Patrimônios
de Pernambuco 2ª EDIÇÃO REVISADA E AMPLIADA
Recife Fundarpe 2014
Copyright © Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco 1ª Edição:
Governo do Estado de Pernambuco Governador | João Lyra Neto
Coordenação editorial: Maria Acselrad Supervisão: Eduardo Sarmento
Secretaria de Cultura Secretário | Marcelo Canuto Mendes Diretor de Gestão | Maria de Lourdes Mergulhão Nunes Diretor de Políticas Culturais | André Brasileiro Diretor de Projetos Especiais | Félix Farfan Gestores de Comunicação | Michelle de Assunção e Tiago Montenegro
2ª Edição: Coordenação editorial: Jaqueline de Oliveira e Silva Supervisão: Janine P.C. Meneses Assistência: Gabriel Navarro de Barros Pesquisa e textos: Maria Alice Amorim
Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico
Fotografia: Aguinaldo Leonel,
de Pernambuco (Fundarpe) Presidente | Severino Pessoa dos Santos Diretora de Gestão | Sandra Simone dos Santos Bruno Diretor de Gestão do Funcultura | Thiago Rocha Leandro Diretor de Gestão de Equipamentos Culturais | Ascendina A. da Lapa Cyreno Diretora de Preservação e Patrimônio Cultural | Celia Campos Diretor de Produção | Luiz Cleodon Valença de Melo
Clara Gouvêa, Costa Neto, Cristiana Dias, Daniela Nader, Edmar Melo, Eric Gomes, Flávio Barbosa, Luca Barreto, Marcelo Lyra, Mateus Sá, Passarinho, Priscilla Buhr, Renato Spencer, Ricardo Moura, Roberta Guimarães, Rodrigo Ramos, Lívia Froes, Luiz Henrique Santos e Jaqueline Silva Projeto cartográfico: Luís Bulcão Projeto gráfico: Gilmar Rodrigues Diagramação: Flávio Barbosa da Silva Revisão: Maria Helena Pôrto Impressão: Companhia Editora de Pernambuco - Cepe
A981p Amorim, Maria Alice. Patrimônios Vivos de Pernambuco /Amorim, Maria Alice; 2. ed. rev. e ampl. Recife: FUNDARPE, 2014. 176 p.: il. ISBN 978-85-7240-093-0 1. Patrimônios vivos – Pernambuco. 2. Patrimônio imaterial. 3. Salvaguarda. I. Amorim, Maria Alice. II. FUNDARPE. III. Título. CDD 363.69
NOTA À SEGUNDA EDIÇÃO · 7 TEXTO INSTITUCIONAL · 9 Marcelo Canuto e Severino Pessoa
2005
BANDA MUSICAL CURICA · 23 CAMARÃO · 27 DILA · 31 J. BORGES · 35 LIA DE ITAMARACÁ · 39 MANUEL EUDÓCIO · 43 MARACATU LEÃO COROADO · 47 ZÉ DO CARMO · 51
2006
HOMEM DA MEIA-NOITE · 55 ÍNDIA MORENA · 59 JOSÉ COSTA LEITE · 63
2007
CONFRARIA DO ROSÁRIO · 67 ZEZINHO DE TRACUNHAÉM · 71
2008
CABOCLINHO SETE FLEXAS · 75 SELMA DO COCO · 79 TEATRO EXPERIMENTAL DE ARTE · 83
2009
CLUBE INDÍGENA CANINDÉ · 87 MARACATU ESTRELA BRILHANTE DE IGARASSU · 91 MAESTRO NUNES · 95
2010
CAPA-BODE - EUTERPINA JUVENIL NAZARENA · 99 DIDI DO PAGODE · 103 MAESTRO DUDA · 107
2011
MARIA AMÉLIA · 111 MESTRE GALO PRETO · 115 MARACATU ESTRELA DE OURO DE ALIANÇA · 119
2012
ASSOCIAÇÃO MUSICAL EUTERPINA DE TIMBAÚBA · 123
2013
BANDA REVOLTOSA · 127 LULA VASSOUREIRO · 131 MAESTRO FORMIGA · 135
TEXTO INSTITUCIONAL · 10 Luciana Azevedo VIVA OS PATRIMÔNIOS VIVOS!
10 ANOS DE APLICAÇÃO DA LEI DE REGISTRO · 12
Jaqueline Silva e Gabriel Navarro PATRIMÔNIO VIVO EM CONTEXTO · 17 Maria Acselrad CARTOGRAMA DE MESTRES E GRUPOS · 20
PATRIMÔNIOS VIVOS IN MEMORIAM · 139
REFERÊNCIAS · 170
2005
ANA DAS CARRANCAS · 141 CANHOTO DA PARAÍBA · 145 MESTRE SALUSTIANO · 149 MESTRE NUCA · 153
2007
FERNANDO SPENCER · 157
2012
ARLINDO DOS 8 BAIXOS · 161 JOÃO SILVA · 165
Nota à Segunda Edição Na presente obra Patrimônios Vivos de Pernambuco, 2ª Edição Revisada e Ampliada, a autora, Maria Alice Amorim, nos contempla com as histórias dos vinte e nove Patrimônios Vivos eleitos até 2013, acrescidos de outros sete textos sobre os patrimônios in memoriam. Dentre estes, contamos com os vinte e quatro textos da primeira edição e mais doze textos inéditos. Às fotografias originais, foram acrescentadas imagens de autoria do fotógrafo Costa Neto e do acervo de documentação da Fundarpe.
07
O
Registro de Patrimônio Vivo de Pernambuco tem como
instituição, em 2 de maio de 2002, pela Lei Estadual nº
missão reconhecer, valorizar e apoiar mestres e grupos
12.196 e regulamentada pelo Decreto nº 27.503, de 27 de
que detenham os conhecimentos ou as técnicas necessárias
dezembro de 2004, do Registro do Patrimônio Vivo de
para a produção e a preservação de aspectos da cultura
Pernambuco – RPV-PE. Em 2014 teremos a 10ª edição do
tradicional ou popular (formas de expressão, saberes, ofícios e
concurso, com a escolha de mais três novos patrimônios
modos de fazer). A transmissão desses conhecimentos,
pelo Conselho Estadual de Cultura.
valores, técnicas e habilidades possibilita o reconhecimento, acesso, difusão e fruição dos diversos bens, memórias,
Atualmente, estão registrados vinte e nove Patrimônios Vivos
saberes e histórias presentes nas culturas populares.
(além dos sete falecidos, em caráter in memoriam). São pessoas e grupos situados na Região Metropolitana, na Zona
O Governo do Estado, através da Secretaria de Cultura e da
da Mata, no Agreste e no Sertão. Entre eles estão
Fundarpe, ciente desta responsabilidade, apresenta a versão
ceramistas, poetas, xilogravuristas, cirandeiras, coquistas,
atualizada e ampliada do livro Patrimônios Vivos de
sanfoneiros, artistas circenses, grupos de teatro, agremiações
Pernambuco. Esta publicação reúne informações históricas e
carnavalescas, bandas de música, maracatus, caboclinhos e
culturais sobre pessoas e grupos registrados como Patrimônio
uma irmandade religiosa.
Vivo de Pernambuco, desde o primeiro ano deste concurso, em 2005. A primeira edição foi escrita em 2009, pela
Agradecemos à sensibilidade da Companhia Editora de
pesquisadora Maria Alice Amorim. De 2010 a 2013, mais
Pernambuco (CEPE), que entendeu a importância do projeto,
doze patrimônios foram eleitos, e ocorreram cinco
possibilitando a impressão deste novo catálogo. Desejamos
falecimentos, o que torna necessariamente importante uma
que esta iniciativa leve cada vez mais longe a história desses
nova edição, no propósito de dar continuidade à valorização e
reconhecidos mestres da cultura pernambucana. Boa leitura.
difusão do Patrimônio Cultural Pernambucano.
Marcelo Canuto Pernambuco está entre os estados pioneiros ao adotar uma legislação própria para reconhecimento dos saberes dos mestres e mestras da cultura popular e tradicional, com a
Secretário de Cultura
Severino Pessoa Presidente da Fundarpe
09
D
ocumentar, através deste livro, a trajetória dos “Patrimônios Vivos de Pernambuco” e, consequentemente, seus múltiplos saberes, histórias e memórias, representa para nós, da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco – Fundarpe –, um momento oportuno de reconhecer, salvaguardar e difundir parte da diversidade cultural que constitui Pernambuco. Mais do que isso, reforça o nosso compromisso em promover e proteger o patrimônio cultural imaterial, contido nas tradições, no folclore, nos saberes, nas línguas, nas festas e em diversas outras manifestações, fortalecendo as “referências culturais” dos grupos sociais em sua heterogeneidade e complexidade. Cientes da importância dessa categoria do patrimônio, temos, nos últimos anos, nos esforçado para criar e consolidar instrumentos e mecanismos, de maneira coletiva e compartilhada, que visam garantir o seu reconhecimento, defesa e, acima de tudo, viabilidade. Assim, no ano de 2002, o Governo do Estado de Pernambuco lançou, de maneira pioneira no Brasil, a “Lei do Registro do Patrimônio Vivo”, possibilitando o reconhecimento e o apoio aos mestres e grupos da cultura popular e tradicional, avançando para uma concepção do patrimônio entendido como “o conjunto dos bens culturais, referente às identidades e memórias coletivas”. Nesse contexto, formas de expressão, saberes, ofícios e modos de fazer ganharam um novo espaço, quanto à apreensão dos seus sentidos e significados. Hoje, nosso desafio é asseverar a inserção dos nossos patrimônios vivos na Política Cultural do Estado, o que temos feito através da realização de oficinas de transmissão de saberes, exposições, apresentações culturais, palestras, entre outras ações, que para nós significa a apropriação simbólica e o uso sustentável dos recursos patrimoniais direcionados à preservação e ao desenvolvimento
10
econômico, social e cultural do Estado. Nessa trajetória, articulamos diversas ações institucionais que possibilitaram investir em atividades como pesquisa, documentação, proteção e promoção desses patrimônios vivos. Portanto, ao dar corpo a testemunhos de pernambucanos e pernambucanas, este trabalho ousa servir como um memorial, um “pergaminho identitário” fundamental para a construção do futuro. Um futuro que começa na percepção do que fomos e de quem somos, possibilitados pela “consciência patrimonial”. Sem dúvida, esta valiosa e inédita publicação é mais um fruto desses desafios! Queremos compartilhar com vocês, leitores – e por que não “patrimônios vivos”? –, um pouco das nossas descobertas e redescobertas. Saibam, desde já, que o livro em mãos é resultado de um trabalho de pesquisa e registro, de um olhar atento e sensível, e incompleto, por essência, pois a cada ano serão incorporados novos patrimônios vivos. Mais do que registrar, portanto, estas linhas e imagens que seguem nos possibilitam mergulhar num mosaico de experiências que marcaram e marcam as vidas de grandes mestres e grupos da cultura popular e tradicional, verdadeiros tesouros vivos, guardiões e sacerdotes de memórias e saberes. Em seus testemunhos, são revelados o simbólico, o imaginário e o real, numa dinâmica objetiva e subjetiva que articula um saber fazer, conhecimentos e empreendimentos sociais desafiadores à nossa maneira de pensar e agir. Um rico universo em que as pessoas se expressam e se relacionam com o mundo; que comunica vida, fatos, pensamentos, sonhos, ideias e sentimentos. Boa leitura!
Luciana Azevedo Diretora-presidente da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco. (Exercício de 2007 a 2010)
15
Viva os Patrimônios Vivos! 10 anos de aplicação da Lei de Registro.
A lei de RPV prevê, além do incentivo financeiro mensal, uma série de outras ações, de forma a potencializar a transmissão
Jaqueline de Oliveira e Silva Gabriel Navarro1
de saberes, o acesso, a fruição e a majoração da visibilidade da instituição, dos mestres e das mestras. Neste intuito, os Patrimônios Vivos de Pernambuco são convidados a participar
Pernambuco é o estado brasileiro precursor em adotar uma
das ações culturais realizadas pela Fundarpe, como o Festival
legislação própria para as ações de reconhecimento e
de Inverno de Garanhuns, os Festivais Pernambuco Nação
valorização dos saberes de mestres e mestras do patrimônio
Cultural e a Semana do Patrimônio, esta última promovida
cultural imaterial. Em 2004, realizou-se a primeira edição do
anualmente pela Diretoria de Preservação Cultural da
concurso, sendo registrados, em 2005, doze patrimônios vivos
Fundarpe. Aqueles que trabalham com artesanato, desfrutam
(referente aos anos de 2002, 2003, 2004 e 2005). O ano de
da possibilidade de comercializar e exibir seus trabalhos no
2014, neste sentido, se consolida como o responsável pela 10ª
Centro de Artesanato de Pernambuco e na Alameda dos
edição do concurso. Atualmente, além de Pernambuco,
Mestres, situada na Feira Nacional de Negócios e Artesanato
2
apenas seis estados brasileiros e sete municípios possuem leis
(Fenearte).
específicas de valorização de seus mestres e mestras da cultura popular tradicional. A nível nacional está em tramitação,
Entretanto, constatamos alguns desafios concernentes à lei,
desde 2010, um projeto de lei que institui a “Politica nacional
relacionados de forma estreita com o contexto sócio cultural
de proteção e fomento aos saberes e fazeres das culturas
do estado. Pernambuco é repleto de expressões culturais
tradicionais de transmissão oral do Brasil”, conhecida como
populares, de forma que a quantidade de “patrimônios vivos
“Lei Griô Nacional”.
no cotidiano da cultura” é consideravelmente maior do que a possibilidade que o Estado possui em registrá-los de acordo com os ditames da Lei do RPV. Um dado significativo é o
12
1 Jaqueline de Oliveira e Silva. Antropóloga pela Universidade Federal de Pernambuco. Gabriel Navarro. Mestrando em História pela Universidade Federal de Pernambuco.
número de inscrições que a Fundarpe vem recebendo desde as
2 Bahia (Lei dos Mestres de Saberes e Fazeres. Lei n° 8.899/2003), Ceará, (Lei dos Mestres/ Tesouros Vivos da Cultura. Lei 13.427/ 2003), Alagoas (Lei do Patrimônio Vivo. N° 6.513/2004), Paraíba (Lei Mestres das Artes Canhoto da Paraíba. Lei n° 7.694/ 2004), Rio Grande do Norte. (Lei do Patrimônio Vivo. Lei n° 9.032/2007) e Piauí (Lei do Patrimônio Vivo. Lei n° 5.816/2008). Os municípios de Cachoeira do Itapemirim, (ES); Irará (BA); Belém (PA), Fortaleza (Ceará), Belo Horizonte (MG), Laranjeiras (SE) e Tracunhaém (PE), também contam com leis próprias de registro e salvaguarda de seus Patrimônios Vivos.
vinte e três reconhecidos como inabilitados sob a justificativa
primeiras edições do Concurso. No ano de 2013 foram setenta e sete instituições, mestras e mestres inscritos, sendo de ausência de documentação. Sendo assim, constatamos ao fim do processo uma média de dezoito candidatos e candidatas para cada uma das três vagas. Porém, tendo em vista o fato de que a política de registro dos Patrimônios Vivos faz parte de uma ação mais ampla de
3
valorização do patrimônio imaterial , considera-se que uma
valorizar a memória do homem. A memória de um
maneira de diminuir esta discrepância é a contemplação de
pode ser a memória de muitos, possibilitando a
uma multiplicidade de expressões culturais, de forma que a
evidência dos fatos coletivos (THOMPSON, 1992: 17)
salvaguarda dos bens imateriais pernambucanos esteja garantida. Dentre os trinte e seis Patrimônios Vivos registrados
Nesta ação nos valemos também do método etnográfico, com
(sendo sete em caráter in memoriam), estão artistas do barro,
o objetivo de compreender as histórias contidas nas falas, nos
cordelistas, instrumentistas, bandas de música, representantes
gestos, na memória, de uma maneira que possibilitou
das artes cênicas, maracatus, caboclinhos, entre outros, de
perceber as condições de saúde, o modo como utilizam os
forma a compor uma pequena amostra da diversidade cultural
recursos provenientes da política, as condições de trabalho em
que caracteriza o estado.
seus estúdios, galpões e ateliês, e ainda acessar percepções dos mesmos acerca das ações de registro e salvaguarda.
No que diz respeito à documentação e ao diagnóstico, ações também previstas na Lei do RPV foram realizadas nos anos de
De maneira geral, a maioria ostenta com muito orgulho o
2013 e 2014, como visitas de acompanhamento nas
título, declarando o sentimento de reconhecimento e respeito
residências dos mestres, mestras e nas instituições. Tendo
aos seus trabalhos e trajetórias. Uma fala bastante significativa
como princípio o fato de que as tradições culturais se
foi feita por Ricardo, filho da artesã Maria Amélia, de 91 anos,
perpetuam em grande parte mediante a tradição oral e a
residente em Tracunhaém e eleita Patrimônio Vivo em 2007.
forma mais profícua de alcançar este conhecimento é através
Em suas palavras:
dos relatos e memórias de seus detentores, nos pautamos na metodologia da história oral, tendo como princípio o fato que
“artesanato em Pernambuco é igual a futebol no Brasil: todo mundo sabe um pouquinho e tem
[...] a história oral pode dar grande contribuição para
muito jogador bom. Mas o Patrimônio Vivo é como
o resgate da memória nacional, mostrando-se um
se fosse a seleção brasileira. Estão lá alguns
método bastante promissor para a realização de
escolhidos para representar a todos”.
pesquisa em diferentes áreas. É preciso preservar a memória física e espacial, como também descobrir e
Luiz Adolpho, presidente do Clube de Alegoria e Crítica Homem da Meia Noite, ressalta: “O Patrimônio Vivo foi um divisor de águas na vida do Homem da Meia Noite. A gente
3 O documento de referência para as ações de reconhecimento e valorização dos saberes de mestres e mestras da cultura popular é o Programa Tesouros Humanos Vivos, aprovado pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciências e Cultura (UNESCO) em 1993, a partir de uma proposta da República da Coréia, notoriamente inspirada na legislação japonesa em vigor desde 1950 (principal referência para a proteção das culturas orais e modos de fazer tradicionais).
dá valor ao prêmio, está na entrada da sede”. Com relação a aplicação do benefício do Patrimônio Vivo, foi possível perceber que grande parte dos mestres e mestras, gozando de saúde e disposição, utilizam os recursos para
13
impulsionar seus trabalhos, estruturando seus ateliês,
envolverem em mais apresentações, de participarem de
comprando equipamentos ou mesmo reformando suas casas.
encontros periódicos com outros Patrimônios Vivos e de
Outros, já em idade avançada, vivenciam problemas de saúde
sentirem, de forma mais acentuada, o crescimento da
que, por vezes, os impossibilitam de dar continuidade às suas
visibilidade de seus trabalhos.
atividades. Assim, a verba a eles destinada passa a se configurar como a principal renda, substituindo aquela que
Destaca-se, portanto, a necessidade de alguns avanços, no
antes era conseguida por meio do trabalho.
sentido de promover uma legítima expansão do alcance das ações do RPV, assim como aprofundar o debate e a
Já os grupos e agremiações, em sua maioria, aplicam o
participação popular em um sentido mais amplo, o que nos
benefício de um modo a proporcionar a continuidade de suas
direciona a uma efetiva democratização das políticas públicas.
tradições culturais. O discurso do vice-presidente da Sociedade
No intuito de erigir estratégias de incentivo às expressões dos
Musical Euterpina Juvenil Nazarena, João Paulo, opera para
Patrimônios Vivos, o estado de Pernambuco, a partir do
reforçar a positividade do RPV: “Com esse prêmio, hoje nós
reconhecimento das histórias de vida dessas pessoas, de seus
estamos tendo uma ajuda para fazer com que essa história de
anseios, necessidades e potencialidades, têm respeitado as
126 anos não venha a ruir, que os nossos instrumentos não
trajetórias percorridas por cada um dos mestres e mestras,
possam vir a ser calados. Foi muito bom, está sendo muito
assim como das instituições culturais, que são os arcabouços
boa essa ajuda”. Já a irmandade religiosa Confraria do
da cultura popular do estado.
Rosário, da cidade de Floresta, efetivou a reforma da sua sede, a gravação de um documentário e a produção de um
A segunda edição do presente livro se pauta numa perspectiva
calendário anual, além de custear, em parte, a sua
de valoração da diversidade cultural que se revela em terras
tradicional festa, que acontece no dia 31 de dezembro,
pernambucanas, bem como de assegurar o prestígio que nos
desde 1972.
enlaça em contribuir para a continuidade de políticas públicas que assegurem o fomento a um leque de expressões que
É importante ressaltar que as políticas públicas norteadas pela
emprestam brilhantismo e vislumbre aos habitantes do estado
concepção de patrimônio imaterial lidam diretamente com
e visitantes.
pessoas e, por conseguinte, seus sentimentos e valores, que dizem respeito às suas trajetórias de vidas em uma estreita
Desejamos uma boa leitura, firmada com o prazer que advém
conexão com o meio social e cultural em que vivem, de forma
da imaginação sonora, visual e táctil, impossível de não vir à
que as visões dos mestres e mestras não são consensuais.
tona através das palavras inscritas neste livro e que reforçam a
Muitos desses indivíduos declararam o desejo de se
riqueza cultural do estado de Pernambuco. Recife, julho de 2014.
14
15
1 96
O Patrimônio Vivo em Contexto
Vale ressaltar, de acordo com Barbosa e Couceiro (2008), que algumas experiências, consideradas exemplares, de programas
Maria Acselrad1
nacionais de salvaguarda – realizadas por países como Japão, Tailândia, Filipinas e Romênia, conhecidas como Tesouros
Um dos instrumentos mais relevantes das políticas públicas
Humanos Vivos – em prática desde o fim da Segunda Guerra
voltadas para o reconhecimento das culturas populares
Mundial, contribuíram de forma significativa para a ampliação
desenvolvidas no Brasil, nas últimas décadas, tem sido as
das agendas políticas patrimoniais no mundo, inserindo o tema
patrimonializações de bens culturais imateriais. É inegável que para
da salvaguarda através da transmissão de saberes e apoio direto
o enriquecimento desse processo a circulação de documentos,
a mestres e grupos, na pauta de diversos debates públicos de
como a Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Popular e
âmbito nacional. Num mundo cada vez mais globalizado, em
Tradicional, de 1989, e, mais tarde, a Convenção para Salvaguarda
constante e acelerado processo de transformação, a preocupação
do Patrimônio Cultural Imaterial, de 2003, ambas promulgadas
com as especificidades culturais alçava a um novo patamar a
pela UNESCO, e das quais o Brasil é signatário, foram decisivas
discussão sobre o patrimônio cultural.
para a reverberação de um debate público sobre o assunto. A resposta a esse movimento, por parte dos órgãos gestores
Nesse contexto, as políticas de patrimonialização de pessoas
de cultura, deu-se através da criação de instrumentos jurídicos
ou grupos da cultura popular e tradicional, amparadas por
apropriados que procuravam atender à demanda que se impunha
leis de registro estaduais, surgem no rastro de uma série de
em relação à lacuna gerada pelas políticas patrimoniais até aquele
discussões acerca da salvaguarda do patrimônio imaterial que
momento, no que diz respeito à dimensão imaterial do patrimônio
encontram repercussão no âmbito local. Em Pernambuco, a
cultural brasileiro.
Lei do Patrimônio Vivo3 surge como uma tentativa pioneira, no contexto brasileiro, de instituir no âmbito da administração
A repercussão dessa discussão, no cenário brasileiro, ganha
pública estadual, o instrumento do registro, procurando
destaque com a criação do Decreto 3.551 de 4 de agosto de 2000,
fomentar diretamente as atividades de pessoas e grupos culturais
ápice de um longo processo de debates políticos e intelectuais, que
representantes da cultura popular e tradicional, contribuindo
institui o Registro dos Bens Culturais de Natureza Imaterial e cria
para a perpetuação de suas atividades. O registro prevê a
o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, abrindo um espaço
implantação de ações de formação, difusão, documentação e
para o reconhecimento, por parte do Estado, de bens de caráter
acompanhamento das atividades desenvolvidas pelos premiados.
processual e dinâmico como patrimônio cultural do Brasil, tendo
Nesse conjunto de ações, o processo de transmissão de saberes
“como referência a continuidade histórica do bem e sua relevância
assume papel de destaque na salvaguarda das expressões,
nacional para a memória, a identidade e a formação da sociedade
celebrações e ofícios aos quais os mestres e grupos encontram-se
brasileira”. 2
vinculados, através do repasse de seus conhecimentos às novas gerações de alunos e aprendizes, em sua comunidade ou fora
1 Antropóloga e professora do Depto. de Teoria da Arte e Expressão Artística da Universidade Federal de Pernambuco/UFPE. 2 Decreto 3.551 de 4 de agosto de 2000 in: Patrimônio imaterial no Brasil – legislação e políticas estaduais.VIVEIROS DE CASTRO e FONSECA, Maria Laura e Maria Cecília Londres. Brasília: UNESCO, Educarte, 2008.
dela.
3
LEI nº 12.196 de 02 de maio de 2002. Idem.
10 17
Nos últimos anos, o Governo de Pernambuco, através da Fundação
saúde debilitado, para continuar efetivamente trabalhando, já têm
do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco – Fundarpe –,
em seus filhos um caminho que aponta para o futuro da tradição.
vem realizando oficinas, palestras, aulas-espetáculo, apresentações culturais, homenagens, exposições, numa experiência inédita de
O universo dos mestres e grupos contemplados abrange
inserção dos patrimônios vivos na política de cultura do estado.
expressões das diversas linguagens artísticas, dos ofícios artesanais,
Essas ações, cujos formatos diferem de acordo com a expressão
da religiosidade popular, entre outras manifestações culturais.
cultural, idade e disponibilidade do mestre, revelam algumas
Dentre os grupos registrados até o momento, podemos encontrar
questões importantes para a reflexão sobre a transmissão de
de forma predominante manifestações culturais ligadas ao
saberes populares e tradicionais, quando fomentada pelas
Carnaval: um clube de frevo, dois maracatus de baque virado
políticas públicas de cultura, por exemplo: 1) o reconhecimento da
e dois caboclinhos. Também foram registrados: uma banda de
importância de serem preservadas as singularidades das tradições
música, um grupo de teatro e uma irmandade religiosa. Entre
culturais representadas pelos mestres e grupos contemplados;
os mestres, encontramos uma diversidade de tradições culturais,
2) a valorização da diversidade de técnicas, conteúdos e formas
através do registro de representantes da ciranda, do coco, da
de repasse praticadas pelos mestres, características de processos
xilogravura, da cerâmica, do forró, do cordel, do circo, da pintura,
pedagógicos identificados com os princípios da educação não
do cinema, entre outras.
formal; e 3) o entendimento de que o processo de aprendizado do mestre é fator relevante para compreensão do seu processo
Segundo Gonçalves (2003), se relativizarmos a noção moderna de
de transmissão de saberes, entre outros aspectos. Todos esses
patrimônio – criada no século XVIII, com o surgimento dos estados
fatores implicam na concepção de que ações de salvaguarda não
nacionais –, podemos encontrar correspondência na experiência
devem prescindir dos atores sociais que se encontram em foco e
universal do “colecionamento”, prática comum entre muitos povos
que isso vem a ser decisivo para que a própria produção de sentido
e comunidades, ao longo da história da humanidade. A atribuição
das tradições por eles representadas se atualize e se perpetue no
de valor, onipresente nos processos de identificação e registro do
tempo e no espaço.
patrimônio, faz com que essa tendência ao “colecionamento” venha a oferecer um panorama daquilo que de mais representativo
Em Pernambuco, entre 2005 e 2010, foram registrados 24
e singular compõe o patrimônio cultural de um povo. São histórias
patrimônios vivos. Dentre eles, 16 mestres e oito grupos, através
de vida, processos de aprendizado, dinâmicas de trabalho, escolhas
da publicação de cinco editais. O lançamento do primeiro edital
estéticas, processos criativos e de transmissão de saberes de nossos
rendeu excepcionalmente a premiação de 12 mestres4. Nos anos
patrimônios vivos, compartilhados com a pesquisadora Maria
subsequentes, três patrimônios vivos foram eleitos a cada edital
Alice Amorim e com o fotógrafo Luca Barreto que, através desta
publicado, através de um processo de inscrições que já soma mais
publicação, temos o imenso prazer de apresentar.
de 250 candidaturas ao registro. Em 2008, Pernambuco perdeu três mestres – Ana das Carrancas, Canhoto da Paraíba e Manoel
Sendo assim, é com muita alegria que oferecemos aos nossos
Salustiano –, e hoje conta com 21 patrimônios vivos, a maioria em
patrimônios vivos este trabalho, em retribuição a toda uma vida
atividade; e mesmo aqueles que se encontram com o estado de
dedicada à cultura.
4 A publicação tardia do Decreto nº 27.503, de 27 de dezembro de 2004, que traz a regulamentação da Lei, gerou este acúmulo.
18 11
Recife, novembro de 2009.
