estado de pequenas-grandes surpresas – na Zona da Mata, no Agreste, no Sertão. Alumbramentos que tornam possível e importante a realização de uma iniciativa como o Festival Pernambuco Nação Cultural (FPNC), ação da política pública de cultura do estado voltada, entre outras questões, à valorização e preservação das riquezas de diferentes regiões, tais quais essas do Engenho Cumbe e da Família Salu. Como parte comprometida com a memória e a divulgação da cultura pernambucana, este caderno de narrativas é resultado de um acompanhamento sensível do trajeto percorrido no primeiro semestre de 2012 pelo festival, realizado pela Secretaria de Cultura de Pernambuco (Secult/PE) e Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe). Os textos e as imagens foram produzidos para a seção Mergulhe do blog oficial dos festivais (www.fpnc.org), entre abril e junho. Mata Norte, Sertão do Moxotó, Caruaru e Sertão Central são o território das narrativas que podem ser lidas a seguir. Bom mergulho.
Olívia Mindêlo
Gestora de Comunicação da Secult e Fundarpe
ENCONTRO DOS BOIS DE ARCOVERDE-PE foto ROBERTA GUIMARテウS
REISADO DO MESTRE GONZAGA Foto ROBERTA GUIMARテウS
SUMÁRIO MATA NORTE UM BRINCANTE E BORDADEIRO COM TALENTO PRA GRITAR ------ 15 TODO CIGANO TEM UMA HISTÓRIA PRA CONTAR ---------------- 22 A SOLIDÃO E O SEGREDO DO ENGENHO CUMBE ------------------- 26 AMIGAS E RIVAIS -------------------------------------------------- 30 O MESTRE DAS MÃOS DADAS E DO IMPROVISO ------------------- 36 ÁGUA BENTA EM TERRA DE CHÃO BATIDO ------------------------ 40 SERTÃO DO MOXOTÓ ENCONTRO DE REISADOS ALEGRA CARAÍBAS ---------------------- 45 “CULTURA É A RIQUEZA DO MUNDO” ------------------------------- 48 “GOSTO DO TERRITÓRIO DO ESTRANHAMENTO E DO RECOMEÇO” -54
CARUARU O HOMEM QUE FABRICA ALEGRIA --------------------- 60 A VIDA QUE SE MOLDA COM AS MÃOS. --------------- 64 O FANTÁSTICO MUNDO DE MESTRE DILA ------------- 70 UMA CIDADE PARA OUVIR E CANTAR ------------------ 74 A FEIRA QUE FEZ NASCER UMA CIDADE ---------------- 80 SERTÃO CENTRAL O REINO ENCANTADO DE SÃO JOSÉ DO BELMONTE -- 85 DE DENTRO DA MEMÓRIA PARA DENTRO DA CÂMERA 90
MATA NORTE Quando perguntamos a Manoelzinho Salustiano, figura icônica da cultura pernambucana, o porquê de a Mata Norte ser tão rica em expressões populares, a resposta é curta e complexa: “Acho que foi a mistura do índio, nativo da zona da mata, com os negros e brancos nos engenhos da cana de açúcar”. A verdade é que esta região pernambucana abriga consigo um sem número de brincantes. Só do maracatu de baque solto são 10 mil fogasões, divididos em 95 grupos. Mas também existe na Mata Norte caboclinho, boi, ciranda, cavalomarinho e ainda preciosidades únicas como as Pretinhas do Congo, que o leitor poderá conhecer em duas reportagens deste caderno. Estas seis narrativas, realizadas durante o Festival Pernambuco
Da esquerda para direita: Encontro de Cavalos Marinhos_Mestre Aguinaldo - Terreiro de Biu Alexandre | Foto Roberta Guimarães • Cortejo da Cultura Popular em Goiana. | Foto Clara Gouvêa. Maracatu Leão Dourado no Quilombo do Barro Preto em Lagoa do Carro. | Foto Clara Gouvêa • Espetáculo de Circo em Goiana - Circo Pano de Roda Lona Estrelada Boca Calada | Foto Costa Neto. • V Encontro de Caboclinhos e Indios de Pernambuco. Tribo Taquaraci | Foto Daniela Nader. • Encontro de Bois em Timbaúba, - Boi Itália Foto Roberta Guimarães. • Maracatu Leão Dourado no Quilombo do Barro Preto. | Foto Clara Gouvêa
13
MANOELZINHO SALUSTIANO
Nação Cultural da Mata Norte, entre os dias 26 de março e 1º de abril, propõem um mergulho nas tradições e brinquedos populares e dão uma amostra de um rico universo nascido entre canaviais e terreiros de chão batido. A Mata Norte Pernambucana é formada por dezessete municípios que somam 3,25% do território estadual. Com população estimada de 445 mil habitantes, a região é predominantemente canavieira.
14
UM BRINCANTE E BORDADEIRO COM TALENTO PRA GRITAR Entrevista com Manoelzinho Salustiano* Por CHICO LUDERMIR e JULYA VASCONCELOS fotos JOÃO ROGÉRIO
A palavra “paixão” aparece diversas vezes nas respostas de Manoelzinho Salustiano e, na maior parte delas, acompanha “cultura popular” e “maracatu” de um jeito arrebatado. Aos 42 anos, ele foi, até pouco tempo, presidente da Associação de Maracatus de Baque Solto e do Maracatu Piaba de Ouro. É também artesão reconhecido no mundo inteiro por seus bordados nos estandartes e golas de caboclo. Manoel Salu é o que podemos chamar de um cuidador da cultura popular. Abriu mão de viver nos terreiros, brincando maracatu, em nome da manutenção dessa mesma paixão. Seu pai, o famoso Mestre Salustiano, observou logo cedo que o menino Manoelzinho sabia “dar grito” dentro do brinquedo, que tinha talento pra administrar. E assim ele assumiu a função de cuidar dos grupos, dos brincantes e da memória, especialmente dos que fazem parte da cultura da Mata Norte pernambucana. “Ele soube deixar cada um com seu dom. Talvez se eu brincasse podia ter algum buraco nessa questão. Talvez eu não tivesse chegado onde cheguei, com a consciência do que é a cultura popular”, conta, falando sobre a sensibilidade do pai, Mestre Salu, e a clareza que hoje tem do seu papel nessa grande história. “Durante os três dias de Carnaval, por exemplo, meu trabalho é cuidar dos outros”. 15
fpnc.org
Qual a sua lembrança de infância mais forte, mais presente?
Manoelzinho Salustiano
A minha primeira lembrança de infância é a minha mãe me levando pra brincar de Catirina. Ela colocava duas quengas de coco nos seios. No passado, na época em que eu era criança, com meus 7 pra 8 anos, o pessoal dava dinheiro à Catirina, e minha mãe, no Carnaval, ganhava dinheiro brincando. Ela me levava e tirava brincadeira dizendo que o dinheiro era pra dar de comer à filha de Catirina. Então, eu ia vestido de Catirina também. Muita gente pensa que, por ser filho de Mestre Salustiano, meu início foi com meu pai, mas não foi, foi com minha mãe. Minha mãe foi a primeira esposa que se casou com ele, mas depois se separaram. Então, quando eu venho aprender mesmo com meu pai é por volta dos 14 anos, que é quando eu volto a morar com ele, e é quando eu aprendo, começo, vou pra faculdade de verdade da cultura popular. A partir dos 14 anos, é impossível não acompanhá-lo. Porque pra estar ao lado dele, era preciso acompanhar. Uma das coisas que ele sempre falava pros filhos é que se o cabra não tem um bom estudo tem que ser artista. Se não for artista, vai ser peão, vai ser empregado. Então, ele sempre passava isso pros filhos. E hoje a maioria dos filhos é artista dentro da cultura popular.
fpnc.org
E o primeiro brinquedo?
Manoelzinho Salustiano
O primeiro foi o maracatu, que sempre foi a minha paixão. Aí eu fui brincar de Balizeiro, que é um personagem do Maracatu de Baque Solto, depois fui brincar de Arreia-Mar, depois brinquei umas vezes de Caboclo, mas achei pesado e não quis mais. Aí fui brincar de Catita, que é a Catirina. Catirina é dentro do bumba-meu-boi e do cavalo marinho e a Catita é dentro do Maracatu de Baque Solto. Aí fui brincar de Catita, brinquei uns seis anos. Comecei a brincar de Catita no Criança Olindense, que era um Maracatu Infantil que foi fundado pelo meu pai, e que depois eu tomei conta. Aí deixei o infantil e vim pra dentro do Piaba de Ouro já de Catita. Depois eu deixei de brincar, porque já tava muito envolvido dentro da Associação de Maracatus de Baque Solto, e não tinha mais tempo de ficar brincando Carnaval. Já estava administrando. Hoje em dia, eu só administro. Eu sou o Presidente do Piaba de Ouro, só posso bordar, e durante os três dias de Carnaval, por exemplo, meu trabalho é cuidar dos outros. Meu pai dizia que eu conseguia dar grito dentro do brinquedo. “Dar grito” é administrar. 16
fpnc.org
Você sente falta de brincar?
Manoelzinho Salustiano
Sinto, sinto. Muita falta. Pra mim, uma das coisas que eu mais queria era só bordar e brincar, mas infelizmente cada um tem sua função, e meu pai soube fazer isso com os filhos. Ele foi embora, mas os filhos todos se respeitam, cuidando do que ele deixou. Ele soube deixar cada um com seu dom. Talvez se eu brincasse podia ter algum buraco nessa questão. Talvez eu não tivesse chegado onde cheguei, com a consciência do que é a cultura popular.
fpnc.org
E como começou a sua história com o bordado?
Manoelzinho Salustiano
O bordado é minha paixão, é o que eu não consegui deixar até hoje. E eu tive sorte nisso, porque eu tive um amigo que era fundador do Piaba de Ouro. Ele não era um bom artesão do bordado, mas ele era um cabra cuidadoso. Um dia eu estou na sede, moleque, e ele está lá enfeitando um chapéu de baiana com lantejoula e miçanga, e me chama pra ajudar. Ele botava muita cola no chapéu, e quando eu ia botar lantejoula eu furava os dedos, achava ruim. Era o Manoel Mauro. Meu primeiro contato com o bordado foi com ele. E aí quando foi um tempo depois, eu o vi fazer uma gola, e a gola dele era com uns quadrados. Pensei: se alguém desenhar pra mim, eu vou conseguir bordar. Aí pedi pra meu tio desenhar uma arara numa roupa de arreia-mar, que era o meu personagem na época. “Minha gola vai ser uma arara”, eu disse. Quando eu bordei, foi aí que meu pai me deu o maior incentivo. Ele disse: “A partir de agora você não vai trabalhar mais na pá do caminhão”. Porque meu pai tinha um caminhão e a gente trabalhava enchendo com metralha, era um serviço pesado. Aí ele disse: “Não, você não vai fazer isso mais não. Você é um artista. Você vai fazer a gola do Piaba”. E aí o que eu ganhava em cada gola equivalia a três semanas no caminhão, porque ele incentivava, pagava bem. Ele era muito esperto com essas coisas. Então, com o incentivo do meu pai, com o apoio das pessoas que estavam ali ao redor, eu comecei a desenvolver técnicas de gola. Meu pai me levava pra ver João Calumbi, o rei da gola! O homem que melhor bordou gola no mundo foi João Calumbi! É um cara que tem uma técnica de precisão. Onde colocar cada lantejoula você não via brecha. 17
fpnc.org
Você costuma dizer que o melhor horário para bordar é das 22h às 5h. Por quê?
Manoelzinho Salustiano
Porque a sua mente está calma. Eu acho que a noite é o melhor horário pra se concentrar. Quando você consegue ter inspiração, é quando seu corpo está pronto, está limpo. Durante o dia, um telefone toca, alguém lhe chama, mas à noite não. À noite é o silêncio. Se você se concentrar ali, acabou. Depois que você for dormir lá pras 6h, 7h, se você dormir seu sono tranquilo e ninguém atrapalhar, à noite você volta de novo. É que a arte requer calma. Porque não pode estar agitado. Se estiver agitado, não produz. Você pode ser o bordador mais fera do mundo, mas se você não estiver calmo, a gente encontra falha.
fpnc.org
Qual a lembrança mais forte que você tem do seu pai?
Manoelzinho Salustiano
Rapaz, são muitas. Meu pai era muito presente com os filhos, que eram 15. Eu tenho lembrança de ele chegar às 8h na minha porta, me chamando: “Negão, negão, passarinho não deve nada a ninguém e essa hora já tá acordado!”. Isso é uma coisa que eu nunca me esqueço dele. Uma das coisas fortes é que a paixão dele era a rabeca. Ele tinha uma paixão muito forte pela rabeca. Pro meu pai, se tivesse uma pessoa pra ouví-lo tocar, pra ele era como se tivesse uma multidão. Ele tinha prazer de tocar. Então, quando eu via meu pai sentado na frente de casa com uma rabeca, era uma coisa muito forte, porque mostrava pra gente a paixão que ele tinha pela cultura. São lembranças de ver meu pai numa Quartafeira de Cinzas comer peixe salgado com farinha e ter botado um maracatu tão rico na rua. Como é que o homem tinha todo dinheiro ontem e hoje não tem o que comer? São coisas fortes, e isso fortalece os filhos. E isso ajuda a manter o que ele fez.
18
fpnc.org
E qual a importância dele pra sua formação como artista?
Manoelzinho Salustiano
O incentivo, a educação. Ele soube me educar. Eu agradeço a Deus todos os dias por ter me dado um pai e uma mãe como eles. Apesar de os dois terem se separado, eles souberam educar os filhos. Minha mãe era muito rígida em relação a responsabilidade e meu pai era muito mais. Os dois não alisavam, eles souberam fazer. Uma das frases do meu pai quando ele estava perto de ir embora, no hospital, era que o maior orgulho que ele tinha na vida era nunca ter tido que buscar um filho na delegacia. Isso não é fácil. Eu quero que alguém diga assim: “Vi alguém fazendo alguma coisa errada dentro da cultura popular”. A cultura popular é pura, não tem maldade, não. As pessoas é que fazem maldade. Mas a cultura popular é uma coisa que vem de berço, é sangue. Dentro da cultura popular você se torna gente de verdade. Porque dentro da cultura popular hoje você é uma Catirina, amanhã tu é o Mateus, mas depois tu pode ser um rei, uma rainha, tu pode ser um presidente. A gente é polícia, capitão, coronel. A gente cria nossas fantasias e aí a gente se torna autoridade. A cultura popular é uma coisa muito boa pra quem nasceu dentro. Cultura popular não é pra quem quer ir pra ela, você tem que ter no sangue. Se você não tiver não tem paciencia, não. Porque nós somos muito ricos, as pessoas não percebem.
fpnc.org
Quando é que uma pessoa se torna mestre?
Manoelzinho Salustiano
Ninguém se torna mestre, não. Isso é uma coisa criada. A pessoa se torna brincante, sabe? E o brincante tem a obrigação de repassar um ao outro, que é pra gente não deixar morrer a nossa história. Aí dizem que o cara que repassa é mestre. Mas eu não vejo dessa forma, não. Aí às vezes o pessoal me chama: “Mestre, mestre!”. Eu não. Agora meu pai, sim, era um mestre, pronto. Meu pai era um mestre. Meu pai ensinava muito, ele tinha prazer de repassar. Eu não me considero um mestre. Me considero um brincante, um apaixonado pela cultura. Às vezes, tem gente que me chama de mestre, principalmente depois que meu pai se foi. Mas eu não aceito, não. Manoelzinho, só isso. Eu sou só Manoelzinho. 19
fpnc.org
E como você se sente sendo uma peça tão importante, como um cuidador dessa cultura, um articulador? Como é esse papel que você assumiu?
Manoelzinho Salustiano
Quando eu tô fora do terreiro é muito triste, quando eu tô dentro do terreiro, eu me sinto forte, porque eu sei que não tô sozinho.
fpnc.org
No Festival Pernambuco Nação Cultural da Mata Norte, você é a pessoa que está por trás da programação de cultura popular, articulando as pessoas, os grupos. Fale um pouco desse trabalho.