19
Cartograma dos Mestres e Grupos contemplados pelo Registro do Patrimônio Vivo Pernambuco (2005-2013) Goiana
Aliança 26
Timbaúba
Nazaré da Mata Tracunhaém
Condado
3 35
Igarassu 25
18
3
Ilha de Itamaracá
33
19
28 30 35 36
Paulista 29
Olinda Petrolina
Floresta
1
10
Recife Caruaru 12 34 24
Bezerros 16 20
Jaboatão dos Guararapes 15
2
6
7 8 9 11 13 17 21 22 23
20
14 27 31 32
Ano da
Legenda
Nome Artístico
Tradição cultural
Data de nascimento
Cidade
1
Ana das Carrancas
Artesanato em cerâmica
18/02/1923
Petrolina
2005
2
Arlindo dos 8 Baixos
8 Baixos / Forró
16/04/1942
Recife
2012
3
Associação M. E. de Timbaúba
Banda filarmônica
09/02/1928
Timbaúba
2012
4
Banda Musical Curica
Banda filarmônica
08/09/1848
Goiana
2005
5
Banda Revoltosa
Banda filarmônica
14/01/1915
Nazaré da Mata
2013
6
Caboclinho Sete Flexas
Caboclinho
Fundado em 1973
Recife
2008
7
Camarão
Forró
23/06/1940
Recife
2005
8
Canhoto da Paraíba
Choro
17/03/1931
Recife
2005
9
Clube Indígena Canindé
Caboclinho
05/03/1897
Recife
2009
10
Confraria do Rosário
Irmandade Religiosa
Fundada provavelmente em 1777
Floresta
2007
11
Didi do Pagode
Samba e Pagode
12/12/1943
Recife
2010
12
Dila
Xilogravura e Cordel
23/09/1937
Caruaru
2005
13
Fernando Spencer
Cinema
17/01/1927
Recife
2007
14
Homem da Meia-Noite
Clube de Frevo
02/02/1932
Olinda
2006
15
Índia Morena
Circo
13/07/1943
Jaboatão dos Guararapes
2006
16
J. Borges
Xilogravura e Cordel
20/12/1935
Bezerros
2005
17
João Silva
Música / Forró
16/08/1935
Recife
2012
18
José Costa Leite
Xilogravura e Cordel
27/07/1927
Condado
2006
19
Lia de Itamaracá
Ciranda
12/01/1944
Ilha de Itamaracá
2005
20
Lula Vassoureiro
Artesanato
02/11/1944
Bezerros
2013
21
Maestro Ademir
Frevo
15/10/1942
Recife
2013
titulação
21
Legenda
22
Ano da
Nome Artístico
Tradição cultural
Data de nascimento
Cidade
22
Maestro Duda
Frevo
23/12/1935
Recife
2010
23
Maestro Nunes
Frevo
22/06/1931
Recife
2009
24
Manuel Eudócio
Artesanato em cerâmica
28/01/1931
Caruaru
2005
25
Maracatu Estrela Brilhante
Maracatu de baque virado
Fundado provavelmente em 1824
Igarassu
2009
26
Maracatu Estrela de Ouro
Maracatu de baque solto
01/01/1966
Aliança
2011
27
Maracatu Leão Coroado
Maracatu de baque virado
08/12/1863
Olinda
2005
28
Maria Amélia
Artesanato em cerâmica
18/04/1923
Tracunhaém
2011
29
Mestre Galo Preto
Coco e Embolada
08/10/1935
Paulista
2011
30
Mestre Nuca
Artesanato em cerâmica
05/08/1937
Tracunhaém
2005
31
Mestre Salustiano
Rabeca, Cavalo-Marinho e Maracatu
12/11/1945
Olinda
2005
32
Selma do Coco
Cult. Popular/ Coco de roda
10/12/1929
Olinda
2008
33
Sociedade M. E. Juvenil Nazarena
Música/ Banda filarmônica
01/01/1888
Nazaré da Mata
2010
34
Teatro Experimental de Arte
Teatro
16/07/1962
Caruaru
2008
35
Zé do Carmo
Pintura e escultura
19/11/1933
Goiana
2005
36
Zezinho de Tracunhaém
Artesanato em cerâmica
05/07/1939
Tracunhaém
2007
titulação
Luca Barreto
Banda Musical Curica 48 23
urica, do tupi ku’rika, é pássaro de canto estridente, da família
Ricardinho, participou das festas em homenagem a D. Pedro
de papagaios e araras, que canta pelas matas e mangues.
II, durante visita à cidade, em 6 de dezembro de 1859. Quatro
Talvez por isso o nome da centenária sociedade musical goianense,
dias depois, ou seja, 10 de dezembro, o Diario de Pernambuco
numa alusão ao papagaio trombeteiro. Melhor explicando,
noticiava a visita da autoridade máxima do país e dizia que a
existem, de fato, duas versões que apontam tal escolha para o
Guarda Nacional “esteve reunida com mais de 700 praças e boa
nome da banda, fundada em 1848. Segundo uma delas, a senhora
música”. A Curica, naquele período, era a banda do batalhão.
chamada dona Iria perguntou ao mestre João José, que passava pela rua da Conceição: “Seu João, por que é que a música grita
Com um repertório musical cheio de sofisticação e variedade, o
tanto, que até parece uma curica?” A outra versão, variante da
grupo também marcou presença nas comemorações da Abolição
primeira, conta que dona Iria era irmã do padre José Joaquim
da Escravatura, da Proclamação da República, ajudou em
Camelo de Andrade, e morava à rua Direita, em companhia das
campanhas políticas do Partido Conservador e, então militarizada,
próprias escravas. Estando, certa vez, na porta de casa, o maestro
fez parte da Guarda Nacional. Criada com o objetivo de realizar
José Conrado executava uma polca do musicista Francisco Tenório,
tocatas em festas religiosas, a banda foi fundada em 1848,
e ela teria dito, em voz alta, a uma de suas escravas: “Ô Rosa,
por José Conrado de Souza Nunes, primeiro regente do grupo
aquela música só parece dizer cu-ri-ca-cá”. A outra respondeu com
musical. Do Rio Grande do Norte, era conhecido como o filho do
uma gargalhada, e assim ficou o apelido que, supõe-se, era usado
marinheiro, Boca de Cravo. Segundo o historiador Álvaro Alvim
em tom depreciativo.
da Anunciação Guerra, cujo pseudônimo era Mário Santiago – conforme pesquisado e publicado, na ocasião do centenário, em
A Sociedade Musical Curica oferece, justamente por ser antiga, um
1948, no livro Elementos para a história da Sociedade Musical
repertório de tradições, de histórias contadas pelos mais velhos,
Curica – tudo começou com um grupo de 12 a 15 músicos que
dentre eles os nonagenários Antônio Secondino de Santana,
se reuniu no consistório da igreja de Nossa Senhora do Amparo
Meia Noite, e João José da Silva, Calixto, dois dos mais antigos
dos Homens Pardos e resolveu criar uma orquestra sacra,
participantes da banda – falecidos após a banda conquistar o título
apresentando-se pela primeira vez numa tocata, no Amparo,
estadual de patrimônio vivo, concedido em 2005. Uma dessas
durante as comemorações da natividade de Nossa Senhora, ou
histórias diz respeito a uma tocata para o Imperador. Conforme
seja, no dia 8 de setembro de 1848. À época da fundação, era
consta nos anais de Goiana, a Curica, sob a regência do mestre
chamada de corporação musical. Assim começa a história da
Panorâmica da rua da sede da banda. Luca Barreto
24 49
Luca Barreto
Curica, a mais antiga banda de música, em atividade ininterrupta, do Brasil e da América Latina. O abolicionista e senador do Império João Alfredo Corrêa de Oliveira dá notícia, na biografia que escreveu sobre o 2º Barão de Goiana – Bernardo José da Gama –, que “cada partido tinha a sua banda de música a estafar-se em ajuntamentos e passeatas”. Deduz-se que a outra banda era a rival Saboeira, de 1855, ainda hoje em atividade, fundada com o objetivo de acompanhar o Partido Liberal, oposicionista do Partido Conservador, ao qual pertencia a Curica. As histórias da inimizade figadal entre as duas bandas foram escritas com sangue. Entre pontapés e lances de capoeira, gritava-se: “Viva a Curica! Morra a Saboeira!” E vice-
Títulos e premiações conquistadas pela banda. Fotografia de antigos mestres e componentes.
versa. Em 1928, visitou a capital da Paraíba, o que teve enorme repercussão na imprensa local. Entre os sócios honorários, constam os nomes do então presidente Getúlio Vargas e de Flores da Cunha, interventor no Rio Grande do Sul. Durante a 2ª Guerra
Clara Gouvêa
Mundial, participou de passeata antinazista em agosto de 1942.
Vista aérea de Goiana (autor desconhecido).
Costa Neto/SecultPE
Reprodução
Músicos da Banda Curica.
25
inclusive nas viagens pelo Brasil. No Carnaval, subdivide-se em
musicais, obteve uma relação das peças escritas no século 19, mais
duas orquestras de frevo, para tocar no centro, nos distritos e
uma fotografia da corporação. A banda executou, em homenagem
vizinhança. Em variados eventos e inaugurações, apresenta-se
ao visitante, a Sonata Patética, de Beethoven; a valsa Obstinação,
sob a forma de orquestras menores. O acervo musical conta com
de Nelson Ferreira, e o dobrado Conselheiro João Alfredo. Na data
mais de 800 títulos, de todos os gêneros, entre clássicos, barrocos,
do centenário, em 1948, Antonio Correia presenteou a Curica com
dobrados, marchas de procissão, músicas religiosas, MPB, para
uma sede própria, a mesma onde o grupo desenvolve as atividades
execução por cerca de 60 a 70 músicos. A catalogação do arquivo
até hoje, à rua do Rosário. Naquele ano, a banda também decidiu
histórico e musical foi realizada pelos estudantes da escolinha, em
criar estatuto próprio, ainda em vigor, em que se estabelecia a
regime de voluntariado. Resultante de um trabalho filantrópico
fundação de uma escolinha de música, a fim de gratuitamente
de maestros, diretores e instrumentistas, a banda é responsável
serem transmitidos os conhecimentos musicais, pelos mais antigos,
pela contínua preparação de novos artistas, pela renovação dos
para as novas gerações. De meados de 1960 a 1970, a banda
próprios integrantes e traz no histórico a passagem de nomes
manteve uma formação denominada Curica Jazz, que é retomada
consagrados, como o famoso capitão Zuzinha, ou José Lourenço
no início de 2009. São 29 componentes, escolhidos entre os mais
da Silva, e os maestros Duda e Guedes Peixoto. É inegável que
talentosos alunos da escolinha e integrantes da banda. Em meio às
a Curica tem colaborado com o despertar de talentos, com a
novas realizações, a diretoria está organizando o primeiro registro
formação de músicos. E mais: toca a sensibilidade dos goianenses,
fonográfico, tanto da banda, quanto da jazz, para a gravação de
que a veem passar pelas ruas, despertando-lhes o amor à música e
dois CDs a serem lançados ainda em 2010.
às vivas tradições da cidade.
Edson Júnior, músico e presidente da banda.
26
Componentes da Curica, durante ensaio na sede do grupo.
Luca Barreto
demonstrando grande interesse pelos arquivos de composições
Luca Barreto
e sempre marca presença em solenidades cívicas e religiosas,
Luca Barreto
A Curica é um dos grandes patrimônios culturais de Goiana
musicólogo uruguaio, professor Francisco Curt Lange, que,
Luca Barreto
No dia 1º de dezembro de 1944 recebe a visita do famoso
Camar達o 27
Luca Barreto
Luca Barreto Luca Barreto
Luca Barreto
uando Antonio Ferreira da Silva e Josefa Alves Freire viram nascer o filho, não imaginavam que ali começava a trajetória de um grande sanfoneiro do agreste. Na verdade, o início de tudo tem a influência do pai, exímio tocador de oito baixos, a quem o filho, desde criança, passou a acompanhar nas andanças musicais. Na labuta cotidiana, enquanto o sanfoneiro ia para a roça, o filho de sete anos matreiramente ia experimentando os sons da sanfoninha pé-de-bode, até o dia em que o pai descobriu as artes da criança engenhosa, emocionou-se e passou a cultivar o talento do herdeiro, levando-o para as festas, onde o garoto prestava atenção nos músicos e depois, em casa, tirava os mesmos sons no instrumento. O menino conquistou definitivamente o pai executando, de ouvido, os acordes de Maria Bonita, um dos maiores sucessos àquela época. E o mestre Camarão, ou Reginaldo Alves Ferreira, tem consciência de que foram decisivos esses primeiros momentos da infância dedicados à música. Natural de Brejo da Madre de Deus, é também emblemático o próprio dia do nascimento: 23 de junho de 1940, véspera de São João. Foi em Caruaru – a mais importante cidade do Agreste pernambucano, protagonista de uma das mais tradicionais festas Camarão ministra aula de acordes.
28
juninas do Estado e contemplada, ainda na década de 1970, com
Inventivo desde o princípio, foi o mestre quem criou, em 1968, a
o título de Capital do Forró – que Camarão construiu as bases
primeira banda de forró no país, a Bandinha do Camarão; quem
da carreira artística. Começou a trabalhar, aos 20 anos, na Rádio
introduziu sopros (tuba, clarinete, trombone e piston) em banda
Difusora daquela cidade, por onde passaram importantes nomes
de forró; quem criou a Orquestra Sanfônica de Caruaru, em que
da música brasileira, como Sivuca e Hermeto Pascoal. Foi na mesma
diversas sanfonas executam não só variados ritmos juninos, mas
rádio que ganhou o apelido, dado por Jacinto Silva. Luiz Gonzaga
também frevo e maracatu. Norteando-se pela música desde
o conheceu na difusora, tocando como profissional. Tinha 18 anos.
a primeira infância, o mestre chegou a acompanhar o rei do
Graças à amizade surgida entre ambos, o rei do baião produziu
baião, após conhecê-lo num programa da Difusora de Caruaru,
dois discos de Camarão, pela RCA Victor, em 1969 e 1970.
mesma rádio por onde passaram músicos renomados e onde
Gonzaga foi, na verdade, o seu grande mestre, embora nunca
surgiu o seu primeiro conjunto musical, ou seja, o primeiro trio
esqueça a importância dos ensinamentos paternos. Na discografia,
de Camarão, o Trio Nortista, liderado por ele, um dos maiores
o artista contabiliza, ao lado dessa feliz parceria com Luiz Gonzaga,
sanfoneiros nordestinos, tocador de forró nas latadas das fazendas
28 discos, entre long plays, compactos, 78 rotações e CDs, a
e arraiais juninos, experiente forrozeiro de animados grupos
maioria fora de catálogo. É de 1998 o CD Camarão Plays forró,
pés-de-serra. O trio era formado com os músicos Jacinto Silva e
produzido na Inglaterra e com circulação exclusiva na Europa.
Ivanildo Leite. Afinadíssimo na sanfona, acompanhou grandes
Luca Barreto
Luca Barreto
Luca Barreto
O músico e seu instrumento, em detalhe.
29
Santanna, Marinês, Jackson do Pandeiro, Arlindo dos Oito Baixos. O repertório de Camarão é, como manda a tradição da sanfona nordestina, generoso nos ritmos regionais – xote, xaxado, forró, baião e arrasta-pé. O nome do Maestro Camarão corre mundo. Em 1961, foi a sanfona dele que representou Pernambuco no primeiro aniversário de Brasília, a convite do presidente Jânio Quadros. Viaja acompanhado do Trio Nortista, que toca, então, em vários eventos comemorativos. Tem participado de encontros de acordeonistas pelo país, graças ao talento e maestria com que empunha a sanfona. Em 2004, participa do projeto O Brasil da Sanfona, de Myriam Taubkin, que produziu dois CDs, um livro de fotografias e um DVD. Fixado no Recife há quase 30 anos, mantém a Escola Acordeon de Ouro, fundada há uma década no bairro de Areias, onde já formou diversos músicos nas artes dessa invenção vienense de 1829, que, no Brasil, ganhou um sotaque bem nordestino e fez fama. Para facilitar a transmissão de conhecimentos, elaborou uma cartilha, em que registra importantes informações acerca dos instrumentos de fole, do manejo do fole, como escolher e manusear o acordeom, além de noções elementares de música. Marcelo de Feira Nova, Julinho do Acordeom, Ellan Ricard, Gleyson Alves, Juquinha, Deivison, Diego Reis e Cezinha do Acordeom são alguns dos reconhecidos sanfoneiros que passaram pela escola do mestre. Em parceria com Salatiel d’Camarão, desenvolve o projeto De pai para filho, com a realização de shows musicais, e, ainda, Sanfona nas escolas, voltado para oficinas em escolas públicas. Certamente inspirado na atitude do próprio pai, Camarão estimula e oferece contribuição decisiva à carreira de iniciantes e, inclusive, à do próprio filho, parceiro e continuador mais que legítimo da obra do mestre.
30
Luca Barreto
nomes da música nordestina, a exemplo de Sivuca, Dominguinhos,
Dila 31 56
Luca Barreto
angaço e peripécias diabólicas são os temas predominantes no universo do mestre em fabulações, gravador de capas de folheto e álbuns em policromia, autor de rótulos de bebida e remédios, ilustrador de livros e publicações variadas. O nome de batismo do marechal do cordel do cangaço, conforme se autodenomina, é José Soares da Silva, ou Dila, nome emblemático no mundo da gravura popular. Nascido em 23 de setembro de 1937, em Bom Jardim, e estabelecido em Caruaru, o filho de Domingos Soares da Silva e Josefa Maria da Silva testemunha que, dos anos 1950 em diante, mergulha no mundo do cordel e da xilogravura, quando passa a comercializar folheto nas feiras de Pernambuco, Alagoas, da Paraíba e do Ceará. Municiado de generosa fabulação, Dila compartilha com amigos e visitantes a riqueza do seu mundo imaginário, as invenções e Luca Barreto
reminiscências de mais de cinco dezenas de anos dedicados às artes gráficas, à poesia de cordel e à xilogravura. No limiar entre realidade e imaginação, tão bem-cultivadas pelo poeta, rememora a chegada em Caruaru, em 1952, e as primeiras xilogravuras, que
32
Luca Barreto
Luca Barreto
Ricardo Moura
Mestre Dila e seu processo de trabalho.
foram para folhetos dele mesmo, de Francisco Sales Arêda e de outros poetas de meio de feira, tais como Vicente Vitorino, Chico Sales, Jota Borges, Antônio Ferreira de Morais e João José da Silva. E, finalmente, a facilidade para com os desenhos credita ao pai que, segundo ele, foi caricaturista. Em 1974, em plena atividade de poeta, gravador, impressor, aparece no documentário de Tânia Quaresma, Nordeste: cordel, repente, canção, em que figura a profissão registrada em letras garrafais pintadas na fachada do mesmo endereço onde ainda hoje reside, em Caruaru: Art Folheto
Luca Barreto
São José. Romances e folhetos. Do autor e editor: Dila é aqui. A partir da experiência na fabricação de carimbos, substitui as matrizes de madeira pela borracha, obtendo um resultado de impressão que o pesquisador Roberto Benjamin batizou de folk-off-set. Utiliza cores diversas numa mesma matriz, ou faz
Detalhe de seu ateliê, em sua residência na cidade de Caruaru.
inúmeras combinações de gravura a partir de detalhes elaborados em matrizes diferentes. As figuras são preparadas separadamente gravura limpa, bem-talhada, complexa exibe narrativa imagética absolutamente original, sob ângulos inusitados, sem contato
Luca Barreto
para permitir isso. Irrepreensível no desenho e na invenção, a
sistemático com os cânones do desenho clássico. A partir dos anos 1970, inova em publicações coloridas e no formato cordel. Em 1973, edita o álbum de gravuras em policromia Rasto das histórias, utilizando-se de azul, vermelho e amarelo sobre fundo branco. Em 1974, publica A bagagem do Nordeste, com a capa em preto, vermelho e amarelo sobre fundo branco. Viver do cangaceiro sai em 1975, pela Art folheto São José. O álbum Réstias do cangaceiro é editado em 1981. O fabricante de rótulos de bebida instala na própria casa máquinas de tipos móveis e prelo, a fim de publicar folhetos e imprimir gravuras. Além disso, as ferramentas manuseadas para cavar a matriz são faca, peixeira, canivete, lâmina de barbear, que cortam a borracha, ou neolite, para fazer capas de cordel, rótulos e carimbos. Abre letreiros e desenhos do cordel numa mesma matriz, em borracha ou ainda na madeira, reinventando o tipo
33
fixo, conforme lembra Roberto Benjamin, no texto Aparatos dos
em ininterrupto fluxo criador, e também na atual invenção da
livros populares – Dila editor popular. E o registro da própria
“literatura de cordel em contos”, da “literatura de cordel em
editora é tão mutante quanto o caudaloso fluxo narrativo do
prosas” que vem engendrando e editando, os motivos passam
poeta. A Art folheto São José virou Gráfica São José, ou Gráfica
por ciganos e cangaceiros, Chico Heráclio, Lampião, Padre
Sabaó, ou Preéllo Santa Bárbara, ou Fhòlhéteria Càra d’Dillas.
Cícero, o Pai Eterno, Pessoa e Dantas, Ariano Suassuna, “xylgra
Nesse registro, o nome da folheteria aparece na contracapa do
e cordel”, Dyylas Sabóia. Se, em vez de cordel e xilogravura,
cordel, com um autorretrato de Dila vestido de cangaceiro.
produzisse um filme de cangaço, deliberou, de antemão: seria o protagonista, o cangaceiro Relâmpago. Assim, em meio a fantasias
E, mais, o registro de autoria do texto e da xilogravura é sempre
e criação poética, Dila vai recebendo visitas diárias de estudantes,
tão variável quanto o do editor. Dila: o marechal do cordel do
pesquisadores, turistas, todos ávidos em conhecer o mundo
cangaço. Dila Soares da Silva. Dila Ferreira da Silva. Dyyllas Sabóia.
maravilhoso do artista que está sempre a exibir, com o maior
Dila Sabaó Sabóia. José Cavalcanti e Ferreira, José Soares da
prazer, as mais recentes invenções de poesia e xilogravura.
Silva, Dila ou Dillas. Recorrentes num universo poético expresso
34
Luca Barreto
Luca Barreto
O trabalho detalhista do entalhe em madeira.
Luca Barreto
J. Borges 28 35
rtesão de cestinhas de cipó e brinquedos de madeira, oleiro, pedreiro, carpinteiro, pintor de parede, marceneiro, Luca Barreto
trabalhador da palha da cana, passador de jogo de bicho. Esses foram alguns dos ofícios que Jota Borges experimentou, antes de se decidir pela venda de cordel nas feiras de Pernambuco, Paraíba, Ceará e, principalmente, na Praça do Mercado de São José, no Recife, o que aconteceu a partir de 1956. Matuto esperto e comunicativo, logo descobriu ser exímio talhador de madeira e criador de histórias em versos. E o tempo de permanência na escola foi de apenas 10 meses. Da experiência com as artes manuais, sobretudo marcenaria e miniatura de móveis, desenvolveu habilidades que não seriam de jeito nenhum desperdiçadas mais adiante, conforme atestam as publicações impressas, as gravuras inconfundíveis, as inúmeras capas de livros e discos, exposições, oficinas. O primeiro folheto é de 1964, com capa do poeta e xilógrafo Dila: O encontro de dois vaqueiros no sertão de Petrolina. A partir de 1965, incentivado pelo amigo cordelista Olegário Fernandes,
Luca Barreto
resolve fazer a capa dos próprios folhetos, e então escreve e faz a
36
capa de O verdadeiro aviso de Frei Damião. Nascido no Sítio Piroca, Prensa alemã, utilizada na impressão dos cordéis.
Bezerros, agreste pernambucano, a 20 de dezembro de 1935, José Francisco Borges nem avaliava o significado dessas decisões
profissionais, apenas se deixava levar pela intuição criadora. Em
Espanha, Holanda, Bélgica, México, Argentina. Para Caracas, foi
1976, faz uma das gravuras mais famosas: A chegada da prostituta
em 1995. Visitou Cuba em 1997, num avião russo dos anos 1950,
no céu. A vida do sertanejo, o imaginário nordestino, as fabulações
onde permaneceu 12 dias, ministrando oficina num festival de
dos contos populares, o cenário rural e as narrativas de cordel
cultura caribenha. Na década de 1970, uma exposição de Borges
declamadas pela boca do pai, tudo foi misturado na cabeça e nas
percorreu 20 países. Em 1964, ilustrou a novela Roque Santeiro,
memórias afetivas do artista, e o resultado é a plena vitalidade
da TV Globo, e fez a primeira viagem de avião.
conferida à famosa e premiada obra, que tem sido traduzida em outras línguas e linguagens artísticas, a exemplo de peça de teatro,
Daí por diante não mais parou de percorrer o mundo. Há décadas
telenovela, filme, coleção de roupa.
tem viajado quase que ininterruptamente dentro e fora do país. Em 2005, comemorou os 400 anos do D. Quixote, de Miguel
Se o nome dos pais – Joaquim Francisco Borges e Maria Francisca
de Cervantes, com uma versão em cordel da referida novela de
da Conceição – está inscrito irremediavelmente na vida de J.
cavalaria. E foi para a França participar da exposição itinerante
Borges, também não podem ser desprezados os nomes do
O universo da literatura de cordel, na condição de principal
artista plástico Ivan Marchetti, do escritor Ariano Suassuna e
homenageado. Graças ao talento e à amizade que cultiva há
do pesquisador Roberto Benjamin, que fizeram as primeiras
anos com importantes galeristas, artistas plásticos, jornalistas e
encomendas de gravuras maiores, escreveram sobre o artista e
pesquisadores, Borges tem obras no acervo da Biblioteca Nacional
deram-lhe ampla divulgação. Suíça, Estados Unidos, Venezuela,
de Washington e no Museu de Arte Popular do Novo México
França, Alemanha, Portugal, Cuba foram países para onde
(em Santa Fé, EUA); é divulgado no New York Times, participou
viajou, além dos lugares aonde tem ido a obra do artista: Itália,
da revista suíça Xilon em número especial (1980) dedicado aos
Luca Barreto
Luca Barreto
Luca Barreto
Luca Barreto
Familiares de J. Borges auxiliam na impressão das gravuras.
37
xilógrafos nordestinos, ilustrou o livro As palavras andantes, do uruguaio Eduardo Galeano (1993), figurou no calendário da ONU de 2002 com a gravura A vida na floresta, tem participado de exposições na Galeria Stahli, Suíça, entre outras notáveis aparições
Luca Barreto
Luca Barreto
internacionais no circuito artístico mundial. É importante mencionar, ainda, a atuação da Gráfica J. Borges, em plena atividade, que, durante quatro décadas, utilizou tipos móveis e prensa manual na produção de cordéis e xilogravuras, e vem construindo desde então parte da história da literatura de cordel. Borges à frente, claro, contando com a participação dos filhos J. Miguel, Ivan, Manassés, Cícero, Pádua, Jerônimo (falecido); irmãos, cunhada, sobrinhos, como Amaro Francisco (falecido), Severino Borges, Nena, Joel, Lourenço, Givanildo; dos três mais novos, os filhos Pablo e Baccaro e o neto Williams. O filho George vive de serigrafia e Ariano é gráfico. Ao todo, foram gerados 18 filhos. E um grande projeto de vida e arte, de que é testemunha o Memorial J. Borges, em Bezerros, onde o visitante pode apreciar as obras gráficas, plásticas, poéticas do mestre e, ainda, desfrutar de um dedo de prosa com o artista bom de papo.
Luca Barreto
O trabalho de pintura, para gravação de xilogravuras coloridas, um diferencial a obra do artista.
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Luca Barreto
Lia de Itamaracรก 52 39
oberana, feito uma deusa surgida das águas do mar ou uma rainha plena de realeza, é assim que Lia sempre aparece, levando-nos ao prazer de ouvir e dançar uma ciranda. Sim, porque ninguém fica imune ao ritmo da ciranda, muito menos aos encantos da filha de Iemanjá, que se habituou a cantar desde criança, na praia de Jaguaribe, localidade da Ilha de Itamaracá onde nasceu em 12 de janeiro de 1944 e vive até hoje. Cheia de familiaridade com a música e a dança, Maria Madalena Correia do Nascimento começou a carreira artística muito jovem, cantando ciranda desde os 12 anos. A filha de Severino Correia do Nascimento e Matildes Maria da Conceição é a mesma Maria, ou Lia, da música que se transformou num hino: Essa ciranda / quem me deu foi Lia / que mora na Ilha de Itamaracá. A história dessa deusa de ébano, de um metro e oitenta, não é só feita de glamour. Após permanecer quase duas décadas no ostracismo, lança em 2000 o CD Eu sou Lia, que recebe selo de
Luca Barreto
world music, graças à mescla de instrumentos de percussão e
Espaço cultural é dedicado a Iemanjá.
sopro aos ritmos populares, e, por isso, chega a ser comercializado nos Estados Unidos e na Europa. Nessa nova etapa de divulgação do trabalho, Lia passa a viajar constantemente pelo Brasil e pelo continente europeu, e, ainda assim, não é difícil vê-la nas rodas de ciranda do Recife e Olinda, ou em Jaguaribe, onde funciona, à beira-mar, o Espaço Cultural Estrela de Lia, sob o efeito mágico da envolvente paisagem marinha, com direito a lua, pancada do mar, cheiro de maresia e brisa balançando os coqueiros. Nesse ambiente, Lia tem recebido, aos sábados – e desde novembro de 2004 –, diversos artistas, como Cátia de França, Célia coquista, a Ciranda de Baracho (das filhas do mestre, Dulce e Severina Baracho), Antúlio Madureira. Mas, diferentemente do bem-sucedido ressurgimento, antes a artista havia produzido
O neto Misael
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Luca Barreto
Luca Barreto
apenas um LP, A rainha da ciranda, gravado pela Rozemblit em 1977, do qual lembra não ter recebido nada. Quando foi cozinheira de um restaurante na ilha, também cantava no local. Frequentava outras rodas de ciranda, esporadicamente, sem
nenhuma projeção fora do restrito circuito de aficcionados da
1998, no Rio de Janeiro, durante participação no projeto Vozes do
cultura popular. A partir dos anos 1980 passa a ser merendeira
Mundo, do Centro Cultural Banco do Brasil. Quase uma década
da Escola Estadual de Jaguaribe, profissão que seguiu exercendo,
depois desse lançamento, sai em 2008 o segundo CD, Ciranda
paralelamente à carreira artística.
de ritmos, com direção musical de Carlos Zens, e destaque para Bezerra do Sax, as filhas de Baracho e uma composição de Capiba.
A volta triunfal ao mundo da música se deu graças à atuação do produtor Beto Hees, que a levou, em 1998, a participar do festival
Conforme indica o título, o disco contempla outros ritmos
recifense Abril pro Rock, no qual foi aplaudida por 12 mil pessoas.
pernambucanos para além da ciranda: frevo, coco, maracatu.
Daí em diante, sobretudo a partir de 2000, passou a fazer turnês
Mas, claro, quem permanece reinando é a majestosa cirandeira.
pelo Brasil e exterior, com os shows do primeiro CD, gravado
Habituada, há mais de 50 anos, ao convívio com mestres da
pela Ciranda Records, que contém composições dela própria,
ciranda, Lia sempre faz questão de lembrar que Baracho era um
de cirandeiros do Recife, de compositores renomados e algumas
grande amigo. É dele a ciranda: Morena vem ver / que noite tão
de domínio público. Cinco músicas foram gravadas ao vivo em
linda / a lua vem surgindo / cor de prata. // Faz-me lembrar / da minha Maria / quando pra ela / eu fazia serenata. No embalo da ciranda e das afinidades eletivas, Baracho e Lia compartilhavam
Lia, na Praia de Jaguaribe, Itamaracá.
três importantes aspectos: boa voz, presença marcante na hora de puxar a roda e habilidade no tratamento dos temas, como o do amor. O convívio artístico, entretanto, não se resumiu aos experientes cirandeiros. Teca Calazans, Edu Lobo, Clara Nunes, Geraldo de Almeida, Ney Matogrosso e Paulinho da Viola, entre outros, são alguns dos grandes nomes da música brasileira que já cantaram Lia em versos próprios, em composições da cirandeira ou de outros.
Ricardo Moura/SecultPE
Essa ciranda quem me deu foi Lia é a mais antiga, de 1960 para 1961, e foi gravada por Teca Calazans. Paulinho da Viola também ofereceu versos bonitos para a negra mais elegante dentre todos os ilhéus: Eu sou Lia da beira do mar / morena queimada do sal e do sol / da Ilha de Itamaracá (...), música incluída no primeiro CD.
Ricardo Moura/SecultPE
O convívio artístico também levou a dama da ciranda por outras veredas, como a de estrela do curta-metragem Recife frio, de 2009, dirigido e realizado por Kleber Mendonça Filho. Com o porte e a realeza da soberana Iemanjá, a artista comanda as atividades do Centro Cultural Estrela de Lia, transformado desde 2008 em Ponto de Cultura, onde são oferecidas oficinas
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Luca Barreto Ricardo Moura/SecultPE
de arte, cerâmica, percussão, fotografia, malabares, rabeca, teatro, cavalo-marinho. Permanecem, ainda, as temporadas de apresentação artística: recitais poéticos, bandas alternativas, duplas de violeiros, filhas de Baracho, e, claro, a tradicional ciranda de Lia. Toda a programação cultural é gratuita e sempre conta com o envolvimento da comunidade local, ou seja, os habitantes da Ilha de Itamaracá e, especificamente, os da praia de Jaguaribe. Em franca ebulição, o Ponto de Cultura Luca Barreto
foi contemplado, no início de 2009, com o prêmio Interações Estéticas e Residências Artísticas, numa parceira da Fundação Nacional das Artes (Funarte) com o Ministério da Cultura (Minc). Quem mais se beneficiou foram os habitantes da localidade, com
As filhas de Baracho cantam ciranda com Lia.
as oficinas promovidas pelo mestre rabequeiro Luiz Paixão e pela atriz Cinthia Mendonça.
na paisagem iluminada da ilha, nos jangadeiros que saem para o alto-mar e vêm trazendo peixes, nas ondas salgadas que quebram
Por onde viaja, Lia de Itamaracá vai somando os elogios que
na praia, na brisa marinha que tem lhe soprado aos ouvidos umas
tem recebido também na própria terra. É chamada de deusa,
rimas, sussurrando-lhe quantas estrelas tem o céu e quantos
rainha. Na França, um jornal comparou-a à cabo-verdiana Cesária
peixes tem o mar. Versos e balanço encadeados pela percussão e
Évora. No Brasil, é constantemente relacionada a Clementina
sopro realçam a voz rascante de Lia, “uma diva da música negra”,
de Jesus, sobretudo no sul e Sudeste. No mesmo local em que
conforme noticiou o New York Times. A deusa da ciranda sabe
nasceu, frequentou a escola primária e assistiu a muito coco
envolver-nos todos, plena de generosidade e magnetismo, até
de roda, ciranda, pastoril e bumba meu boi. Não teve iniciação
quando empresta a voz ao genial Capiba: “minha ciranda não é
musical com ninguém, foi aprendendo sozinha, inspirando-se
minha só, é de todos nós, é de todos nós”.
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Luca Barreto
Manuel Eud贸cio
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Luca Barreto Flávio Barbosa
Peças de Manuel Eudócio.
om voz pausada e dedos firmes na modelagem, é assim que o primeiro galante do reisado vai debulhando os grãos de uma vida dedicada à arte e à agricultura. É pelas mãos e pela oralidade que saem as imagens trazidas da memória de um tempo em que conviviam os amigos Vitalino, Zé Caboclo e Manuel Eudócio Rodrigues. Sentado num banco de madeira, tem sempre diante de si uma mesa, barro molhado e ferramentas para fazer as esculturas, que, começadas no início do dia, por volta das cinco da manhã, precisam ser concluídos ao final da mesma jornada. As mãos não param, enquanto as lembranças emergem. Quase
Flávio Barbosa
aos 80 anos, o narrador, mestre Eudócio, exibe o vigor mental e as habilidades manuais invejáveis de quem teve sempre uma vida regrada, dedicada à família, ao plantio e, sobretudo, à catarse da atividade artística iniciada ainda na infância, com a avó louceira Tereza Maria da Conceição. De 28 de janeiro de 1931, nascido e criado no Alto do Moura, Caruaru, o filho de Eudocio Rodrigues de Oliveira e Maria Tereza da Conceição desde criança trabalha na agricultura e ocupa as mãos esculpindo o barro. Frequentou apenas seis meses de escola e é com o auxílio das mãos e das experiências que vai descrevendo o que tem vivido esses anos todos no Alto do Moura. São sete décadas de
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Luca Barreto
aprimoramento, de adaptação ao gosto da freguesia e de convívio com fregueses alemães, franceses, portugueses, americanos. De viagens ao Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Portugal. Lembra que as primeiras peças foram pintadas a dedo e, onde o dedo não cabia, pintadas com auxílio de uma varinha. Mais adiante, resolveu deixar peças ao natural, depois voltou a pintá-las. Gosta de fazer Luca Barreto
bonecos grandes, coloridos, embora menos vendáveis. A queima das esculturas sempre foi num forno do quintal, quinzenalmente, exceto quando há encomenda urgente. De preferência, o forno
Luca Barreto
deve estar cheio, pois do contrário fica muito dispendioso. O que não admite, sob hipótese alguma, é a utilização de fôrma para moldar as esculturas. As experiências cotidianas sempre serviram de fio condutor nas criações inspiradas: batizado, enterro, casamento matuto, casamento forçado, casal andando em boi manso, violeiro, sanfoneiro, banda de pífano, cangaceiros, padre Cícero. Mergulhado no universo da cultura tradicional, uma das inspirações recorrentes é o reisado, com os respectivos personagens do folguedo natalino do qual participou: dona Joana, diabo, doutor, padre, mascarado. Em 1948, quando começou a fazer os bonecos, resolveu fazer um reisado. Fez vários personagens e conseguiu vender a uma pessoa do Rio de Janeiro.
Ateliê no Alto do Moura, em Caruaru.
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Depois, com a dificuldade de comercializar o conjunto, foi fazendo
acreditava na continuidade do ofício. Mostra-se impressionado
as figuras individuais. O reisado já não sai no Alto do Moura, o
com a permanência da atividade e o aumento quantitativo de
mestre sente saudade e tenta recuperar, no barro, as práticas
artesãos.
culturais da infância e juventude. A família, uma das pioneiras no ramo, tem na nova geração os Eudócio sabe que é um criador, um perfeccionista. Jamais
continuadores. Os irmãos Eudócio, Celestina e Josué herdaram o
desperdiçou os anos de convivência com Vitalino e Zé Caboclo.
ofício da avó e da mãe, e se veem sucedidos pelos filhos. Dos nove
Quando Vitalino saiu do Sítio Campos para o Alto, em 1948,
filhos de Eudócio, Carlos e José Ademildo, e as respectivas esposas,
Eudócio tinha 17 anos. Conheceu os trabalhos do mestre na rua:
vivem do barro. Do casal Celestina Rodrigues e Zé Caboclo, as
naquela época ninguém vendia escultura em casa, o local de
filhas Marliete, Socorro, Carmélia e Helena “puxaram ao pai, que
exposição era o buliçoso espaço da feira. Do professor, Vitalino,
era um artista de mão cheia”, segundo o tio Eudócio. Lembra,
lembra-se de muitas coisas: por exemplo, que passou dois anos,
inclusive, das miniaturas que fazia, quando jovem, e guardava
com o cunhado Caboclo, trabalhando para o afamado ceramista
numa caixa de fósforos, esculturas em tamanho minúsculo que são
e nem sequer assinavam as próprias peças. Lembra, ainda, que
uma das especialidades das irmãs Rodrigues. A linha de sucessão
em 1957 já fazia questão de dizer aos compradores que aqueles
também se repete na família Vitalino, na família Rodrigues, na
bonecos chamados de “Vitalino” também eram criação de
família Galdino.
outros artistas. Com o desaparecimento do mestre, Eudócio não
Luca Barreto Luca Barreto
Luca Barreto
Luca Barreto
A riqueza de detalhes nas peças de Eudócio.
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Costa Neto/SecultPE
Maracatu Le達o Coroado
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écada de 1950 do século 20. O respeitado oluô (sacerdote
culto nagô e padroeira da grande festa do morro, que acontece
máximo) Luís de França recebe a incumbência de dirigir uma
anualmente na mesma data, em Casa Amarela.
brincadeira de carnaval, que havia sido fundada pelo pai, um Luís de França dos Santos é de 1º de agosto de 1901. Nasceu na
Morto um dos coordenadores, corria-se o risco de não haver quem
rua da Guia, bairro do Recife, filho de Laureano Manoel dos Santos
o substituísse. Herança de família e de tradição religiosa, o baque
e Philadelpha da Hora. Segundo contava, durante a juventude
virado daquela nação nagô precisava continuar. Desafio aceito, a
vendeu jornais ao longo da via férrea, até Palmares, o que o levou
vigorosa liderança de seu Luís proporcionou aos brincantes manter
a conhecer senhores de engenho e chefes políticos da região.
a atividade ininterrupta desde 8 de dezembro de 1863, data
Ganhou muito dinheiro revendendo produtos importados, trazidos
considerada como a de fundação, apesar de a memória oral indicar
nos navios, quando trabalhava de estivador, profissão exercida até
a possibilidade de o Leão já existir desde 1852. Mesmo mantendo-
aposentar-se. Cresceu no bairro de São José, espécie de gueto de
se a dúvida quanto ao marco fundador, o contexto político e
escravos libertos, local onde aconteciam cultos africanos. Guardava
social no qual nasce o grupo é marcado pelo debate em torno da
na memória a participação intensa em terreiro de candomblé, o
abolição da escravatura e os maracatus eram folguedos de negros
Sítio do Pai Adão, em Água Fria, embora a sua iniciação religiosa
escravos. Ressalte-se, ainda, que, no Recife, o dia 8 de dezembro é
não tenha acontecido lá. Os pais de santo de Luís de França foram
dedicado a Iemanjá e a Nossa Senhora da Conceição, esta última,
Eustachio Gomes de Almeida e Maria Júlia do Nascimento, a Dona
a representação católica, no sincretismo religioso, daquele orixá do
Santa do Maracatu Nação Elefante.
Luca Barreto
Rodrigo Ramos
africano ex-escravo. O brinquedo era o Maracatu Leão Coroado.
Apresentação na cidade de Goiana, 2003.
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Rei do Maracatu Leão Coroado.
O líder começou a participar do maracatu quando a sede ficava no
conforme garante o babalorixá Afonso Aguiar, que integra o
bairro da Boa Vista, numa rua que hoje se chama Leão Coroado.
grupo a partir de 1996 e conduz a agremiação desde a morte de
Foi membro da Irmandade de São Benedito da Igreja de São
França, em 1997.
Gonçalo da Boa Vista e da Irmandade do Rosário dos Homens Pretos de Santo Antônio. Um dirigente desta última, José Luís, foi
Na função de rei e rainha, o Leão Coroado teve Estanislau, João
quem passou ao afilhado Luís de França a direção do folguedo.
Baiano, José Nunes da Costa, José Luís, Gertrudes Boca-de-Sola,
Daí em diante, o decidido líder passou a cuidar da organização
Martinha Maria da Conceição e Dona Santa. Esta última, uma das
do grupo, das obrigações religiosas e da direção da batucada,
mais imponentes rainhas de maracatu, filha e neta de africanos,
cujo baque secular aprendera com o pai e com os avós. Passado
marcou presença, sobretudo no Maracatu Nação Elefante. As
por Luís de França, continua mantido o mesmo baque tradicional,
calungas são pretas, de madeira, e existem desde a fundação do grupo: uma delas representa Oxum, é Dona Clara; a outra, que representa Iansã, chama-se Dona Isabel. Durante mais de quatro décadas – provavelmente de 1954 até a morte, em 3 de maio de 1997 – o mestre Luís de França guiou o grupo com dedicação extremada, a ponto de provocar elogios da pesquisadora norteamericana, antropóloga Katarina Real, que, no início dos anos 1960, realizou pesquisa sobre o folclore no carnaval do Recife. À época, Katarina considerava o Leão Coroado a única legítima nação de maracatu ainda existente. São desse período diversos troféus conquistados pela agremiação. Em outubro de 1996, França convida Afonso Gomes de Aguiar Filho para sucedê-lo na liderança do grupo. Após amargar uns anos de isolamento e consequente retração do maracatu, o filho de Xangô acerta em adotar a sugestão do presidente da Comissão Pernambucana de Folclore, pesquisador Roberto Benjamin, quanto à indicação de Afonso Aguiar, que, desde então, tem conseguido realizar importantes viagens e apresentações em São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Paraná, Santa Catarina, França, Holanda, Bélgica, Suíça, Espanha, Itália, Timor Leste, Ilhas Canárias. A comemoração dos 140 anos, em 2003, foi marcada pela gravação de CD, ao vivo,
Luca Barreto
com as toadas tradicionais do grupo. Voltando, ainda, a 1997, o mesmo ano da morte de Luís de França, em 22 de dezembro é instituído o Dia Estadual do Maracatu: pela Lei 11.506, fica escolhido o 1º de agosto, em homenagem à data de nascimento Mestre Afonso e o centenário bombo-mestre.
daquele mestre.
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Nascido na Campina do Barreto, Recife, em 15 de março de 1948, o mestre Afonso comanda há mais de 20 anos um terreiro em Águas Compridas, Olinda, para onde transferiu a sede do maracatu e todo o acervo do grupo. Ao longo do ano, desenvolve dinâmica de ensaios, aulas de percussão e toque de candomblé, oficinas de feitura e manutenção dos instrumentos musicais, de confecção do vestuário do maracatu, além de outras atividades educativas, como a preparação de um corpo de baile de danças afro. Todas as ações, tanto as preparatórias ao Carnaval quanto as pedagógicas envolvem continuamente a comunidade, sob a coordenação geral de Afonso Aguiar, que, inclusive, tem comandado oficinas de percussão e de confecção de instrumentos no Brasil e no exterior, a exemplo do Festival do Caribe, em 2009, na cidade de Santiago de Cuba. Seguidor fiel do mestre Luís de França, empolgado com a repercussão do primeiro CD e preocupado com a manutenção do grupo, o dedicado Afonso anuncia que o master do segundo disco está pronto e que as
Luca Barreto
comemorações do sesquicentenário já estão sendo planejadas. Na primeira edição do Prêmio Cultura Viva (2005/2006), do Ministério da Cultura, o maracatu foi uma das iniciativas contempladas, na categoria manifestação tradicional. A partir As diferentes gerações no batuque do Maracatu.
de maio de 2008, o grupo é transformado em Ponto de Cultura. Instalado no mesmo endereço da sede do maracatu, lá funciona Rodrigo Ramos
um telecentro, com cursos básicos de informática e acesso 24 horas à internet, para atendimento de demandas da comunidade, em todas as faixas etárias. Com firmeza, o mestre mantém rotina semanal de ensaios e de trabalho. A triagem de novos integrantes obedece a exigentes normas de conduta social. Provavelmente, o sucessor das tradições do terreiro e do maracatu será Afonsinho, o neto nascido em 1997, que toca nas obrigações da seita e tem comandado, quando necessário, a batucada do maracatu. Entretanto, como frisa o mestre Afonso, o Leão Coroado é mais religião do que carnaval. Com as bênçãos todas de Olorum, eguns Dama do Paço e sua Calunga.
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e orixás.
Luca Barreto
ZĂŠ do Carmo
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asseando pelos labirintos da memória do artista e pelos objetos mais recônditos do ateliê de José do Carmo Souza, conhecido internacionalmente pelas estátuas de anjos cangaceiros, descobrese uma encantadora obra poética, uma narrativa visual do barro massapê, que não se sabe exatamente quando e com quem começa em Goiana, mas registra, com certeza, a importância do legado materno de Joana Izabel de Assunção e dos filhos talentosos. A mãe – oleira, artesã, costureira – fazia figuras de barro e de pano, mané-gostoso e rói-rói. O pai, padeiro, fazia máscaras em papel machê para vender aos foliões, o molde era em barro e a modelagem em papel e grude. Manuel de Souza dos Santos e Joana Izabel de Assunção chegam a Goiana no ano de 1930, vindos de Igarassu, onde nasceram. Casados a partir de 1932, é um ano depois, em 19 de dezembro de 1933, que nasce o primogênito, Zé do Carmo. Conhecido desde 1947 no circuito artístico, autor de respeitável
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Luca Barreto
Luca Barreto
conjunto de esculturas cerâmicas tão originais quanto às da mãe,
Escultura de anjo cangaceiro seria presenteada ao Papa e a Igreja Católica se recusou a receber.
Luca Barreto
Luca Barreto
Luca Barreto
Zé do Carmo e suas obras: um negro recém-liberto, pela "Princesa Isabel".
foi com apenas sete anos, em 1940, que Zé do Carmo começa a
própria mãe, que não queria que o artista modelasse anjos com as
fazer figurinhas de barro, pintar com tinta d’água, como faziam
vestimentas do cangaço. Daí por diante, ganham asas, espingarda
os pais artistas, e vender nas feiras de Goiana. Os dois irmãos,
e ares nada angelicais os beatos de movimentos messiânicos, os
João Antônio de Souza e Manuel Miguel de Souza, também
cangaceiros Lampião e Maria Bonita, entre outros personagens da
aprenderam o ofício dos pais. Das peças mais antigas de Zé,
cultura regional – o que resultou em polêmicas, sobretudo quando
destacam-se figuras de mendigo, agricultor, carregador de açúcar,
Zé do Carmo ofereceu ao papa um monumental anjo cangaceiro
Preto Velho, anjo cangaceiro, apanhador de papel, apanhador
e o presente foi recusado. Medindo cerca de dois metros, a
de água, vendedor de couro, jornaleiro, Lampião, Maria Bonita,
escultura é mantida no ateliê, além de uma outra, em menor
carregador de água, tocador de bandolim, Padre Cícero, Nossa
proporção, também rejeitada pela Igreja, e mais um Papai Noel
Senhora Artesã, São Pedro Pescador (o padroeiro de Goiana). No
nordestino, de gibão, alpercatas e chapéu de couro. Em 1982,
acervo pessoal, conta com peças autorais feitas há cerca de 40 e
criou o Vovô Natalino, um velho simpático de aspecto messiânico
50 anos. Há uma rendeira que criou entre 1949 e 1950, quando,
medindo 1,80 m, que faz Gilberto Freyre escrever artigo no Diario
segundo confessa, ainda copiava as figuras da mãe. A iniciação,
de Pernambuco, de 2 de janeiro de 1983, louvando “bom e bravo
obviamente, foi com ela e o pai, mas o aluno atento, que cursou
repúdio ao Papanoelismo que vem descaracterizando os bons
apenas o Ensino Fundamental, sempre se valeu da observação e do
Natais castiçamente brasileiros...”.
autodidatismo para aperfeiçoar a técnica e dar vazão às invenções artísticas.
Sobre a engenharia das peças gigantescas, o artista explica: constrói um bloco até a cintura e espera secar. Depois que
Depois que a mãe morreu, em 1972, Zé do Carmo inaugura uma
está enxuto, torna oco esse bloco e levanta o restante. Em
nova fase criativa, a que chama de “transfiguração humana”,
seguida, modela os detalhes do corpo e do rosto. As peças ficam
pois transforma anjos em cangaceiros, a despeito da vontade da
alicerçadas numa base de barro e pousam sobre um suporte de
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Flávio Barbosa
madeira com rodízios. Para ele, os primeiros trabalhos eram populares demais. Depois disso, acredita que conseguiu modelar figuras de proporções acadêmicas, como o Padre Cícero que mantém no acervo exposto no ateliê. Tem, ainda, um busto de São Pedro jovem, que fez seguindo o padrão de escultura neoclássica: proporção seguida à risca, com detalhes do rosto bem-delineados. Durante muitos anos, foi professor de modelagem em barro e de proporção. Escultor também em pedra, prova isso com um busto exposto em meio às peças mais antigas. É inegável que, além da observação do artista, o talento sobressai, garantindo a qualidade e a adesão de discípulos. E não foram poucos os ceramistas que passaram pelo ateliê de Zé do Carmo, na condição de aluno: Irene, Mário Pintor, Severino, George, Tog, Luiz Carlos, Luiz Gonzaga, Précio Lira, Dica, Andréa Klimit e Tiner Cunha. O único filho que possui não é discípulo, mas, segundo o próprio pai, tem talento para a arte. Dedicado desde 1980 à pintura, o tema preferido nas telas é o mesmo das esculturas: anjo cangaceiro.
Lívia Froes
Flávio Barbosa
Zé do Carmo hoje e as obras Zumbianjo e o anjo-cangaceiro.
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Luca Barreto
Homem da Meia-Noite 55 68
e fraque, cartola, gravata borboleta, dente de ouro, lá vem o Homem da Meia- Noite, vem pela rua a passear, enfeitiçando os céus olindenses e arrancando suspiros de amor. Claro, é o mais afamado galante, o grande Don Juan do carnaval de Olinda e não é, de maneira alguma, simplesmente um boneco, é calunga, com todos os atributos e segredos que essa palavra suscita. A figura do sorridente cavalheiro, envolta em mistérios e rituais próprios, é associada ao candomblé, pois foi no dia 2 de fevereiro de 1932, data dedicada a Iemanjá, que o calunga de madeira desfilou Luca Barreto
pela primeira vez na tradicional folia. O Homem da Meia-Noite, com cerca de quatro metros de altura, é o mais antigo boneco gigante de Olinda. Nascido na categoria “troça” em 1932, passa a clube de alegoria e crítica a partir de 1936. É de muitos anos, Saída do Homem da Meia Noite, Estrada do Bonsucesso, Olinda, 1998.
portanto, que o galanteador vem arrancando suspiros de moças e senhoras postadas à janela para ver o amado passar: ele próprio em figura de gentleman anima as ladeiras do sítio histórico desde a madrugadora invenção na longínqua década de 1930. As ruas estreitas, sobretudo a do Amparo, e o Largo do Bonsucesso testemunham a alegria e irreverência dos foliões que gastam pelos menos quatro horas para acompanhar um dos desfiles mais cobiçados da folia olindense. O percurso é praticamente o mesmo desde o princípio, e o boneco vai desfilando trajado de verde e branco, com um relógio na lapela
Reprodução
e a chave da cidade nas mãos. A saída acontece pontualmente
Fotografia da sede da banda nos anos 1990.
à meia-noite do sábado de Zé Pereira, partindo da sede, que fica em frente à igreja do Rosário dos Homens Pretos, no Bonsucesso. O local é marcado pela prática de tradições culturais de negros escravos, desde a construção do templo religioso na segunda metade do século 17, e, inclusive, foi essa a primeira igreja em Pernambuco a ter irmandade de homens pretos. Nenhuma estranheza, portanto, quanto à ligação do calunga com o candomblé, mesmo que a aura de misticismo se misture à irreverente balbúrdia momesca, em meio a orações e oferendas com cachaça na troca de roupas do calunga, nos preparativos do sábado à tarde.
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Luiz Henrique Santos Reprodução
Saída oficial do Homem da Meia Noite, no Carnaval de 2003.
A existência do grupo carnavalesco se deveu a uma dissidência de integrantes da Troça Carnavalesca Mista Cariri, fundada em 1921 e que àquela época era quem abria o carnaval, saindo às quatro da manhã do domingo. O exímio entalhador Benedito Bernardino da Silva, ou “Benedito Barbaça”, o encadernador Cosmo José dos Santos, o pintor de paredes Luciano Anacleto de Queiroz, acompanhados de Sebastião Bernardino da Silva, Eliodoro Pereira da Silva e do sapateiro Manoel José dos Santos, apelidado “Neco Monstro”, ao se sentirem excluídos da diretoria daquela troça decidiram criar uma nova agremiação que “desse uma rasteira no Cariri”, conforme conta o pesquisador Olimpio Bonald Neto, no livro Os gigantes foliões em Pernambuco. O autor refere, aliás, que esse não foi o primeiro gigantone a aparecer no carnaval pernambucano: o mais antigo registro é creditado a Zé Pereira e Vitalina, bonecos nativos da cidade sertaneja de Belém do São Francisco, criados respectivamente em 1919 e 1929. Quanto ao surgimento do boneco olindense, pelo menos duas versões explicam a genealogia do fenômeno: uma delas credita ao cinéfilo e fundador Luciano Anacleto de Queiroz a inspiração a partir do filme O ladrão da meia-noite; a outra atribui a Benedito
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Bernardino, fundador e autor do hino da agremiação, a construção do calunga a partir de alegado flagrante de certo namorador, alto, elegante e sorridente, que andava principalmente na madrugada do sábado para o domingo, sempre de verde e branco, com chapéu preto e dente de ouro. Jaqueline Silva
A dissidência do Cariri foi tramada em dezembro de 1931. Para dar forma ao boneco que ganharia as ruas à meia-noite do sábado de Momo, os fundadores Benedito Barbaça e Luciano de Queiroz tomaram todas as providências de marcenaria e pintura, na
O relógio. Carnaval de 2014.
Reprodução
modelagem daquele que seria o boneco dos primórdios do grupo. Originalmente, o calunga pesava mais de 55 quilos, porque, além da armação em madeira, a cabeça, o busto e as mãos eram feitos em papel gomado; os braços, recheados com palha de colchão; nas mãos, areia para dar peso e equilíbrio às evoluções executadas ao som do frevo. Evidente que o boneco passou por um processo de reengenharia, a fim de perder peso e, assim, aliviar a carga do carregador ou “chapeado”. Um dos mais ilustres carregadores foi Alcides Honório dos Santos, Cidinho, que durante mais de quatro décadas deu vida e alma ao boneco. Bastos “Botão”, Henrique Alabamba, Amaro de Biluca, Paulo 19, Pedro Garrido compõem a galeria dos chapeados do Homem da Meia-Noite. Saída dos clarins à cavalo na frente da agremiação, década de 1980.
Esses históricos nomes animam, há décadas, a algazarra de foliões inveterados, além dos novatos que são acrescidos às ladeiras estreitas de Olinda, a cada ano. E o mais animador é saber que a alegria repercute durante todos os meses, com o projeto social Gigante Cidadão – Ponto de Cultura nacional desde 2005 – que oferece, de segunda a sábado, na sede do clube, oficinas de música, dança, teatro e vídeo a cerca de 50 crianças da comunidade. Apreciando de dentro ou de fora do boneco, quem Costa Neto/SecultPE
haveria de resistir a esse fogoso e ao mesmo tempo sóbrio cidadão olindense, a esse magnético sorriso de manequim, a essas gigantes pernas de pau dançando na multidão?
O atual presidente da agremiação, Luiz Adolpho.
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Luca Barreto
Ă?ndia Morena 59 64
ontorcionista, trapezista voadora, acrobata, cantora, ginasta, atriz circense. Eis aí alguns dos atributos da grande dama do circo pernambucano: Margarida Pereira de Alcântara. Ou, Índia Morena, nome artístico deliberadamente escolhido por serem índios o pai e a avó paterna. Destacada pela dedicação profissional exclusiva à vida circense, Margarida convive desde os 10 anos com o magnetismo do mundo dos mágicos, palhaços, humoristas, rola-rola, malabaristas, equilibristas. Na verdade, a estreia na vida artística foi inaugurada, a partir de 1952, em shows de calouros, nas matinês infantis promovidas pelo Circo Democratas, que aconteciam na Vila de São Miguel, bairro de Afogados, Recife, onde àquela época o circo estava montado. Aos 12 anos, a cantora mirim já interpretava, com alma, canções de Vicente
Luca Barreto
Celestino, Ângela Maria, Núbia Lafayete. Filha de Eloy Pereira de Alcântara e Maria das Dores de Alcântara, Margarida nasceu no Recife, em 13 de julho de 1943. Órfã de pai aos nove anos, interrompeu os estudos no terceiro ano primário e não havia grande expectativa de desenvolvimento profissional, sequer de realização artística, para essa criança nascida e criada dentro da maré, pescando crustáceos nos mangues de Afogados para ajudar na sobrevivência da família. Adotada por Severino Ramos de Lisboa – o palhaço Gameloso – e afilhada de crisma de Maria Tenório Cavalcanti – a dona do antigo circo Itaquatiara Real, no qual Índia se engajou a partir de 1º de julho de 1953, contra a vontade materna –, essas confluências resultaram, claro, do talento evidente da jovem circense e contribuíram para o florescimento de singular trajetória artística. E mais: vieram acrescentar novos elementos à história dos circos populares do Brasil. Além de realizar viagens pelos Estados Unidos, Argentina, Paraguai, Uruguai, Bolívia, trabalhando em diversos circos – dentre
Luca Barreto
os quais o Gran Bartolo, o Garcia, o Itaquatiara, o Edson, o Águia
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de Prata, o Coliseu Mirim, o New American Circus –, Índia Morena organizou, com a participação de Albemar Araújo, a coletânea Dramas Circenses, em que foram transcritos seis tradicionais
Luca Barreto
Luca Barreto
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Apresentadora do próprio circo, Índia Morena inicia mais um espetáculo, dessa vez no subúrbio de Jaboatão.
dramas encenados nos circos populares, tais como A louca do jardim e Lágrimas de mãe. As peças teatrais, cedidas por Índia, fazem parte do acervo da Associação dos Proprietários e Artistas fundada em 1993 por Índia Morena e pelo marido, Maviael Ribeiro de Barros. O livro, contendo 161 páginas, foi publicado em 2006,
Luca Barreto
Circenses do Estado de Pernambuco (Apacepe), organização
pela Fundação de Cultura Cidade do Recife. Índia Morena considera o circo “o palácio onde vive com alegria” desde os 13 anos, quando decidiu largar totalmente a mãe e entregar-se de vez ao picadeiro: passou no teste de caloura e foi contratada para trabalhar no Itaquatiara. “Ali, eu vi o mundo”: foi assim que nasceu para a vida artística, ao mergulhar desde a primeira vez na lona de um circo e depois sagrar-se como trapezista voadora e melhor contorcionista pernambucana. Depois do Itaquatiara, trabalhou como ginasta e cantora num circo de Prata, de propriedade de Euclides Águia de Prata que, depois, passou a ser o Circo Edson. Ainda participou do Coliseu Mirim,
Renata Pires
Olinda, o Circo do Palhaço Violino. Atuou no Circo Águia de
pertencente a um funcionário da prefeitura do Recife, conhecido
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Luca Barreto
Luca Barreto
Luca Barreto
por Benigno. Em meio ao talento e à dedicação integral à carreira,
irreverentes, com equilibristas, contorcionistas, transformistas,
ia consolidando-se um contínuo processo de aprendizagem no
engolidores de faca, malabaristas, pernas-de-pau, escada giratória
próprio meio circense, a partir do convívio com grandes nomes
e mais quatro palhaços. A temporada em cada local é variável,
do circo e da ousadia de cada nova experiência. Entretanto, em
conforme a aceitação do público. Os espetáculos são geralmente
meio aos prazeres e conquistas da biografia artística, um grande
noturnos, mas há também matinês nos finais de semana e
desgosto na vida de Índia Morena quase a leva à bancarrota:
feriados. A folga é sempre na segunda-feira.
a traição do ex-marido com uma menina de circo resultou em doença e lesão pulmonar, com prolongado internamento no
O Gran Londres, itinerante como deve ser todo circo de
hospital Otávio de Freitas. Foi aí onde conheceu o atual marido,
tradição, circula, sobretudo, pelos arredores do Recife e Região
que nada sabia de circo e, entretanto, aceitou abraçar o ofício,
Metropolitana, a exemplo de Jaboatão, Paulista, Abreu e Lima.
acompanhando-a ainda hoje.