Manoelzinho Salustiano
Eu sempre falava: ou a gente cuida do terreiro, ou a gente vai perder os mestres. Porque o mestre se forma no terreiro. Aí o ano passado, Fernando Duarte me chamou pra uma conversa e eu disse isso pra ele. Aí ele depois me chama e diz assim: “Manoelzinho, vamos fortalecer os terreiros. Traga uma ideia”. Eu rascunhei uma ideia da gente fazer onde já existia. A gente só ia fortalecer, na verdade a gente não tava fazendo nada. Eu não criei nada, a Fundarpe não criou nada, a Secretaria de Cultura não criou nada. As pessoas têm uma mania de pegar o mestre de cavalo marinho e trazer pro Recife, botar ele em um palco ou numa rua. Eles se apresentam e vão embora. E por que não no terreiro desse mestre, a gente pagar pra ele brincar lá? E aí tem um público que é fiel. Ali vai estar um vendedor de picolé, um vendedor de churrasco, de cerveja, de refrigerante. O próprio dono da casa vai se sentir fortalecido, porque a comunidade tá indo pra porta dele, e eles vão voltar a enxergar ele de novo. O pessoal aceitou a ideia, e no ano passado foi muito bom. A gente só fez assim: a gente tá enxergando vocês. Só isso.
fpnc.org
Como você vê a existência de um festival como esse da Mata Norte, que vai congregar tantas manifestações tão diferentes, em um período de tempo tão curto? Qual a importância disso pra região e pra Pernambuco?
20
Manoelzinho Salustiano
Primeira coisa: você já imaginou que numa região só, numa noite, vão acontecer sete sambadas de maracatu de baque solto? Tem uma noite que vão acontecer três encontros de cavalo marinho? Vai ter à noite encontro de cirandeiro, encontro de mamulengo. Isso prova o quanto a gente tem tanta coisa boa e o quanto ninguem tá repetindo nada, tá tudo acontecendo ao mesmo tempo. É a prova de que cultura ainda está forte, ainda está rica. Eu vejo isso como um ganho, como um grande incentivo.
fpnc.org
Me parece que a Mata Norte é um lugar que tem muita cultura popular, que é muito rico.
Manoelzinho Salustiano
Dentro da Associação de Baque Solto, nós temos 115 maracatus. Aí você vai encontrar Mestre Zé Galdino, que é um mestre de maracatu que canta ciranda e canta viola. Você vai encontrar Bio Caboclo, que canta coco e canta viola. Você vai encontrar Messias, mestre de maracatu que toca sanfona. Você vai encontrar Biu Passinho que canta ciranda. E aí vai. Você vai encontrar Borges Lucas, que é mestre de cavalo marinho. Mestre Grimário, que é mestre de cavalo marinho, e ele é de maracatu. Como a Mata Norte é muito rica e o folguedo mais forte é o (maracatu de) baque solto, você tem um contato com todo esse povo e a conversa é a mesma. Só muda que no Carnaval a gente faz o maracatu. Quando passa o Carnaval, a gente vai falar de mamulengo, de forró, porque tá chegando o São João. E aí vão se passando os folguedos e a gente vai falando, e são as mesmas pessoas! São simplesmente 12 mil brincantes de baque solto, e esses caras são que fazem os folguedos da Mata Norte.
fpnc.org
O que faz da Mata Norte um terreno tão fértil, com tantas manifestações diferentes de cultura popular?
Manoelzinho Salustiano
Eu acho que tem dois motivos: a mistura do índio que já tava ali, com o negro e o branco, e por estar próximo ao litoral. Eu acho que isso foi que fez essa cultura tão forte ali, dentro dos engenhos, essa mistura do branco com o negro e com o índio. 21
TODO CIGANO TEM UMA HISTÓRIA PRA CONTAR ATÉ A HISTÓRIA DE COMO CHEGOU A PERNAMBUCO. Por CHICO LUDERMIR (texto e fotos)
REJANE SOARES CONTA A SUA HISTÓRIA
“Todo cigano tem uma história pra contar. Mas é quase sempre a mesma história”. Assim inicia Rejane Soares Cavalcanti a narração de sua vida, que, segundo ela, se assemelha, em muito, à de outros 20 mil pernambucanos e cerca de um milhão de brasileiros. Nasceu pelas mãos de outra cigana, parteira, que a tirou do ventre da mãe em uma barraca montada provisoriamente embaixo de uma sombra. Depois de seu nascimento, seguiu-se uma celebração com música e cantoria ao som de violões. A partir daí, saiu em andanças pela Paraíba, por Pernambuco, pelo Rio Grande do Norte, pelo Ceará… Há 42 anos, quando nasceu, seu povo andava pelo meio do mundo em cima de burros e cavalos, se “arranchando” em lonas nas beiras de açude e rios, vivendo de compra, venda e troca, especialmente de animais. Sempre que chegavam a um lugar novo, era comum ler mãos e jogar cartas para os habitantes nativos e, assim, recebiam algumas galinhas que eram assadas e repartidas por todos, no chão, ao redor de uma fogueira. “Cigano é uma nação de barriga cheia”, brinca, no mesmo momento em que, na cozinha de sua casa, em uma rua calma de Ibiranga, um dos distritos de Itambé, na Mata Norte de Pernambuco, já preparava o almoço que me convidou de improviso. O preparo dos alimentos é coisa que ela já traz de criança, da mesma forma que tudo que hoje sabe. Uma carne, uma mistura, um ovo e a farinha, que não pode faltar. Tudo comida “limpa”, “feita com amor”. Carinhosamente, forra um tapete com estampa indiana e me chama para sentar no chão, “que é mais confortável”. Ao redor da comida, ela me conta um pouco das coisas que correm no seu sangue. Há 15 anos morando na mesma casa, confessa que muitas vezes bate uma ansiedade imperativa de viajar, que ela atende. Adora fazer artesanato, colar, brinco, pulseira e bolsa, e também adora revender joias, bem do jeito que é descrito o seu povo. Tem a habilidade de ler o futuro nas mãos e nas cartas e, inclusive, se oferece para ler o meu. “É difícil ver um cigano que não saiba fazer uma arte. A gente nunca esquece nossa tradição”, me ensina, enquanto eu como, atento. Das vivências que ela diz comungar com seus pares, ela também ressalta a dor. Do preconceito e do desprezo. Quando a identidade cigana é revelada, automaticamente aparece um sentimento de cautela e desconfiança no outro. “Cada um de nós tem a nossa convivência com dificuldade. Ninguém queria vender fiado à gente, mas isso tem 23
mudado.” Ao redor do mesmo tapete, seu irmão Roberto Cavalcanti Soares, um dos líderes dos ciganos que vivem em Itambé, confirma: “A gente mora aqui há muitos anos e todo mundo sabe que a gente é um povo honesto e tranquilo. O cigano é um povo inteligente, mas é discriminado. Até que enfim o povo tá se acostumando”. Roberto ratifica, na sua fala, um capítulo longo da história do qual os ciganos fazem parte. Perseguidos na Península Ibérica desde o final do século 15, quando foram açoitados e mortos, os ciganos do grupo Kalon chegaram ao Brasil deportados, junto aos negros e presos políticos, carregando estigmas de que seriam “embusteiros, ladrões, vigaristas e viciosos”. Em sua aparência e trejeitos, Roberto revela também algumas características quase caricaturais de seu povo. Com sua cor amarelada escura – descrita em diversos textos sobre os ciganos – e nariz adunco, estampa uma raiz indiana, tida por pesquisadores e linguistas como a origem basilar da etnia. No comportamento, um ar ao mesmo tempo receptivo e misterioso insinua uma preocupação em manter protegida uma imagem que já foi muito maculada. Levado pelo próprio Roberto, eu chego a outra casa cigana vizinha e sou recebido com crochês vermelhos estendidos. Além das colchas, na casa de Eliezer Francisco, mais conhecido como Antônio Seresteiro, também se fazem sofás e cadeiras para vender. Para o seresteiro, os ciganos herdaram de Jesus Cristo a vocação para ser andarilho. “O povo cigano é um povo que Deus escolheu para ser livre. Quando Ele subiu ao céu, deixou os ciganos para continuarem os sofrimentos dele”, afirma categórico. Me espanto com o catolicismo de Antônio, lembrando que foi a própria igreja que comandou a caça aos ciganos, ao que ele rebate: “O povo cigano acredita em Deus”. E assim comprova o sincretismo brasileiro, capaz de misturar as maiores diferenças. Mas não é só na religião que os ciganos vêm se integrando. Hoje em dia, são majoritariamente sedentários e vivem em casas espalhadas por todo o Brasil. Longe do estereótipo, estudam e trabalham. Os menores jogam videogame e sonham em ser 24
ROBERTO SOARES E ENILDO KALON PERSONAGENS CIGANOS DE ITAMBÉ.
jogadores de futebol. “O que a gente não larga é o amor pela música. A gente nunca deixou um violão de lado e agora chegou a rapazeada nova, que toca muitos instrumentos”, conta Antônio, ao me revelar que cigano gosta mesmo é de música sertaneja. Na sala de Rejane, eu já tinha encontrado evidência disso. Seu sobrinho John, estampado em um pôster da sala principal, “tem a voz igualzinha a de Luan Santana”, sucesso do chamado sertanejo universitário. Se por um lado, a tradição parece arrefecer, por outro, sou lembrado de políticas afirmativas que fizeram do 24 de maio o Dia Nacional do cigano. Foi a mãe de John (o cantor) que encabeçou essa demanda, através de diversas cartas ao presidente Lula. “Para todos existe um dia, mas os ciganos eram esquecidos do mundo, viviam na Terra só por viver”, reclamou Rejane. Desde 2007, ela tem festejado as comemorações do seu dia, mas ainda sente falta de apoio e acolhimento. “A gente é um povo inteligente e honesto, que só precisa de oportunidade.” 25
ZÉ ESTEVÃO MANTÉM VIVA SUA PAIXÃO PELO MARACATU
26
A SOLIDÃO E O SEGREDO DO ENGENHO CUMBE A HISTÓRIA DE ZÉ ESTÊVÃO, O HERDEIRO DO MARACATU CAMBINDA BRASILEIRA Por JULYA VASCONCELOS fotos CLARA GOUVÊA
O chão de terra barrenta é bem seco e alaranjado. Em volta, a cana ondula com o vento, feito um mar verde claro. “Ali embaixo a gente planta cana pra vender pro engenho”, diz Zé Estêvão, apontando por detrás da cerca de arame. “Esse aqui é café-beirão, serve pra derrame. A gente tira a semente e faz um chá, que tem que ser fraquinho”, ensina ele. “Zé… e se for forte?, pergunto. “Se for forte, mata”, diz, prendendo o riso e abaixando a cabeça, como se morrer não fosse exatamente assustador. Manangú, romã, canela ali na frente. “Canela é bom pra ressaca. Se tu tomar uma cachaça em um dia, no outro faça o chá da folha da canela que tu fica boa na hora”, me ensina com ar professoral de quem já fez muito chá nos dias seguintes às sambadas de maracatu. “Tá vendo aquela ali atrás, da folha graúda? É pra gripe”. Tem também a carrapateira pra fazer óleo, a folha igualzinha a do mamoeiro, confusão que fez Zé rir da minha cara pela segunda vez. No terreno ainda tem goiabeira, bananeira e um mamoeiro de fato. Zé Estêvão aprendeu tudo isso com a mãe, Dona Joaninha, que faleceu há três anos. Ela fundou o Maracatu Cambinda Brasileira, há 94 anos, junto com Seu João Estêvão, pai de Zé, que também se foi, só que há longos 16 anos. Desde então, ele mora completamente sozinho no Engenho Cumbe, que fica na área rural de Nazaré da Mata. “Tem medo?”, pergunto. “Tenho não, o maracatu me protege. Mas um monte de gente foi embora com medo de assalto, de morte”. 27
Sobre a falta que o pai lhe faz, ele diz que o Domingo de Carnaval é o dia mais doído. “É nesse dia que eu sinto mais o meu pai. É como se ele estivesse aqui mesmo quando o maracatu vem pra cá”, diz avermelhando os olhos, sentado no braço do sofá da sua casa amarela, cheia de retratos na parede e com o primeiro estandarte do Cambinda exposto em destaque. “Aí eu choro, eu e minha irmã Zefinha, sempre. Ela chega e já vai derramando pranto”. Acima da sua cabeça, uma foto da mãe e do pai, com o Padre Ciço no meio, entre os dois. O retrato é retocado por aquelas técnicas antigas dos retratistas. Na hora me causa curiosidade o catolicismo da família. No meu imaginário, o candomblé, a jurema e outras tradições religiosas é que estariam por trás dos maracatus. Penso em perguntar, mas não pergunto. Já haviam me dito que não é um assunto que se fala com qualquer um. Zé Estêvão é baixinho, magro, tem um jeito tímido. Toda vez que lhe faço uma pergunta, ele rebate, como que querendo confirmar se é com ele mesmo: “Eu?”. Me explica: “Quando eu era mais novo, eu era calado. Aí depois fui desenvolvendo mais um pouco”. Dessa vez, eu rebato: “Era? Eu acho que ainda é, viu?”. Ele se espanta e escorrega pelo braço do sofá, rindo muito, acho que por ter sido revelado. “Eu puxei ao meu pai. O problema dele era só maracatu, era muito calado. Chegava em casa, sentava em um canto e não falava nada. Ele dizia: ‘Tudo o que a gente sabe, se ensina, a gente fica sem nada’”, me conta em tom sério. “Eu duvido que alguém saiba o segredo do nosso maracatu. Ele não contava pra ninguém”. “E você sabe o segredo, Zé?”, pergunto. Mais uma vez ele me encara prendendo o riso: “Agora… eu não vou contar pra senhora, não!”. Desobedecendo Zé Estêvão, Dona Maria de Lourdes, que é dama de passo do Cambinda há 13 anos, me diz que todo maracatu tem uma mãe de santo que o protege. No caso do Cambinda, é a Dona Biu. “Dona Biu, venha cá falar com a moça! Ela quer perguntar umas coisas!”, grita chamando a mãe de santo, que estava dentro da casa de Zé. Dona Biu aparece fumando um cigarro. Tem uma voz grave e só me diz que não vai falar é nada. Uns minutos depois, fala que costura as roupas do Cambinda e que já está “atacada” por não estar costurando. Sinto simpatia por Dona Biu, apesar de ela estar claramente fechada, séria. Zé e Maria de Lourdes continuam me contando segredos ao lado. Dizem que catolicismo e candomblé convivem em completa harmonia e equivalência de fé. 28
Todo mundo no maracatu crê nos padres e nos pais de santo; nos santos e nas entidades de origem africana. Ali, naquela sala, parece até uma ignorância da minha parte questionar isso. Zé diz que uma vez o maracatu estava brincando no terreiro, todo mundo distraído. “Eu tava brincando, aí de repente meu pai caiu. Foi um trabalho que fizeram pra ele. Se a gente não tivesse levado ele logo pra Dona Biu, pra ela desfazer, ele tinha morrido ali mesmo”. Entendo que é como se duelassem sutilmente para além das lanças dos caboclos e das rimas dos mestres: há um inacreditável campo de batalha espiritual. Zé fala que maracatu só sai desmantelado se não tiver uma mãe de santo poderosa pra proteger e volta a falar em segredo, confirmando que cada maracatu tem a sua. Neste momento, Dona Biu diz com sua voz forte: “O segredo nem ele sabe, porque o segredo está na mão de Deus, de Rei Salomão e na minha”. E encerra o assunto de uma vez por todas. Além de Maracatu, Zé conta que sua segunda paixão é o futebol: “Na minha infância, eu jogava bola e brincava maracatu, somente”. Bota a mão no queixo e me olha querendo falar alguma coisa. Faz um suspense e dispara: “Tu é de Recife, né? Teu time de lá, qual é?”. Quando eu digo que sou do Sport, ganho um aperto de mão efusivo. “Aí sim! Quando o Sport ganha, eu chamo os meninos pra bater terno aqui na frente no terreiro!”. A partir daí, eu e Zé somos amigos do mesmo time. A timidez ficou mais suave e ele me contou sobre a mulher que o abandonou e foi pra Brasília e sobre como a solidão não é uma escolha, mas uma contingência. Fala dos dois filhos: do menino de 11 que brinca maracatu feito gente grande – “Toma, painho!”, e avança em direção ao pai com a lança de caboclo; e da filha de 13 anos que já é mãe de um bebê de cinco meses. Fala que queria muito encerrar a carreira de caboclo pra virar terno: “Eu sinto aquele prazer, meu sangue quer brincar maracatu”. Conta que pro Seu João Estêvão, o pai, também era assim. Antes de morrer, pediu que mesmo que fosse num domingo de Carnaval, que ninguém deixasse de brincar. Que em último caso, o enterrasse e voltassem pro terreiro. A mãe também pediu pra que eles nunca deixassem de colocar o Cambinda pra sambar. Se depender apenas das promessas de Zé Estêvão e da força de Dona Biu, o Cambinda ainda tem muita sambada pela frente. 29
AMIGAS E RIVAIS AS CENTENÁRIAS BANDAS FILARMÔNICAS CURICA E SABOEIRA, DE GOIANA, E OS IRMÃOS QUE CONTINUAM ESTA HISTÓRIA Por JULYA VASCONCELOS fotos COSTA NETO
O sol está a pino. Sinto a pele queimar ao longo da Rua Siqueira Campos, que vai, devagar e sempre, me levando no sentido das sedes das centenárias bandas filarmônicas Curica e Saboeira, no centro de Goiana, na Mata Norte de Pernambuco. Até agora, sei apenas que a Curica foi fundada em 1848; a Saboeira somente um ano depois. As duas são consideradas as bandas filarmônicas mais antigas em atividade no País. David vem acelerado na bicicleta à minha frente. Deve ter uns 11 anos, no máximo. Meio galego, queimado de sol. Pergunto, introduzindo com um “Ei, você da bicicleta!”, se ele mora por ali, se sabe onde ficam a Saboeira e a Curica. Me responde com um “Ãh?!”, assustado e sério. Não dá um sorriso, mas vai respondendo as coisas sem nunca me olhar, concentrado no desenho da calçada e no barulho da corrente passando pelos pneus da bicicleta. Diz que o primo e o vizinho estudam música na Saboeira, e muitas outras crianças por ali. “Eu não, mas eu gosto de olhar, é bonito demais ouvir os instrumentos” – e pela primeira vez vejo o sorriso de David, que nessa distração acelera a bicicleta na minha frente e desaparece debaixo do mesmo sol.