Aonde o circo vai, agrega as bandas de música locais, fisga o público com espetáculo tradicional e ainda oferece uma atração
Desde 1977 possui, com Maviael, o Gran Londres Circo, pois o
única: um bode pagador de promessa, que sobe uma rampa,
antigo proprietário do Circo Edson, falido, e para quem Índia
ajoelha-se e beija uma imagem de Nossa Senhora Aparecida,
Morena trabalhava, doou parte do negócio a título de pagamento
padroeira do Brasil. “Eu só tenho o terceiro ano primário, mas
pelos serviços prestados por ela à companhia circense. Índia nele
quem tem o primeiro ginasial não vai comigo, não, porque eu
injetou experiência e recursos próprios e é no Gran Londres que,
aprendi muita coisa em teatro”, vangloria-se a artista, que também
desde essa época, vai exibindo as múltiplas habilidades aprendidas
não esquece a dureza da infância mergulhada na lama, catando
em todo o percurso artístico, cantando e apresentando os
caranguejo. Apesar de todas as mazelas, Índia segue cantando
espetáculos. Em meio a uma trupe com mais de 20 integrantes,
e louvando a magia do circo, com a elegância e o magnetismo
contracena com um palhaço cantor e compositor de músicas
próprios de uma grande dama circense.
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JosĂŠ Costa Leite
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versatilidade tem marcado a trajetória do cordelista, xilógrafo Luca Barreto
e autor de almanaque popular. Nascido a 27 de julho de 1927, em Sapé, na Paraíba, o filho de Paulino Costa Leite e Maria Rodrigues dos Santos radicou-se em Condado, Pernambuco, a partir de 1955. José Costa Leite estreou na literatura de cordel em 1947, vendendo, declamando e escrevendo folheto de feira. O primeiro almanaque foi feito em 1959, para o ano de 1960, e chamava-se, àquela época, Calendário brasileiro. As primeiras xilogravuras são de 1949, para os folhetos, de própria autoria, O rapaz que virou bode e a Peleja de Costa Leite e a poetisa baiana. Na infância e adolescência, trabalhou na cana, plantou inhame, foi cambiteiro, cambista, mascate, camelô de feira. Xilogravador Luca Barreto
primeiramente por obra da necessidade, ou seja, a de produzir a capa dos próprios folhetos, Costa Leite conseguiu aprimorar o talento para as artes plásticas nessas seis décadas de familiaridade com a madeira, quicé, goiva e formão. Como acontece a diversos autores de cordel, o talento extrapola o mundo da escrita. É ele quem desenha e talha na madeira e depois imprime no papel as ilustrações de capa dos próprios folhetos. Conforme tradição dos gravadores populares pernambucanos, que se iniciaram a partir do Luca Barreto
diálogo com a poesia, aprendeu sozinho a arte da gravura, vendo
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fazer e experimentando.
Luca Barreto Luca Barreto
Luca Barreto
Os primeiros cordéis chamavam-se Eduardo e Alzira – “uma historinha de amor”, conforme classificação do próprio poeta – e Discussão de José Costa Leite com Manuel Vicente, cujos temas eram “se não casar perco a vida” (Costa Leite) e “eu morro e não caso mais” (Manuel Vicente). Essas primeiras publicações não tinham ilustração de capa, apenas os letreiros. Voz imortalizada, na década de 1970, em três LPs gravados no Conservatório Pernambucano de Música, nos quais deixou registradas grandes histórias de cordel, Goiana. Atualmente continua indo, sozinho, de madrugadinha e em transporte coletivo, vender folheto em Itambé, cidade pernambucana em que o outro lado da avenida principal é Pedras
Luca Barreto
Costa Leite já cantou muito na feira da cidade onde vive e na vizinha
de Fogo, Paraíba. São duas cidades, dois estados numa mesma geografia, espécie de síntese da vida do poeta. Assim que se encerra a feira, por volta do meio-dia, segue para Itabaiana, Paraíba, dorme lá, e, dia seguinte, passa a manhã cumprindo um ofício que exerce há mais de seis décadas. Cantava e vendia bem nas feiras. Ainda dá voz a uma ou outra estrofe. Às vezes, recita e canta trechos de folheto da própria autoria, como O sanfoneiro que foi tocar no inferno, e mais alguns versos de outros autores, a exemplo de O navio brasileiro, clássico de Manoel José dos Santos. A diversidade de temas na obra de Costa Leite: o amor, o sertão e a beleza da mulher.
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Costa escreve diariamente. Aventura, discussão, exemplo são alguns dos temas preferidos. Criou pelejas fictícias com importantes personagens do mundo da cantoria de viola, como Preto Limão, Severino Borges Silva, Patativa do Assaré, Ivanildo Vila Nova. Publica versos fesceninos sob pseudônimo para, segundo ele próprio, não manchar a reputação do restante da obra. Assina H. Renato, João Parafuso, Seu Mané do Talo Dentro, Nabo Seco nos folhetos de safadeza, cheios de picardia e duplo sentido, como A mulher da coisa grande, A pulga na
Luca Barreto
Jaqueline Silva
camisola. Frequentador assíduo da capital, semanalmente vem ao Recife entregar originais ou receber edições produzidas na Editora Coqueiro. Viajava muito a Olinda, entre os anos 1970 e 1990, quando editava os folhetos na Fundação Casa das Crianças. Tem, também, folhetos impressos na editora Tupynanquim (Fortaleza, Ceará), do poeta e artista gráfico Klévisson Viana. Entretanto, independentemente de quem imprime, todas as publicações autorais recebem o selo A voz da poesia nordestina, de José Costa Leite. E recebem, na capa, xilogravuras do próprio autor. No campo da astrologia, continua a escrever o Calendário nordestino, distribuído para todos os estados do Nordeste, Rio de Janeiro e São Paulo. Sobre os cordéis, não tem a menor ideia da quantidade de histórias que fez chegar a leitores e ouvintes, além dos muitos manuscritos inéditos que guarda nas gavetas. Contudo, para além de todas essas rememorações, há muito mais: Costa Leite, andarilho das tradições, é testemunho vivo de mais de 60 anos de peregrinação por feiras e mercados de Pernambuco, da Paraíba, do Ceará. São mais de oito décadas com vigor físico e memória suficientes para comercializar os folhetos que produz e recapitular parte da história das edições
Luca Barreto
populares brasileiras, da qual é um dos protagonistas.
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Acervo pessoal de JCL contém manuscritos, matrizes, xilogravuras, estoque de cordéis variados.
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Confraria do Rosรกrio
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o som de caixa, zabumba e pífanos, o último dia do ano em
Álvaro Ferraz, no livro Floresta: Memórias duma cidade sertaneja
Floresta é solenemente comemorado: a secular irmandade
no seu cinquentenário: Oi Quenda, oi Quenda, / Oi Quenda,
denominada Confraria do Rosário reservou, no calendário
Maravi’a! / Hoje é dia do Rosário / Do Rosário de Maria. Pequenos
religioso, o 31 de dezembro para festejar Nossa Senhora do
agricultores e criadores das Fazendas Paus Pretos e Boqueirão,
Rosário, a patrona dos confrades. Paralelamente, a cidade
empregados de um curtume e funcionários públicos compõem o
comemora a festa do padroeiro, o Bom Jesus dos Aflitos. Assim,
grupo, formado por habitantes da zona rural e também da sede
no início da manhã, os fogos logo denunciam: é chegado o dia do
do município.
desfile e coroação dos reis, que, em azul e branco, se apresentam
séquito de juízes, todos trajados de branco, os componentes da
socioeconômico e cultural floresceu a irmandade religiosa, que,
confraria cantam, louvando a Senhora do Rosário: Virgem do
conforme registros datados de 1792 e depoimento de João Luiz da
Rosário, sois uma alta rosa / Que entre as mais flores sois a mais
Silva, rei perpétuo desde 2007 e representante legal da instituição,
formosa – ou com antigas loas, como a registrada, em 1957, por
há mais de 200 anos a confraria existe na cidade de Floresta
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isso mesmo, é símbolo de resistência negra. Nesse contexto
Luca Barreto
A comunidade é, sobretudo, formada por quilombolas e, por
cortejo, com estandarte, guarda de honra armada de espada e
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ornados com manto, cetro e coroa. Acompanhados de vistoso
Priscilla Buhr
Priscilla Buhr
dos Navios, sertão de Itaparica. Composta por 36 membros, sobretudo antigos guardiões da tradição, a cada ano o ritual se repete sempre no mesmo dia, com a missa matinal e mesa farta à base da culinária regional para todos os que estiverem na festa, e entra pela tarde, quando são coroados os novos reis para o ano seguinte, conforme escolha das juízas (às vezes, a decisão decorre da necessidade de pagamento de promessa). À noite, a irmandade prestigia a missa do padroeiro e sempre faz questão de que o dia dedicado aos negros seja o melhor do novenário. A Igreja do Rosário é o ambiente onde se desenrola parte da festa. Construída em 1777, pelo capitão José Pereira Maciel, em homenagem ao Senhor Bom Jesus dos Aflitos, na localidade denominada Fazenda Grande, de onde se originou a cidade de Floresta, sabe-se que somente em 1792 é que a igreja foi inaugurada, e, segundo tradição oral, desde essa data a confraria existe, embora somente a partir de 1897 o templo passe a ser dedicado a Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, quando o padroeiro da cidade, o Bom Jesus dos Aflitos, ganhou novo templo defronte. Tais irmandades, a exemplo da Confraria do Rosário, incluem-se, conforme defende o pesquisador Veríssimo de Melo, entre as “várias formas de reações contra-aculturativas dos negros no Brasil”. A existência de irmandades religiosas de homens pretos e suas respectivas cerimônias estão sempre intimamente
Reprodução de fotografias antigas do acervo do grupo.
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associadas às festividades de coroação de reis e rainhas e é uma
morrer, passou o cargo para Manuel Caetano, ou Jubileu, que tem
recorrência em folguedos e danças brasileiros, a exemplo de
33 anos. Hoje, os espadachins são todos jovens, menos Seu João,
reisados, congadas, maracatus, cambindas, pretinhas do congo.
que tem 80 anos. Cabe aos espadachins a proteção do cortejo real, cruzando as espadas a fim de que rei e rainha possam passar
precedidos por oito espadachins e acompanhados de 11 juízes.
combate ou luta de espadas. Na procissão, São Benedito abre o
Há cinco juízas principais, estas são as mais antigas integrantes
cortejo dos santos, acompanhado da imagem histórica de Nossa
do grupo, a quem todos devem obediência, inclusive rei e rainha.
Senhora do Rosário e do Bom Jesus dos Aflitos. Uma banda de
Entre elas, uma é juíza do rei, outra é da rainha. Há, ainda, dois
pífanos, composta por quatro músicos – dois pífanos, uma caixa
juízes do andor, dois para as espadas e duas juízas são do altar.
e uma zabumba –, vai executando músicas religiosas. Apenas na
O cortejo, segundo antigos relatos, era composto por quatro
volta da missa, alterna repertório variado com a banda de música
espadachins, sendo dois velhos e dois jovens. Conforme dá conta
da cidade, tocando inclusive frevo, forró, maracatu. João Grande,
João Luiz, Manuel Preto foi um grande espadachim que ocupou a
que foi rei perpétuo durante cerca de duas décadas, certamente
função desde criança e por mais de 70 anos. Entretanto, antes de
estaria satisfeito vendo perpetuar-se a festa dos ancestrais.
Tesoureiro Quinca Leocádio e Rei Perpétuo João Luiz.
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Rainha Perpétua Lúcia de Amaro, falecida em junho/2010.
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também realizam movimentos que se assemelham a um imaginário
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por todas as portas que estiverem no caminho até à igreja. Eles
de onde sai a rainha para, com o rei, seguirem à igreja. São
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A 500m das duas igrejas, está a sede da Confraria do Rosário,
Juiz das Espadas Manoel Cassiano e Espadachim Fernando.
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Zezinho de TracunhaĂŠm 71 76
e cambiteiro, cortador de cana e agricultor chegou a pedreiro e barbeiro, num tempo em que, nos anos 1960, de dia labutava na construção civil e à noite, na cerâmica. Para aumentar o orçamento, também se virava nas artes da barbearia. O estalo que desencadeou toda a carreira artística aconteceu no dia 20 de abril de 1966, conforme registrado no jornal Gazeta de Nazaré, em artigo escrito pela jornalista Marliete Pessoa e publicado a 27 de agosto de 1966: “No cortiço do velho prédio do Acadêmico, nasce mais um artista do povo”. Soldado, boêmio, músico,
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valentão, vendedor de milho assado e de amendoim, mendigo de braço cotó, marceneiro, pedreiro, ferreiro: essas são as primeiras figuras que reinam na gênese da estatuária do mestre Zezinho. Os primeiros ensaios de modelagem resultam de inquietações e descobertas próprias de artista, a partir da observação do trabalho
Zezinho, ao lado da escultura de São Francisco de Assis.
de Lídia Vieira nas visitas inspiradoras à vizinha Tracunhaém. O artista lembra, entretanto, que a primeira peça foi um par de namorados, encostado na porteira de um engenho de açúcar, com cerca de 20 cm de altura. Nessa época ele vivia em Nazaré, era trabalhador rural e o barro que esculpia vinha de um engenho próximo, o Alcaparra.
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Detalhes da obra do autor.
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Filhos se dedicam ao mesmo ofício.
A estreia no cenário artístico aconteceu na 1ª Exposição de Arte
dos principais incentivadores e divulgadores da obra do santeiro
Popular em Nazaré da Mata, na biblioteca municipal, organizada
foi o colecionador pernambucano Abelardo Rodrigues, que
pela jornalista que escreveu o artigo, e inaugurada a 1º de outubro
frequentemente visitava o artista e encomendava trabalhos.
de 1966, mesmo ano em que o escultor se inicia e é descoberto pela jornalista. Exibe 60 bonecos. Nessa mesma década, dois
Há mais de 40 anos radicado naquela cidade da Mata Norte, José
anos depois, ou seja, em 1968, decide morar em Tracunhaém
Joaquim da Silva não calculava que conquistaria alguma fama
e dedicar-se exclusivamente ao trabalho de ceramista. Era a
com os gigantescos santos de barro, pois sequer tinha parentes
época em que os famosos da região eram José Antônio e Lídia
envolvidos com a arte cerâmica, quando optou pelo ofício.
Vieira, então viúva do renomado santeiro Severino. O filho de
Constituída a fama de homem talentoso, calcada na inventividade
Júlia Batista da Cruz, que nasceu em Vitória de Santo Antão, a 5
de peças como José e Maria Grávida, Lampião, Maria Bonita, São
de julho de 1939, jamais havia pensado que antes dos 30 anos
José de Bota, Pietà, é que os filhos e a esposa também passaram a
fosse viver em Tracunhaém e se sustentar do ofício de ceramista.
viver do artesanato em barro, cuja matéria-prima vem da Paraíba.
Nem mesmo imaginou que receberia o título de cidadão daquele
A esposa, Maria Marques, mais quatro dos nove filhos – José
município, o que aconteceu em novembro de 2002. Honraria que
Carlos, Josenildo, Cláudio e Fernando –, e dois dos13 netos –
vem se somar à comenda Troféu Construtores da Cultura Cidade
Lucas (filho de Carlinhos) e Bruno (filho de Cláudio) –, todos eles se
do Recife, recebida em 1992, e ofertada pelo então prefeito da
inspiraram na labuta de Zezinho e passaram a trabalhar as próprias
capital pernambucana. Além da jornalista Marliete Pessoa, um
peças em regime semicoletivo, envolvendo-se com o conjunto
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das etapas, que vão desde o preparo do barro até à modelagem, secagem, queima em forno a lenha e coloração das esculturas. Nelas, predominam os motivos sacros, dondocas e namoradeiras. Algumas das obras do mestre recebem dele mesmo uma certificação de autenticidade, como é o caso da peça São Francisco sentado olhando para o céu, registrada como peça única e com data de conclusão em 1º de setembro de 2004. A temática preferida do artista é a sanfranciscana, em que o santo e pássaros são esculpidos em grandes proporções. Especialista em imagens sacras, grandioso é o aspecto visual da obra de Zezinho, que adora Jaqueline Silva
modelar peças com dois metros de comprimento e prefere pintálas com tinta terracota. Na Mata Norte, Tracunhaém, topônimo indígena que significa panela de formiga, testemunha há décadas o florescimento de diversos artistas do barro, tais como Antônia Leão, Lídia Vieira, Severino Gomes de Freitas, Nuca, Maria Amélia. O mestre Zezinho, um dos mais antigos ceramistas vivos naquela cidade, tem obras espalhadas pelo mundo, em museus, igrejas, coleções particulares. Sua obra tem figurado em inúmeros salões de arte, coroando décadas de habilidades manuais e invenção.
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Luca Barreto
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Zezinho, em seu ateliê na cidade de Tracunhaém.
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Caboclinho Sete Flexas 92 75
uem são vocês que vêm da jurema?” Esta é pergunta que pode ser feita a um mestre daqui, mais precisamente a José Severino dos Santos Pereira, o Mestre Zé Alfaiate, sócio fundador do Caboclinhos 7 Flexas, desde 7 de setembro de 1971, no bairro de Água Fria, Recife. Com a finalidade, expressa no estatuto, de “promover e desenvolver atividades carnavalescas, recreativas, sociais e culturais”, Alfaiate lembra que criou a brincadeira no ano de 1969, em Alagoas. Nessa época, em que frequentava terreiro de umbanda, certa vez sonhou com o Caboclo Sete Flexas – “cacique, pajé, deus do sol e deus da lua, moreno, alto, foi criado sozinho nas matas e é curandeiro” – a quem fez pedido. Portanto, graças a promessa, e como oferenda, decidiu que criaria o clube, sob a proteção daquele guia, exatamente por considerar unha e carne caboclinho e jurema. Nascido em São Lourenço da Mata, em 25 de julho de 1924, Alfaiate volta para Pernambuco em 1971 e, embora à época mantivesse vínculo com o antigo Caboclinhos Carijós (de 1896), em que começou a brincar aos 10 anos, funda o grupo que se mantém exuberante, graças à dedicação integral que dispensa ao brinquedo, das mais triviais demandas às mais invisíveis, Luca Barreto
como bordar fantasia e levar comida para o caboclo da mata. Os
Mestre Alfaiate.
caboclinhos, da linha da jurema, são uma das belas e tradicionais expressões do carnaval pernambucano. Mais do que somente com pajelança, é à base de muito sacrifício
Tom Cabral
e trabalho que o caboclinho se mantém firme e vigoroso. Paulo Sérgio dos Santos Pereira, ou Paulinho 7 Flexas, é filho e parceiro incansável de Alfaiate, ao lado da mãe, Marlene Francisca Neponucena. Figura importante na organização do grupo e um dos mais respeitados dançarinos tradicionais do país, Paulinho 7 Flexas dança desde os dois anos. Nascido em Maceió, Alagoas, a 28 de outubro de 1968, a partir dos 14 anos passa a dar aulas no Teatro Brincante, na capital paulista, a convite do multiartista Antônio Carlos Nóbrega. Paulinho e o sobrinho Carlos André Rodrigues Pereira são os guias Jupi e Agaci, puxadores dos
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cordões dos caboclos. A sobrinha Adriana Rodrigues Pereira e a
preacas (conjunto de arco e flecha em madeira), tarol, atabaque,
irmã Carla dos Santos Pereira são as guias Taquaraci e Jupiara, dos
caracaxá marcam a melodia executada pelo gaitista. Reginaldo
cordões das caboclas. Alfaiate, além de tudo, comanda desenhos
Caetano do Nascimento, ou Nadinho da Gaita, é o músico que
e bordados da vestimenta. No caboclinho, o núcleo familiar lidera
executa as melodias no instrumento também chamado flauta ou
todas as atividades: onde há a casa, há a sede do brinquedo, a
inúbia. O tirador de loa pode ser o cacique, o puxante, o guia,
oficina de dança com os ensaios semanais, as sessões de costura
o morubixaba. Nesse caso, é Paulinho 7 Flexas quem puxa as
e bordado, as reuniões, os preparativos de cada carnaval, enfim,
loas. Enquanto isso, os olhos se maravilham com as flutuações
a colorida e melodiosa alegria, a firmeza dos gritos de guerra do
de penachos e plumas, com o saltitar das coreografias. Cacique,
folguedo, mesmo quando em repouso tocadores e bailarinos.
cacica, pajé ou curandeiro, os curumins, os guias Jupi e Agaci, a ala dos caboclos, os contraguias ou substitutos dos guias, as guias Taquaraci e Jupiara, a ala das caboclas são as figuras que enchem
batidas ou toques executados pelo baque, assim denominados
de graça as ruas e os olhares, aprendizes ou não. É obedecendo
os músicos. Ouvidos atentos à execução das loas ou versos
aos sons dos caboclos do baque que os brincantes exibem
gritados – os gritos de guerra, e das loas ou versos declamados,
coreografia aeróbica, plena de leveza e agilidade. Impossível não se
improvisados ou não, sincronizados com a regular batida das
encantar com a sonoridade e as coreografias de um caboclinho.
Marcelo Soares
Guerra, baião, perré, toré de caboclo, guerra: alternam-se as
O terno do Caboclinhos: o bumbo, a gaita e o caracaxá.
Paulinho Sete Flexas, Oficina de Transmissão de Saberes, FIG 2012.
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Conforme depoimento de Paulinho, o grupo pertence à mesa branca, espírita, aos orixás de caboclo, à mesa da jurema. Entre os ritos, há a saída de caboclo. Uma semana antes do Carnaval, é necessário preparar uma oferenda, ou seja, levar comida para o caboclo da mata. Um prato virgem, sete bifes, sete qualidades de fruta, uma vela e mel. O pedido é sempre pedido de paz: contra brigas e desavenças. O pajé porta um cachimbo e dá fumaçadas para limpar a frente do clube, quando os brincantes estão dançando. A jurema, bebida preparada à base de vinho, champanha, mel, liamba, semente e folha de alfavaca de caboclo, é alcoólica, entretanto tem a função de limpar o corpo dos brincantes – as ervas cortam as dores e os males físicos. Muita lantejoula, semente de ave-maria, cocar de pena de ema, machadinha, cabaça, cipó, lança e preaca são alguns dos
Luca Barreto
elementos que compõem o deslumbrante vigor da cabocaria. Nas manobras e evoluções, as coreografias apontam para a dança do cipó, a dança da rede, a caça do caboclo, o casamento de uma tribo com outra. Os dois puxantes Jupi e Agaci marcam com apito a virada dos ritmos. E o porta-estandarte sai na frente, anunciando a chegada do clube: Caboclinhos 7 Flexas, um nome de respeito.
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Altar em homenagem ao Caboclo Sete Flexas.
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Selma do Coco 79 96
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s cocos nordestinos, conforme escreveu Mário de Andrade, “São ardentes. São expressivos. São profundamente humanos e sociais”. Assim é que, entre tapiocas e coco, canta a ex-tapioqueira da Sé de Olinda: O coco me adotou, me chamam rainha do coco, o povo é meu amor. Filha de Maria Valentina da Conceição e José Teodósio da Silva, Selma Ferreira da Silva nasceu em Vitória de Santo Antão, Pernambuco, a 10 de dezembro de 1929. As lembranças mais antigas envolvendo a brincadeira do coco de roda remontam à infância, claro, quando pais e avós levavam aquela criança esperta e de voz melodiosa para dançar e se divertir nos terreiros de chão batido e luz de candeeiro. Frequentemente cantavam coco nas casas dos compadres, sobretudo para comemorar o São João. As memórias e experiências, aliadas ao talento artístico, deram o mote e Selma vem glosando, com classe. E não deixa de ter importância saber que a alegria da tradição familiar foi mantida, no desfiar de todas essas décadas dedicadas ao ritmo. Ainda criança, aos 10 anos, transferiu-se para o Recife, bairro da Mustardinha, onde se casou, teve 14 filhos e, mal saía da juventude, ficou viúva. Há 50 anos, decidiu morar em Olinda, tradicional reduto de samba de coco, e daí por diante cultivou o hábito de promover concorridas rodas para animar os finais de semana da família e ganhar uns trocados. Quando foi tapioqueira no Alto da Sé, jogava charme para os turistas com o feitiço da voz, do temperamento e ritmo envolventes. Cantava coco na Sé, no Carmo e na frente da própria casa, aos domingos. E, bom para Selma, bom para todos, integrantes da geração manguebeat se
Selma do Coco em frente à Igreja de Guadalupe, Olinda.
encantaram com a coquista, o que certamente contribuiu para a consolidação da carreira da cantora. O filho José Ferreira da Silva, pandeirista, foi o produtor, parceiro e diretor musical da mãe famosa. Morena do dente de ouro, qual é o teu feitiço? Cantando e dançando um coco sincopado, matreiro e cheio de duplo sentido, Selma sabe que agrada. E gosta do que faz. Embrenhando-se
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no meio poético-musical do coco de roda, entramelando-se nas devoções de um coco que sutilmente também batuca, o grito de guerra “a-há” antecede o canto e faz a amarração de uma performance cheia de ginga, simpatia e irreverência. Na malemolência foi expandindo-se, conquistando o mercado. Segundo a própria artista, o “a-há” não tem nenhuma relação com orixás e outras entidades, o grito acontece enquanto o pensamento vai rodando, procurando no repertório o próximo coco a ser executado. Com três coletâneas gravadas na Alemanha e uma na Bélgica, Selma do Coco também já cantou no Lincoln Center Festival, em Nova Iorque, Estados Unidos, no ano de
Luca Barreto
2003. Tem feito shows Brasil afora: no Rio de Janeiro, em São Paulo, Salvador, Natal, Fortaleza, Limoeiro do Norte, Itamaracá, Garanhuns, citando apenas alguns dos locais por onde tem passado. Os trabalhos se espalham em muitos países, como França, Espanha, Suíça, Portugal. No Recife, em 1990, quando ainda nem tinha um nome consolidado no cenário nacional, participou do I Festival de Cantadores de Praia do Nordeste, na praia de Boa Viagem. Em 1997, o festival recifense Abril pro Rock ajudou-a a deslanchar a
Luca Barreto
Costa Neto/SecultPE
Luca Barreto
fama. Nesse mesmo ano, a Câmara de Vereadores concedeu-lhe
Netas fazem backing vocal do grupo.
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o título de cidadã olindense em reconhecimento à artista que mora naquela cidade desde o final da década de 1950. O carnaval pernambucano de 1998 ficou marcado pelo sucesso da música A rolinha, gravada em Berlim, Alemanha, no estúdio Ufa Fabrik, entre agosto e outubro de 1997, para o disco Cultura viva. E o refrão Pega, pega a minha rola reinou quase absoluto naquela folia. Em São Paulo, fez show no Instituto Itaú Cultural, no ano de 1998 e, na casa de espetáculos Tom Brasil, apresentou-se em 1999 com a banda de pífanos de Caruaru e Zeca Baleiro. Em 2006, volta a se apresentar no Itaú Cultural. Recebeu a comenda 2007 “Ordem do Mérito Cultural”, diploma concedido pelo Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva. Dos vários CDs produzidos, foi com Minha história, gravado na Alemanha e depois lançado pela Paradoxx em 1998, que conquistou o Prêmio Sharp de 1999, concedido à música de mesmo título do disco. Há, ainda, na discografia, Coco de roda, o elogio da festa, gravado ao vivo em Olinda, em 1996, que, após masterização na Bélgica, ficou pronto em 1999. Em 2000, o filho Zezinho fez a produção geral e direção musical do disco Jangadeiro. Outro trabalho é Raízes da cultura, gravado em Olinda e lançado em 2003. Dona Selma: Bodas de ouro em coco, com faixa multimídia, foi gravado e produzido entre 2008 e 2009. Há, ainda, a registrar, a participação em várias coletâneas. Todos Priscilla Buhr
os discos são independentes, e sempre sob a coordenação do
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incansável Zezinho, à época o único filho vivo, lamentavelmente falecido em abril de 2010.
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Teatro Experimental de Arte 83 88
que há por trás de um nome? Teatro Experimental de Arte
Quando Argemiro se muda de Bezerros para Caruaru, em 1951,
é o nome que resume toda uma vida dedicada às artes
de modo intermitente atuava na cidade o Grupo Intermunicipal
cênicas e à formação de jovens e estudantes. Sociedade civil de
de Comédia, com a participação dos atores Rui Rosal, Joel Pontes,
caráter puramente artístico cultural, é assim que se autodefine a
Pedro Valença. Em 1956, o declarado apreciador da linguagem
organização fundada em Caruaru, a 16 de julho de 1962, pela
cênica decide fundar o Teatro de Amadores de Caruaru (TAC),
pedagoga, atriz e encenadora Arary Marrocos Bezerra Pascoal
com Cosme Soares, Creuza Soares, Antônio Medeiros e Wilson
e pelo contador, ator e autor teatral Argemiro Pascoal, cuja
Feitosa. Entretanto, é em julho de 1962, ocasião em que a
nomenclatura primeira – Movimento Teatral Renovador – foi
cidade recebe o I Festival de Teatro de Estudantes do Nordeste,
logo substituída pela atual, na ocasião da assembleia inaugural
coordenado por Joel Pontes, caruaruense radicado no Recife,
para aprovação do estatuto. Ao lado de Arary e Argemiro, a
que surge o TEA, justamente a partir da breve, mas instigante,
lista de fundadores inclui Antonio Paulino de Medeiros, Carlos
experiência e da constatação de que algo precisava ser feito
Fernandes da Silva, José Gustavo Córdula, Fernando Gomes de
quanto à cena teatral local.
Oliveira, Edvaldo Pereira de Castro, Antonio Silva, Margarida Miranda, Maria José Bezerra, Abias Amorim, Paulo Roberto e
Marcado pela ininterrupta atuação no agreste pernambucano,
Sá, Maria Ezinete de Melo, Inácio Tavares e Jonas Mendonça.
o grupo é o criador do Festival de Teatro Amador e Estudantil
Filiado à Federação de Teatro de Pernambuco (Feteape), o TEA é
do Agreste (Feteag), promovido desde 1988, e do Festival de
considerado, por lei municipal, um órgão de utilidade pública.
Teatro do Estudante de Pernambuco (Festep), que acontece a
Peça Teatral "A Hora Marcada" de Isaac Gondim Com Arari sentada ao fundo da foto e Argemiro Pascoal, atrás da personagem central ao fundo da foto.
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Reprodução
Reprodução
partir de 2002. Tais eventos contam com a participação de alunos
Peça teatral "A Derradeira Ceia" de Luiz Marinho, 1970, com o ator Argemiro Pascoal, atuando como o Soldado.
de colégios privados e escolas públicas municipais e estaduais
TEA é considerado um dos principais responsáveis pela renovação
daquela região, visto que um dos principais objetivos do grupo é
da cena teatral do interior do estado. Além de já haver encenado
exatamente contribuir com o desenvolvimento de jovens talentos e
diversos textos de qualidade inquestionável, tais como A bruxinha
promover intercâmbios artísticos mediante a promoção de festivais
que era boa, O Baile do Menino Deus, Cancão de fogo, Morte e vida
e mostras de artes cênicas. Outro importante projeto é o Teatro na
severina, e os clássicos Antígona, Romeu e Julieta, A metamorfose,
Comunidade, que consiste em apresentar espetáculos populares
entre os anos de 1967 e 1979 o grupo registrou participação
em palco ou praças públicas da cidade e zona rural, inclusive
contínua no espetáculo da Paixão de Cristo, em Fazenda Nova. O
promovendo debate acerca de questões de interesse das próprias
primeiro seminário do teatro de Caruaru foi promovido pelo TEA.
comunidades.
Desde a fundação, mais de 50 espetáculos foram encenados pelo grupo que, inclusive, vem acompanhando o despertar de novos
Construída com recursos próprios, a sede fica no bairro de
talentos, a exemplo do premiado teatrólogo Vital Santos.
Indianópolis. Chama-se Teatro Lício Neves, em tributo ao poeta na Bahia; São Cristóvão, em Sergipe; Maceió, em Alagoas;
da Silva e Carlos Alves, sob a coordenação de Argemiro Pascoal. O
João Pessoa e Campina Grande, na Paraíba; Recife, Garanhuns,
Arary Marrocos.
Luca Barreto
Argemiro Pascoal, in memoriam.
Luca Barreto
São José do Rio Preto, em São Paulo; Feira de Santana e Salvador,
teatral, ministradas por Arary Marrocos, Jô Albuquerque, José Carlos
Luca Barreto
pernambucano. Anualmente, são oferecidas oficinas de iniciação
Sede do TEA, em Caruaru.
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Costa Neto/SecultPE
Serra Talhada, Arcoverde, São José do Egito, Bonito, Limoeiro, Pesqueira, Belo Jardim e Gravatá, em Pernambuco, são algumas das cidades nas quais o grupo participou de festivais, mostras de teatro e com as quais estabeleceu intercâmbio cultural. Ao longo de todas essas décadas, o TEA se ocupa, igualmente, em promover palestras, debates, seminários, simpósios. Diversos cursos têm sido ministrados por importantes profissionais da cena teatral e das artes, a exemplo de Clênio Wanderley, Marco Camarotti, Luiz Maurício Carvalheira, Isaac Gondim Filho, Didha Pereira, Rubem Rocha Filho, Romildo Moreira, Ivan Brandão, Valdeck de Garanhuns, Roberto Benjamin, José Manoel, Zélia Sales, José Francisco Filho, Feliciano Félix, Ivonete Melo, Valdi Coutinho,
Costa Neto/SecultPE
Antonio Miranda Cavalcanti, José Soares da Silva (poeta e xilógrafo Dila), ceramista Manoel Galdino, Vavá Paulino, Jorge Clésio, Joel Pontes, Luiz Marinho Filho. Obstinação: este é o motor que move o casal cheio de amor pelas artes cênicas. O que resulta daí são as muitas trajetórias artísticas que vêm ganhando o mundo, com a decisiva colaboração de Arary
Costa Neto/SecultPE
e Argemiro.
Atual elenco do TEA, 2014.
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Luca Barreto
CanindĂŠ 87 104
Luca Barreto
onumental, com quase dois metros, a escultura guarda a casa, imperturbável e acolhedora. É o Rei Canindé, o encantado que livra de todos os embaraços e semeia o ânimo. É ele quem comanda “a famosa Tribo Canindé do Recife, a campeonísssima do Carnaval” e razão de viver de Juracy Simões, a se desmanchar em alegria e lágrimas sempre que convidada a discorrer sobre o grupo de caboclinhos, do qual é presidente e herdeira por tradição de família. Praticamente desde os primórdios, pai e tios de Juracy comandaram a agremiação carnavalesca, vinculada ao culto da jurema. Sabe-se pela história oral que, na antiga Rua das Jangadas, no
Reprodução de fotografia do aniversário de 106 anos do Canindé: na imagem, Juracy Simões, sentada, de blusa branca e óculos, comemora com o grupo
bairro de Afogados, alguém conhecido por Elesbão ou “Libão”, com a ajuda de um amigo, identificado apenas como Eduardo, decidiu criar um grupo de caboclinhos. Ambos eram estivadores. A data de fundação é 5 de março de 1897, e uma característica do grupo, inicialmente denominado “Príncipe do Rio do Rei Canindé”, era a participação exclusiva de curumins ou crianças. Em 1909, quando passa a ser conduzido por Manuel Batista da Silva, ou Manuel Rufino, a agremiação começa a aceitar a presença de adultos (apenas homens), transfere-se para a Bomba do Hemetério, bairro onde está ainda hoje, e a denominação muda para Canindé do Recife. Em 20 de fevereiro de 1957, sob a direção de José Silva Araújo, o estatuto é registrado com o nome Club Indígena Canindé, embora a brincadeira fosse conhecida por Tribo Canindé do Recife. Poucos anos depois, dois irmãos de Rufino – Miguel e Severino Batista da Silva – tomam a frente do grupo e é Severino quem passa a comandá-lo. Tratado entre os colegas por “Criança” e em família como “Bibiano”, Severino assume a missão de conduzir o brinquedo, sem perder de vista a íntima relação com a jurema
Luca Barreto
sagrada. O símbolo do grupo é um índio com arco e flecha. As
Estandarte da Tribo Canindé.
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cores oficiais são o vermelho e o branco. Desde essa época, década de 1950, registros orais dão conta da participação feminina, o que terminou se transformando num diferencial em favor do sucesso conquistado nas décadas seguintes.
Priscilla Buhr
Luca Barreto
Encontro de Caboclinhos, semana pré-carnavalesca, Recife 2010
É o que testemunha e comprova a bisneta, neta e filha de
que, na infância e adolescência, via e ouvia muito mais do que se
juremeiros Juracy Simões da Silva que, pela vida devotada aos
oferece hoje nas performances da tribo. Executado pelos caboclos
cabocolinhos, honra a filiação. Nascida no Recife, em 15 de julho
homens e por algumas caboclas, o característico e rápido bater de
de 1945, o pai era o mestre carpinteiro Bibiano, ou Severino
flechas do grupo – a exemplo da guerra de uma, de duas e de três
Batista da Silva, e a mãe, Lucila Simões da Silva. Guardiã das
–, declara Juracy que só o Canindé faz. Ao som do terno ou dos
tradições religiosas da família e do caboclinho, Juracy vive imersa
caboclos do baque – gaita, tarol e maracaxá, aliados à batida seca
no grupo desde que nasceu, e coordena, de fato, todas as
das preacas (arco e flecha) dos caboclos –, os toques ou gêneros
atividades desde 1985, quando o pai, por problemas de saúde,
musicais executados são guerra, perré, baião, toré ou macumba,
fica impossibilitado de atuar no comando da agremiação. Em
sob os quais se apresentam bandeirista, casal de caciques, os
1994, com o falecimento de Bibiano, funcionário da Prefeitura do
puxantes Jupi e Agaci, dois perós, dois cordões de curumins, dois
Recife, a única filha assume oficialmente a presidência, tornando-
cordões de caboclos e caboclas, o rei e a rainha. São eles que
se a primeira mulher a presidir um caboclinho, alçando, portanto,
exibem a beleza das fantasias, a cadência do ritmo frenético da
à condição de destaque na história do carnaval do Recife, em
percussão e sopro, a leveza dos corpos ágeis a exibir aeróbico
decorrência tanto desse pioneirismo quanto da marcante liderança.
bailado.
A mãe, Lucila, devotada à jurema, enquanto tem saúde segue colaborando na empreitada da filha. Falece em 2006.
Preocupada com a transmissão da memória do Canindé, sobretudo direcionada aos jovens, Juracy tem promovido oficinas de
Totalmente familiarizada com o cotidiano da Tribo Canindé,
confecção de figurinos, de dança e de música, auxiliada por Dado,
Juracy conhece não apenas histórias da formação do grupo, mas,
ou Ednaldo Manuel dos Santos, um dos brincantes mais antigos e
sobretudo, a maneira como se desenvolviam as apresentações.
uma espécie de show-man, que ocupa a função do puxante Jupi.
Para cada toque, ela sabe cantar e recitar as linhas, os pontos de
Zelosa quanto às características do Canindé, Juracy cuida para que
caboclo, as loas que vêm sendo excluídas do repertório devido
as fantasias tenham bordados primorosos, tenham vistosas plumas
à exiguidade de tempo nas exibições públicas. Relembra, ainda,
e penas de ave, e que as manobras ou danças sejam executadas
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com vivacidade, exuberância. Os ensaios ou treinos, momentos
um dos grupos carnavalescos já existentes à época de fundação da
preciosos de interação e aprendizagem, acontecem sempre
Federação Carnavalesca de Pernambuco (1935) –, a Prefeitura do
defronte da sede, e sempre na noite dos domingos, a partir do
Recife promoveu a exposição comemorativa Canindé: 110 anos de
mês de julho, estendendo-se à semana pré-carnavalesca. Há,
resistência, realizada entre 13 de abril e 1º de maio de 2007, na
tradicionalmente, em todos os eventos e reuniões da agremiação,
Casa do Carnaval, Pátio de São Pedro.
principalmente nas semanas anteriores ao Carnaval, uma mesa de frutas, oferenda aos encantados, das quais se servem os
Concorrendo a edital público do Ministério da Cultura, Canindé
brincantes, ao final.
conquista, no ano seguinte, o Prêmio Culturas Populares 2008 – Mestre Humberto de Maracanã. Em 2009, sai o Batuque Book fotos, partituras, mais a gravação de sete faixas de áudio e faixa
admirados. Em 1960, Bibiano levou o grupo a se apresentar em
multimídia dedicadas ao Canindé. Sem perder de vista a cidade tão
Brasília, durante a inauguração do Sesi. Sem jamais perder a
linda e os caminhos distantes de um reino encantado, em fevereiro
realeza, foi campeão nove vezes consecutivas, de 1996 a 2004,
de 2010 o caboclinho foi homenageado na abertura do carnaval
no concurso de agremiações do carnaval do Recife. Em 2003,
do Recife, juntamente ao centenário maracatu Estrela Brilhante
a TV Viva produziu o documentário Três rainhas e um reinado
de Igarassu. Com a firmeza própria do temperamento de Juracy,
de Momo, em que são apresentadas mulheres no comando de
sete caboclos flechando e a devida proteção do rei, as demandas
agremiações, entre elas a carismática Juracy. O primeiro registro
vão se desmanchando e a tribo resplandece. Salve o Rei Canindé
fonográfico do secular caboclinho – No traçado do guerreiro – é de
na Jurema, mestre que garante essa Nação. Quem for Canindé,
2005, realizado pelo músico e produtor cultural Adriano Araújo.
sustente o penacho: este é um rio que não deixará de correr, o rio
Graças à importância do tradicional caboclinho – inclusive este era
do Rei Canindé.
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Luca Barreto
esmera-se em todos os quesitos, sempre atraindo olhares
Luca Barreto
Cabocolinho, de Climério Santos e Tarcísio Resende, com textos,
Luca Barreto
Certamente esse rito propiciatório abre caminhos. O Canindé
Luca Barreto
Estrela Brilhante de Igarassu 91 108
ma estrela para nos guiar, canta a loa. Uma Nação muita antiga, vinda da África para morar em Igarassu. É o que pronuncia a voz firme de Olga e Gilmar, encantando nossos ouvidos com as toadas herdadas dos antepassados. Pela voz deles remontamos aos avós e pais da centenária dona Mariu, chegamos ao tempo presente, aos seguidores de um baque triunfante a iluminar toda a família. Se fosse para seguir uma das versões da história oral relacionada ao grupo, 1730 poderia ter sido o início. Mateus Sá
Entretanto, a data oficializada é 8 de dezembro de 1824. O local
Foto vencedora do Concurso de Fotografia Pernambuco Nação Cultural - 2008.
era Vila Velha, em Itamaracá, à época pertencente a Igarassu. De lá, os antepassados do maracatu migraram para o Alto do Rosário. Mas da cidade de Igarassu o grupo não saiu e é a antiga Rua do Rosário, no sítio histórico, quem testemunha, há décadas, o canto, a dança e o batuque de descendentes de escravos. Às mulheres cabe a dança, os homens ficam com a percussão. Olga de Santana Batista, filha de dona Mariu, agora é a matriarca,
Renato Spencer/Santo Lima
Renato Spencer/Santo Lima
guardiã da tradição, desde que a mãe, centenária, faleceu em 2003. Olga, nascida em Igarassu a 28 de fevereiro de 1939, começou a brincar aos 10 anos, como rainha, e com o pai também brincava cavalo-marinho e fandango. Auxiliada pelo filho caçula, mestre Gilmar, é com firmeza que os dois lideram rei, rainha, vassalos, ministros, princesas, dama-regente, dama do paço, portaestandarte, porta-candeeiros, porta-símbolo, baianas, batuqueiros. Gilmar de Santana Batista é o mestre dos batuqueiros. Rogério Raimundo de Sousa, o contramestre. Gilberto de Santana Batista é o porta-estandarte. Dona Rita, a dama-regente, é herdeira de uma função – a de conduzir a calunga – que coube a dona Mariu durante os anos todos em que participou da Nação. Mariu, ou Maria Sérgia da Anunciação, nasceu no dia 8 de dezembro de 1898 e morreu no dia 8 de outubro de 2003, na mesma cidade – Igarassu. Sempre na função de dama-regente, começou a participar do maracatu aos 12 anos. O apego a “dona Emília”, a calunga de madeira feita pelo carpinteiro Minervino do Os componentes da agremiação.
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Ó, era tanto, que a boneca dormia com ela. Afinal, dona Emília é
Renato Spencer/Santo Lima
Luca Barreto
Luca Barreto
Músicos: cantores e batuqueiros.
quem manda, cantam as toadas do grupo fincado nas tradições
uma baqueta (ao invés de duas) e uma vareta ou galho de árvore,
do candomblé, para quem a calunga – a evocar ancestrais e
chamado bacalhau, o que confere um toque diferenciado ao
orixás – desempenha primordial função de protetora do folguedo:
baque do Estrela, “um suingue muito mais gostoso”, conforme
trata-se de um objeto ritual. O pai, João Francisco da Silva, passou
demonstra, orgulhoso, o mestre Gilmar, que puxa, entre
a liderança do maracatu para o marido de Mariu, Manoel Próximo
outras toadas, a seguinte: Toque o gonguê / toque o tambor
de Santana. O seu Neusa, como era conhecido Manoel, ficou
/ vem mineiro e caixa / foi o mestre que mandou. Os ensaios
incumbido das funções de rei do maracatu e mestre do batuque.
tradicionalmente ocorrem a partir de setembro e se prolongam
A mãe de Maria Sérgia, dona Mariassu, morreu aos 115 anos.
até a semana pré-carnavalesca. E no período junino, os brincantes
Com o marido, era quem comandava o maracatu e costurava
também se divertem, mas é com o centenário samba de coco e o
manualmente as roupas do grupo. A filha Mariu, que chegou a
banho ou “batismo” de São João pela madrugada do dia 24 de
quase 105 anos, ganhou a festa “100 anos de uma rainha negra”,
junho.
organizada em dezembro de 1998 pela prefeitura de Igarassu. No centenário, Sérgia relembrou, em entrevista concedida ao Jornal
Entre o final dos anos 1970 e início dos 1980, o maracatu
do Commercio, em 6 de dezembro de 1998, que, no cortejo real,
passou quatro anos sem se apresentar, conforme registrado
havia antigamente os lanceiros, ou duas crianças que iam à frente
numa reportagem do Diario de Pernambuco, em 11 de fevereiro
da corte fazendo a ordenança do rei e da rainha. Outra ausência,
de 1982, intitulada: “Maracatu volta a desfilar”. Adiante, após
lamentada ainda hoje por dona Olga, é a da calunga Joventina,
mais alguns anos desativado em decorrência do falecimento
que não mais se encontra no acervo do grupo.
de seu Neusa e da impossibilidade de locomoção de dona Mariu, um grupo de estudiosos da Comissão Pernambucana de
Os instrumentos utilizados no batuque tradicional do Estrela
Folclore, presidida pelo pesquisador Roberto Benjamin, realizou,
Brilhante são zabumba (o mesmo que tambor ou alfaia), tarol
durante 1993, um levantamento das toadas e da história do
(ou caixa de guerra), mineiro (ou ganzá) e gonguê. Os tambores,
grupo e, assim, foi responsável pela retomada do grupo, em
que antigamente eram feitos com barrica de transportar o peixe
janeiro de 1994. A seguir, o grupo não mais parou. Em 1997,
bacalhau, agora talhados no tronco de macaíba, são tocados com
foi o homenageado do carnaval de Igarassu. No mesmo ano,
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Roberto Berliner dirigiu um documentário de três minutos, em 16mm, colorido, no projeto Som da Rua, intitulado Maracatu Estrela Brilhante. Em 1998, dona Mariu ganhou destaque com o aniversário de 100 anos, conforme mencionado acima. O primeiro registro fonográfico aconteceu em 2003, com gravação ao vivo e ao ar livre, resultando no CD Maracatu Estrela Brilhante de Igarassu – 180 anos. No início de setembro de 2008, o grupo viaja a Portugal, para participação no XII Festival Folclore Internacional Alto Minho, em Viana do Castelo, cidade-irmã de Igarassu, por esta ter sido fundada pelo capitão Afonso Gonçalves, natural daquela cidade portuguesa. Ponto de Cultura Estrela Para Todos desde 2008, o grupo passou a promover oficinas de percussão e dança e colocou no ar uma home page, em três línguas. Conquistou o Prêmio Culturas Populares 2008 – Mestre Humberto de Maracanã, do Ministério da Cultura (Minc), com o qual realizou a remasterização e reedição do CD comemorativo aos 180 anos. Foi contemplado com o projeto Cine Mais Cultura (Minc), edição 2008. O tradicional Coco de Olga também foi contemplado com o Prêmio Culturas Populares 2009 – Edição
Luca Barreto
Mestra Dona Isabel. Em fevereiro de 2010, juntamente à centenária Tribo Canindé do Recife, ganhou homenagem na abertura do carnaval do Recife, no Marco Zero. Com tantas ações importantes, com tantas vozes e loas bonitas, sustente o baque, dona Emília, que o Estrela vai continuar!
Batuqueiros.
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Catirinas, Batuqueiro, Estandarte, Dama do Paço, Rei e Rainha: Personagens do Maracatu.
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Maestro Nunes 95 100
Largo de Santa Cruz é testemunha: os acordes do arranjador, compositor e maestro atiçam ouvidos e olhos em direção ao sobrado de número 438, no bairro da Boa Vista. É ali onde funciona a Escola de Frevos do Nordeste Maestro Nunes e aonde o artista vai diariamente para compor, dar aulas, receber pessoas. Vem da infância o gosto pela música: aos nove anos, tornou-se clarinetista e já sabia orquestrar. Aos 12, compunha dobrados, tocava num pastoril religioso. O pai, que era músico, pedreiro e mestre de obras, não tinha tempo nem paciência para ensinar ao filho e ainda queria enviá-lo para o seminário. Mas a criança, que sonhava ser instrumentista, sempre chorava ao ver passar a banda de música de Angélica, o povoado onde nasceu e viveu a infância. Graças a Sebastião Luís, mestre da banda e amigo da família, o garoto se livrou de ser padre e passou a receber aulas de iniciação musical. Filho do clarinetista e violonista José Francisco Nunes e de Maria Apolônia Nunes, José Nunes de Souza é da cidade de Vicência, Pernambuco, e a data de nascimento é 22 de junho de 1931. Em Priscilla Buhr
1950, por problemas políticos relacionados ao pai – que perdeu o cargo de diretor da Banda 1º de Novembro, do distrito de Angélica –, muda-se com toda a família para o Recife, onde decidiu aprimorar as habilidades musicais. Foi aluno do Conservatório
Maestro Nunes e seu instrumento.
Pernambucano de Música (CPM). Estudou música sacra e regência na Faculdade de Filosofia do Recife, em 1960. Cinco anos depois,
são Bach e Beethoven. Com formação política de esquerda,
concluiu o curso de licenciatura em Belas Artes, pela UFPE.
filiou-se desde jovem ao Partido Comunista Brasileiro (PCB),
Frequentou aulas de canto gregoriano e canto coral, harmonia,
engajando-se no Movimento de Cultura Popular (MCP), o que lhe
regência, teoria e solfejo, contraponto, fuga e orquestração. O
rendeu perseguição política e afastamento da Banda Municipal
principal orientador, conforme depoimento do próprio Maestro
do Recife (BMR), no início da década de 1960. Havia assumido
Nunes, foi o professor Mário Câncio Justo dos Santos, além do
em 1958, por meio de concurso, o cargo de primeiro clarinetista
padre Jaime Diniz. No rol dos principais mestres, com quem
da BMR. Entretanto, continuou na militância apesar da censura
aprendeu grandes lições, situa Capiba, Nelson Ferreira e Zumba.
e da repressão, e as conquistas artísticas fizeram sobressair o talento do compositor que, a partir dos anos 1970, foi campeão,
Quando fala da formação musical, o maestro ressalta a
consecutivas vezes, na categoria “frevo de rua”, dos concursos
importância de ter estudado os períodos barroco, clássico e
Leda de Carvalho, Frevança, Recifrevo. Entre as músicas premiadas
romântico da música ocidental, dos quais os artistas preferidos
estão: Formigueiro, uma homenagem ao maestro Formiga, ou
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Ademir Araújo; É de perder o sapato, relembrando o fato de um músico ter perdido o sapato enquanto tocava na banda do maestro, durante o desfile da troça carnavalesca mista O cachorro do homem do miúdo; Mosquetão, em alusão a um colega que foi baleado durante a ditadura; É de rasgar a camisa, dedicado à troça Camisa Velha; Bomba-relógio, em parceria com Mário Orlando, após a explosão de uma bomba, no Recife, durante a ditadura militar. Interessante notar que o próprio maestro faz questão de sempre registrar a gênese de cada criação musical.
Outras composições importantes, independentemente da conquista de prêmios, há décadas têm-lhe rendido fama de “rei do frevo de rua”, sobretudo o clássico Cabelo de fogo, feito para um amigo, apelidado de Birino, que pintava os cabelos. Coquinho no frevo, Fubica, Folhas que não caem, Santa, Ecos do Carnaval, Balançando a pança, Segurando a peteca, entre tantos outros célebres frevos, corroboram o talento do artista e enriquecem o repertório de diversas agremiações carnavalescas, a exemplo
Luca Barreto
de Cachorro do Homem do Miúdo, Vassourinhas, Lenhadores,
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Girassol da Boa Vista, Lavadeiras de Areias, Amantes das Flores,
volumes, um com frevo de rua e o outro com frevo-canção e frevo
Pás Douradas, Beija-flor em Folia, Pão Duro, Seu Malaquias.
de bloco. Em 2009, sai o CD Homenagem ao criador: Maestro
Compôs e gravou para os tradicionais clubes Leão e Camelo, do
Nunes, o mestre do Cabelo de Fogo, em que todas as músicas
carnaval de Vitória de Santo Antão.
gravadas – frevos de rua – são de autoria dele. Possui valioso acervo de mais de duas mil partituras musicais e, exatamente com
Em 1972, na condição de assessor musical da Federação
a proposta de preservar tais preciosidades, conquistou o Prêmio
Carnavalesca de Pernambuco, abriu a Escola Musical do Frevo,
Culturas Populares 2007 – Maestro Duda, 100 anos de frevo,
destinada a crianças de baixa renda e aos filhos dos presidentes
concedido pelo Ministério da Cultura (Minc). Nesse mesmo ano, foi
das agremiações; e foi a partir desse ano que passou a ser o
o homenageado do carnaval do Recife.
principal e mais prolífico criador de frevo para os grupos foliões pernambucanos. Em 1984, criou a Banda de Frevos do Nordeste.
Além da prolífica produção de frevos, o maestro compõe, ainda,
Foi fundador do Centro de Educação Musical de Olinda (CEMO)
diversos outros gêneros: samba, bolero, rumba, forró. Mantém,
e regente da banda de música 10 de Agosto, da cidade de São
inclusive, a Banda Junina do Maestro Nunes, que interpreta
Lourenço da Mata. Integrou a banda de música do Liceu de Artes e
repertório próprio e dos mestres Luiz Gonzaga, Jackson do
Ofícios, da Universidade Católica de Pernambuco; a Banda Manoel
Pandeiro, Zé Dantas, Humberto Teixeira. A coordenação da
do Óleo, da União Operária da Macaxeira; a Orquestra Cassino
agenda e das produções do maestro compete à compositora e
Americano, da concorrida boate do Recife, à época. Antes de
musicista Fátima Lapenda. Em meio ao processo criativo, entre
transferir-se para a capital, Nunes foi músico da Euterpina Juvenil
shows, gravações e aulas, o maestro Nunes faz questão de estar
Nazarena, a Capa Bode, de Nazaré da Mata.
sempre engajado em trabalhos comunitários, ministrando oficinas a crianças e jovens, de comunidades dos bairros dos Coelhos e exemplo de Spok e Forró, Nunes continua incansável na missão
repertório dos vinis lançados desde 1975. O CD Maestro Nunes:
de descobrir e incentivar novos talentos. Vida longa ao centenário
60 anos de frevo, feito em 2008, apresenta-se também em dois
frevo, assim seja!
Reprodução de fotografia antiga do acervo do maestro.
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Luca Barreto
Marcelo Lyra
Ilha do Leite, entre outros. Professor de maestros celebrados, a
do frevo 1 e 2, de 2002, em que oferece a remasterização de
Reprodução
Na discografia, os trabalhos mais recentes são os CDs Locomotiva
Maestro Duda e Maestro Nunes durante apresentação em 2010.
Capa-Bode 99 108
Ricardo Moura/SecultPE
Musa Euterpe, aquela que sabe agradar, desde muito espalha
o poema "Valsinha da banda de música municipal", assim
melodias em Nazaré da Mata. Os ouvidos da cidade, cheios
iniciado:
de música, deliciam-se com alvorada, tocata de natal, com as retretas de ano novo, carnaval. A dona da música assim orquestra memórias afetivas, habita a história, percorre o imaginário coletivo pelas artes da centenária Euterpina Nazarena. O renome vem de longínqua data, século XIX. Passeios, saraus, danças estão na gênese da sociedade musical, cheia de frescor desde o princípio, que rapidamente conquista simpatia e fama. O Recreio Juvenil Nazareno, fundado em 1886, é a origem de tudo: a partir desse
Música da Banda Euterpina Juvenil de Nazaré da Mata tocando ao luar de prata. (O seresteiro achando a rima da serenata.)
clube de lazer a associação foi criada em 1º de janeiro de 1888, constituída por jovens comerciários, sob a regência do Mestre João
Cheia de histórias interessantes, contemporânea do Grêmio
Tomé. E, como acontece às filarmônicas no interior, plena
Musical 22 de Novembro – a então aclamada Cabeluda – eis que a
vitalidade quer dizer compor cenas urbanas, conduzir celebrações
Euterpina Juvenil Comercial Nazarena se estabelece na condição
e formas de expressão das mais festivas às mais pesarosas.
de rival à altura e, no mesmo ano de fundação, ganha todos os
Enterros, folguedos, troças, cavalhadas, noites de maio, novena à
aplausos na missa solene da padroeira, Nossa Senhora da
padroeira, festas de São João, aí sempre correm todos à rua pra
Conceição, dia 8 de dezembro. E isto foi apenas o início. Na
ver a orquestra passar, segundo bem registrou a poeta e cronista
cronologia do grupo, que abandona a seguir o designativo
nazarena, Clélia Raposo. O poeta Mauro Mota, que foi orador
"comercial", ilustres ouvidos se deleitam com o repertório.
desta filarmônica e viveu a infância na cidade, homenageia-a com
Quando realizou dois comícios no distrito eleitoral de Nazaré, o
Ricardo Moura/SecultPE
O maestro João Paulo a frente do ensaio da Euterpina Juvenil.
abolicionista Joaquim Nabuco foi saudado com composições de Heitor Villa-Lobos, Carlos Gomes, Beethoven, Verdi, executadas por hábeis instrumentistas da Euterpina. Em junho de 1906, na cidade de Carpina, tocou o dobrado Águia da Mantiqueira para o então presidente da República, Afonso Pena, composto Clara Gouvêa/SecultPE
especialmente para homenageá-lo. No final de 1908, a Euterpina integrou as festividades de posse, no governo estadual, do nazareno Herculano Bandeira. Ex-senador e duas vezes prefeito da cidade, o político nomeia a praça, no centro da cidade, onde fica a sede da banda. Quando começou, a sociedade ganhou um apelido: Capa-Bode. A
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motivação para a escolha é controversa. Pelo menos três histórias tentam justificá-lo. Uma delas diz que os sócios fundadores frequentemente se reuniam para comer buchada de bode castrado. Outra dá conta de um costume antigo, que era o hábito de desfilar acompanhada de mascote. Fala-se que a Euterpina era guiada por um bode, chamado Elamir ou Alamir, doação do sócio Joaquim Coutinho Maranhão. A terceira variante registra que certo grupo visitou Nazaré para conceder diploma de sócio benemérito a João Hermógenes, comerciante cujo apelido era Capa-Bode. Como o fardamento de ambas as filarmônicas era parecido, também a
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Euterpina passou a ser tratada por este nome-fantasia. Essas, as versões que circulam oralmente. No entanto, em meio a documentos colecionados pela secular nazarena, consta artigo do pesquisador Evandro Rabello, escrito em comemoração ao centenário da sociedade musical, em 1988, comentando que a recifense Banda Matias Lima, com sede no Pátio do Livramento,
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tinha o apelido de Capa-Bode. Havia, ainda, vinculada a ela uma agremiação carnavalesca chamada Clube Capa-Bode, cujos foliões saíam pelas ruas da capital pernambucana trajados à portuguesa. Rabello acrescenta outra informação importante: a Capa-Bode do Recife Antigo andou excursionando por várias cidades do interior, inclusive Nazaré da Mata.