KALL, MASESTRO DA CURICA
30
Até chegar à sede da Curica, minha primeira parada, sempre que perguntava sobre as bandas a alguém, a esmo, no meio da rua, essa pessoa sabia me contar alguma coisa, qualquer coisa. Não há quem não as conheça em Goiana e não há quem não torça para uma das duas. “Eu sou Curica, minha família toda é desde que me entendo por gente”, me diz um senhor sentado numa cadeira de balanço na frente de casa. A cidade é divida entre os que torcem pela Curica e os que torcem pela Saboeira. Uma rivalidade que lembra a de times de futebol e ocasiona discussões acaloradas nos bares e nas esquinas.
Chego à Curica. Na verdade, a uma casa paroquial, na esquina da Rua Marechal Deodoro, mais conhecida como Rua Direita. “Fique atenta, que aqui tem rua que tem nome e apelido”, me diz um senhor sentado em um dos muitos bancos de praça que há nas calçadas de Goiana, sempre com alguém jogando conversa fora. A nova sede está em reforma, me conta Edson Jr., atual presidente da banda. Júnior e Kall – o maestro desde 2005 – me convidam para sentar num daqueles bancos compridos de igreja para conversarmos. Antes de qualquer coisa, o nome. Foi assim: “Ô, Rosa! Essa música só parece dizer Curi-cá-cá, Curi-cá-cá!”. Edson Jr. me conta que essa foi essa a frase que uma tal de Dona Íria gritou à escrava Rosa, no ritmo da (estranha) polca que a banda do português José Conrado de Souza Nunes tocava em frente à sua casa, na Rua Direita.
IRMANDADE E RIVALIDADE
MANOEL JR. PRESIDENTE DA SABOEIRA
“A gente ficava mirando: quem é que tá perto de morrer? Não, aquele tá muito magro, é bom um gordo, que dá pra dividir por dois.” E era assim que Kall, por volta dos 10 anos, depois de largar o violão que lhe machucava os dedos e se encantar com o som do clarinete, tentava escolher junto com os amigos um uniforme pra tocar na Banda Curica de Goiana. Ele conta que a situação era tão difícil que para se ter um instrumento e um uniforme, era necessário que outro integrante morresse. E não é que desejassem a morte de alguém. Na verdade, pontuavam de bom-humor e pulsão de vida os seus desejos de fazer música e tocar na banda mais tradicional da cidade, apesar de toda a dificuldade. “Era como uma fila do SUS. Precisava morrer alguém pra você pegar um coração”, diz Kall sem nenhum peso e o mesmo bom humor. E completa: “Muitos desistiam por falta de instrumentos”. Isso aconteceu, por exemplo, com o irmão de Kall, Manoel Jr., presidente da Saboeira desde 2009. Hoje, felizmente, a realidade é diferente. 31
As duas bandas são pontos de cultura e aprovaram diversos projetos em editais públicos, o que vem dando mais estrutura para que possam desenvolver tanto o trabalho musical quanto os trabalhos sociais nas escolas de formação, que juntas formam cerca de 100 alunos por ano. A mãe de Kall e Manoel era professora. O pai, pescador de água doce, vivia de barco pelo Rio Goiana. Eles não tinham dinheiro para comprar instrumentos para os filhos aprenderem a tocar. Apesar de irmãos e de terem vivido a mesma realidade, eles têm histórias bem diferentes com a música e relações distintas também com as bandas. Kall, que na verdade se chama Cláudio, é músico, clarinetista, estudou no Cemo (Centro de Educação Musical de Olinda), fez cursos na UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e na UFPB (Universidade Federal da Paraíba). Manoel acabou se desvinculando da música logo cedo, mas tem uma preocupação política e social intensa à frente da Saboeira. “Ah, Manoel Jr. é meu ex-irmão!”, diz Kall, brincando com o fato de estarem em bandas rivais. Fato que, na verdade, entrega o atual clima entre as duas bandas: irmandade. A rivalidade se mantém suave, apenas no coração dos torcedores e na busca pela superioridade musical. Mas nem sempre foi assim. No histórico de rivalidade das bandas consta até a morte de um maestro e um quebra-quebra no meio da rua, apartado pelo polícia. “Teve que sair a Curica na frente, a polícia no meio, e a Saboeira atrás”, conta Edson Jr. Ele também relembra a história do maestro da Saboeira que, motivado pelo roubo de uma música, esfaqueou o maestro da Curica. A história, que há décadas vem sendo passada boca a boca pela cidade, é mais ou menos assim: era Festa da Conceição, na qual, tradicionalmente, a Curica costumava tocar. No entanto, houve um ano em que a Saboeira foi convidada a fazer as honras da festa. O maestro da Saboeira compôs uma peça de harmonia muito bonita, chamada “Ao fugir do luar”. Aborrecidos com o fato de a Saboeira ter sido convidada para tocar no evento, o maestro da Curica foi escondido para a praça que fica em frente à sede da banda rival para escutar a música que estava sendo executada. Ele achou que a canção estava sendo mal tocada e resolveu que iria reescrevê-la. Fez isso e colocou o irônico nome de “O luar fugiu”, incitando a ira do adversário. “Mas a rivalidade agora é só musical e eu acho que é o que as deixa vivas”, reflete Edson Jr. 32
SEU TOTA E A VIDA FEITA DE SOM
Kall acha que eu deveria falar com Seu Tota, antigo clarinetista e saxofonista da Curica. Olha o relógio várias vezes: “Será que dá tempo de eu levar vocês lá na casa dele e voltar pra apresentação?”. Pensa e resolve que vamos. Entramos no seu carro e ele sai dirigindo por Goiana, ruas pequenas, ruas largas, até que chegamos na Avenida do Povo. “Seu Tota!”, grita Kall. “Tem um pessoal aqui que queria conversar com o senhor”. Seu Tota abre a porta desconfiado, abotoando uma camisa, de calça preta de linho. Me olha calado um tempo que parece uma eternidade ali do lado de fora da sua casa. De repente sorri e manda a gente entrar, sentar. A primeira coisa que faz é tirar uma foto emoldurada da parede de casa. “Quero ver se vocês sabem quem sou eu aqui na big band”. Olhamos, olhamos e arriscamos um homem moreno, de rosto redondo, umas sobrancelhas destacadas. “Mas por que esse?”, questiona. “Pelo formato do rosto”, eu digo. Nessa hora ele me olha, olha de novo pra foto e dispara um “E num é?!”. Abre a mão direita e me convida a apertá-la: “Tome cinco!”, e me aperta a mão com seus cinco dedos de músico. Seu Tota, apelido de Antônio Martiniano, tem uma voz grave, bonita. Ohar bem firme, penetrante. Tem quase 90 anos e tanta firmeza parece não condizer com sua idade. Antes de entrar na casa dele, eu só sabia que era um antigo integrante da Curica. Imaginava que ele me contaria histórias, causos, coisas assim. Seu Tota não me contou nenhuma história exatamente, mas foi uma das coisas mais bonitas que pude ver e ouvir nessa passagem pela Mata Norte. Falou sobre música, amor, vida. “Quando pequeno eu tocava tantan, batia direitinho”, me conta falando de como a música é uma arte que se precisa saber teórica e prática. “Dó-re-mi-fá-sol-lá-si-dó”, cantarola com as mãos acompanhando. “A outra é a prática. Três dedos aqui e não sei o quê. A música só é som. Eu já nasci com afinação”. Entrou na Curica com 13 anos, em 1937, pra aliar essa afinação inata ao saber teórico. Tornou-se músico de apoio, clarinetista e saxofonista. Respeitado e admirado, era sempre chamado a tocar em outras orquestras. Viajou até para Brasília em 1994 com a banda, pela Fundação Banco do Brasil. “Tocamos ‘Vassourinhas’, essas coisas todas. O povo aplaudiu muito”, relembra. Ficou na Curica até pouco tempo atrás, quando a saúde passou a lhe dar algum trabalho e teve que começar a fazer hemodiálise três vezes por semana no Recife, no Hospital Português. “Eu passei minha vida toda tocando na Curica. Quando eu toco, eu sinto alegria e responsabilidade. 33
SEU TOTA
Eu queria, se fosse possível, que voltasse tudo pra eu ser criança de novo e voltar pra onde estou agora”. Seu Tota fala com gosto da vida. Queria que a roda girasse novamente pra viver tudo, como se tocasse mais uma vez sua música preferida. “Eu sinto saudade”. A filha de Seu Tota me conta que há uns dois anos ele teve que se submeter a uma cirurgia de próstata. Algumas complicações o levaram à emergência e quando voltou pro quarto, imediatamente começou a cantar a plenos pulmões o frevo “Evocação Nº 1”. Seu Tota pergunta se queremos ouvi-lo cantar. Começa, com as mãos juntas, seguindo a batida da música, como um maestro: “Felinto, Pedro Salgado/ Guilherme, Fenelon/ Cadê teus blocos famosos?/ Bloco das Flores, Andaluzas, Pirilampos, Apôs-Fum/ Dos carnavais 34
saudosos… pararampapã”. Enquanto canta, faz o som dos instrumentos nos intervalos da letra. “Aí isso tudo me alegra viver”, diz depois de cantar a música. “O melhor da vida é viver”, conclui com um sorriso satisfeito. Depois disso, cantou mais músicas, falou de amor, do tempo, da natureza, de Deus. “A gente ganhou da natureza 24 horas de vida. Nuca se diz não há tempo. E o tempo não é um todo”. Tirou uma foto com Dona Zezita, em frente à foto da big band na parede e se depediu oferecendo seus cinco dedos sábios para cada um.
A SEGUNDA ORQUESTRA MAIS ANTIGA DO BRASIL
Saio da casa de Seu Tota e volto pra Rua Direita, para sede da Saboeira. O prédio azul e branco tem uma placa grande na frente com o nome da banda. Uma escada de poucos degraus me leva pra dentro do espaço amplo, com um palco ao fundo. Manoel Jr. conversa com um rapaz no canto do palco, me pede uns minutos. Enquanto espero, ouço alto o barulho de alguns instrumentos sendo tocados. Espio da janela de uma das salas e um rapaz bem jovem bate com as baquetas nos pratos de uma bateria. Certamente um estudante da escola de formação de músicos da Saboeira. A escola já formou músicos importantes, como os Maestros Duda e Guedes Peixoto. Manoel começa a me contar que ele, Edson Jr., Kall e Ademir Justino resolveram unir as forças e formar um grupo para defender as bandas musicais do município. “Um trabalho educacional e social que seja feito de forma justa” diz que é sua maior preocupação. É um grande apoiador da classe e das escolas de música mantidas por ambas as bandas, que formam especialmente crianças e jovens de baixa renda. “Eu não tive sorte, mas hoje eu não deixo faltar instrumentos”, me diz Manoel, ciente do seu papel de suma importância nessa história. Na mesma noite, eu pude assistir à apresentação das bandas na sede da Saboeira, no encontro produzido pelo Festival Pernambuco Nação Cultural 2012 – Mata Norte. Manoel Jr. estava com o filho pequeno, observando os destalhes do encontro, como que concentrado em tudo. Um presidente. Kall estava elegante em um terno preto, um verdadeiro maestro, também concentrado, mas somente na música que saía dos instrumentos dos integrantes da Curica. As bandas Saboeira e Curica apresentaram-se juntamente com a banda 28 de Julho, no dia 27 de Março, às 19h, na sede da Saboeira, em Goiana. 35
O CIRANDEIRO JOテグ LIMOEIRO
O MESTRE DAS MテグS DADAS E DO IMPROVISO A HISTテ迭IA DE JOテグ LIMOEIRO, O CIRANDEIRO Por JULYA VASCONCELOS fotos COSTA NETO
36
Quando tinha 17 anos, no início dos anos 1960, João Antônio resolveu sair de Limoeiro pra morar no Recife. Foi trabalhar em uma fábrica. Numa sexta-feira qualquer, foi do trabalho pro Largo da Feira de Santo Amaro e viu a ciranda de Dona Duda tocando. Achou bonito, ficou lá a noite inteira, admirado e admirando. No sábado, resolveu ir ao Pátio de São Pedro ver a Ciranda Imperial da Bomba do Hemetério. Nesse dia, o Zé, na época seu vizinho – que já o ouvia “cantando avulso no quintal” e dizia que “Esse camarada se for cantar, canta” – chamou João pra subir no coreto e se apresentar com a ciranda. – Tu vai? – perguntou Zé. – Oxe, eu vou – respondeu João. E foi assim destemido, de supetão, subir no palco. Nesse mesmo dia, o menino João Antônio, saído de Limoeiro, virou artista. Conta que um senhor chamado Geraldo, locutor da Rádio Relógio, o olhou e perguntou: “Tu mora em que cidade?”. Ele respondeu que era do interior, da cidade de Limoeiro. “Pois então vai ser João Limoeiro e a Ciranda Imperial!”, e batizou ali mesmo aquele que viria a ser um dos mais conhecidos cirandeiros de Pernambuco. Logo depois conheceu Antônio Baracho, “o maior cirandeiro do mundo!”. João Limoeiro diz isso num gesto amplo e conta que ele enxergou logo seu talento, lhe ensinando como tocar “em festa de verão, festa de São João, festa de Carnaval…”. E é assim que essa história começa, desaguando em 1981, quando lança seu primeiro disco de vinil e funda a Ciranda Brasileira de Carpina, que o acompanha até hoje, com seus 11 discos e 40 anos de carreira. Antes disso, ele me conta que sua vida “era bater no canequinho, tocar berimbau, embolada, ciranda de engenho, maracatu…”. E segue assim, me explicando, na forma de uma lista interminável, a história da sua infância e de como começou a ter contato com a cultura popular antes da mudança pro Recife. A vida era fora de casa, correndo pelas ruas de Limoeiro. Tinha o irmão mais velho que frequentava uma ciranda de engenho, mas ninguém da família era artista. Mestre João se fez sozinho. 37
O cirandeiro tem um sorriso largo, que poucas vezes escapa do seu rosto. “Eu sou um artista popular e artista popular não pode ser antipático, chato. Tem que tomar bicada com o povo, pagar bicada”, e ri mais uma vez. Traz na cabeça um chapéu branco com uma faixa marrom que o circula de um lado a outro. Ele diz que é seu estilo e que já o copiam por aí: “Antes, nenhum cirandeiro usava chapéu. Depois de mim, um bocado por aí já usa”. Mas não se abala com os imitadores, que “vão pro palco e não têm minha mímica, meu gingado. Pra acompanhar meu batuque não tem jeito, não”. Na hora de tirar fotos com os instrumentos também mostra seu gesto característico: um dedo levantado acima da cabeça, no final da ciranda.”É minha marca registrada. Quando faço isso é porque a apresentação chegou ao fim”. Depois de tirar fotos ao lado dos instrumentos, Mestre João Limoeiro tira o chapéu, encosta na parede ao meu lado e confessa que anda preocupado. Ainda canta quatro, cinco noites e não cansa, mas se preocupa com a idade e com o futuro: “João Limoeiro pode ir, mas a ciranda brasileira fica”. Ele diz que anda pensando em anunciar no seu programa de rádio na Nova Carpina FM que está buscando um sucessor, alguém jovem. “Vou divulgar pra ver se crio essa pessoa”.
O RITMO DA MATA NORTE
João Limoeiro conta que inventou esse estilo de ciranda moderno, que além dos tradicionais tarol, surdo e ganzá, ainda tem dois tambores, trompete e muitas vezes dançarinos no palco fazendo coreografia . O estilo mais tradicional se chama ciranda de engenho, mais acelerado, quase sem acompanhamento de músicos, muito popular no interior nos anos 1950. “Era um pau, um candeeiro aceso no meio do engenho e o povo em volta”, explica o cirandeiro. 38
Na cozinha da casa de seu João, em cima de um armário branco suspenso na parede, estão expostos os seus troféus. São cinco, dispostos cuidadosamente do maior para o menor. Mas ele conta que, na verdade, já ganhou onze: dez de campeão e um de vice. Na ciranda tem competição, na qual se avaliam rima, oração, melodia e ritmo. Os grupos apresentam músicas ensaiadas do repertório e improvisos. “E como é esse improviso?”, pergunto. Seu João faz cara de quem foi desafiado, se remexe na cadeira, endireitando a coluna, e me pergunta: “Como é o seu nome mesmo?”. “É Julya”. Clotilde, sua esposa há 35 anos, sorri da minha ansiedade na cadeira ao lado. E do pulmão do mestre João sai um canto lindo, rimado, um afago: “Julya, Julya, Julya / Pessoa criteriosa / Uma figura amorosa / Admiro o jeito dela / Justa, simples, santa e bela / Admiro seu sucesso / Eu trouxe um colar de verso pra dar de presente a ela”. E emenda nos versos que usa pra provocar os rivais das outras cirandas, nas competições: “Na minha mão você chia / O seu terno bate fofo / O seu pistón cria mofo / Acabo seu ABC / Canto pra você roer / Lhe mato daqui pra ali / Toda vez que venho aqui / Faço vergonha a você.” Nesse momento, é fácil entender por que os mestres de cultura popular que trabalham com a palavra, mesmo que com canções, são chamados de poetas. Seu João Limoeiro, em poucos minutos, fez poesia no terraço de casa. Os versos fluem como que por mágica. O olhar não se perde buscando uma palavra, a cadência não titubeia. É tudo preciso, certeiro. E termina dizendo com seu sorriso perene: “Ciranda é minha vida, é alegria, é verso. Se hoje eu tenho um lenço pra enxurgar o bigode, se eu tenho uma casa, um carro, foi a ciranda que me deu. Eu me orgulho até de dizer que sou cirandeiro”. João Limoeiro apresentou-se no sábado 31/3, no Encontro de Cultura Popular, na cidade de Buenos Aires, como parte da programação do Festival Pernambuco Nação Cultural 2012 – Mata Norte. 39
40
ÁGUA BENTA EM TERRA DE CHÃO BATIDO O BATISMO DE DOIS “CABOCLINHOS” DE LANÇA OU A ALEGRIA DE DONA MARIA VIÚVA Por CHICO LUDERMIR fotos DANI NADER
Com o sinal da cruz, Padre João começou mais uma cerimônia de batismo. Desta vez, longe de sua paróquia. Veio do Centro de Glória do Goitá, na Zona da Mata Norte pernambucana, por um caminho escuro de terra batida até o Engenho Thomé, onde Dona Maria Viúva esperava com seus dois netos ainda pagãos. Gabriel já ia completar 15 anos, José Rodrigo já tinha 10, mas nenhum dos dois tinha recebido o primeiro sacramento, o que entristecia a avó beata. Defronte à casa onde moram, em cima de um palanque armado, os dois meninos olhavam a pequena multidão que os observava como quem olha o vazio; como quem tá vendo desfocado por uma timidez, que os imobilizou durante toda a cerimônia. Num banquinho, Dona Maria contemplava aquilo tudo com um brilhinho no olho: aquela paisagem da qual faz parte desde pequena, rodeada pela cana-de-açúcar, de onde até hoje tira o seu sustento; aquela casa pobre, de parede descascada, de chão alaranjado de terra; os netos que criou desde que nasceram.
O BATISMO DE JOSÉ RODRIGO
Vestidos com a gola do maracatu de baque solto Estrela da Tarde, Gabriel e Zé não precisaram falar para traduzir o que aquela cerimônia tinha de única. Dois “caboclinhos” de lança, símbolo da tradição da Mata Norte, recebendo as bênçãos católicas no mesmo terreiro de cultura popular onde, minutos depois, aconteceria a sambada do grupo do qual eles fazem parte desde o berço. 41
“Vocês querem que eles sejam batizados?”, perguntou João aos integrantes do maracatu rural, debaixo de uma lua crescente, estampada num céu quase sem nuvens. E quando todos responderam que “sim”, o pároco derramou a água benta carinhosamente na cabeça dos dois brincantes. Em seguida, num sincretismo religioso absoluto, os padrinhos Manuelzinho Salustiano e Leda Alves colocaram na cabeça dos meninos o chapéu colorido, típico do caboclo, representando um segundo batismo. Um “Pai nosso” declamado pelos homens de chapéu na mão e as velas carregadas pelos batizados celebravam o final da cerimônia idealizada pelo próprio padre. João Parari, além de se dedicar à Igreja, também estuda o sagrado no maracatu de baque solto. Realizar o desejo de uma de suas seguidoras mais fiéis foi, ao mesmo tempo, a constatação de um diálogo intenso entre as duas tradições. “A maioria dos meus paroquianos faz parte desta cultura e eu não posso ficar alheio. Eu tenho que me envolver com eles para dialogar. Tenho que conhecer, tenho que me apaixonar, tenho que ler, estudar, escutá-los para conhecê-los”, explica João. A paixão dele pelo maracatu é um reflexo do amor que ele tem pelo seu povo. “Eu fiquei emocionado, porque era o desejo deles de ser batizado, era o desejo de Dona Maria”. Tão logo acabaram as rezas, sem espaço para o silêncio, o próprio padre convidou todo mundo para dançar ao som do terno do baque solto, abençoando o terreiro com uma oração Santo Anjo. Com a voz tremida dos cantadores, o mestre Natal soltou os primeiros versos da sambada daquela noite: “Muito obrigado Jesus/ O Senhor é o nosso pai / É a imagem do mundo / Eu estou feliz demais / Agradeço a Jesus / E à Virgem Santa Maria / Que me colocou no mundo / Para cantar poesia”, e aliviou a ânsia de muitos, loucos para começar a sambar. 42
Entraram os caboclos balançando o surrão e fazendo o barulho dos sinos, que tocavam nas costas, como que transportados diretamente do topo da igreja que não estava lá. Naquele chão, a poeira começou a subir com a pisada ágil dos pés dos trabalhadores do engenho. Recém-batizado, Gabriel já tocava, no terno, a buzina feita de metal. Já Zé Rodrigo brincava de caboclo junto aos outros amigos pequenos. “Achei muito bonito, mas fiquei com muita vergonha”, contou o mais velho. O outro, de tanta timidez, só conseguiu me dizer seu nome e me mostrar um pouco da sua dança alegre de criança. Se aos 10 anos Zé não entendia muito bem, aos 72, Dona Maria sabia demais o que estava sentindo. É lá onde ela mora há 55 anos. Foi lá que, há mais de três décadas, num Domingo de Páscoa, foi criado o seu maracatu, o Estrela da Tarde, por quatro dos seus 12 filhos, que saíram escondidos enquanto ela plantava macaxeira naquele quintal. Foi lá onde ela perdeu seu marido de uma “dor”, e deixou de ser “Maria de Antônio” para ser mais uma entre tantas “Marias Viúvas” da região. Daí em diante, passou a trabalhar seis dias na cana-de-açúcar, fizesse sol ou chuva.
DONA MARIA VIÚVA
“Eu vivi aqui sem conhecer nada. Somente conhecia a ‘paia da cana’. Para mim, esse momento é muito especial. Ver meus netos, que são como filhos, batizados. Eu fico muito feliz também, porque eu tenho gente na minha casa que eu pensava que nunca ia chegar: Padre João, Manuelzinho e vocês que vêm de fora me visitar. É uma alegria muito grande!”. 43
MOXOTÓ O grupo Cordel do Fogo Encantado apresentou a cultura do Sertão do Moxotó para o Brasil e para o mundo. Revisitando o tradicional, Lirinha e demais conseguiram estabelecer uma mistura que mostrou como é tênue o limite entre o regional e o universal. As referências populares ainda estão lá. O distrito de Caraíbas, em Arcoverde, com apenas 1200 habitantes, guarda um dos poucos reisados ainda em atividade. Na porta de suas casas, moradores antigos ainda cantam o “boa noite senhor e senhora eu cheguei agora me preste atenção”. O Coco das Irmãs Lopes também está enraizado naquele chão.. Da esquerda para direita: Reisado das Caraíbas | Foto Roberta Guimarães • Banda Sistema de Protesto | Foto Roberta Guimarães. • I Encontro de Escritores em Sertânia- Falando em Literatura no Sertão do Moxotó. | Foto Ricardo Moura • Encontro das Populações Rurais e Povos Tradicionais | Foto Costa Neto. • Show de Joquinha Gonzaga | Foto Ricardo Moura. • Encontro das Populações Rurais e Povos Tradicionais | Foto Costa Neto.
44
ENCONTRO DE REISADOS ALEGRA CARAÍBAS Foi no bairro de São Miguel, na periferia de Arcoverde que Ivo Lopes criou nos anos 1940 o primeiro grupo de samba de coco do município, ritmo que virou símbolo da região. O Sertão do Moxotó é também famoso pelos seus bois, aboiadores, poetas e violeiros. A microrregião do Sertão do Moxotó é formada por sete municípios (Arcoverde, Betânia, Custódia, Ibimirim, Inajá, Manari e Sertânia) que receberam o Festival Pernambuco Nação Cultural entre os dias 9 e 15 de abril de 2012. Ao longo destas duas entrevistas e uma reportagem, produzidas durante o FPNC, o leitor poderá conhecer um pouco mais do Moxotó tradicional e contemporâneo.
MESTRE HORÁCIO COMANDA O REISADO DAS CARAÍBAS Por CHICO LUDERMIR fotos ROBERTA GUIMARÃES
O distrito de Caraíbas, em Arcoverde, parece pertencer a outro tempo. Com cerca de 1.200 habitantes, todo mundo se conhece e quase todo mundo é parente ou compadre. As poucas ruas confluem para a igreja matriz e em frente a ela, uma praça reúne as crianças agitadas, com seus pais e avós. Nesse lugarzinho – e o diminutivo é pelo tamanho e pelo carinho, só –, Horácio Gomes da Silva, Paulo Pereira Cruz e outros da velha guarda da cidade mantêm bem viva uma tradição rara que herdaram. Nascidos ali, desde muito cedo fazem parte do reisado. Tão cedo que não sabem nem precisar quando. Não por acaso, Caraíbas foi escolhida para sediar o Encontro de Reisados do Festival Pernambuco Nação Cultural do Sertão do Moxotó e receber um dos poucos outros reisados existentes: o do Mestre Gonzaga, de Garanhuns. O encontro começou espontaneamente bem antes das apresentações. Na casa de Severina da Silva, ou “Sivinha”, como todo mundo chama, aos poucos foram chegando Seu Paulo, Horácio, Dona Cacilda, Dona Laura. Sentaram no terraço e contaram histórias de antigamente. De quando o Mateu, figura presente em muitas expressões populares pernambucanas, saía pelas ruas com seu chicote, avisando a todo mundo que ia ter reisado. E aí o povo fechava as portas esperando que os mestres fossem na frente de suas casas pedir, cantando, para que abrissem seus lares. 45
Com todo mundo reunido, as peças – como são chamadas as músicas – iam vindo na lembrança e sendo puxadas por Paulo Cruz. As mulheres de vozes agudas acompanhavam num coro, que casava perfeitamente, demonstrando a sintonia dos mais de 50 anos de convívio. Enquanto cantavam a religião, a agricultura e a Segunda Guerra Mundial, veio vindo Cícero Lourenço com passinho miúdo. “Demorou três peças para chegar”, brincou Mestre Horácio. Aos 88 anos, Seu Cícero é o mais velho do grupo e já está se despedindo da brincadeira. Com sua bengala na mão, Ciço ainda tenta puxar uma peça… Quando chegou Mestre Gonzaga, de Garanhuns, foi uma alegria só. “Eu tenho cantado uma peça de vocês”, avisa, já puxando “Entrei na casa de uma donzela / E peguei para ela seis buquês de rosa / Três brancas, três amarelas / Seis rosas belas tão danadas de cheirosa”. Quando Mestre Horácio retribuiu, dizendo que também cantava uma deles, Gonzaga mostrou o braço arrepiado. Já se sentia o friozinho da noite quando saiu à rua o reisado vindo de Garanhuns. Com figurino todo em azul e vermelho, rei, rainha e embaixadoras desceram da escola chamando as pessoas para virem às janelas, como se fazia antes. Encontraram na frente da igreja iluminada um centena de moradores animados e durante uma hora fizeram bonito, ao som da viola de Senival Teixeira. Violeiro desde os 9 anos, Senival já tocou em seis reisados diferentes desde os 9 anos, e é considerado a alma do reisado de sua cidade. Uma das nove embaixadoras, Dona Carminha, animadíssima, cativou a plateia que gritava, em coro, seu nome. Aos 78 anos, distribuiu abraços quando terminou apresentação. Mestre Gonzaga era só sorriso. “Fomos muito bem recebidos. Estou muito emocionado”, contou mais uma vez mostrando o braço arrepiado.
MESTRE HORÁCIO COMANDA O REISADO DAS CARAÍBAS 46
Tão logo os garanhuenses cantaram sua música de despedida, os anfitriões já começaram a cantar “Boa noite senhor e senhora / Eu cheguei agora, me preste atenção / Caraíba nós somos reisado / Saindo pra fora somos campeão”. Com zabumba, triângulo, viola, pandeiro e sanfona, e uma dança bem ensaiada, se apresentaram para a sua cidade. Ao lado, as crianças pequenas davam uma demonstração de que lá o reisado continuará pelas próximas gerações. Naquele momento tudo o que contaram na roda estava personificado e vivo.