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Sobre os destacados músicos que a integraram, há o regente pernambucano José Lourenço da Silva, ou Capitão Zuzinha, compositor que está para o frevo de rua assim como Donga está para o samba. Houve, ainda, Lourenço Tomás da Silva, irmão do Capitão Zuzinha; Manoel Martins de Morais, que dá nome à sala de instrumentos, inaugurada em 1985 na sede; os maestros e irmãos José Jandir Penaforte de Oliveira e Josaphat Penaforte de Oliveira. Jandir se destacou como maestro e professor, enquanto o irmão Josaphat ganhou reconhecimento como compositor de sinfonia, frevo, dobrado, valsa, fox, maracatu, coco de salão. O maestro Severino Hermes comandou a retreta comemorativa ao centenário da Capa-Bode, no dia 1º de janeiro de 1988, para uma platéia de cerca de cinco mil pessoas, conforme registrou o Diario de Pernambuco. Na ocasião, igualmente apresentou-se a Revoltosa, conterrânea que sobrepôs o tributo à secular rivalidade. Euterpina 100 anos de música é o título da revista comemorativa então editada, sob o patrocínio da Fundarpe. Entre as inúmeras apresentações em que prestigiou diversas bandas marciais do interior, registram-se homenagens ao sesquicentenário da Saboeira, de Goiana, em 1999; Ricardo Moura/SecultPE
ao centenário da Nova Euterpe, de Caruaru, e da Novo Século, de Santa Cruz do Capibaribe. O atual maestro é João Paulo Ferreira da Hora, conhecido como "João Minuto", e é quem lidera os músicos profissionais e a escola de iniciação. Assim, com os júbilos da Musa, a Euterpina vai seguindo, vibrante, como em serenata, pelas ruas de Nazaré da
Ricardo Moura/SecultPE
Mata, achando antigas e novas rimas para o luar de prata.
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Didi do Pagode 103
Costa Neto/SecultPE
Costa Neto/SecultPE
aldemir de Souza Ferreira, quarto zagueiro canhoto na perna e destro na mão, foi do Santa, do Vovozinha, do Íbis. E por causa do jogador Didi, da seleção brasileira campeã na Copa do Mundo de 1958, na Suécia, ganhou o apelido. Apaixonado por futebol, a paixão maior que entretanto se firmou, para nunca mais largá-lo, atende pelo nome de música. E mais especificamente Reprodução
samba, pagode. A mãe, Erundina de Souza Ferreira, era cantora. O pai, Elpídio de Souza Ferreira, tocava violão, integrava um grupo musical de violonistas. O próprio Didi, no entanto, criado em ambiente musical, no bairro recifense de Caxangá, zona oeste da
Dos tempos de jogador de futebol, em 1969.
cidade, somente aos 38 anos escolhe dedicar-se exclusivamente à profissão artística. Antes disso, foi gerente de casas de show, almoxarife, datilógrafo, auxiliar de escritório até finalmente decidir inaugurar no centro do Recife, em 1981, o Bar do Didi, e, dois anos depois, 1983, transformá-lo no aclamado reduto de pagodeiros e sambistas, o Pagode do Didi. "Quartel-general do samba na terra do frevo", o pagode oferece Reprodução
ambiente para rodas de samba ao ar livre, de quinta a sábado, e,
Em frente a sede de seu bar, o Pagode do Didi.
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que, em outras temporadas, chega a realizar-se de segunda a sábado, ou seja, quase todos os dias da semana. Acolhedor, o dono do estabelecimento recebe os pagodeiros com violão,
Reprodução
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Rodas de samba.
pandeiro, reco-reco, cavaquinho: quem vai chegando vai cuidando
rodas de choro e seresta no mesmo local em que passou a
de pegar algum instrumento e, pronto, está feita a roda de
funcionar o pagode. Tal é a vibração do ambiente que o lugar se
bambas. Muitos são os artistas e grupos tarimbados que passaram
firmou como ponto de convergência de amantes do ritmo e,
e adoram passar por ali. A casa já recebeu Bezerra da Silva,
também por isso, endereço certo de profissionais em busca de
Jovelina Pérola Negra, Zeca Pagodinho, Beth Carvalho, Leci
novos parceiros. No Pagode do Didi, por exemplo, o compositor
Brandão e grupos de pagode famosos nos anos 1990, como o
Belo Xis tem fisgado talentosos pagodeiros. Cheio de vitalidade, o
Exaltasamba e o Art Popular. No disco Cacique de Ramos, o Fundo
local se estabeleceu, enfim, como escola de pagode, escola onde
de Quintal rende homenagem ao tradicional reduto, com a música
se aprende e se curte o samba de velha guarda lado a lado com
Pagode do Didi. Arlindo Cruz, Bira do Cavaco, Sereno, Ademir
a produção mais recente de sambistas, chorões, pagodeiros.
Bateria, Almir Guineto, Gera da Vila Isabel, Só pra contrariar,
Compositores, instrumentistas e intérpretes às vezes é ali que se
Grupo Raça, Negritude Júnior, Vanderson Martins, Samba Chic,
descobrem e são descobertos, inaugurando alianças artísticas,
Raça Brasileira, Peninha, Wellington do Pandeiro fazem vibrar a
estreando no mundo da música, atraindo as atenções de críticos
nata dos apreciadores do samba de raiz, das rodas de pagode, das
e produtores.
rodas de choro e samba. A história do pagode em Pernambuco passa obrigatoriamente por É na rua Ulhôa Cintra, bairro de Santo Antônio, por trás da
este que é um dos mais famosos redutos do gênero musical.
movimentada avenida Guararapes, em pleno centro do Recife,
Especialmente porque ao proprietário se credita considerável
onde transborda de vibrações o reduto de amantes dessa boa
parcela de estímulo à produção de artistas locais, às trocas culturas
música bem brasileira. Quando tudo começou, Didi era professor
com artistas de outras paragens, à criação e manutenção de
de violão e tinha um grupo de chorinho que se apresentava em
múltiplos espaços pernambucanos dedicados ao ritmo. Em terras
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pernambucanas, onde empolgam os metais do frevo e os tambores do maracatu, Didi ousa dizer, e com razão, que aqui também o samba fez morada. Inúmeros pontos na capital protagonizam encontro de sambista e pagodeiro, cujos grupos contabilizam centenas, conforme enumera. A Terça Negra encontrou nesse habitat as condições básicas para aflorar, firmando-se a seguir como atração do Pátio de São Pedro. Os ritmistas das escolas de samba contratam pagodeiros para os dias de carnaval. Os assíduos compositores de pagode são às vezes os mesmos compositores de samba-enredo das escolas de samba, e que, com frequência, igualmente se dedicam a composições carnavalescas de frevo, caboclinho, maracatu. Na Zona Norte do Recife, estes ritmos pernambucanos explodem com semelhante intensidade de ritmos outros, como o coco de roda, a música de ursos e bois de carnaval, o hard core, o hip hop. Por esses gêneros transita expressiva quantidade de sambistas que passam frequentemente pelo Pagode do Didi, sustentando, com talento poético movido pelo improviso e sem improviso, as rodas de samba e de pagode, seja na base da crítica social, do lirismo, da crônica urbana. E há suficiente espaço, naquele terreiro, para a explosão criativa tanto quanto para a alegre expansão de dançarinos cheios de ginga no corpo e no pé. A mais importante e da alegria, do poder da criação. Há três décadas consecutivas vem formando músicos, criando condições para o desabrochar de talentosos compositores, intérpretes, grupos: "e o poeta se deixa levar por essa magia / e o verso vem vindo e vem vindo uma melodia / e o povo começa a cantar la laia laiá".
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duradoura contribuição de Didi tem sido justamente essa celebração
Maestro Duda 107
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axofonista sapeca, este texto é seu: é para o arranjador, o instrumentista, o regente, o diretor artístico, o compositor prolífico, um dos grandes do Brasil, diversas vezes escolhido melhor arranjador do Nordeste e um dos melhores do país, cujo repertório criativo constitui-se de frevo, sinfonia, canção, choro, samba e muito mais. Maestro Duda, ou José Ursicino da Silva, é da cidade histórica de Goiana, Pernambuco, onde nasceu a 23 de dezembro de 1935. Iniciou-se na música aos oito anos, na condição de aluno do regente Alberto Aurélio de Carvalho, passando, já a partir de então, a integrar a Saboeira, histórica banda filarmônica daquela cidade, da qual era maestro o seu professor, da qual participaram o pai e o avô. Começou tocando trompa, depois clarinete, embora a preferência recaísse sobre o piston. Talentoso, aos dez anos compõe o primeiro frevo, Furacão, e desde o princípio da carreira vem obtendo destaque e premiações. Aos 18 anos já trabalhava como arranjador e regente de orquestra na capital pernambucana. A mais famosa obra de Duda, conforme registra o Dicionário Cravo Albin de Música Popular Brasileira, é a peça sinfônica Fantasia Carnavalesca, já gravada, entre outras, pela Orquestra Sinfônica do Recife e Coral Ernani Braga. Ano de 1950, participa da Jazz Band Acadêmica, liderada por
Costa Neto/SecultPE
Capiba, e da Orquestra Paraguari, além de trabalhar na recifense
Maestro Duda e seu saxofone soprano.
Rádio Jornal do Commercio. Quando é contratado para a orquestra principal da TV Jornal, César Guerra Peixe era o maestro e Clóvis Pereira, um dos músicos. Quando, na mesma década, dirige o departamento de música da TV Jornal do Commercio, assume as funções de músico, arranjador e maestro da orquestra principal da emissora. Na década 1960 estudou regência e música sacra na Escola de Artes da UFPE. Musicou trabalhos dirigidos por Graça Melo, Lúcio Mauro e Wilson Valença. Passa a integrar a Orquestra Sinfônica do Recife (OSR) em 1962, tocando oboé e corne-inglês. Ano seguinte, 1963, cria orquestra de baile, e em 1967 assina contrato com a TV Bandeirantes, de São Paulo, onde viveu três anos, e lá também trabalhou na TV Tupi. Ao voltar do
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Sudeste em 1970, reassume participação na Orquestra Sinfônica do
referido projeto, coordenado pela Secretaria de Cultura do Estado
Recife e assume, ainda, o cargo de professor-arranjador do
de São Paulo, que Duda é aclamado como um dos doze melhores
Conservatório Pernambucano de Música. O maestro foi, inclusive,
arranjadores do século XX. Compôs frevos que foram gravados por
regente-arranjador e instrumentista da Orquestra Paraibana de
Severino Araújo e Oscar Milani, da Orquestra Tabajara. Tem sambas
Música Popular. Em 1971 foi premiado com o frevo de rua Quinho,
gravados por Jamelão. Composições para quintetos de sopro,
e no mesmo ano cria uma orquestra carnavalesca, que passa a ser
quintetos de metais, bandas e orquestras. Taradinho é o nome do
sucessivamente premiada como a melhor do ano.
primeiro frevo gravado pela Jazz Band Acadêmica, sob o selo Harpa. Pelo selo Mocambo, da recifense Rozenblit, Duda participou em
Na discografia de quem um dia foi assistente de Nelson Ferreira,
1962 da gravação do disco instrumental Velhos Sucessos em Bossa
quatro volumes formam uma coleção de frevos de rua, lançados em
Nova, tocando sax tenor, com Clóvis Pereira ao piano, nos arranjos
1999, sob o título Maestro Duda e Orquestra de frevo. Antes disso,
e direção musical.
em 1997, participa do projeto Memória Brasileira, no CD, Arranjadores, com a Suíte Nordestina, em regência própria. Nesta
Da prolífica obra, muitos são os destaques. Está no repertório de
composição, que tem sido executada por orquestras internacionais –
orquestras e bandas sinfônicas, de bandas filarmônicas. Está em
americana, japonesa, alemã – Duda se debruça sobre ritmos
mais de uma centena de discos, inclusive gravações internacionais.
nordestinos e, mais especificamente, pernambucanos, tais como
Para cada filho compôs um frevo, montando a série de frevos Familiar, dos quais Nino Pernambuquinho é o de maior sucesso.
sensibilidade sobre bases da cultura tradicional do estado. É com o
Com o maracatu Homenagem à Princesa Isabel, obteve, em 1953,
Marcelo Lyra
frevo, maracatu, oferecendo peça musical construída com apuro e
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de música carnavalesca promovido pela Câmara Municipal do Recife. Era, então, arranjador e regente da Orquestra Paraguari. Em
Priscilla Buhr
ou seja, antes de completar vinte anos, o segundo lugar no festival
1971, com o frevo de rua Quinho, vence festival de frevo da Rede Tupi. Entre as principais obras, vários frevos de rua, suítes, concertinos, fantasias. Sobressaem, entre outras, a Suíte Recife, Suíte Pernambucana de Bolso, Suíte Nordestina; a Música para Metais nº 1, a nº 2, a nº 3; Concertino para Trompete, Concertino para Trombone; Fantasia Carnavalesca, Fantasia para Cinco Trompetes. Entre os choros, compôs Trombonista Sapeca, Este é seu, Este é para dançar. O repertório inclui, igualmente, valsa, bolero, baião, xote, ciranda. A grande inspiração de Duda sempre
Apresentação durante o carnaval de 2010.
extrai sofisticada seiva das profundas raízes da rica musicalidade brasileira, sobre cujos mistérios do ouvir o teatrólogo Peter Brook escreve, em Os fios do tempo: vivem os maestros buscando ensaiar e de apresentar-se exige deles todas essas partes – os seus corpos como atletas ou dançarinos, os seus sentimentos como cantores e amantes, as suas mentes como matemáticos e pensadores – simultaneamente e em proporções iguais". Assim, com ouvidos sensíveis, Duda se debruça sobre a tessitura, sobre o brilho dos instrumentos, buscando a mais íntima e sensível melopeia, compondo e regendo com a exuberância de gestos precisos e expressivos, com a clareza de quem sabe conjugar simplicidade e beleza, explosiva alegria e mansidão.
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Marcelo Lyra
"harmonizar o corpo, a emoção e o pensamento. O esforço de
Jaqueline Silva
Maria AmĂŠlia 111
poética do olhar transforma a vida em desejo de contemplação e de ação criadora: assim os oleiros quando modelam esculturas, representações de mundo; assim os admiradores dessas obras quando contemplam e se extasiam com mundos representados; assim Maria Amélia quando inventa esculturas, sobretudo em torno de temas sacros, cujas faces se voltam para o alto, fixando-se na imensidão cósmica. Certamente as experiências afetivas de infância, imitando o pai oleiro, acompanhando o dia a dia da cidade oleira, entranharam-se nas Ricardo Moura/SecultPE
vivências sensoriais particulares de Amélia frente ao mundo do barro que, não por acaso, traz em si os quatro elementos da natureza – terra, ar, fogo, água – e que, num amálgama mágico, sensível, engendra bonecos, bichos, mitos, a própria vida, o cosmos. Nascida em Tracunhaém, região canavieira da Zona da Mata Detalhes da produção da artista.
pernambucana, a pouco mais de 50 quilômetros do Recife, Maria Amélia da Silva é do ano de 1923, mais precisamente do dia 18 de
Jaqueline Silva
abril. Até os anos 1980, partilhou experiências com escultores que deixaram importante legado para a história das artes daquele lugar, a exemplo de Severino de Tracunhaém, Antônia Leão, Severina Batista e da família Vieira – Lídia Vieira, Antônia Vieira, José Antônio Vieira. Aos oito anos Amélia já acompanhava a produção cerâmica do pai, João Bezerra da Silva, louceiro conhecido por José Dunde: “meu pai era um oleiro que conhecia de tudo”. Primeiro foi orientada a alisar as panelas que ele modelava. Ao mesmo tempo, menina naturalmente irrequieta, foi instigada a modelar bichinhos, panelinhas, brinquedinhos para consumo próprio e para transformar nuns trocadinhos nas feiras da redondeza. Com a exuberância da força criadora, Maria Amélia constrói uma plasticidade singular, possibilitando identificar a assinatura da artista: “meu trabalho é todo na mão”. E o olhar de cada boneco de barro é um desses vórtices de singularidade e impulso de clarividência, de expansão cósmica, como bem refere, no livro A poética do devaneio, o filósofo francês Gaston Bachelard: "o olhar
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é um princípio cósmico (...) quantos textos não poderíamos citar
que deixa à mostra apenas as mãos, o rosto, às vezes apenas parte
que afirmam ser o olho um centro de luz, um pequenino sol
do cabelo, os dedos dos pés. As figuras que, no percurso criativo
humano que projeta a sua luz sobre o objeto observado, bem
da ceramista, eram sempre bojudas, arredondadas, ganham ares
observado, numa vontade de ver claramente!" Assim, a artista,
mais longilíneos a partir da parceria que estabelece com o filho
com sensibilidade, modela a existência em alquímicas combinações
Ricardo Félix da Silva. Nos primórdios da carreira, bichos, carrancas
criativas dos elementos vitais – terra e céu, fogo e água. E, movida
e bonecos de variedade temática conviviam com os santos,
pela modéstia, pela reverência paterna, declara considerar a
entretanto estes foram os que mais contribuíram para consolidar a
própria arte como uma espécie de missão herdada do pai e
fama da artista por todo o país e fora dele.
escolhe incluir o fazer artístico pessoal na categoria de artesanato, como se fosse excessivo qualificar-se a si mesma com o que
Talvez esta preferência se explique, de alguma maneira, pelo
considera estabelecido num patamar superior.
princípio cósmico que rege a vitalidade e ancestralidade das artes cerâmicas. O certo é que a grande alegria de Maria Amélia
Rainha do Céu, São Francisco, São João do Carneirinho, São José,
consiste na feitura da Rainha do Céu, catolicamente traduzida por
São Pedro, Santa Luzia são alguns dos santos católicos recorrentes
Nossa Senhora, miticamente traduzida pelas deusas todas de
na obra de Maria Amélia. O repertório é mais amplo, claro, mas os
variadas religiões e mitologias. O aspecto mais comovente dessa
elementos que o compõem ajudam a identificar o conjunto da
escultura é a cumplicidade estabelecida entre o céu e a terra, por
obra, seja no panejamento do vestuário, seja nos detalhes das
meio de um detalhe recorrente: a cabeça e o olhar sempre
incisões em florais e variadas texturas, seja na longa vestimenta
voltados para o alto, como que a suplicar proteção, inspiração,
Costa Neto/SecultPE
Jaqueline Silva
Costa Neto/SecultPE
Maria Amélia, ao fundo: as peças de São João e a Rainha do Céu.
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e terra, entre fogo e água. Sábia e intuitivamente, a artista elege o traço mais poderoso e representativo da própria obra, que é este princípio vital feminino a conduzir, a manejar, a mediar as forças da natureza. Ao debruçar-se sobre múltiplas mitologias, Lévi-Strauss, no livro A oleira ciumenta, interpreta ser a olaria motivo de combate cósmico: conflito entre as potências de cima e as potências de baixo, representadas mitologicamente por grandes aves e serpentes. "A ideia de que o oleiro ou a oleira, e os produtos da sua indústria, têm um papel de mediadores entre as forças celestes de um lado, e as terrestres, aquáticas ou ctonianas, por outro, faz parte de uma cosmografia que não é exclusiva da América." É, pois, Maria Amélia – possivelmente a mais antiga oleira pernambucana em atividade – guardiã de segredos ancestrais, inclusive de técnicas tradicionais de preparo, manejo e queima das peças em forno a lenha. Modela manualmente uma a uma e sempre opta pela cor natural do barro. Assim, em tudo o que faz vai imprimindo a energia vital das próprias mãos, reverentes ao impulso criador do cosmos e capazes de extasiar-se e extasiarnos a todos.
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força, vigor; como que a intermediar e facilitar o fluxo entre céu
Mestre Galo Preto 115
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canto do galo desperta os sentidos, acorda a alegria. O galo é preto e explode em cores, cantando à vida com voz fluente e sedutora, plena de carisma e modulações cromáticas. Foi assim desde o princípio. E uma das primeiras testemunhas, fisgada casualmente por este jogo sedutor, era "apenas" o poeta Ascenso Ferreira, que, a partir da janela de casa, se sentiu completamente rendido à graça do adolescente de 12 anos que gritava na rua o Mateus Sá
seguinte pregão, de própria autoria: "Batata inglesa, quer hoje, freguesa? / Não dá pra pobreza, só pra riqueza / É uma beleza minha batata inglesa". O ano era 1947, quando Tomaz Aquino Leão acabava de migrar para o Recife, e, “achado” por aquele Daniela Nader
poeta atento e declaradamente apaixonado pela poesia popular, de imediato é conduzido ao programa de Zil Matos, Divertimentos Guararapes, na Rádio Clube de Pernambuco. “Comecei já prestando um serviço, sem saber, a Pernambuco e à cultura de Pernambuco”, isto é o que compreende hoje o poeta improvisador, que naquelas circunstâncias inaugurava trajeto de fama pelas artes de poesia tradicional que desde os nove anos exercitava com inteligência, talento e sagacidade: o coco improvisado. Repentista, coquista, cantador, embolador, compositor. Variados são os qualificativos e ainda maior é a poesia de Galo Preto, que Mestre Galo Preto com seu instrumento personalizado.
transita, à vontade, pelo repertório tradicional, pelos cânticos, também tradicionais, da Jurema Sagrada, e por repertório autoral,
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do samba de coco, de improviso ou não: “o cantador autêntico faz a rima, faz o coco, e canta o coco que é dele”. Coco de roda, coco brejeiro, coco praieiro, coco de embolada, coco sertanejo, coco de umbigada, coco de parelha, coco de trupé integram o repertório versátil do mestre, parceiro de artistas como Jackson do Pandeiro, Fome, Luiz Boquinha, Ary Lobo, Coruja e seus Tangarás, Cauby Peixoto, Arlindo dos Oito Baixos, Luiz Gonzaga, Jacinto Silva, Zé Brown. Quando nasceu, em 8 de outubro de 1935, a localidade de nascimento, Taquari, ou Quilombo da Rainha Isabel, na cidade pernambucana de Bom Conselho, era tradicional reduto de coco – a dança, o ritmo, o canto, a poesia, o repente, a rima. Galo Preto, filho caçula de agricultores, nasce numa família de poetas e já nasce irmão dos emboladores Curió e Preto Limão, com os quais aprendeu o ofício pela convivência e observação: “a família toda tem o dom”. Na década 1950, foi garoto-propaganda de empresa Beto Figueiroa
pernambucana, e, por isso, percorreu o Brasil cantando improvisos para a então renomada fábrica de tecidos. Nos anos 1960, Galo Preto e seu Trio de Ouro faziam shows apresentando repertório bem pernambucano: embolada, ciranda, frevo. Em 1966, aparece
A vitalidade é uma das marcas do Mestre Galo Preto.
na TV Record, em programa de auditório gravado com Geraldo Vandré. No ano de 1969, é o grande vencedor de festival de repentistas organizado por Rubens Teixeira no Teatro Popular do Nordeste (TPN), Recife, cabendo o segundo lugar ao irmão Curió. Em 1970, apresenta-se no programa Fora de Série, de Flávio Cavalcanti. No ano de 1971, fazia shows no restaurante Adega du Bocage, Recife. E no final do mesmo ano participa de exibição de caráter educativo – um "desafio amistoso" com Garoto de Ouro – Educação e Cultura (MEC/RJ). Em 1979, vai ao programa do Chacrinha. Na década 1980, mantém o Centro de Tradições Pernambucanas, no bairro de Ouro Preto, Olinda, espaço cultural próprio no qual promovia shows. Nos anos 1980, mais de uma vez participa do Som Brasil, da TV Globo, cujo apresentador era o ator
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no Colégio Pedro II, Rio de Janeiro, a convite do Ministério da
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Lima Duarte. Em 1989, integra a campanha de Fernando Henrique Cardoso para governador de São Paulo. “Final de 60 até a década de 80 eu era o galo preto da história”, comenta, a propósito do intenso percurso artístico, e, ainda assim, assegura: “sou um mestre aprendiz”. Reconhecido nacional e internacionalmente, Galo Preto, além de já ter viajado por todo o país, foi à Europa, chegando a se apresentar em Berlim, Alemanha, no Sabadão do Pagode. Integrou conjunto musical em que o sanfoneiro era Arlindo Moita; o zabumbeiro, Maurício da Zabumba, e Novinho da Paraíba tocava o triângulo. Conquistou reconhecimento pela ampla atuação, inclusive com as casas de shows que manteve entre 1973 e 1982. Na casa de espetáculos Folclore do Minho, Recife, fazia shows ao vivo. Pisa na Fulô era casa de forró em Olinda, onde Galo Preto era sócio majoritário, apresentador e animador. Na beira-mar olindense de Rio Doce, a Casa do Repentista Galo Preto consistia numa grande sala de coco, em que o repertório também incluía forró, ciranda, repente e frevo. Reverenciado pelo incontestável talento, o poeta tem sido tema de filme, trabalho acadêmico, pesquisa, como o livro O coco praieiro, de Altimar Pimentel, e o documentário Galo Preto, o Menestrel do Coco, do cineasta Wilson Freire.
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Recentemente lançou o disco Mestre Galo Preto: 65 anos de coco. A cada apresentação, e também oficinas, entusiasma-se: “eu me sinto bem em saber que aonde eu canto hoje os jovens gostam e ficam querendo aprender”. Nos shows, partilha o palco com seis pessoas, inclusive uma filha no back vocal. Entretanto, quem chama mesmo a atenção de todos é ele, o mestre, porte elegante, língua afiada, mente veloz.
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Maracatu Estrela de Ouro de Alianรงa 119
strela de Ouro, Aliança, Chã de Camará. Chã é campina, terreno plano, planície. Da família das verbenas, camará, ou cambará-de-jardim, lantana-cambará, camarazinho, é flor tropical, flor em cachos que, agrupada em hastes aromáticas, desabrocha pelos campos o ano inteiro, generosamente atraindo para si abelhas, borboletas, insetos, pássaros. Multicoloridas, as flores de camará preferem o sol pleno. Assim poeticamente, sobre exuberante chão de flores, sob sol pleno – esta estrela de ouro –, florescem, multicoloridos, deslumbrantes, folgazões do baque solto, festejando os dias e as noites de carnaval e outras alegrias desde 1º de janeiro de 1966, quando a família Batista inaugura uma brincadeira cheia de brilho, o Maracatu de Baque Solto
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Estrela de Ouro.
Caboclos de lança, símbolo máximo do Maracatu de Baque Solto.
A história deste maracatu é uma história de tradição e resistência cultural. Narrativa de amorosos obstinados, conta a história oral que o folguedo remonta a 1882, sob o nome de Nação Maracatu Cambinda Nova, originário de Santa Luzia, em Tupaóca, distrito de Aliança, município geograficamente situado na Zona da Mata Norte de Pernambuco e cuja subsistência dependia quase que exclusivamente, desde o século XVI, da economia açucareira. Severino Lourenço da Silva, o fundador do Estrela de Ouro, nasceu
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ali, cresceu mergulhado nas expressões culturais lideradas pela família e foi assim, pelos laços familiares, que aprendeu a cultiválas, sobretudo com o tio, José Batista, e com o avô, Antônio Lourenço da Silva. A importância simbólica do grupo extrapola, portanto, o que o segundo artigo da ata de fundação explicitava naquele momento inaugural: "festejar os dias de carnaval e promover festas para os sócios e admiradores". Trabalhador rural, comerciante tropeiro, fiscal de campo, comissário de polícia. Submetido à necessidade de sobreviver de múltiplas maneiras, Severino Lourenço se estabelece em Chã de Camará em 1965, após a morte de José Pereira, proprietário do sítio e pai de criação da mulher, Sebastiana Maria da Silva. O local, na rodovia PE-62, próximo à entrada do distrito de Upatininga,
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mantinha um chalé avarandado e acolhedor, construído na década 1930, e ali foi morar o agricultor Severino Lourenço, com a mulher e filhos. Assume o cargo de administrador do sítio e, um ano depois, em 1966, cria o maracatu, acompanhado por mais quatro fundadores, Sebastião Frei de Carvalho, Manoel Francisco de Lima, Ricardo Moura/SecultPE
Sebastiana Maria da Conceição e Luís Rosa da Silva. Líder da brincadeira, Severino Lourenço passa a ser tratado, daí em diante, por Mestre Batista, e o ambiente aglutinador dos integrantes do brinquedo fica sendo o chalé e o amplo terreiro frontal, cenário ainda hoje de grandes e festivos momentos do maracatu. Filho único, Batista nasceu em 1934, em Aliança, e foi criado pela mãe, tio e avós maternos. Funda o Maracatu Estrela de Ouro um ano após a morte da mãe, pois a mesma não admitia vê-lo transformado em folgazão, vê-lo envolvido em brincadeira à época socialmente discriminada, ainda que liderada pela própria família. Já tinha havido o antigo maracatu e havia ainda o cavalo-marinho, heranças do tio e avô maternos. Neste contexto, o Estrela de Ouro,
Jaqueline Silva
agremiação carnavalesca, não chegava naquele momento como invenção artística solitária. Folguedo enigmático, híbrido, o maracatu de baque solto é originário da Mata Norte onde, ao lado do cavalo-marinho, representava, então, uma das mais vigorosas
Sede do Maracatu em Aliança.
expressões da cultura tradicional. Além disso, a comunidade Ricardo Moura/SecultPE
também desfrutava de outras práticas arraigadas, como coco de roda, coco de embolada, cantoria de viola, ciranda. O Estrela de Ouro se firma, assim, por 25 anos entre as tradições do lugar, até que morre Severino Lourenço, em 1991, e o grupo é quase desativado. Poucos anos após, em 1995, o herdeiro da família Batista, o filho José Lourenço da Silva, acompanhado de alguns membros da comunidade, assume a liderança do maracatu, reatando a tradição de família, e vai mais além, fundando o Coco Popular de Aliança e a Ciranda Rosas de Ouro. «Um leque de signos que, ao se abrir e fechar, nos deixa ver e oculta, alternativamente, seu significado”. O maracatu de baque solto é esse "leque de signos", no dizer do poeta Octavio Paz. A
Zé Lourenço, atual presidente da agremiação.
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elegância do brinquedo alia-se à complexidade de elementos
O maracatu, quando funcionou como Ponto de Cultura Estrela de
fundadores, personagens e ritos. O caboclo de lança é umas das
Ouro, pôde providenciar o restauro da casa-grande e instalar
figuras centrais no folguedo, como o mestre de poesia é o grande
estúdio de gravação, biblioteca, escola de informática. Pôde
líder. Mestre Batista foi o primeiro mestre caboclo do novo
gravar, em 2006, o primeiro CD, comemorativo aos 40 anos de
maracatu, e seguiu na função até 1990. Aprígio Gabriel, tocador
existência do grupo, e vem conseguindo realizar apresentações em
de viola, foi o primeiro poeta. Pouco depois, em 1969, o talentoso
diversos estados e capitais do país, em países da Europa e das
José Bernardo Pessoa, conhecido por Zé Duda, passa a comandar o
Américas. Com o reconhecimento conquistado nos últimos anos,
apito e a poesia do maracatu. Quando fica afastado entre 1991 e
têm surgido frequentes oportunidades de participação em
1997, outros mestres atuam no folguedo: Juriti, Cosmo Antônio,
projetos, festivais e encontros, como o Festival Canavial, Festas de
João Júlio. Zé Duda, que nasceu em 1939, na pernambucana Buenos
Terreiro, Toques e Trocas, Maracatu Maracatuzeiros, como a
Aires, desde 1950 é mestre de maracatu e mantém-se até hoje no
viagem que foi feita à cidade francesa de Murat, para um festival
grupo, destacando-se pelas habilidades no improviso poético, as
de danças e músicas do mundo. Que "definição viva, estética e
quais o levaram a protagonizar nos anos 2000, com Jorge Mautner,
não etnográfica da nossa arte popular", conforme reflete o
o disco e o documentário Maracatu Atômico Kaosnavial.
português Ernesto de Sousa, poderíamos propor a esta exuberante
Integrando um dos núcleos de personagens – o cortejo real, o rei
expressão cultural? Compartilhando saberes com ciranda, coco,
da brincadeira é o babalorixá Pai Mário, que, mais do que se vestir
cavalo-marinho, as flores de Camará conjugam canto, poesia,
de realeza, cuida espiritualmente dos folgazões, com segredos
dança, música, teatro, artes plásticas, artesanato, religião. No
religiosos da Jurema, das linhas de caboclo, dos ritos propiciatórios
êxtase criativo de maracatus, resplandece uma Estrela de Ouro,
e atua diariamente no Centro Nossa Senhora da Conceição,
alumiando o mundo com a cultura do baque solto. Carnaval,
instalado vizinho à sede do brinquedo.
paixão, alegria, arte.
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Ricardo Moura/SecultPE
Ricardo Moura/SecultPE
A preparação dos brincantes do mararacatu; pequena dama segurando a estrela, símbolo da agremiação, em apresentação no Marco Zero, Recife.
Clara Gouvêa/SecultPE
Associação Musical Euterpina de Timbaúba 123
Costa Neto/SecutlPE Costa Neto/SecutlPE
o reino da música e da memória, com todas as bênçãos da Musa Euterpe, há quase um século brilha uma "deusa estrelar": a Associação Musical Euterpina de Timbaúba. O poeta e jornalista Balthazar de Oliveira presidiu a sessão solene de fundação, a 9 de fevereiro de 1928. Dez meses depois, sob as notas vibrantes de dobrados regidos pelo maestro Augusto Rezende, sob os esforços e dedicada alegria dos professores José Mendes da Silva e José Francisco Ribeiro, acontece a primeira apresentação, daquela sociedade cujo nome José Mendes foi quem propôs. Cultivar e desenvolver o gosto pelas artes da Musa Euterpe é o que desde o princípio defende o estatuto da banda. Tradição na cena cultural daquela cidade da Zona da Mata Norte de Pernambuco, a filarmônica, que inicialmente se chamava Sociedade Musical Euterpina Comercial de Timbaúba, por décadas vem preenchendo com alegria e dignidade as ruas da antiga Vila dos Mocós, nos mais variados momentos do calendário oficial e não-oficial da comunidade. Por décadas, vem mantendo o firme
Reprodução
propósito, perante os associados, de "organizar recreios de várias
Foto da banda em 1997.
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espécies, como sejam concertos, convescotes, passeios, retretas etc., além de festas internas para diversões de seus associados".
Momentos de recreio, de lazer, de festa, estes ritos de socialização
fevereiro, em que também é celebrado o dia do frevo. Além das
desdobram-se em múltiplas circunstâncias, de retumbante alegria
músicas religiosas e carnavalescas, o repertório geral do grupo
à mais profunda tristeza, e incluem a participação de históricos
compõe-se de bolero, valsa, choro, dobrados, ritmos tradicionais
personagens, como a do escritor Balthazar de Oliveira, pai do
pernambucanos e o que possa haver de mais pop e ousado na
pintor, escultor, ilustrador e poeta Montez Magno, e que depois
cena musical, como Chico Science e o Maestro Forró. A oportuna
foi prefeito de Afogados da Ingazeira, no Sertão do Pajeú. Retreta,
adequação do repertório vem funcionando como atrativo a
tocata, procissão, aniversário, funeral vêm garantindo à Euterpina
músicos e público jovens.
inscrição na memória coletiva da cidade e nas lembranças afetivas de indivíduos e respectivos clãs familiares. E, seguindo o ritmo do
Ao divulgar históricas apresentações protagonizadas pela
calendário, maio é tradicionalmente o mês das retretas. No
filarmônica, o Timbaúba Jornal noticiou a audição de gala na Rádio
carnaval, apresenta-se como orquestra de frevo, como que
Tamandaré, Recife, em abril de 1954, quando foram "o maestro
rendendo homenagens ao próprio aniversário, o dia nove de
Francisco Carneiro e os componentes da Euterpina delirantemente aplaudidos por numerosa e seleta assistência". Esse regente, de
processo de iniciação e profissionalização. E, aliás, é devido a essas atividades pedagógicas que as filarmônicas se constituem em verdadeiros conservatórios e, ainda, “equivalem às orquestras sinfônicas das grandes metrópoles", conforme escreveu em artigo o pesquisador Renan Pimenta, um dos grandes defensores das
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que fala a reportagem, é quem nomeia a Escola de Música Mestre Carneiro, mantida para atender crianças, adolescentes e jovens em
Detalhes dos instrumentos.
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filarmônicas, articulador do Encontro de Bandas de Música da Mata Norte e integrante da Federação de Bandas de Música de Pernambuco, associação criada em 1996. Mesmo conquistando tanto sucesso ao longo de décadas, a Euterpina permaneceu inativa por quase trinta anos, entre 1962 e 1989, até que, no dia 2 de março de 1989, na sede do Lions Clube de Timbaúba, um grupo de antigos admiradores – José Mário de Albuquerque Rodrigues, Braz Coutinho Filho, Teófanes Martins, Osvaldo Xavier Pedrosa, Ismael Vasconcelos, Nilson Neves Perrelli – decidiu restaurar as atividades da associação, sob a presidência
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deste último. Assim, após dois anos de preparativos e ensaios, a 31 de março de 1991 a Euterpina ressurge, exuberante, em alvorada festiva e retreta com a participação de outros grupos tradicionais, entre elas a Sociedade de Cultura Artística 22 de Novembro, de Paudalho, a terceira mais antiga do Brasil e América Latina, fundada em 1852; a centenária Sociedade Musical Comercial Caruaruense, de 1900; a Filarmônica 28 de Junho, de Condado, criada em 1905; a Sociedade de Cultura e Musical 1º de Novembro, ou Pé-de-Cará, de Timbaúba (1922). Retomar as atividades significou renovar antigas alegrias, e igualmente acrescentar novas emoções, como aquela que, há alguns anos, toda a cidade presenciou e a imprensa local registrou: a execução do dobrado Sonhador, tocado em praça pública pelas históricas rivais Euterpina e Pé-de-Cará, como se formassem uma só orquestra, como se jamais tivesse havido renitente disputa entre as duas aclamadas filarmônicas timbaubenses. Tal acontecimento, extraordinário, foi noticiado pelo jornal A Província, em janeiro de 1997. Hoje, mantendo-se em contínua atividade desde a retomada, mais de quarenta músicos atuam, sob a regência de Josivânio Rique de Lima, Mestrim, e assim segue reinando a Euterpina de Timbaúba, esta estrela de alegria, para júbilo até mesmo da Musa Euterpe.
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Banda Revoltosa
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evoltosos do Inferno: se o apelido guardava propósitos pouco nobres, os fundadores, dissidentes da rival Euterpina, alcançaram o que de mais louvável poderia haver. Com a participação de músicos tarimbados criaram a Sociedade Musical 5 de Novembro, ou Revoltosa, estabelecendo mais uma interlocutora para as pelejas musicais protagonizadas em Nazaré da Mata, com o Grêmio Musical 22 de Novembro, popularmente conhecido como Cabeluda, e a Euterpina Juvenil Nazarena, ou Capa-Bode, ambos fundados no século XIX. Na gênese de tudo, já havia a Cabeluda, que cuidava desde o cultivo de ouvidos afiados ao preparo de virtuosos instrumentistas, desde a aprendizagem de partituras à educação orquestral, sinfônica, até surgir a rival CapaBode. As duas, que se enfrentavam em pelejas musicais, faziam a cidade encher-se de alegria e vitalidade, e terminaram colaborando para que mais uma banda se firmasse, desta vez no início do Costa Neto/SecultPE
século XX: assim nasceu a Revoltosa, fundada em Nazaré a 14 de janeiro de 1915, tradicional desde o princípio. O primeiro maestro líder dos revoltosos foi o regente Joquinha, ou João Alves Cantalice, cujo nome é homenageado numa rua do
Seu Zé Dias, antigo componente da banda e Josenildo, atual presidente.
bairro do Sertãozinho. O primeiro presidente chamava-se Francisco Salustiano Correia e a primeira apresentação, que aconteceu no dia 5 de novembro do mesmo ano em que a banda foi fundada,
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Detalhe, da sede do grupo.
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Lápide dos antigos presidentes da Banda.
teve a referida data escolhida para oficialmente nomear a
região, a exemplo dos ritmos locais – ciranda, coco, frevo,
associação. O maestro Joquinha, ex-aluno do primeiro regente da
maracatu – incluídos no vasto acervo de partituras da quase
Capa-Bode, o músico João Tomé, também chegou a reger a
centenária banda, lado a lado com o repertório, bastante eclético,
Euterpina, antes de passar a integrar a dissidência. Foi Joquinha
de tradicionais marchas e dobrados, de MPB e clássicos. Diversos
quem protagonizou histórica disputa entre essas duas rivais, e,
ritmos e estilos musicais são contemplados.
liderando a Capa-Bode, a outra banda do enfrentamento, estava o Maestro Brigada Carneiro. Além do talento indiscutível, figura no
Para atrair os ouvidos sensíveis desta cidade "plena de música",
currículo do mestre Joquinha a iniciação musical do regente,
conforme definiu o maestro José Menezes em artigo publicado nos
arranjador, compositor e instrumentista nazareno José Menezes
anos 1980 e, sobretudo, para atrair adolescentes e jovens
(1923-2013), que começou a carreira estudando e tocando na
naturalmente irrequietos, múltiplos são os cursos oferecidos pela
banda Revoltosa, consagrando-se depois como um dos maiores no
banda, sob a direção de Josenildo Dias de Melo e regência musical
carnaval pernambucano.
de Rubens Luiz de Oliveira Santos. Cursos de editoração de partituras, de ritmos regionais, de percussão compõem a grade
Localizada à Praça Carlos Gomes, em casarão antigo de tradicional
pedagógica simultaneamente ao ensino de técnica instrumental,
endereço, em pleno centro, e quase aos pés da antiga Igreja do
teoria e solfejo. E é histórica a contribuição da banda na formação
Bom Jesus e casario histórico que enfeita rua homônima, a
e encaminhamento de estudantes e músicos ao Conservatório de
Revoltosa mantém ainda hoje a saudável rivalidade com a Capa-
Música de Pernambuco, aos centros profissionalizantes, centros de
Bode: igualmente participa de desfiles cívicos, desfiles religiosos,
arte e universidades, bandas e orquestras do país. O projeto
encontros de banda, carnavais, outras festas de rua e, ainda,
pedagógico inclui o atendimento a crianças e adolescentes
desenvolve atividades de educação musical, cujo público não se
socialmente carentes. Para melhor executar esse projeto, o espaço
restringe aos moradores de Nazaré, abrangendo alunos que se
físico foi estruturado de modo a oferecer cinco salas destinadas a
deslocam de cidades vizinhas, como Aliança, Buenos Aires,
aulas teóricas, à prática de instrumento, aos cursos e oficinas. Há,
Carpina, Tracunhaém, atraídos pela envolvente musicalidade da
ainda, auditório para concertos e audição musical, um pátio de
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Ata de fundação.
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eventos para espetáculos e comemorações, um salão nobre onde
"importante conjunto composto de elementos da 5 de
os músicos ensaiam semanalmente.
Novembro". O jornalista também dedicou espaço para traçar perfil do então diretor da Revoltosa, Joel de Lima, e reverenciar o
Ao longo da história é possível confirmar as qualidades da
maestro, naquela ocasião há 25 anos no cargo, declarando que
instituição sem fins lucrativos. Em 1958 apresenta-se no auditório
"aos vários sucessos da Revoltosa o mestre Joquinha tem o nome
da Rádio Clube de Pernambuco e conquista o título de campeã em
profundamente associado. Uma geração de músicos deve-lhe a
concurso promovido pela emissora. Bem antes, na comemoração
sua formação artística".
de mais um aniversário, especificamente o de 25 anos, o jornalista nazareno João Manoel Vieira de Melo publica, em 5 de novembro
Sempre em busca de um nível de excelência, a Revoltosa
de 1939, "programa social, noticioso e humorístico" consistindo
conquistou em 2008 o Prêmio Maestro Duda 100 Anos de Frevo,
em edição única de O Revoltoso, o qual o próprio Vieira de Melo
oferecido pelo Ministério da Cultura (Minc). É, ainda, a partir do
qualifica como "lembrança deste dia em que Nazareth em peso
ano seguinte, 2009, que passa a funcionar como Ponto de
comemora gostosamente a nossa data aniversária". O registro
Cultura, mantido pela parceria entre o Governo Federal e o
noticia a programação do dia de festa, preenchido com alvorada,
Governo do Estado de Pernambuco (Minc/Fundarpe). E se o
salva de tiros, retreta, leilão de prendas oferecidas por amigos e
ponto de partida foi uma disputa de poder, faz um século que
admiradores, mamulengo, pastoril, barraquinhas, coroado pelo
Nazaré, e todo o entorno, é quem permanece ganhando esta
noturno chá dançante com a Jazz Band Almirantes do Ritmo,
saudável e musical peleja.
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Membros da banda durante ensaio.
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Lula Vassoureiro 131
a receita prosaica que mistura pedaços de jornal e grude de goma nasce o objeto com que Lula Vassoureiro transfigura o humano, evoca antigos sentidos. E que objeto é este? A máscara de carnaval, mais especificamente a máscara de papangu, figura emblemática da cultura de Bezerros, carnavalesca cidade encravada no agreste pernambucano. "O nascimento da máscara está ligado ao ato criativo de um escultor", lembra Ludovico Zorzi, conferindo dignidade a cada inventor deste objeto e, portanto, conferindo dignidade a quem de direito em Pernambuco vem construindo para si e para o mundo um potente legado com este "instrumento universal cuja origem no tempo é indeterminada" conforme descreve Luis da Câmara Cascudo. O amor ao carnaval se multiplica por arte das próprias mãos de artista que já foi construtor de brinquedos populares nordestinos, como rói-rói e mané gostoso, que desde a infância domina as artes circenses de palhaço e de mágico, e há muito ocupa posição relevante na cena cultural pernambucana, nordestina, brasileira: “toda a vida
Reprodução
fui criativo”. Nascido em Bezerros a 2 de novembro de 1944 e conhecido na cidade como "pai dos papangus", "mestre das máscaras gigantes", “Lula, o gigante”, Amaro Arnaldo do Nascimento Reprodução
Fotos antigas do Carnaval de Bezerros, arquivo do artista.
começou a lidar com a técnica aos seis anos, quando fez a primeira máscara, inspirada no contemporâneo personagem de cartum O amigo da onça. Herdou do pai e do avô não apenas o apelido, sobretudo o amor ao carnaval e a essa peça carregada de símbolos que, segundo o teatrólogo Peter Brook, "é a mais extraordinária experiência de liberação que se pode imaginar". O pai de Lula, José Arnaldo do Nascimento, ou Zé Vassoureiro, ensinou ao filho a arte de fazer máscaras, por sua vez aprendida com o próprio pai, o artesão e vendedor de vassouras, Antônio Vassoureiro. O resultado disso tudo é que, embora o pai nunca tenha permitido o filho frequentar escola (mesmo assim ele aprendeu sozinho), por causa das máscaras já viajou até aos
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Estados Unidos para ministrar oficina em duas universidades, como
organização dos sentidos da vida, de catarse. Por isso mesmo, as
artista convidado. As obras artísticas que produz estão espalhadas
máscaras de papangu não são objetos a serem simplesmente
pelo mundo. Andam pelo México, Estados Unidos, Canadá,
apreciados de maneira isolada, ainda que o artesão se debruce
França, Itália, Etiópia, Japão. Se a simbologia mostra-se em
sobre os materiais para construí-las uma a uma, ainda que sejam
contínuo processo de revisitação e renovação de sentidos, também
postas à vista separadamente. A exuberância dessas figuras
constantemente se renova o ofício artesanal da construção das
enigmáticas se apreende no espetáculo de catarse coletiva, que é o
máscaras de Lula Vassoureiro, sem, entretanto, se romperem os
carnaval. O mistério, o terror provocados pelas máscaras
fios de alegria e irreverência que seguem tecendo a tradição
comunicam, tanto quanto a alegria, os sentidos do efêmero e da
carnavalesca local.
fragilidade da vida.
Entre as características estéticas adotadas por Lula na manufatura
Objeto carregado de símbolos, as máscaras faciais não são a única
das caras, há a construção de tipos regionais, conforme
especialidade de Lula. O artista é sempre convidado a produzir
tradicionais modelos de rosto masculino e feminino, e,
grandes máscaras para ornamentação da cidade durante o período
simultaneamente, máscaras de deliberado estilo veneziano que se
momesco, além de outros ícones do carnaval pernambucano,
firmaram em meio à tipologia recorrente na infância de Lula.
como boi, burrica e boneco gigante. A cada ano, e com a
Modelos que, conforme descreve o próprio artista, são
colaboração de equipe de artesãos auxiliares, Vassoureiro produz
classificados como antigo, moderno e estilizado. Aquelas mais
em torno de 1.500 peças, das quais cerca de trezentas
sugestivas de terror e desconforto foram propositadamente sendo
correspondem a rostos gigantes e painéis ornamentais. Sobre as
preteridas às que inspiram mais ingenuidade, alegria, e não
técnicas de criação, menciona o uso de papier mâché, papier
assustam criancinhas como acontecia em décadas passadas. A
encollé, materiais reciclados. Na Casa de Cultura Popular Lula
máscara, mediadora entre forças – bem e mal, alegria e tristeza – é
Vassoureiro, espaço criado por ele mesmo em 1985 para
objeto mágico de cerimônias rituais, é símbolo de identificação, de
produção, divulgação e repasse da técnica, há um auditório, uma
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As máscara de Lula Vassoureiro: marca do carnaval de Bezerros.
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loja, e o acervo, permanentemente exposto, consiste em peças artesanais, troféus, memórias várias da trajetória artística. Há peças em exibição tanto no tamanho natural, quanto em miniatura e formato ampliado. Aliás, o artista integra o Guiness Book por ter produzido em 1997 a maior máscara do mundo, com cinco metros e meio de altura. Participa anualmente, no Recife, de feira internacional de artesanato, a Fenearte, onde ocupa lugar de destaque na ala dos mestres. É por amor ao carnaval que certamente o artista se destaca pelas
Costa Neto/SecultPE
vibrações de mãos hábeis e de todos os sentidos sincronizados com as tradições. Verdadeiro folião, Lula Vassoureiro também herdou do pai o Bacalhau na Vara do Zé Vassoureiro, fundado em 1956, e que, pela persistência do herdeiro, continua saindo toda quarta-feira de cinzas. Por este motivo e ainda mais pela criatividade de papangus e outros objetos carnavalescos que inventa, em 2002 e em 2014 Lula foi o homenageado do carnaval de Bezerros, ciclo festivo em que igualmente conquistou muitos louros – por vinte e uma vezes recebeu o prêmio de melhor fantasia. A vida do artista sempre foi pautada pela criatividade, pela alegria, pelo desafio da novidade. Passando-se por órfão, dos 7 aos 13 anos viajou acompanhando um circo, o que lhe rendeu aprendizado nas artes circenses e mágicas. Observando o artesanato do pai, e à revelia deste autor e proprietário dos moldes, aventurou-se na criação de rosto de papangus, assim articulando permanente diálogo com a própria comunidade e com o mundo, fazendo ressoar a reflexão antropológica de LéviStrauss: "as máscaras não são menos indispensáveis, para o Costa Neto/SecultPE
grupo, que as palavras".
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Aguinaldo Leonel
Maestro Formiga
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Edmar Melo/SecultPE Edmar Melo/SecultPE
uero ser sempre o primeiro dia de carnaval". É assim que o maestro gosta de viver, possuído pela melodia, braços movendo-se para os lados e para o alto, expandindo-se feito frevo de rua que começa derramando alegria. É a coerência entre vida e obra o que expressa o artista, Maestro Formiga, elegendo o modo maior como a forma por excelência para conduzir o ritmo da obra, o ritmo da vida. A paixão por viver está tão entranhada nele quanto a paixão pela alegria de viver mergulhado na música, expressão artística que o emociona sempre: seja repente de viola, seja frevo, seja Beethoven. Autodidata visceralmente ligado à musicalidade popular de frevo, maracatus de baque solto e virado, ciranda, caboclinho, bumba-meu-boi, suas composições incluem, além de ritmos tradicionais, poemas sinfônicos, estudos para piano, flauta e oboé. Ademir de Souza Araújo, que nasceu no Recife em 15 de outubro de 1942, é formiguinha incansável da cena musical pernambucana a partir da década 1950, e desde então escreve significativa parcela da história cultural brasileira com a versátil e talentosa arte. Compositor, arranjador, instrumentista, regente, professor de música, Maestro Formiga foi aluno de José Otávio dos Prazeres e de José Gonçalves Lima. Estudou contraponto e fuga com Jaime Diniz. Com o maestro César Guerra-Peixe estudou música
Apresentação do maestro Ademir Araújo e Orquestra, no Festival de Inverno de Garanhuns 2012.
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folclórica. A base da formação está na experiência vivenciada em
Reprodução
Reprodução
Maestro Ademir e Claudionor Germano, década de 1970.
O primeiro frevo composto pelo maestro, 1966.
Estreia da Frevioca em 1985.
bandas de música. Aos 20 anos funda, com amigos, a Banda
participa do lançamento da Frevioca, orquestra volante de frevos
Municipal do Recife, onde estreia tocando saxofone e onde, anos
criada pelo pesquisador Leonardo Dantas Silva. Aliás, há cinco
depois, de 1970 a 1977, assume o cargo de regente titular. Diretor
décadas Formiga é amigo de Claudionor, intérprete de premiadas
da Federação das Bandas de Música do Estado de Pernambuco,
composições suas: os dois se conhecem desde 1964. Diversas
Formiga atuou como arranjador em bandas do interior, foi regente
vezes vence o Frevança, encontro nacional do frevo e do maracatu
da Banda Sinfônica Juvenil Pernambucana e, entre 1984 e 1991,
promovido pela Fundação de Cultura Cidade do Recife e Rede
comandou a Banda Sinfônica da Cidade do Recife. Este sobrinho
Globo Nordeste. No ano de 1980, com Águia de Ouro,
do renomado maestro Severino Araújo, da Orquestra Tabajara, traz
composição de maracatu de baque solto. Em 1981, 1982 e 1989,
no sangue o talento e no caráter irrequieto e criativo uma torrente
respectivamente com os frevos de rua Formiga está de volta,
de melodias, arranjos, invenções traduzidas em jogos harmônicos
Tonico está de volta e Andréa no Frevo.
de metais e percussão, transformando-se, ele mesmo, numa das mais importantes referências em composição e arranjo musical de
Formiga é quem cuida da regência e direção musical da Orquestra
múltiplos gêneros populares e eruditos. A partir da exuberância da
Popular do Recife, idealizada e criada por Ariano Suassuna, em
obra e do ensino a jovens iniciantes, sobretudo nas bandas de
1975, como um dos ramos de atuação do Movimento Armorial.
música, Formiga vem não apenas formando, sobretudo
Constitui-se, desde o princípio, como uma das mais importantes
influenciando gerações de artistas.
orquestras de Pernambuco, pioneira na pesquisa e transcriação de gêneros tradicionais, a exemplo de maracatu, coco, ciranda,
Logo no início da carreira, Ademir Araújo é vencedor, durante três
reisado, caboclinho. Conforme dito acima, foi a primeira a tocar na
anos quase consecutivos – 1965, 1967, 1968 –, do concurso de
Frevioca, em 1980. Em 2003, lança o disco O som dos
carnaval da Prefeitura do Recife, na categoria maracatu. A cheia de
Caboclinhos, fiel a esse espírito de pesquisa, transcriação e
1966 inspirou-o a compor a música Frevo na Tempestade. Em
salvaguarda do tradicional gênero carnavalesco. Ao longo de
1971 conquista o prêmio máximo no festival de frevo dos Diarios
décadas de atuação, a OPR chegou a acompanhar, entre outros,
Associados, com Alô, Recife. Em 1980, acompanhado da
Luiz Gonzaga, Lenine, Gonzaga Leal, Balé Popular do Recife, e já
Orquestra Popular do Recife e do cantor Claudionor Germano,
viajou por países como Alemanha, Bélgica e Cuba. É nessa
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orquestra que Ademir mais potencializa e materializa as suas criações artísticas, com "o timbre visceral dos metais e da percussão (...) mestiçado, gingado e estabelecido em estilos diversos", segundo aponta Renata Amaral, com propriedade, no encarte do CD Olha o Mateus, de 2009, o primeiro da OPR. No festival de música carnavalesca de 2010, realizado no Recife, Costa Neto/SecultPE
viu premiadas três composições das quais foi o arranjador: o frevo de bloco Salu Rabequeiro, de Getúlio Cavalcanti, com interpretação do Bloco da Saudade; o frevo-canção O molejo do passo, de Roberto Cruz e Beto Ortiz, interpretado por Nonô Germano; o maracatu Rainha do Morro, de Braulio de Castro e
Ricardo Moura/SecultPE
Marcelo Varella, intérprete Gerlane Lops. Em 1982, com o selo Mocambo produz o disco Carnaval do Nordeste nº 2, distribuído pela Sudene em diversos países. Sua excelência o frevo de rua é lançado em 1996 pela Polydisc e, em 2002, lança Release - Música Erudita Pernambucana, disco que reúne quatro poemas sinfônicos, produzidos entre 1976 e 1978: Festa do Carmo, Poema Índio, Poema Negro, Abertura do Diario de Pernambuco. Homenageado do carnaval do Recife em 2008, Formiga nos convida a adotar o mote que ele mesmo vem glosando, a seguir ao ritmo da própria música da vida, regendo-a em modo maior: "queira ser sempre o primeiro dia do carnaval".