DONA CARMINHA, A QUERIDA DO REISADO DE GARANHUNS
47
48
COCO RAIZES DE ARCOVERDE
“CULTURA É A RIQUEZA DO MUNDO” Entrevista com o Samba de Coco Raízes de Arcoverde* Por RAQUEL HOLANDA fotos ROBERTA GUIMARÃES
Um dos mais tradicionais grupos de cultura popular do Sertão do Moxotó, o Samba de Coco Raízes de Arcoverde conta aqui sobre a experiência de manter viva uma tradição cultural que dá a Arcorverde o título de “Terra do Coco” sobre a emoção de receber pela primeira vez uma edição do Festival Pernambuco Nação Cultural e ainda a relação com essa manifestação popular que encanta pernambucanos e o mundo. O Samba de Coco Raízes de Arcoverde se apresentou no FPNC do Sertão do Moxotó ontem (13/4), no palco principal da cidade. E antecipou para o público quatro músicas do seu novo trabalho que será lançado em breve. A famosa batida do tamanco de madeira, o trupé, ecoava dos pés dos integrantes do grupo e também do público que conferiu a apresentação. Quem participou da conversa com a equipe do fpnc.org foi Assis e Iran Calixto, atuais coordenadores do grupo. 49
Fpnc.org
Desde 1992 vocês percorreram um caminho que partiu do trabalho de criação até a consolidação de uma nova manifestação cultural pernambucana, com o coco. Mergulhados neste mundo da cultura desde então, como vocês definem o que é cultura?
Iran Calixto
Cultura pra mim é algo muito rico. Cultura é a riqueza do mundo, porque é ela que traz turismo e renda para nossa cidade. Acho que todo mundo vê isso. Tem muitas cidades em que as pessoas não sabem que são ricos, eles não sabem a cultura que têm, ficam escondendo e não sabem o quanto isso pode acrescentar para uma cidade. Nós somos ricos em Arcoverde. E eu só vim descobrir isso quando o Samba de Coco Raízes de Arcoverde foi conhecido internacionalmente, o quanto é importante a gente valorizar a nossa cultura. Assis Calixto – A cultura, essa que a gente trabalha, é a nossa diversão. Essa cultura pura é levada para os novos, as crianças já brincam com a gente. E a gente desperta em outras cidades que também têm cultura, e que não valorizam, a necessidade que elas precisam ter de valorizar a cultura.
Fpnc.org
Valorizar a tradição do coco é difícil hoje em dia?
Assis Calixto
É difícil demais. Hoje, com todo o acesso a mídia que se tem, é difícil a gente ir ao encontro das pessoas e das cidades para valorizar essa nossa cultura. Mas a gente continua aí, brincando e lutando para que ela permaneça e não só no Raízes, mas em outras cidades que tem cultura e não sabem o que tem de bom no Brasil.
Fpnc.org
O que representa o tamanco para vocês, esse objeto que vai além de um acessório da vestimenta e torna-se um instrumento de percussão no coco?
Assis Calixto
COCO RAIZES DE ARCOVERDE
50
O tamanco é um instrumento criado pelo Lula Calixto. E esse tamanco que era para ele hoje é do mundo inteiro. Ele é um instrumento a mais para o coco, que é muito importante para a nossa tradição. É um instrumento que faz parte do Raízes, a sua pisada faz o público ficar abismado. Essa é a nossa marca e é admirada pelo público. Demais até.
Fpnc.org
São mais de 20 anos de apresentações com o Samba de Coco Raízes de Arcoverde. A experiência de subir ao palco continua a mesma?
Assis Calixto
Muda tudo durante uma apresentação de coco. Quando a gente chega num palco fica com um espírito diferente e o público percebe isso. O público quer nos acompanhar na dança, no batido do tamanco. Isso tudo é uma conquista muito grande.
Iran Calixto
Eu fico muito feliz ao me apresentar com o Raízes, porque, além de atrair o público, o coco chama muito a atenção das crianças. Muitos pais sempre nos perguntam qual o horário que vamos começar nossa apresentação, porque são seus filhos que levam eles pro show. Nós temos uma relação muito forte com as crianças, a maioria do nosso público é motivado justamente pelo interesse delas em verem e brincarem junto com a gente durante o nosso show.
Fpnc.org
Pela primeira vez o Festival Pernambuco Nação Cultural chega ao Sertão do Moxotó. Como vocês se sentem em participar dele?
Assis Calixto
Primeiramente, gostaria de dizer que pra gente é motivo de alegria ter essa festa que vem trazer esperteza para todos os grupos culturais de Arcoverde. Não só de Arcoverde, mas de todas as cidades vizinhas, para que a gente não deixe que essas tradições se acabem. Então, essa vinda desse projeto para a região de Arcoverde é muito boa, porque está fortificando os grupos.
Fpnc.org
No ano passado, vocês gravaram um novo álbum, já tem previsão de quando será o lançamento?
Assis Calixto
A gente não tem ideia de quando iremos lançar nosso terceiro CD, mas na nossa apresentação da sexta-feira (13/4, do FPNC) já cantamos quatro músicas deste novo trabalho: “Cavalinho de Barro”, “Serra do Tapuia”, “Doidinho” e “Piador”. 51
MESTRE ASSIS
Fpnc.org
Além das músicas apresentadas nesta edição do FPNC 2012, o que o público pode esperar do novo trabalho?
Iran Calixto
A gente pretende lançar o novo CD junto com um novo show, pois como no período da gravação meu filho ainda fazia parte do grupo, com a sua saída temos que reformular como será esta apresentação.
Fpnc.org
No final do ano passado, durante o Festival de Coco Lula Calixto, falou-se sobre uma possível saída de Iran do Raízes. Essa possibilidade existe?
Iran Calixto
Isso é a mesma coisa que aconteceu com meu filho. Como ele hoje é evangélico, decidiu sair para se dedicar à música gospel. E, assim, eu tenho um sonho, não é para agora, e sim lá para frente, de gravar um CD Gospel.
Fpnc.org
Mas quando esse momento chegar, você deixará o grupo?
Iran Calixto
Eu acho que não, porque eu penso que vai ser o Coco Gospel. A ideia é essa, continuar com o Coco e trabalhar com a música gospel. 52
IRAN CALIXTO
53
LIRINHA VOLTOU A ARCOVERDE PARA APRESENTAR SEU PROJETO “LIRA”
“GOSTO DO TERRITÓRIO DO ESTRANHAMENTO E DO RECOMEÇO” Entrevista com Lirinha* Por CHICO LUDERMIR fotos COSTA NETO
54
Encontro Lirinha pouco antes de subir ao palco na sua terra natal, Arcoverde, mas como se concentrava, prefere que conversemos com mais calma na volta do show. “É mais tranquilo”, diz. Depois da apresentação na qual tocou as músicas do seu projeto solo, “Lira”, lançado no segundo semestre de 2011 e três músicas da sua antiga banda, Cordel do Fogo Encantado, volto para uma entrevista de 20 minutos dentro do seu camarim. Mais tranquilo, José Paes de Lira conta como vive essa nova fase, como é tocar em Arcoverde longe do Cordel e antecipa que vai lançar 12 clipes e um vinil ainda este ano. No segundo semestre, começa também a pré-produzir o novo álbum, que também se chamará “Lira”, que fará parte de uma trilogia. “Estou muito feliz. Essa é a definição que eu posso dar”, conta Lirinha sobre seu momento atual. Segundo ele, a nova turnê vem dando a ele a possibilidade de se reinventar em composição e interpretação e um reconhecimento internacional: deve lançar “Lira” no México, e foi citado pelo jornal britânico “The Guardian” na lista das 30 melhores músicas do ano com a música Adebayor, feita em parceria com Lula Côrtes.
Fpnc.org
Como você percebe, em Arcoverde, a recepção dessa sua nova fase?
Lirinha
Eu sinto uma melancolia relacionada à saudade do Cordel. O Cordel era um grupo muito diferente e que não deixou substituto, isso causa saudade nas pessoas. Uns não entendem por que eu tomei a decisão, mas o que eu percebo é que a maioria das pessoas que me acompanha entendeu essa busca por um novo som. Eu vejo uma ligação muito forte deste projeto com o que eu já fazia. De fato, a grande diferença é a ampliação de elementos harmônicos no show e a utilização de pianos, baixos, sintetizadores e guitarras. Essa mudança estética sonora é forte e também causa esse sentimento de ‘Não é o Cordel’. Mas esse é som que eu estou fazendo agora e estou muito feliz. Esse disco era um disco dos meus sonhos. Queria fazer essa música e não tinha como não fazer. 55
Fpnc.org
Como é ser “solo”?
Lirinha
É muito diferente. Otto já tinha me dito isso. Ele falou de uma certa solidão que eu teria ao tomar decisões. É um recomeço que eu tenho muito prazer. Gosto muito desse momento de apresentar coisas novas. Isso me dá um impulso, um ânimo. Gosto muito desse território do estranhamento e do recomeço.
Fpnc.org
O que te influenciou de Arcoverde e o que te influencia fora?
Lirinha
Tem um movimento muito forte de rock, de bandas punks anteriores ao Cordel. Tem muita coisa das melodias do Reisado (das Caraíbas) que eu incorporei nas minhas composições. Os aboiadores, dos bares, dos subterrâneos, dos botecos de Arcoverde, tiveram uma influência muito forte em mim. Os repentistas, poetas, violeiros. Gosto muito da psicodelia nordestina da década de 1970, tanto é que convidei Lula Côrtes para participar do disco. Saindo de Arcoverde, algumas coisas como Joy division, Velvet Underground, isso tudo veio depois de sair de Arcoverde.
Fpnc.org
O nome “Lira” do álbum é também como muita gente tem te chamado. Você deixou de ser Lirinha?
Lirinha
Meus amigos me chamam de Lira, que é o apelido de Lirinha. Eu assino as músicas como José Paes de Lira desde o segundo disco do Cordel e meus livros também. Aí os meus amigos mais próximos me chamam de Lira. O Lirinha vem porque meu pai e meu bisavô também eram José Paes de Lira. Meu nome Lirinha vem das minhas primeiras aparições. Tem uma matéria quando eu tinha 12 anos no Diário de Pernambuco. Virou meu nome artístico. Nesse disco, achei a palavra Lira muito definidora de muitas coisas. Do meu novo momento e das ligações de metáfora com o lirismo. 56
Fpnc.org
Você acredita nessa separação regional/universal?
Lirinha
Eu tive muito problema com isso no tempo do Cordel. Eu foquei muito nesse assunto da música regional como sinônimo de música do Nordeste. Também descobri que isso vem de coisas que não têm a ver só com música, como o regionalismo na literatura. Hoje eu já consigo perceber que são reflexos dessa visão de mercado, do regionalismo, do interior, do Nordeste.
Fpnc.org
Quando você vem a Arcoverde, o que é que não pode deixar de ver?
Lirinha
A feira de sábado no Cecora (Centro Comercial de Arcoverde), porque é uma reunião das comunidades rurais e aí gera um monte de encontro louco. O São João de Arcoverde que é muito diferente. Mantém a pegada das fogueiras e das comidas de milho.
Fpnc.org
O que você gosta de música atualmente de Arcoverde atualmente?
Lirinha
O Emerson (Calado, ex-Cordel) fez um show e eu acredito muito no trabalho dele; Clayton (Barros, ex-Cordel), que eu sou fã e gosto das coisas dele; Noé Lira, que é uma pessoa mais antiga e um grande amigo meu; Tonino Arcorverde; vários grupos de coco, o Raízes de Arcorverde, tem o das Irmãs Lopes… 57
Caruaru te visita novamente o calendário seus naturais e turistas enfeitam teu relicário toda cultura se agita não tem festa mais bonita que festa de aniversário Um berço extraordinário de artistas nordestinos terra que deu Zé Caboclo deu Dila e Mané Galdino deu Ortinho e Ivanildo também deu Herbert e Onildo Azulão e Vitalino A cidade se enfeita de maneira sem igual o estado presenteia teu povo com festival Caruaru, Parabéns pelos valores que tens nesta Nação Cutural
Por ADIEL LUNA 58
CARUARU Conhecida internacionalmente como “Capital do Forró” e dona de uma das economias mais promissoras do estado, Caruaru é um verdadeiro celeiro cultural no agreste pernambucano. Seja no artesanato, na música, xilogravura ou cordel. Seja no Alto do Moura ou na maior feira ao ar livre do mundo. Foi no Alto do Moura que o barro, inicialmente utilizado para fazer panelas, copos e tigelas, tornou-se matéria-prima para a arte de Mestre Vitalino. Discípulos dele, Manuel Eudócio e Zé Caboclo continuam fazendo do local um dos mais expressivos em arte figurativa das Américas. Por isso mesmo, Caruaru abriga o Museu do Barro com cerca de 700 peças.
Da esquerda para direita: Cortejo Escola Gigante do Samba | Foto Clara Gouvêa • Encontro de Bacamarteiros no Alto do Moura em Caruaru | Foto Daniela Nader. • Espetaculo de dança Catrevage. Foto Daniela Nader. • Boi Surubim no Encontro de Bois na Cohab III em Caruaru | Foto Clara Gouvêa
59
Caruaru também é conhecida pela sua tradicional feira, onde, segundo a composição de Onildo Almeida, famosa na voz de Luiz Gonzaga, vende-se “de tudo que há no mundo”. De lá saíram para todo o Brasil os cordeis e xilogravuras do Mestre Dila, detentor do título de Patrimônio Vivo de Pernambuco, e o som agudo dos pífanos de João do Pife. Há décadas a cidade tem exportado cultura para todo o país e, mais recentemente, o também caruaruense Ortinho tem se destacado no cenário do rock nacional. Para celebrar essa diversidade, a caravana do Festival Pernambuco Nação Cultural (FPNC) aportou no ano de 2012 pela primeira vez na cidade e, entre os dias 14 e 20 de maio, semana do aniversário de Caruaru, levou apresentações artístico-culturais e atividades de formação para diversos pontos do município.
O HOMEM QUE FABRICA ALEGRIA
COM VOCÊS, JOÃO DO PIFE, O MESTRE DO BICO DOCE Por CHICO LUDERMIR fotos RICARDO MOURA
Para João Alfredo Marques dos Santos, o pífano é a alegria transformada de forma artesanal. Com quase 60 anos de prática, ele pega a tora de taboca, serra, marca a escala, fura, toca. A partir daí, em qualquer canto que chega bota todo pra mundo dançar. “Alegria se faz assim, com um pedaço de madeira”, diz o músico e artesão, conhecido como João do Pife. O que ele chama de dom foi herdado do pai e mestre Alfredo, quando moravam no pé da serra, em Riacho das Almas, a 18 km de Caruaru. No meio de bodes, ovelhas, dentro dos matos, na roça, plantando milho e feijão, quando a chuva dava. Nos fins de semana, João saía pelos sítios tocando nas tradicionais novenas e romarias com os ternos de zabumba, como eram chamadas as bandas de pífano antigamente. E assim, ao lado do pai e de Severino, um dos seus sete irmãos, ele foi tomando gosto. E tocava na novena de Seu Mané, e tocava na novena de Seu Pedro. O tempo foi indo e indo e o pai de João adoeceu, ficou cansado e entregou o terno de zabumba aos dois irmãos: “Ói Severino e João, vocês são pifeiros muito bons e nós gostamos. Eu tou cansado, mas não deixem acabar o terno de zabumba, que é uma tradição nossa. ”
60
JOテグ DO PIFE COM BRILHO NOS OLHOS
61
Seu Alfredo ainda ficou muito tempo vivo, sempre acompanhando e admirando o trabalho dos dois filhos. Ainda mais quando um deles resolveu ganhar a cidade e saiu de um Riacho das Almas ainda sem energia elétrica. “Se a gente ficar aqui no pé da serra, na roça, vai chegar um tempo que as novenas vão se acabar. Tenho que ir pra um lugar maior, pra ver se a gente fica mais conhecido”, pensou João do Pife. Enquanto ele escolheu ir, o compadre e irmão Severino quis ficar. “Eu chego lá e invento qualquer coisa”, disse um. “Eu não saio daqui pra Caruaru sem saber fazer nada lá”, disse o outro, emendando: “Mas, precisou de mim, mande recado que eu vou.” Aí, lá se foi João. Novo. Matuto. Corajoso. Alugou uma casinha no Salgado – bairro onde mora há 40 anos – e ficou pensando em como levar a vida. Começou a fazer pífanos para vender na feira de Caruaru, numa barraquinha ao lado do Mestre Vitalino. Chegava às 9h e quando dava 13h, estava cheio de turista do Recife, de São Paulo, da Europa. Tocava e o povo se surpreendia. Aí João conseguia o dinheiro da feira e juntava o do aluguel. Começou a correr o boato de que o matuto estava muito bem. “João tomou conta da feira”. “João é desenrolado mesmo”. “É parada”. Nesse tempo, foi chamado para tocar no Recife, ficou numa ansiedade tão grande… Depois disso, foi ao Rio de Janeiro, a Salvador, a São Paulo, a Brasília, sempre levando junto o irmão. 62
Um dia bateram na porta: – João do Pife? –Tá falando com ele. – Sou mandado aqui da Fundação Joaquim Nabuco para registrar você para ir pra Portugal. – Poxa. E onde é isso? Na outra semana, ligaram pro telefone da vizinha pra confirmar. João nem dormiu na noite anterior aos 14 dias que passou em Portugal com a banda. “Uma surpresa para matuto que nem a gente. Eu fui conhecer só Caruaru e cheguei bem mais longe”, lembra. Aos 68, João só pede a Deus mais um bocadinho de vida pra desfrutar mais ainda o Brasil, a Europa, os amigos, o pífano e gravar seu segundo CD. E dentro da sua oficina continua a planejar maneiras de fazer vivo o som agudo do pife, que carrega no nome. Mesmo com as novenas se acabando, João adapta seu repertório e toca no Carnaval, no São João… Dos oito filhos que teve, quatro são músicos e participaram do primeiro CD. Uma das histórias que João conta é que quando Jesus andava pelo mundo, Nossa Senhora resolveu fazer uma procissão. Mas, para não ficar só na reza, decidiu que tinha que ter uma musiquinha acompanhando. “Um cabra chegou com uma sanfona, um triângulo e uma zabumba e ela não aceitou. Depois, chegou outro numa viola, para acompanhar, e ela disse ‘Não’. Chegou uma coisa e outra, sempre recusadas. Até que chegou a banda de pífano e ela disse: ‘É essa mesmo. Com isso aí é que a gente vai fazer a procissão’”. Se Nossa Senhora ouvisse o sopro de João, ela ia ter certeza de que não tinha errado. É novena, xaxado, xote, valsa. Tudo guardado na cabeça e tocado com maestria. Quando termina parece que o sorriso que ele dá é nota musical. Vai ver ela ouve, abençoa e, por isso, ninguém nunca vê João triste. 63
A VIDA QUE SE MOLDA COM AS MテグS Por RAQUEL HOLANDA fotos RICARDO MOURA
MテグS DE SEVERINO BARBOSA 64
É nas margens do Rio Ipojuca que o barro – ou a argila – pode ser encontrado na cidade de Caruaru. Essa matéria-prima de cor terrosa segue, no século 21, modelando os sonhos e a criatividade dos mais de 600 artesãos que vivem da arte da cerâmica no município agrestino, em especial no Alto do Moura, ainda tido como um dos mais expressivos celeiros de arte figurativa das Américas. O barro era utilizado inicialmente apenas para fazer objetos utilitários, como panelas, copos, tigelas, pratos e vasos, mas, em 1948, a relação do Alto do Moura com a matéria-prima se modificou. Foi neste ano que Mestre Vitalino chegou à cidade e introduziu na cultura local a produção de bonecos de barro no artesanato. As influências de Vitalino para a cultura do bairro e da cidade foram muitas e ainda hoje são os bonecos do famoso mestre e de alguns de seus discípulos, como Manuel Eudócio e Zé Caboclo, que levam consigo a identidade de Caruaru e doAlto do Moura. Artesãos oficialmente inscritos na Associação dos Artesãos em Barro e Moradores do Alto do Moura (ABMAM) são 200, mas Severino Barbosa, presidente da associação, revela que o número real é três vezes maior. Artesão há 42 anos, ele esclarece que embora o trabalho com o barro seja algo do dia a dia, o retorno com a venda das peças faz parte de um mercado sazonal. “O barro é um produto de épocas, Semana Santa e São João são festividades que aumentam nossas vendas, e nos meses de férias, como janeiro, julho e dezembro, a procura também é bem maior”, explica. O trabalho no barro cresceu com o município de Caruaru. Para Amélia Campelo, uma das gestoras do Museu do Barro, localizado na cidade, a arte da cerâmica estimulou o desenvolvimento do município, a partir principalmente do Alto do Moura. No entanto, embora o barro faça parte da história e da cultura dos moradores da cidade, Amélia acredita que o Alto do Moura esteja fugindo de suas raízes. “Costumávamos ver cenas do cotidiano do Nordeste através das peças de barro, hoje vemos peças copiadas de outros lugares, muita coisa passou a ser repetitiva. Estamos perdendo a identidade do verdadeiro artesanato de Caruaru”, lamenta a gestora. Diante da nova realidade, a maneira como se dão as relações com o próprio barro e 65
com as peças surgidas a partir de sua modelagem estão se diferenciando da forma de labor cultuada pelos primeiros artesãos e seus discípulos. Hoje, alguns se dedicam exclusivamente a uma produção segmentada, como é o caso de Carlos Silva, que faz apenas o corpo de bonecas típicas de Minas Gerais, mas conhecidas em todo o País. Segundo Severino Barbosa, “essas bonecas com o cabelo de arame são as coqueluches do momento”. O artesão também revelou, com pesar, que muitos artesãos deixaram de fazer as peças tradicionais devido à procura por essas peças. Sobre a mudança dessa relação, na qual o artesão não experimenta o processo completo da produção, Paulo Rodrigues, artesão e filho de Zé Caboclo, acredita que isso pode ser positivo. “Eu acho importante esse tipo de trabalho também, pois a procura é grande em toda parte do País. Se aumenta o número de pessoas produzindo, melhora o nosso trabalho”, comenta ele, embora acredite que, na arte com o barro, “a criatividade deve sempre ser privilegiada”. E falando em criatividade e primor com cada movimento, seja a mão livre ou com o auxílio do torno, o concurso realizado na Fenearte (Feira Nacional de Negócios do Artesanato) é uma ação bastante cultuada pelos artesãos do Alto do Moura. “Já estamos trabalhando nas nossas peças, todos os anos sempre produzimos algo especial para este concurso voltado para a nossa criatividade com o barro”, diz Paulo Rodrigues, enquanto modela a peça que levará para a competição. “A minha peça não posso revelar, apenas antecipo que estou trabalhando com a temática do centenário de Luiz Gonzaga”, completa o artesão.
66
OS SENTIDOS DO BARRO
“O valor que eu dou ao barro é o valor da identidade de Caruaru, enquanto pernambucanos podemos nos reconhecer e nos mostrar através destas peças”, fala Amélia Campelo, ao reforçar que esses trabalhos são uma oportunidade de valorizar o trabalho dos artesãos. “É mostrar a grandeza do pessoal ao Alto do Moura diante da produção artística de valor cultural inestimável”, enfatiza. Além de ser um produto conhecido pelos caruaruenses, a tradição do artesanato com o barro também se vincula ao turismo da cidade. Para o artesão Antônio Rodrigues, o barro “é uma arte que continua sendo valorizada, apesar de muitas pessoas que estão trabalhando nela não darem o valor que merece. Às vezes, vulgarizam a arte, não se preocupando em fazer peças com qualidade e criatividade, apenas reproduzindo as já existentes”, fala Antônio, que aprendeu sua arte com o pai Zé Caboclo. A junção do tradicional com o contemporâneo é o “segredo” usado por alguns artesãos para manter viva a paixão pela arte figurativa. “Me sinto realizado, feliz por trabalhar na arte, tanto pelo que ela representou para meu avô, Zé Caboclo, como na minha experiência de ter aprendido com ele. Eu vou mantendo viva essa cultura e é uma profissão pelo qual sou muito respeitado. É o barro que dá sentido à minha vida, e fico ainda mais feliz por ver que essa tradição está sendo continuada por minha filha Anabele, de 9 anos, que já faz suas peças em miniatura com barro”, comenta Emerson Rodrigues.
ANTONIO RODRIGUES
Na visão de muitos artesãos, o barro é a maneira de eles expressarem sua forma de viver, o cotidiano nordestino. Para Severino Barbosa, é uma matéria-prima que revela a própria identidade dos moradores de Caruaru: são reisados, cavalos marinhos, bumbas-meu-boi e outros elementos comuns à cultura da região. 67
Além de fonte de renda para grande parte dos moradores do Alto do Moura, a arte na cerâmica também é o estímulo para a mudança da própria comunidade. Morador do bairro há 64 anos, Severino Vitalino relembra as transformações que vivenciou depois do início do artesanato com o barro: “Enriqueceu o nosso povoado. Antes aqui era uma região de trabalhadores da roça. Me lembro de ver muitos andando com a enxadinha nas costas. Então meu pai (Mestre Vitalino) trouxe essa alegria para o Alto do Moura, trouxe cultura. Essa arte tão maravilhosa que é hoje, que levou Pernambuco a ser conhecido pelo muito inteiro. Caruaru cresceu e agora muitos vivem da cultura. E parte desse crescimento foi por conta do boneco de barro”. Perguntado pela nossa equipe o que sente ao trabalhar com o barro, o filho do Mestre Vitalino falou entre risadas: “Parece que eu estou brincando. Na verdade, eu estou fazendo uma obra de arte, mas eu sinto que estou brincando. Eu gosto e é algo que eu faço apaixonado desde os 7 anos. E olha que hoje eu já tenho 72”, comenta o artesão que aprendeu o ofício com seu pai. E foi com ele que também construiu sua vida: “Tudo o que eu arrumei (um pão, alimento, roupa) foi através do barro. Se hoje cheguei até aqui foi por conta do barro, foi ele que me possibilitou ter 13 filhos, então o barro para mim é a minha segunda mãe. O barro para mim é sagrado.” 68
69
O FANTÁSTICO MUNDO DE MESTRE DILA MESTRE DILA É PATRIMÔNIO VIVO, MAS ACHA QUE NÃO MERECE O TÍTULO Por CHICO LUDERMIR fotos RICARDO MOURA
70
Meu encontro com Mestre Dila foi mais silêncio do que fala. Me recebeu como se eu fosse de casa e, sentado no seu cantinho de sempre, respondeu despretensioso cada pergunta que fiz. Para quem conhece, nem precisa explicar que a despretensão não tem nada a ver com desdém. É mais um desprendimento completo de qualquer vaidade. Dila não tem floreio para dizer o que é nem o que pensa, com aquela voz mansa que só a dele. Tem muita coisa que deu pra sentir com pouco verbo, só olhando aquele talhado carinhoso que Dila faz na madeira. Vê-lo fazer suas xilogravuras foi como olhar as avós que passam a tarde toda fazendo tricô. Só mudam os instrumentos: ao invés de agulha, um estilete amolado; no lugar da linha, a madeira peroba do campo, que ele compra aos montes numa serralheria. Na frente da porta de casa, bem por onde a luz entra e ilumina a mesa, Dila gasta o tempo fazendo arte. Quase sem tirar o foco de uma madeira lisa, que continha apenas um desenho de lua feito a lápis, José Soares da Silva contou quando a xilogravura virou sua profissão. Com apenas 15 anos de vida e só dois de estudo, foi para Caruaru passar só um dia e acabou ficando. Arranjou emprego nas gráficas da cidade e fez gravura para jornal, rótulos de bebida e cordel. Na mesma época, começou a vender seus folhetos nas feiras de Pernambuco, Alagoas, Ceará e Bahia. Chegava bem cedinho, abria a maleta, espalhava os folhetos e ficava até as três da tarde cantando o que escrevia, como era frequente naquele tempo. Muitas vezes trocava cordéis com outros autores, cujos nomes ele lembra um a um: Vicente Vitorino de Melo, Heleno Francisco Torres, Antônio Ferreira, entre tantos outros que ele cita e descreve, com memória impressionante. “Além de ser bem cantado, para o cordel vender bem, tem que ter boa xilogravura”, explicou o mestre. “São artes casadas”. E, por isso mesmo, Dila era sucesso. “São Bartolomeu e o Diabo” e “Paulo e Rosita” venderam para mais de 70 mil exemplares. E Dila não ficou com nenhum. Nem do seu preferido, “O sonho de um Romeiro com Padre Cícero Romão”, onde ele faz previsões quase messiânicas. Aliás, no lugar onde ele vive, por trás do Museu do Barro, em Caruaru, não tem nada guardado. 71
Na casa pequena e simples, da qual ele nem pensa em sair, encontramos, do passado, só uma impressora antiga. O restante tá espalhado pelo mundo. Cordel e xilogravura, em matéria e em memória. Fazer uma antologia da obra de Dila é tarefa quase impossível. Além de um desapego generoso do autor em relação ao que produz, como agravante, o mestre tem o hábito de usar um sem número de pseudônimos. Nem ele mesmo é capaz de precisar quantos. “Dila”, “Dilla”, “Dillas” e “Dyyllas” são fáceis de reconhecer. Mas tem ainda “José Ferreira da Silva”, “Saboia”, “Sabaó”, “Barba Nova”, “Kirbaano”, “Alexandre José Felipe Cavalcanti d´Albuquerque”, “Felipe Henrique”, “Antônio Cavalcanti”, “José Soares da Silva” e todas as combinações possíveis com esses nomes. Tudo começou com a descoberta de que as pessoas só colecionavam 12 folhetos de cada autor. Daí em diante, ele só fazia uma dúzia com cada assinatura e, assim, foram mais de 2 mil folhetos. Daqui, desconfio de que os nomes eram trocados com outra frequência e eram mais relacionados ao estado de espírito e a um humor sensível do autor, do que ao medo de não ser vendido. Como bom cordelista, Dila traz à tona a religiosidade, as lendas e os mitos nordestinos, onde Padre Cícero e cangaço ganham destaque. Tem ainda um dom para unir o sagrado e o profano em versos. Pergunto do método e Dila faz parecer simples: “Você cai na ideia e fica pensando assim uns minutos. Aquilo é um título, que se você não anotar na hora, esquece. Ele foge”. Essa semana mesmo, o mestre estava deitado, idealizou um título e não anotou. Pelejou para lembrar depois, mas não retornou. “Tem que escrever na hora certa. Não anotou, adeus viola”. – E como é que faz para escrever sobre tanta coisa diferente? Tem que ler muito? – perguntei. – Não. Na hora que tá escrevendo, aparece. 72
As regras são poucas, mas tem uma que ele destaca. “Não pode maltratar ninguém no folheto. Além disso, o cabra tem que ter um bom sentido que agrade o povo”. Na xilogravura, Dila descreve: “Depois que compro a madeira e deixo ela na medida, penso no desenho. No que penso, chega. Aí vou cortando”. O segredo só pode estar neste “pensar”. Ainda mais na xilogravura, onde se pensa ao contrário. O talhado é justamente onde não terá cor e o que é direito vira esquerdo, no espelhar da madeira para o papel. Ora num realismo fantástico, ora num mergulho interior, ora num voo pra fora. Dila é gênio e, como os gênios, é do passado e do futuro. Conta que é filho do cangaço, ao mesmo tempo em que tem origem cigana, holandesa e norte-americana. No Recife ele não mora, porque lá sua pressão sobe. E o cordel, para ele, vem de um povo antigo, que só tinha três dedos em cada mão e em cada pé. Quando a lua, antes desenhada, já estava toda talhada na madeira, Dila me explicou por que Matusalém viveu 900 anos: Deus passava todo dia na casa dele, que era uma pedra numa altura medonha. E na sombra daquela pedra, ele desviava do sol. Aí toda vez que Deus passava, dizia: - Ô, Matusalém, faz uma casa. - Que casa que nada – respondia.
XILO FEITA POR DILA
E assim viveu 900 anos.“É que Deus esperava que ele ajeitasse a casa dele. E ele nunca fez”. Essa lenda é muito Mestre Dila, numa busca por uma vida longa e simples. “Quero viver até os 120 anos. Mais do que meu pai, que viveu 115” (ele hoje tem 75). Não por acaso, é ele o mesmo que não entende por que ganhou o título de Patrimônio Vivo de Pernambuco. “Por merecimento é que não foi”, diz sério. E surpreende mais uma vez. (a hora da despedida coincidiu com a assinatura de Dila na madeira. Letra por letra talhada cuidadosamente ao contrário, numa entrevista que durou o tempo exato de uma obra de arte). 73
VISTA DE CARUARU
UMA CIDADE PARA OUVIR E CANTAR MUNICÍPIO ESTÁ PRESENTE EM MAIS DE MIL LETRAS DE MÚSICA Por JULYA VASCONCELOS fotos RICARDO MOURA
74
O ano é 1953, e Cauby Peixoto grava um 78 RPM com duas músicas. De um lado da pequena bolacha, está “Mulher boato”; do outro, um baião chamado “Caruaru”. A música de Belmiro Barrela na voz de Cauby é a gravação mais antiga sobre a cidade de que se tem notícia. A música foi um grande sucesso nacional, e em 1958 foi regravada por Dalva de Oliveira, no disco “Dalva”. Um pouco mais tarde também por Clóvis Pereira e vários outros intérpretes. Emanuel de Souza Leite, o famoso Dr. Leite, vestido de branco da cabeça aos pés, me mostra o disco. A capa verde musgo meio rasgada me dá a sensação de que o encarte pode se desmanchar entre os meus dedos. O vinil pesado do pequeno 78 RPM impressiona. Um som sujo de vinil começa a sair da radiola, e o baião orquestrado na voz impostada de Cauby tem uma letra romântica, embalada por um coral de vozes femininas. A sala de Dr. Leite é tomada por um clima de baile dos anos 1950, e nosso passeio começa.
“FOI NUM BELO DIA DE VERÃO QUE EU PERDI MEU CORAÇÃO FOI NUMA CIDADE DO SERTÃO QUE GUARDO NA RECORDAÇÃO CARUARU, CARUARU A PRINCESINHA DO NORTE ÉS TU” 75
“Caruaru é uma palavra doce”, diz Dr. Leite, no meio da escada da sua casa, no bairro de Maurício de Nassau. “Ela abre pra poesia, pra literatura, pra música, pra tudo”. Subindo os degraus chegamos a uma varanda grande, com uma vista ampla de Caruaru. Prédios, antenas, construções e uma certa aridez de metrópole… Procuramos um fundo bonito, com aquela ideia romântica da cidade agrestina por detrás, para fazer uma foto do Dr. Leite segurando o vinil de Cauby. Mas Caruaru mudou. Hoje em dia, tem ares de cidade grande, embora conviva ainda com características fortes do interior. Avenidas e bandas de pífano; arranha-céus e mazurca no Alto do Moura; shopping centers e fogueiras de São João. É como se coexistissem diferentes temporalidades no mesmo espaço da pequena cidade grande de mais de 300 mil habitantes. Dr. Leite é um dos fundadores da Academia Caruaruense de Letras, um pensador de projetos de resgate da memória da cidade. “Caruaru não tem sua história contada direito, me sinto na obrigação de resgatar”, defende, justificando seu afã de catalogar músicas, fotos, livros e tudo relacionado à cidade.
DR. LEITE
76
Apesar de ter nascido em Capina Grande, ele pensa, age e sente como um homem de Caruaru, profundamente ligado à vida do município. Foi com esse ímpeto que, lá pelos idos dos anos de 1980, Dr. Leite começou um desses projetos, por conta própria, sem qualquer incentivo: catalogar todas as músicas que falam de Caruaru.
DE TUDO O QUE HÁ NO MUNDO LÁ TEM
Muita gente já ouviu, quase todo nordestino sabe de cor. Se há uma música que é o grande clássico da cidade, ela é o forró de Onildo Almeida, gravado em 1957 por Luiz Gonzaga. “É o hino de Caruaru! Ela tinha que ser tocada, na minha opinião, feito orquestra sinfônica. Ia ser lindo”, imagina Dr. Leite com um sorriso de quem teve mais uma ideia maravilhosa. Dr. Leite tenta me explicar por que a cidade é fonte de tanta inspiração. Quando começa a responder, seu pensamento chega imediatamente na feira, sem que fique muito claro o que o levou até ali. “A feira é o maior supermercado ao ar livre do matuto do mundo!”, vai contando. Diz que não se sabe muito bem se primeiro veio a feira ou a cidade. E depois vai tentando falar sobre essa mistura toda, cuja maior alegoria é a própria feira, que faz de Caruaru uma cidade tão inspiradora, tão evocada e cantada no Brasil inteiro. “De tudo o que há no mundo” Caruaru tem. “É muita cultura. Bacamarteiro, pé-de-serra, repentista, coco, feira, comida gigante, turista alemão conversando com matuto, fumando um cigarro de pacaia bem vagabundo”, define Dr. Leite. Em seguida, ele se lembra da música “Capital do Agreste”, também de Onildo Almeida gravada por Gonzagão. A canção é um verdadeiro resgate histórico, cheio de paixão:
“DA FAZENDA CURURU, POVOADO SE TORNOU FOI CRESCENDO, FOI CRESCENDO E A VILA LOGO CHEGOU JOÃO VIEIRA DE MELO, CORONEL CABRA DA PESTE DA VILA FEZ A CIDADE, HOJE CAPITAL DO AGRESTE Ó CIDADE ENCANTADORA, TERRA DO MAJOR DANDINHO NECO PORTO, JOÃO GUILHERME, DO SAUDOSO VIGARINHO O PROGRESSO FOI TÃO GRANDE, TUDO, TUDO EVOLUIU TENS ESCOLAS, TENS ABRIGOS, TAMBÉM HOSPITAL INFANTIL AS IGREJAS SÃO TÃO LINDAS, HABITANTES MAIS DE CEM MIL PEDAÇO DE PERNAMBUCO, ORGULHO DO MEU BRASIL”. 77
OS BEATLES DE CARUARU E AS ZABUMBAS, TANTÃS E PANDEIROS DO RIO DE JANEIRO
“E aqui a gente tem os Beatles. Sabe os Beatles? Acho que você não conhece não, não é da sua época”, diz Dr. Leite enquanto esboça um sorriso. Os Beatles de Caruaru é a banda de pífano. A música “Forrozear”, de Gilberto Gil, é que começou com essa história de comparar os quintetos. “No apertar da hora/ Periferia de Caruaru/ Onde moravam os Beatles/ Os Beatles de Caruaru/ Sebastião Biano/ Banda de Pífano agreste azul”. A Banda de Pífanos canta e é cantada na pequena amostra de músicas que Dr. Leite me mostrou. Nascida em 1924, é um dos grandes símbolos da cidade. Até no Rio de Janeiro, no meio da avenida, em ritmo de samba enredo, Caruaru já foi cantada. O samba “Terra de Caruaru”, de Jamelão, fez a Estácio de Sá campeã do Carnaval carioca de 1970:
“EM PERNAMBUCO, NA TERRA DE CARUARU BERÇO DE TANTAS TRADIÇÕES DO FREVO E MARACATU OS VIOLEIROS, CANCIONEIROS ZABUMBAS, TANTÃS E PANDEIROS UMA CANÇÃO E SANFONEIROS PREGOEIROS NA FEIRA VIAJANTES CAIXEIROS NEGROS TRABALHAVAM NA COLHEITA DO ALGODÃO FILHOS DE PIONEIROS ESTUDAVAM PARA O PROGRESSO DA NAÇÃO NA CASA GRANDE DA FAZENDA IGREJA DA CONCEIÇÃO”,
Canta Jamelão com a voz grave de puxador de samba 78
BANDA DE PÍFANOS NO BARRO
CIDADE RECORDE
Gilberto Gil, Arnaud Rodrigues, Jamelão, Cauby Peixoto, Dalva de Oliveira, Elba Ramalho, Luiz Gonzaga, Geraldo Azevedo, Azulão, Quinteto Violado, Capiba, além de um sem número de bandas de forró, xote, baião e toda sorte de ritmos cantam a capital do Agreste pernambucano. Vitalino, a banda de pífanos, a feira, o antigo Night Club, o forró, a própria cidade e, sobretudo, o São João são temas mencionados no repertório sobre Caruaru. Dr. Leite tem quase 30 pessoas trabalhando com ele. Vendedores de discos antigos espalhados pelo Nordeste, que ele chama carinhosamente de pesquisadores. Me mostrou vários CDs marcados com caneta, apontando para as músicas que falam de Caruaru. “Não para de chegar música, acho que vamos passar as 1.500”, me revela. “Nós vamos entrar pro livro dos recordes internacional. Provavelmente, terão que abrir uma nova categoria pra gente”, diz Dr. Leite, sem disfarçar certo orgulho e empolgação. Rio de Janeiro, Recife, Salvador, Nova Iorque? “Ninguém bate o nosso recorde, não”. E coloca por último a música de que mais gosta, “Caruaru, azul palavra”, que escuta repetidas vezes. Pra Dr. Leite, Caruaru é doce, azul e cheia de memória. 79
UMA DAS MERCEARIAS DA FEIRA DE CARUARU
A FEIRA QUE FEZ NASCER UMA CIDADE CONHEÇA UM POUCO DO COTIDIANO DESTE ESPAÇO DE VIVÊNCIA DA CULTURA E ARTE DE CARUARU QUE CONTINUA ATRAINDO OLHARES ENCANTADOS Por RAQUEL HOLANDA fotos ROBERTA GUIMARÃES
80
A data precisa de sua primeira formação é algo ainda incerto (por volta da segunda metade do século 18), mas sua dimensão é indiscutível. A tradicional Feira de Caruaru, hoje situada no Parque 18 de Maio, faz parte da história da cidade e se torna um lugar à parte para muitos caruaruenses e visitantes. Era manhã de uma quarta-feira quando a equipe do FPNC.org foi acompanhar de perto a vida própria deste espaço pela primeira vez. Em meio aos seus 40 mil metros quadrados, com barracas dos mais diversos produtos culturais, encontramos um grupo de cerca de cem crianças de uma escola municipal. Elas visitavam a feira para conhecer um pouco mais sobre a cultura e a história de Caruaru. Uma das professoras que acompanhava a trupe era Poliana de Lurdes, que contou sobre como a aulapasseio serve “para eles (os alunos) conhecerem sua própria cultura, o artesanato, como iniciou a produção em barro com Mestre Vitalino, os vários artesãos da cidade e suas maneiras diferentes de fazer arte”. Envolvidos neste clima, os alunos passeavam pela feira cantando a famosa música de Onildo Almeida:
FEIRA DE CARUARU
“A FEIRA DE CARUARU, FAZ GOSTO A GENTE VÊ. DE TUDO QUE HÁ NO MUNDO, NELA TEM PRA VENDÊ, NA FEIRA DE CARUARU. TEM MASSA DE MANDIOCA, BATATA ASSADA, TEM OVO CRU, BANANA, LARANJA, MANGA, BATATA, DOCE, QUEIJO E CAJU, CENOURA, JABUTICABA, GUINÉ, GALINHA, PATO E PERU, TEM BODE, CARNEIRO, PORCO, SE DUVIDÁ INTÉ CURURU” 81
FEIRA DE CARUARU
NA FEIRA DE CARUARU
Enquanto uns vão à feira para passear e conhecer um pouco do artesanato, culinária e cultura da região, outros recorrem a ela para comprar desde acessórios para cozinha até adereços. “Sempre venho ao mercado à procura de coisas para casa, para o jardim, adoro vir para feira. Mas confesso que ando evitando, porque aqui é um local de garimpo e sempre fico muito tempo, seja pela manhã ou a tarde toda olhando e olhando”, contou a oficial de justiça Patrícia Souza, que estava na feira à procura de adereços para a filha, que iria participar de uma apresentação na escola. O prazer de estar na feira é algo comum, principalmente entre os artesãos e feirantes. Proprietário de uma barraca há 15 anos, Roberto José recebe os clientes enquanto esculpe seus peões e peças talhadas. Segundo ele, a relação de proximidade entre seu labor e seus clientes é o que torna o dia mais prazeroso. “Eu gosto de trabalhar na feira, porque gosto de negociar, acho fácil. E foi com essa conversa aqui e ali que consegui ter clientes em Maceió, João Pessoa e Natal”, falou o artesão. Assim como Roberto José, outros artesãos fazem de suas barracas verdadeiros ateliês dentro da Feira de Caruru. Para Joseildo da Silva, da Jo Art’s, o trabalho em artesanato é feito como terapia e forma de sobrevivência. “Vivo da arte há 26 anos, transformo tudo aquilo que a natureza joga fora em arte”, comentou Joseildo, autor de objetos com palha de coco, corda, agave, cabaças, capemba de coco, cipó, madeiras recicláveis e bambu.
82
APRENDENDO COM A FEIRA
Entre as barracas de artesanato, encontramos o poeta cordelista José Severino Cristovão, de 75 anos, que recitava alguns cordéis para os visitantes de seu estande. “Todos os dias venho pra cá para fazer poesia. Há 65 anos trabalho aqui e acompanhei parte das mudanças da feira”, contou Severino, referindo-se à mudança da feira do Centro para o Parque 18 de Maio em 1992. Para o poeta, Caruaru cresceu a partir da feira.
UM MUNDO DE TROCAS
Desde a época medieval, a feira é um local de encontro de produtores, comerciantes e compradores para negociação de produtos. A dos caruaruenses teve início da mesma forma, na então Fazenda Caruaru. Desde então, já se passaram mais de cem anos. A cidade cresceu, os vilarejos em torno se emanciparam, mas, mesmo assim, a Feira de Caruaru continua a atrair olhares dos que moram fora e viajam para comprar na maior feira livre do País. “Todos os sábados eu saio de Sairé para fazer as compras de verduras e frutas aqui”, contou Inácio Santos, que, mesmo com 77 anos, consegue ter disposição para a jornada semanal. Outra que não troca a facilidade dos supermercados pela possibilidade comprar produtos frescos é Sílvia Matias, dona de casa, que sai com seu carrinho de barraca em barraca atrás de verduras verdinhas e com um preço mais barato. Nerilda Cavalcante também concorda: “Eu gosto de pechinchar e andar pelas barracas para comprar um produto com um preço mais em conta e escolher produtos fresquinhos”. Maria dos Anjos é proprietária de uma barraca de verduras há 48 anos e conta que seu trabalho se transformou num espaço de amizade. “Eu gosto de trabalhar na feira, de ficar conversando com as pessoas que passam pela minha barraca, muitos clientes viraram amigos”, disse a feirante enquanto atendia Zé Tito. Esse senhor de 84 anos percorre os becos e as ruelas da Feira de Caruaru desde pequeno. “Minha mulher tem 82 anos e prefere ficar em casa, por isso eu venho fazer as compras. Ela não gosta da feira. Já eu adoro”, comentou. A importância da Feira de Caruaru para a cidade e o estado ultrapassa o reconhecimento popular. Em 2007, o espaço recebeu o título de Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Iphan. A proteção considera todo o seu complexo: um conjunto de feiras como a do gado, do artesanato, o Museu do Cordel, mercados de carne e da farinha, além, claro, da feira livre com todas as suas subdivisões. 83
SERTÃO CENTRAL Em mais uma edição, o Festival Pernambuco Nação Cultural incorporou as comemorações da Cavalgada à Pedra do Reino. A festa de mouros e cristãos é realizada anualmente no último fim de semana de maio, é uma homenagem às tradições ibéricas e busca inspiração na temática das cavalhadas e no mito do sebastianismo. Ícone da cultura popular, Mestre Jaime é um dos maiores representantes da cidade de Salgueiro. É ele o criador do bloco de Carnaval A Bicharada, composto por diversas fantasias de animais. Há mais de 60 anos nas ruas, o bloco conta com 100 bonecos gigantes de bichos e um menestrel que parece saído da ficção. Perto dos 90, Mestre Jaime cativa com seu terno roxo, colete, gravata, cartola e todos os dentes dourados. 84
Da esquerda para direita: Encontro de Bandas Filarmônicas (Banda Filarmônica São José) | Foto Costa Neto • Quinteto Violado | Foto Costa Neto • Encontro de Bandas Filarmônicas (Banda Filarmônica José de Carvalho Campos) | Foto Costa Neto Apresentação do São Gonçalo Mãe e Filhos - Quilombo Araça - Mirandiba - em Conceição das Crioulas | Ricardo Moura • Trupe do Patrimônio | Foto Clara Gouvêa
Da esquerda para direita: Show de Santana, no Palco Espaço Cultural Belo Monte • Show de Pedro Carvalho, no Palco Espaço Cultural Belo Monte | | Fotos Ricardo Moura
No Sertão Central, as manifestações cultura popular se apresentam também em forma de mazurca (Verdejante), são Gonçalo (Verdejante) e reisado (São José do Belmonte). Na medicina popular benzedeiras, rezadeiras e parteiras ainda estão bem vivas e atuantes. O FPNC chegou à São José do Belmonte, Salgueiro e outras seis cidades entre os dias 22 e 27 de maio de 2012. A reportagem se aproximou da realidade desta região através de sua festa tradicional e de outras histórias daquela terra.
O REINO ENCANTADO DE SÃO JOSÉ DO BELMONTE CONTOS DE FÉ E AMOR PELA CIDADE MARCAM OS FESTEJOS DA PEDRA DO REINO Por JULYA VASCONCELOS fotos ROBERTA GUIMARÃES
A viagem de quase seis horas do Recife até São José do Belmonte, no Sertão Central pernambucano, parece valer a pena logo na entrada do município. Uma sensação de que a cidade inteira se preparou para receber os visitantes, enfeitou-se toda com bandeiras azuis e vermelhas, com meias-luas, estrelas e outros ícones armoriais que marcam os festejos da tradicional Cavalgada à Pedra do Reino. 85
A festa de mouros e cristãos, realizada anualmente no último fim de semana de maio, é uma homenagem às tradições ibéricas e busca inspiração na temática das cavalhadas. Especialmente na lenda “Carlos Magno e os 12 pares da França” – bastante propagada nos cordéis nordestinos – e no sebastianismo, que dá conta de que em 1578, Dom Sebastião, então rei de Portugal, montado no seu cavalo branco, empreendeu uma cruzada com um numeroso exército de soldados cristãos para recuperar os territórios portugueses do norte da África, ocupados pelos mouros. Desaparecido misteriosamente na batalha de Alcácer-Quibir, no Marrocos, Dom Sebastião foi dado como morto, mas espalhou-se pelo mundo a expectativa por seu retorno. A crença na volta do rei teve muitos seguidores em Portugal e no Brasil, principalmente no Nordeste. Um desses movimentos aconteceu exatamente na Serra do Catolé, em Belmonte, no ano de 1838. Era o Reino Encantado da Pedra Bonita, que pregava o retorno do rei mediante o sacrifício da lavagem da pedra com o sangue dos fanáticos. É esse episódio sangrento que é relembrado com festa, envolvendo toda a população local. É neste período que Belmonte acolhe e se deixa ocupar por centenas de vaqueiros, aboiadores e amantes de cavalgadas que chegam à cidade para celebrar a história e a cultura sertaneja. 86
FESTA DO AZUL E DO ENCARNADO
Ao som da filarmônica de São José e da banda de pífanos do mestre Ulisses, os cavaleiros do azul (cristãos) e do encarnado (mouros) ganharam as ruas da cidade na tarde do sábado (26/5) e realizaram a 16ª Cavalhada Zeca Miron. O evento leva o nome do vaqueiro que o criou e é uma realização da Associação Cultural Pedra do Reino. Em mais uma edição, a manifestação foi incorporada à programação do Festival Pernambuco Nação Cultural no Sertão Central. Ao perceber a passagem dos cavaleiros, Dona Maria Elande adiou o trabalho doméstico e parou para admirar o desfile que definiu como “o negócio mais bonito que Belmonte tem pra mostrar”. E é bonito mesmo. Quase tão bonito quanto o sentimento que enche de lágrimas os olhos do porta-estandarte da Cavalhada, o vaqueiro Abílio Miron. Filho de Zeca Miron, falecido há 10 anos, Abílio sente ao mesmo tempo o peso e a leveza de carregar uma vez por ano o ícone da bela tradição cultural que seu pai ajudou a criar em Belmonte. “Sinto uma saudade grande, meu filho. Desde criança eu ia pro mato com ele e a gente dormia lá na pedra (do reino). A gente levava queijo, carne, rapadura e passava de dois a três dias por lá. Então, hoje a alegria é demais. Se eu pudesse, eu tava aqui com ele, mas eu não posso disputar com Deus, não é verdade?”, conforma-se Abílio. Logo após o estandarte, animando o público e arengando com as crianças, vai o Quaderna, personagem quase rei, quase palhaço de Suassuna no “Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta”. Cavaleiros mirins mascarados também marcham convidando a população a participar da disputa entre mouros e cristãos que está prestes a acontecer. 87
Já no estádio Carvalhão, os 12 cavaleiros montados de azul e encarnado dão início à competição onde se consagra vencedor o grupo que conseguir, enquanto corre, alcançar o maior número de argolas e realizar, com sucesso, a passagem das lanças por cima do portal adversário. É também uma festa de boas-vindas aos visitantes. Muitos são filhos de Belmonte espalhados por todo o Brasil que aproveitam os festejos para voltar à terra natal, rever os seus e manter viva a tradição. É o caso de João Lopes Barros, que mesmo morando no Rio de Janeiro há 17 anos, não perde uma edição do folguedo: “Conseguimos organizar um grupo de 22 pessoas desta vez. Trocamos o Natal pela Cavalgada, é nessa época que gostamos de estar aqui, de encontrar os familiares”, comenta. A filha de João, Ana Carolina Barros, tem 16 anos e foi escolhida rainha da 20º Cavalgada, uma responsabilidade e tanto para a jovem que, apesar de não ter crescido no município, compreende o significado da homenagem: “Fico feliz porque sei que é uma forma de lembrar a contribuição da minha família à cultura aqui da cidade”, comenta Ana, sobrinha-neta da professora Elza Barros, reconhecida por seu empenho em consolidar o ensino médio em Belmonte.
ALVORADA E BENÇÃO PARA A CAVALGADA
O domingo nem tinha amanhecido quando os primeiros vaqueiros começaram a se organizar em frente à Igreja Matriz para receber a benção do padre Valme. Todo último domingo de maio é assim. Sem ela, ninguém sobe tranquilo a Serra do Catolé, ninguém cavalga em festa até a Pedra do Reino. E esse foi o programa imperdível do domingo (27/5) em Belmonte. Pontualmente, às cinco horas da manhã, começou a ecoar pelas ruas o som bonito dos pífanos da banda do mestre Ulisses. Era mais cedo ainda quando o Coral de Aboios de Serrita pegou a estrada para também participar da benção em Belmonte, recepcionar os vaqueiros, emocioná-los ao entoar A Morte do Vaqueiro. 88
Marquinhos Mariano chegou atrasado e por pouco não ouviu o grupo de aboiadores, mas logo achou um lugar entre os quase cem cavaleiros concentrados em frente à igreja. Entre um e outro ajuste na sela, me contou que já há 20 anos participa da Cavalgada: “Venho desde o começo, nos últimos quatro anos não pude ir cavalgando, mas fui de carro pra não perder a festa”. Para quem, como eu, nunca tinha visto a concentração da famosa cavalgada, foi uma surpresa perceber a quantidade de crianças e mulheres que também participam. Jaciara da Silva, por exemplo, tem 23 anos e acordou cedo pra realizar pelo décimo ano o percurso. “Meu pai que me trouxe pela primeira vez. Corro em vaquejada também, é uma das coisas que mais gosto de fazer”, revelou. Para ela, nem é o forró que vai ouvir quando chegar à Pedra que mais a motiva, “é o caminho mesmo, a animação da cavalgada em si”. Antes de ser transferido para Belmonte, há apenas três anos, padre Valme Andrade desconhecia o enredo místico que caracteriza os festejos no município. “Tive que conversar bastante com as pessoas daqui, ler muito, conhecer a história por trás da manifestação cultural”, contou o vigário. A pesquisa foi importante para que o guia religioso da cidade compreendesse também o seu papel nesta tradição: “Hoje percebo que este é um momento de celebrarmos a vida, não de lembrarmos apenas de quantos morreram na Pedra do Reino. Por isso pedimos a Deus que ilumine os caminhos dos vaqueiros, que cavalguem mais confiantes e retornem em paz”. Do centro de Belmonte até a Pedra do Reino, os participantes enfrentam um percurso de 27 quilômetros sob o sol do sertão. Nas duas paradas que fazem antes de chegarem ao destino há música, churrasco, bebidas e sorteio de brindes. No palco montado na Pedra do Reino, o forró encerra a festa que mantém iluminada a história do povo belmontense. 89
DE DENTRO DA MEMÓRIA PARA DENTRO DA CÂMERA Por JULYA VASCONCELOS fotos ROBERTA GUIMARÃES
Ouvir as pessoas e transformar aquilo que estava guardado e empoeirado apenas dentro das memórias pessoais em documento. É isso o que o projeto PE na Memória pretende fazer. Ao longo de todos os Festivais Pernambuco Nação Cultural, uma equipe percorre casas, praças, igrejas, mercados e toda sorte de lugares que possam ter alguém para falar sobre a cidade. Idealizado pela Diretoria de Preservação e Patrimônio Cultural da Fundarpe, o projeto vai reunir, em um produto final, uma amostra da história de Pernambuco, contada, como que num grande mosaico, por seus próprios habitantes. Em Verdejante (Sertão Central), Seu Mariano, Antenor e Paulo Cabeleireiro falaram para a câmera do PE na Memória, reunidos na budega de Seu Mariano. Conheça aqui um pouco da história de cada um deles. 90
SEU MARIANO DO BALCÃO DA SUA BUDEGA EM VERDEJANTE
SEU MARIANO DO “AIO” E A VACA DE ÓCULOS VERDES “Brigado, Dimas. Deus te ajude e Deus te abençoe, que nunca falte”. Dimas senta na cadeira com um garrafa de cerveja gelada que acaba de pegar na geladeira vermelha e pagar ao Seu Mariano, mais conhecido no município de Verdejante como Mariano do “Aio”, porque vende tempero, cebola e, obviamente, “aio”, na sua budega desde 1991. Do lado direito do estabelecimento, por detrás do balcão, várias prateleiras compõem uma “parede” de cajuínas São Geraldo, vindas diretamente do Ceará. Do lado oposto, apenas cachaça Pitú, que, segundo seu Mariano, é o que mais vende ali. Cordões grossos e redinhas amarelas de guardar frutas e verduras pendem da parede do estabelecimento. 91
Nascido em 20 de abril de 1936, Mariano José da Silva conta que era agricultor e plantava milho, feijão, algodão e cebola no sítio Oiticica, a 4km dali, onde nasceu e mora até hoje. E diz que se lembra da cidade bem antiga, “sem nenhuma pedra de calçamento”. “E hoje, na idade alta que já estou, já vi muita coisa boa e já vi muita coisa ruim. Agora vejo a cidade toda organizada, toda bem calçada. Quando chovia descia água desse lado, descia do outro, toda nas valetas. Quase três rios desciam por aqui”, conta relembrando o seu município antes da urbanização. Mas Seu Mariano se revela mesmo quando pedem pra ele contar uma história da cidade: “História assim eu não sei, não, mas história de anedota eu sei um monte”. O senhor forte, de pele clara e chapéu preto, tem um caderno com os títulos de mais de 60 histórias. Uma delas é a da vaca de óculos verdes, que narra os estudos de Seu Mariano para criar umas lentes que fizessem com que todas as vacas enxergassem tudo em volta verdinho, mesmo durante a seca. “Foi na seca de 2002 a 2003, aí acabou toda a palha verde, toda a verdura, não tinha o que o gado comer. Com os óculos, tudo o que a vaca olhava na terra era verdinho, e podia ser a folha que fosse no chão que ela via verde”. Seu Mariano diz que enquanto está contando as história se esquece de tudo, dos problemas da seca, de falar da vida dos outros. Começou a contar em 1960, quando houve uma seca violenta. “No ano seco, é preciso muita viração pra um pai de família. Ele tem que ser caçador, trabalhador e vivedor. É muito difícil”. E assim começou a criar suas ficções, pra distrair a si e aos outros. 92
O SALÃO DE PAULO CABELEIREIRO
PAULO CABELEIREIRO E VERDEJANTE EM TORNO DA SANTA Perto da budega de Mariano do “aio”, tem o salão de Paulo Pereira. Visto assim de avental, tesoura em punho, concentrado aparando os cabelos dos homens de Verdejante, ninguém diz que Paulo é poeta com três livros escritos. Além disso, o cabeleireiro-escritor sabe muito sobre a rota do cangaço e a missa do vaqueiro. Tem um longo poema que conta a história de como o Coronel de Verdejante, Davi Jacinto, foi sequestrado por Lampião, em maio de 1926:
“EM 9 DE MAIO DE 26 POR AQUI PASSOU LAMPIÃO COM CERCA DE 100 BANDOLEIROS QUE FAZIAM SUA PROTEÇÃO PREFERIA OS FAZENDEIROS ATRÁS DE ÁGUA E DINHEIRO ALIMENTO E MUNIÇÃO” “Antes Verdejante era só mato”, conta. E diz que por volta de 1917, Padre Manoel Firmino, por conta da devoção de Dona Joaninha, esposa de Davi Jacinto, à Nossa Senhora da Conceição, deu a ideia de construir uma capela. E a partir daí “foram fazendo uma casa, outra, e mais outra, até que foi nascendo a vila, o distrito, a cidade”, tudo em torno da devoção à santa, que também é a padroeira dos vaqueiros. 93
A PRESSA DE UM MAZURQUEIRO Seu Antenor está apressado. Precisa sair pra ensaiar com a mazurca que se apresenta no dia seguinte, ali mesmo em Verdejante, no festival. Dá um depoimento rápido, dois minutos, e sai como um raio da budega de Seu Mariano, para viver a tradição em vez de contá-la. Mas antes da fuga, diz que quando era jovem todo mundo dançava mazurca, e que hoje em dia ninguém sabe o que é. “Aí agora, depois de velho, o pessoal pede pro sanfoneiro tocar mazurca e aí a gente dança”, conta e sai se despedindo, tirando as cadeiras do caminho até alcançar a Rua José Matias Magalhães. 94
95
OFICINA DE MARACATU DE BAQUE VIRADO foto CLARA GOUVÊA
Edição Olívia Mindêlo e Chico Ludermir Textos Chico Ludermir, Julya Vasconcelos, Raquel de Holanda e Tiago Montenegro Fotos Costa Neto, Ricardo Moura, Clara Gouvêa, Chico Ludermir, Daniela Nader, Roberta Guimarães e João Rogério. Designer gráfico Adeildo Leite Colaboração Michelle Assumpção, Gilberto Tenório, Mariana Melo, Gabriela Valadares, Fernanda Cristina e Alexandre Majero.
EXPEDIENTE Governador Vice-governador Secretário Casa Civil
Eduardo Campos João Lyra Neto Marcelo Canuto SECRETARIA DE CULTURA
Secretário Secretário Executivo Diretores Executivos Coordenador de Articulação Institucional Diretor de Formação Coordenador de Economia Criativa Diretor de Gestão Diretora de Planejamento Diretor de Políticas Culturais Coordenadora de Artes Cênicas Assessora de Artes Circenses Assessora de Dança Coordenador de Artes Visuais Assessora de Design e Moda Assessor de Fotografia Coordenadora de Audiovisual Coordenadora de Cultura Popular Assessor de Artesanato Coordenador de Literatura Coordenador de Música Coordenadora para Populações Rurais e Povos Tradicionais Coordenador do Festival Pernambuco Nação Cultural Gestoras de Comunicação
Fernando Duarte Beto Silva Vinícius Carvalho e Beto Rezende Claudemir Souza Félix Aureliano Luciano Gonçalo José Mário Duarte Coelho Amara Cunha Carlos Carvalho Tereza Amaral Aronildes Gomes Marília Rameh Félix Farfan Cecília Pessoa Jarbas Araújo Carla Francine Alexandra Lima Breno Nascimento Wellington de Melo Rafael Cortes Erika Nascimento Leo Antunes Michelle Assumpção e Olívia Mindêlo FUNDAÇÃO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO DE PERNAMBUCO (FUNDARPE)
Presidente Diretora de Gestão Diretor de Gestão do Funcultura Diretor de Gestão de Equipamentos Culturais Diretora de Preservação Cultural Diretor de Produção
Severino Pessoa Sandra Simone dos Santos Bruno Emanuel Soares de Lima Célio Pontes Célia Campos Fernando Augusto