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Patrimônios Vivos
in memoriam Ergui um monumento mais duradouro que o bronze, mais elevado que as pirâmides dos reis. Nem a chuva cortante nem o vento devastador; nem a seqüência inumerável dos anos nem a passagem das eras conseguirão destruí-lo. Não morrerei de todo, pois de Libitina [deusa da morte] grande parte de mim escapará. Horácio
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Ana das Carrancas 141 16
Priscilla Buhr
o extremo oeste pernambucano, espiando as terras do Piauí, saiu a louceira Ana Leopoldina Santos à procura de sobrevivência, e o que conseguiu cavar foi bem mais que isso: inspiração, talento, fama. Nascida em 18 de fevereiro de 1923, no distrito de Santa Filomena, povoação encravada na Serra do Inácio, à época pertencente ao município de Ouricuri, foram as verdes águas do Velho Chico que mais tarde viram nascer a artista. Serviu de mote criador a paisagem exuberante povoada de nego d’água, maus espíritos, vapor, paquete, remeiros. De um lado, Pernambuco. Do outro, a Bahia. No meio, o jorro inspirador. Nas margens, a lama sagrada. Era corriqueiro apreciar esculturas zoomorfas e antropomorfas na proa das embarcações, imagens que se repetiam nos barcos, há mais de um século, e no artesanato do Vale do São Francisco. Delas, um ícone se chamava Guarany, outro atende por Ana, a filha de Joaquim Inácio de Lima e Maria Leopoldina dos Santos. Ainda criança, tinha sete anos e já sabia fazer e vender louça utilitária – pote, moringa, panela, cuscuzeiro, jarro –, uma das tradições ouricurienses, que se mantém com as ceramistas da comunidade do Pradicó. Vendia “panelinha de guisado, boi zebu, cavalinho com vaqueiro amontado, santinho de lapinha”. Ou seja, moldava as peças de louça e mais uns tantos brinquedinhos para ganhar uns trocados e ajudar a mãe louceira, com quem teve os
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Luca Barreto
Luca Barreto
Luca Barreto
Luca Barreto
Maria da Cruz dá continuidade ao estilo da mãe, Ana das Carrancas, com quem aprendeu o ofício.
primeiros ensinamentos na modelagem do barro. Aos 22 anos casou-se, teve duas filhas – Ana Maria e Maria da Cruz – e em seguida ficou viúva. Um ano depois de enviuvar, Ana se casou com o piauiense José Vicente de Barros. Moravam, então, em Picos. A vida não era fácil naquelas terras do sertão do Araripe, em que alternavam bom inverno e longos períodos de estiagem. Por esse motivo, incluiu-se no rol de migrantes que corriam para Petrolina em busca de um oásis.
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Era 1954. Chegou à cidade e começou vendendo aribé, panela, pote, presépio, burrinho, pato, boi, cabra. Depois da inspiração saída das águas do Velho Chico, nunca mais foi a mesma. As emblemáticas carrancas começaram a ganhar força e, a partir de 1970, tornaram-se disputadíssimas, graças, inclusive, ao trabalho de pesquisa sobre o artesanato pernambucano que os técnicos em turismo Olímpio Bonald Neto e Francisco Bandeira de Melo estavam realizando pelo sertão, a serviço da Fundarpe. Ambos ficaram impressionados com as carrancas da ceramista. A trajetória artística de Ana Leopoldina ficou marcada, daí por diante – e para sempre – pela mitopoética ribeirinha, a ponto de adotar o nome artístico que correu mundo: Ana das Carrancas.
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A carranca mais antiga, da própria produção, data de 1963, quando ainda era conhecida por Ana Louceira ou Ana do Cego. Sobre a primeira peça, a carranca cangula, ela mesma contou: estava na beira do rio e pensou que poderia fazer um barco, colocar um velho, vendedor de jerimum, com um menino ajudante, umas bolinhas para fingir que era o jerimum, uma cobertura de palha e, claro, a carranca na proa do barco. Segundo Ana, essa invenção “deu sorte”. E assim, de tão bem-sucedida, a cangula ganha trouxeram sorte: carranca-cinzeiro, com três caras, jardineira, totem. Aliás, não se pode falar em Ana sem associá-la às figuras
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réplicas ainda hoje. Outras peças, igualmente difundidas, também
totêmicas modeladas no barro, em forma de animal e de gente, alvo de chacota dos feirantes, quando circularam a primeira vez na feira livre de Petrolina. Ana não se intimidou. Ao contrário, valeu-se do imaginário da comunidade ribeirinha para moldar na cerâmica um dos ícones da cultura local. Um casamento bem-sucedido entre temática e talento. Nesse mesmo ano, 1963, inaugura-se a Biblioteca Municipal e as carrancas de Ana fazem sucesso, distribuídas a título de suvenir.
e internacionais, figurar em galerias de arte e museus, alternar fama e ostracismo, o grande sonho da mulher oleira tornou-se vivo e palpável em setembro de 2000, mesmo ano em que conquistou
Luca Barreto
Após levar o nome de Petrolina para feiras de artesanato nacionais
o título de cidadã petrolinense. É inaugurado o Centro de Arte e Cultura Ana das Carrancas, com loja, ateliê e exposição de antigas carrancas, inclusive a de 1963. Tudo no ambiente ressalta a trajetória da ceramista. O olho vazado homenageia o marido, cego de nascença, Zé Vicente, o amassador do barro. As filhas Ângela Aparecida de Lima – adotiva – e Maria da Cruz Santos modelam esculturas, tal qual a mãe. A filha Ana Maria é casada com o escultor de carrancas em madeira, Domingos Lopes, ou Lopes de falecido em 1º de outubro de 2008, na cidade de Petrolina, a família vive imersa no rico imaginário da ceramista, que sempre afirmava, orgulhosa: “meu sangue é negro, mas minha alma é de barro”.
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Petrolina, um dos seguidores do estilo de Guarany. Mesmo tendo
Canhoto da ParaĂba 145 36
avô tocava clarinete. O pai, violão. O filho, Francisco Soares de Araújo, tinha a certeza de que adorava música, e isto era o que não faltava em casa, reduto dos principais instrumentistas da cidade. Ainda criança, já sabia apreciar um bom repertório, habituado aos saraus e serenatas na própria residência. Com o pai, Antônio Soares de Lima, aprendeu, aos 12 anos, a tocar a tabuinha, que era como apelidava o violão. O avô, o clarinetista Joaquim Soares, também exerceu grande influência sobre ele. Com o maestro Joaquim Leandro, regente da banda local, conheceu as primeiras notas musicais. Mas, outros instrumentistas da infância, a exemplo dos violonistas Zé Micas e Luiz Dantas, do saxofonista Manoel Marra e do acordeonista Zé Costa, foram decisivos, pois, por causa deles, manteve os primeiros contatos com um repertório de choros e valsas que o marcaram para sempre. Alguns chorinhos fizeram-no cultuado por músicos do porte de Radamés Gnatali, Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Paulinho da Viola. Nascido em 17 de março de 1931, em Princesa Isabel, alto sertão paraibano, o filho de Quitéria Lopes de Araújo, lá mesmo, foi o tocador do sino da igreja, fez iniciação musical e partiu amadurecido à procura de outras cidades em que pudesse expandir os dotes artísticos. Ainda adolescente veio ao Recife apresentar-se na Rádio Clube, mas somente aos 25 anos é que conseguiu realmente sair de Princesa Isabel. Foi para João Pessoa, em 1952, onde morou alguns anos e brilhou na Rádio Tabajara. Em seguida, 1958, transfere-se definitivamente para Pernambuco e é imortalizado como Canhoto da Paraíba, um dos mais importantes compositores de choro. O diferencial no uso da tabuinha aconteceu assim: por necessidade de compartilhar com os irmãos destros o mesmo instrumento, desenvolveu uma técnica especial de dedilhar o violão, tocando os acordes com a mão direita e usando a esquerda para o dedilhado das cordas, sem invertê-las. Ou seja, um violão “tocado pelo avesso”, como diz o título de um dos seus discos gravados. Reprodução de ilustração e antigas imagens de Canhoto da Paraíba, fotografadas na residência do artista, em Maranguape.
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Não só a forma de tocar o instrumento, sobretudo o vigor das
1977, é a vez do álbum Com mais de mil, selo Marcus Pereira,
composições de Canhoto é que o fizeram chegar ao panteão
produzido por Paulinho da Viola e festejado pela crítica musical
dos grandes instrumentistas brasileiros. O repertório passa pelos
do país. No repertório, as músicas Pisando em brasa e Com mais
ritmos regionais – xote, xaxado, baião, frevo – e pela bossa nova,
de mil. Além de produzir o primeiro disco de Canhoto, Paulino da
predominando o choro e a valsa. Para a grandiosidade com que
Viola viajou com o violonista pelo país, no Projeto Pixinguinha, e
compunha e tocava o violão, poucos foram os discos gravados por
gravou, no seu primeiro trabalho, de 1971, o choro Abraçando
Canhoto: Único Amor, de 1968, é gravado pela Fábrica Rozemblit,
Chico Soares, seguindo o estilo de composição do paraibano. Em
no Recife. Um dos músicos, escolhido à época por Canhoto, foi
1990, Geraldino Magalhães e Lula Queiroga produzem o disco
o jovem Henrique Annes, hoje violonista consagrado. O produtor
independente Fantasia nordestina: Violão brasileiro tocado pelo
do disco foi o maestro Nelson Ferreira. Em 1974, também pela
avesso. E, pela Caju Music, lança, em 1993, o último trabalho solo,
Rozemblit, sai Um violão direito nas mãos do Canhoto. Em
Pisando em brasa, com participação especial de Raphael Rabello
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e Paulinho da Viola. Ainda em 1993, pelo Tom Brasil, sai o CD Instrumental no CCBB: Canhoto da Paraíba e Zimbo Trio. Em 1999, Canhoto é ladeado por Annes, Rafael Rabello, Baden Powell na coletânea Os bambas do violão, lançada pela Kuarup. Radicado durante meio século em Pernambuco, Canhoto foi agraciado, em 1984, com o título de cidadão pernambucano. Reverenciado por Baden e outros grandes nomes da música popular brasileira, apresentou-se com Luperce Miranda, João Bosco, Sivuca, César Camargo Mariano, para citar apenas alguns. Em 2004, recebeu uma homenagem do presidente Lula, em Brasília. Na Paraíba, foi homenageado com a publicação da Lei Canhoto da Paraíba, que, a partir de 2005, concede a artistas o título de Mestres das Artes (Lei 7694/2004, Registro de Mestres das Artes – Rema) e ele foi um dos primeiros agraciados. Após sofrer isquemia cerebral em 1998, interrompe-se a carreira do artista, que passa os últimos anos de vida em Maranguape, Pernambuco, com uma filha, falecendo em 24 de abril de 2008. A importância musical desse requintado artista inspirou o Trio de Câmara Brasileiro a produzir, em 2009, o disco Saudade de Princesa – Sobre a obra de Canhoto da Paraíba, do selo Crioula Records. O recifense Caio Cezar assina a direção musical do CD e está organizando um livro com as partituras musicais de Canhoto. A genialidade do mestre, de viva memória, perpetuase com ações desse porte, e, ainda, ao ser constantemente revisitada nas gravações originais do instrumentista e em regravações ou releituras de outros virtuoses.
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Mestre Salustiano 149 60
Passarinho/Pref.Olinda
inda menino, sete anos, brincava cavalo-marinho pelos engenhos de Aliança. Foi arriliquim, dama, galante, cantador de toada, nove anos de Mateus, depois foi ser mestre. O pai era um tocador de rabeca, aprendeu com ele. Os folguedos e brincadeiras eram vistos e experimentados desde criança: maracatu, ciranda, coco, forró, mamulengo, improviso de viola. Estudou até a 4ª série primária. Trabalhou em casa de família, vendeu sorvete, picolé, foi ambulante. Conforme declarações próprias, considerava-se o maior dançador de cavalo-marinho e, nos versos de maracatu, inspirava-se no mestre Antônio Baracho. Manoel Salustiano Soares, ou mestre Salustiano, artista múltiplo e produtor de espetáculos e folguedos tradicionais organizados e mantidos em família, nasceu a 12 de novembro de 1945, em Aliança, e foi lá, na Zona da Mata Norte, que se iniciou no universo cultural de que é um dos mais afamados representantes. O filho de Maria Tertunila da Conceição aprendeu a ler, escrever e sempre teve inteligência suficiente para tirar o máximo proveito dos dotes artísticos. Começou a morar em Olinda em 1965, mesmo ano em que Luca Barreto
começou a tocar rabeca profissionalmente, aprendida pelas mãos do pai e professor, João Salustiano, que ensinou o filho a fazer e a usar o instrumento. Passou a ser mais conhecido na década de
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1970 e em 1977 participa de um comercial de TV. Foi entrevistado em 1989 no programa televisivo Som Brasil e, nessa época, segundo ele mesmo, só conhecia a Mata Norte, nem sequer outras regiões de Pernambuco. Em 1997, integrou comitiva de artistas locais que foi a Cuba. Durante mais de 10 anos organizou o festival da rabeca e coordenou a Casa da Rabeca do Brasil. Por quase 20 anos participou, na condição de fundador, da Associação de Maracatus de Baque Solto de Pernambuco. Recebeu o título de reconhecido saber em 1990, concedido pelo Conselho Estadual de Cultura, e o título de doutor honoris causa, na UFPE. Foi agraciado com o título de Comendador da Ordem do Mérito Cultural, em 2001, pela Presidência da República. Percorreu todos os estados brasileiros e outros países, como Bolívia, Cuba, França, Estados Maciel Salu e Barachinha
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Unidos.
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Com a casa repleta de filhos, o mestre Salustiano sempre manteve a liderança da família e conseguia envolver todos nos projetos culturais que constantemente articulava no entorno da própria residência, no bairro olindense de Cidade Tabajara, reunindo a comunidade, os vizinhos, turistas e pesquisadores de cultura popular. Inicialmente, era no espaço Ilumiara Zumbi que as apresentações aconteciam. Depois, as festas foram transferidas para a Casa da Rabeca do Brasil, espaço inaugurado pela família para oficinas, danças, encontros de maracatu rural e de cavalomarinho, shows de música regional. No Natal, vários grupos de cavalo-marinho se reúnem e brincam a noite toda. Tem também pastoril, ciranda, o cavalo-marinho Boi Matuto, fundado pelo mestre em 1968, e o Mamulengo Alegre, outro brinquedo da família, cujos bonecos eram feitos por Salu mesmo. Dublê de artista e artesão, esculpia no mulungu os bichos do bumba meu boi, cavalo, boi, burra. Fazia em couro de boi e de bode as máscaras do cavalo-marinho. No domingo de carnaval, chegam ao terreiro da família troças, ursos, caboclinhos, boi, burra, além do grande acontecimento da tarde: a trincheira do maracatu rural Piaba de Ouro, que fundou em 1977, e hoje é estruturado com mais de 300 componentes. Na segunda de carnaval, acontece o encontro de todos os maracatus rurais de Pernambuco.
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Graças à sensibilidade artística e às invenções de homem
de ciranda, maracatu, mamulengo, coco, forró, frevo: O sonho
inteligente, Salustiano cultivava a memória da infância, povoada
da rabeca, As três gerações, Cavalo-marinho, Mestre Salu e a sua
de cavalo-marinho, maracatu, mamulengo, pastoril, ciranda,
rabeca encantada. Dos 15 filhos, dois fabricam rabeca: Wellington
forró de oito baixos, reisado, marujada, fandango, poesia
e Cleiton Salu. O bailarino Pedro Salustiano montou o espetáculo
improvisada, ao mesmo tempo em que gerenciava os próprios
Samba no canavial. O músico, compositor, poeta improvisador
folguedos e temática casa de espetáculos. Depois de tentar a
e MC Maciel Salu lançou o CD A pisada é assim, entre outras
vida como ambulante e empregado doméstico, foi funcionário
importantes gravações, e é um dos integrantes da Orquestra
da prefeitura de Olinda e professor de arte popular. Por fim,
Contemporânea de Olinda.
conseguiu certa dignidade financeira com o terreiro enorme para apresentações, serviço de bar, salão para dança e uma loja, onde
Salustiano faleceu no Recife, em 31 de agosto de 2008.
são comercializados produtos de confecção própria, como rabeca,
Entretanto, confortável é saber que o legado se perpetua nas
alfaia, mineiro, bagem de taboca, pandeiro, mamulengo e os
produções culturais e criações artísticas dos filhos, legítimos
discos. Foram quatro CDs gravados, movidos pelas sonoridades
herdeiros e continuadores da obra do Mestre Salu.
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Filhos Maciel, Cleiton e Manuelzinho.
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Mestre Nuca 153 32
uca é apelido de infância: Nuca de Tracunhaém ou Nuca dos Leões. Tracunhaém – topônimo indígena, que quer dizer panela de formiga – é a cidade de adoção do artista, desde os três anos. Leão é o signo de Nuca, ou Manoel Borges da Silva, que nasceu em 5 de agosto de 1937, no engenho Pedra Furada, Nazaré, Mata Norte pernambucana, filho dos agricultores Francisco Costa Mariano e Josefa Borges da Silva. O pai, da roça, criouse nos engenhos de cana-de-açúcar. Vivendo a infância num ambiente de ceramistas descobre-se um admirador do ofício e, desde os 10 anos, um continuador da tradição, modelando em barro elementos do cotidiano. O ano em que foi morar na cidade é o mesmo da estréia de Zé do Carmo na cerâmica. Quando estreou, havia em Tracunhaém o povo de Lídia, fazendo santo. Antônia Leão era referência da geração mais antiga, Maria Amélia já se destacava pela santaria. Zezinho chegou depois, de Vitória. Nilson, de Goiana. Nuca passou a conviver com diversos ceramistas em feiras e salões de arte popular, entre eles, Ana das Carrancas e
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alguns netos de Vitalino. Foi ao Rio de Janeiro participar de uma
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exposição e lá conheceu o mestre Vitalino.
Embora desde a década de 1940 já vendesse esculturinhas
Se a família de Nuca era de agricultores, e não de louceiros, o
de cerâmica nas feiras, principalmente na vizinha Carpina, é
mesmo aconteceu com a família de Maria, que também era da
sobretudo a partir de 1968, quando esculpe o primeiro leão,
roça, não tinha ninguém no barro. Pode-se dizer que a obra de
que se reconhece artista, consagra-se com o efeito visual da juba
Nuca é quase obra de dois artistas, originalidade a quatro mãos.
leonina e se entrosa com ceramistas renomados. O motivo da
O leão e as bonecas foram criação dele e da mulher. O talento de
consagração veio da ideia de esculpir leões e floristas. A mulher,
ambos para as esculturas cerâmicas desabrochou no convívio com
Maria Gomes da Silva, ou Maria de Nuca, inventou de botar os
artistas e artesãos de Tracunhaém, terra das figuras em cerâmica
cabelos cacheados, também no leão. A moda da juba encaracolada
e das panelas de barro. Depois de brinquedos, bonecas e anjos,
se difundiu tanto, que artesãos aderiram à onda, substituindo pena
os leões vieram para imortalizá-los. As esculturas são sempre ao
de galinha pelos cachos. Além destes, que consistem nuns rolinhos
natural, nunca pintadas, exceto sob encomenda. O forno, feito
de barro aplicados um a um, há o leão de listra, o escamado e o
por ele próprio, fica no quintal de casa e testemunha o fato de
de tranças. Finas ou grossas, as escamas também são colocadas
que é indispensável ter ciência para saber construí-lo e usá-lo.
individualmente, em leões e girafas. Sobre a escolha da temática
E Nuca foi exímio nisso: na hora de queimar, sabia precisar a
dos leões, cogita-se que pode estar vinculada à memória recente
caldeação, a fim de não rachar a escultura, nem cair o cabelo.
da estatuária de louça portuguesa decorativa dos sobrados ou,
Outro importante segredo é o da aplicação dos detalhes: como
ainda, à memória ancestral daquele que é considerado o rei
fazer para não ressecar, enquanto vai modelando e colocando
dos animais. Entretanto, não podemos deixar de lembrar que o
simetricamente um a um.
símbolo de Pernambuco é o leão, tampouco menosprezar a força do imaginário de ascendentes negros africanos presente na Zona da Mata, nem esquecer que a antiga denominação de Carpina era
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Floresta dos Leões.
Guilherme de Nuca, filho do Mestre que dá continuidade ao seu trabalho.
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Após afastar-se do ofício, por problemas de saúde, dois dos seis filhos dão continuidade às artes dos pais, Nuca e Maria: o primogênito Marcos Borges da Silva, ou Marcos de Nuca, faz os leões e José Guilherme Borges da Silva, o filho mais novo, faz as bonecas. Apesar de não terem sido muitas as viagens – Lima, Peru (1980), São Paulo, Rio, Brasília, Bahia –, Nuca dos Leões criou os filhos com a arte saída das próprias mãos, festejou a alegria de viver fazendo sempre o que gosta e também ofereceu todas as condições necessárias ao aprendizado e exercício artístico dos filhos seguidores. A obra do artista pode ser Luca Barreto
apreciada em antiquários, galerias de arte, e enfeitando praças do Recife, como a do 1º Jardim de Boa Viagem e a Tiradentes, no Cais do Apolo. Em 27 de fevereiro de 2014, o ceramista morre no Recife e é sepultado, dia seguinte, na cidade onde viveu desde a primeira infância e da qualganhou parte do nome artístico. As obras variavam entre formatos de 30 centímetros a um metro, entretanto, invariavelmente nas esculturas assinava “Nuca de Tracunhaém”, desenhando um nome de artista que enche de
Marcos de Nunca, trabalhando no leão no mesmo estilo consagrado pelo pai.
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beleza o mundo.
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ilho de Nicodemes Brasil Hartmann e Maria Serafina Spencer
cinéfilo/cineasta, cuja estreia se deu com um curta-metragem
Hartmann, o cineasta Fernando José Spencer Hartmann nasceu
experimental, a ficção A busca, em 1969.
no Recife, em 17 de janeiro de 1927. Aposentado como analista Jornalista profissional, exerceu a crítica de cinema durante
coleciona prêmios e títulos que tem recebido ao longo de mais
quatro décadas no Diario de Pernambuco, exatamente de 1958
de cinco décadas dedicadas à sétima arte. Recebeu o título de
a 1998. Spencer também foi repórter do Jornal Pequeno, em
Memória Viva do Recife, em 1997, quando completou 70 anos.
1951, e revisor do Jornal do Commercio em 1957. Foi produtor e
Aos 80, foi o homenageado do Cine PE, quando então apresentou
realizador do programa Falando de Cinema, entre os anos de 1963
o novo filme Almery, a estrela. Tanto no Museu da Imagem e do
e 1978, na TV Rádio Clube, Rede Tupi. Foi produtor, realizador e
Som de Pernambuco (MISPE) quanto no Cinema Rosa e Silva,
apresentador de Filmelândia, programa veiculado na Rádio Clube
há a Sala Fernando Spencer, franca homenagem ao incansável
de Pernambuco e Rádio Tamandaré do Recife. No ano de 1985,
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em ciência e tecnologia da Fundação Joaquim Nabuco, o cineasta
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Fernando Spencer, com carretéis e latas de filme 16mm.
coproduziu, com Ivan Soares, o projeto Coisas Nossas: Cinema
Massangana, em 1983. Ainda pela Massangana, lançou em 1985
Pernambucano, em oito capítulos de 30 minutos. O cineasta e
o catálogo de filmes da Cinemateca da Fundaj. E, pela Bagaço,
pesquisador foi diretor da Cinemateca da Fundação Joaquim
produziu em 1989 a publicação 20 anos de cinema (1969 – 1989):
Nabuco, membro do Centro Brasileiro de Pesquisadores do Cinema
Filmografia. No Quase catálogo, organizado por Heloísa Buarque
Brasileiro, vice-presidente da Fundação Nordestina de Cinema,
de Holanda e publicado em 1991 no Rio de Janeiro, escreveu
sócio-fundador da Associação Brasileira de Documentaristas (ABD),
verbetes sobre estrelas do cinema mudo de Pernambuco. Em
fundador e primeiro presidente do grupo Cinema Super-8 de
1995, publicou textos sobre os 100 anos de cinema. No mesmo
Pernambuco.
ano, publicou, em parceria com a bibliotecária Lúcia Gaspar, da Fundaj, O Nordeste no cinema: uma contribuição bibliográfica,
Acumulando as funções de roteirista, diretor, jurado, palestrante,
para a revista Ciência & Trópico.
debatedor, presidente de júri, professor, Fernando Spencer tem, ainda, no currículo, diversos livros publicados, a exemplo de
Em 1974, recebeu o prêmio de melhor Super-8 na III Jornada
Histórias do tio Joca, editado em 1990 pela Bagaço. Esse foi o
Brasileira de Curta-Metragem, no estado da Bahia, com o filme
primeiro título que lançou no gênero literatura infantil. Sobre
Valente é o galo. No mesmo ano, o cineasta fez a estreia no
cinema, escreveu o texto Ciclo do Recife: 60 anos, publicado pela
gênero documentário com o filme Caboclinhos do Recife. Aliás,
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a temática dos folguedos tradicionais é recorrente na obra de
das três bitolas. Assim conhecido no meio cinematográfico pela
Spencer. Em 1999, realizou A arte de ser profano, vídeo sobre
produção tanto em Super-8 quanto em 16 e 35mm, a criatividade
os pastoris, e em 2004 volta ao tema, dessa vez com Os irmãos
e o amor às tradições pernambucanas selam a produção de
Valença, em que o pastoril religioso é um tema incontornável.
Fernando Spencer, com os documentários acima mencionados
No VI Festival Nacional de Cinema, realizado em Aracaju, pela
e, ainda, Frei Damião: Um santo no Nordeste? (1977), Santa do
Universidade Federal de Sergipe, no ano de 1978, recebeu o
Maracatu (1981), Trajetória do frevo no Recife (1987). Sobre
prêmio de Melhor Filme de Comunicação para As corocas se
literatura de cordel, realiza o documentário O folheto (1971),
divertem. Com o filme Estrelas de celulóide, recebeu um troféu
na bitola 16mm, em parceria com Liêdo Maranhão, João José e
candango no Festival de Cinema de Brasília, em 1987. No III
Esman Dias.
Festival de Cinema dos Países de Língua Portuguesa, realizado na cidade de Aveiro, Portugal, em 1988, Fernando Spencer ganhou,
Na produção mais recente, de 2009, está o curta Nossos ursos
em parceria com Flávio Rodrigues, o prêmio de melhor curta,
camaradas, em que o cineasta compõe uma abordagem
na categoria documentário, pelo trabalho Evocações de Nelson
antropológica de fogosos ursos e La ursas na cultura pernambucana,
Ferreira.
a partir de pesquisa encomendada ao amigo folclorista Mário Souto
O percurso de Spencer ganha ainda mais sentido quando ele
promovido a cineasta das quatro bitolas! Maria Bonita e Lampião
Maior. Com esse filme, Spencer estreia em nova bitola, a digital, e é seriam personagens de novos projetos, interrompidos com a morte
cinema, precisamente aos 12 anos, quando o pai lhe oferece um
do artista, a 17 de março de 2014, no Recife. A família planeja abrir
projetor alemão para filmes de 35mm, o suficiente para inaugurar,
uma fundação como justa homenagem à memória desse cineasta
de forma decisiva e em grande estilo, a trajetória deste cineasta
que assina uma obra autoral, prolífica, incansável.
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recapitula o princípio desse amor antigo: cedo, apaixonou-se pelo
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Eric Gomes/SecultPE
Arlindo dos 8 Baixos
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ito baixos: para Arlindo, um sobrenome e infinitas possibilidades de voar. Fole de oito baixos, acordeon de botão, pé-de-bode, concertina: para o instrumento, muitos são os apelidos, mas o designativo nem importa tanto quanto saber o valor histórico e artístico, a fim de melhor compreender e apreciar o exímio Arlindo Ramos Pereira, que, pelas astúcias do "acaso", conheceu Luiz Gonzaga, justo o filho de grande tocador de concertina e inspirador da canção Respeita Januário (1952), expresso manifesto de Gonzagão ao legado musical do Nordeste do Brasil que visceralmente se vincula à prática dos oito baixos. A escolha proposta pelo rei do baião mostrou-se vital, decisiva: sanfona, sim, mas não mais aquela em voga, o acordeon de 120 baixos. Escolher, portanto, agarrar-se à sanfoninha pé-de-bode prenuncia, nos primórdios da talentosa carreira, o que o Mestre Arlindo conseguiria galgar rumo à consagração. Ouvido sofisticado, hábil manejador das 42 notas da concertina, assim rapidamente ganha nome e imortaliza-se, abraçado àquele instrumento, alicerce de um dos complexos ramos da tradicional Cristiana Dias
musicalidade popular nordestina. Foi o próprio pai de Arlindo quem o iniciou no mundo da música. Chamava-se José Ramos Pereira, sanfoneiro e carpinteiro especializado em cangas e rodas de carroça. Contudo, o encontro emblemático com o rei do baião foi quem desencadeou os contatos e trocas artísticas, agilizou a fama. Era 1969 quando o sanfoneiro de Coruja e seus Tangarás atraiu o ouvido de Gonzaga que, imediatamente, sugeriu a dedicação de Arlindo ao instrumento quase fora de moda e ainda o convidou a viajar, para acompanhá-lo tocando oito baixos e cuidando da afinação e conserto dos instrumentos. Fora de cogitação imaginar que tudo se arranjaria fácil assim, como num passe de mágica, pelas artes do famoso Luiz, a quem o genial Arlindo acompanharia por mais de duas décadas. A música chegou bem antes disso, ainda na infância, provocando o florescimento e o exercício de habilidades que, num futuro Arlindo dos 8 Baixos e Mestre Camarão em apresentação conjunta na VI Semana do Patrimônio Cultural de Pernambuco em 2013.
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próximo, o consagrariam para sempre: começou pelos dez anos, aos treze estava tocando, aos quinze já ganhava dinheiro.
Longe de qualquer glamour, o ambiente de meninice, cercado de
contou com a participação de Dominguinhos na produção e
cana-de-açúcar, era duro lavor. Nascido na área rural, a 16 de abril
direção artística. O zabumbeiro era o reverenciado Quartinha, ou
de 1942, no Engenho Rubi, pertencente à Usina Trapiche,
Reginaldo Pereira de Melo. O título do disco e o nome artístico
município de Sirinhaém, Zona da Mata Sul de Pernambuco, o
adotado a partir de então foram sugeridos por Gonzaga e
mestre logo cedo se viu enredado nas árduas tarefas de canavieiro:
imediatamente acatados pelo autor da obra. Antes disso, durante
limpou mato, cortou cana, cambitou no engenho. Quando se
os anos 1970, o sanfoneiro era conhecido pelo nome artístico de
transferiu para a vida urbana – primeiro em Ponte dos Carvalhos,
Arlindo do Acordeon.
no Cabo; depois em Água Fria, no Recife – Arlindo se dedicou às artes da barbearia, antes mesmo de escolher, definitivamente,
Daí por diante, rapidamente conquistou a fama de grande solista
morar no mundo musical e transitar, à vontade, nos rumos
de oito baixos, a fama de expert em restauro e afinação de
traçados pelo virtuosismo de instrumentista, restaurador, afinador,
sanfona, para além da cumplicidade e trocas musicais estabelecidas durante os 22 anos com Gonzaga. O músico firmou importantes parcerias com Sivuca, Hermeto Pascoal,
gravado pela RCA (mas não o inaugural), consegue registrar em LP
Dominguinhos, Marinês, Elba Ramalho, Camarão, Quinteto
o primeiríssimo dos seus trabalhos pela recifense Rozenblit. O disco
Violado, Genaro, Alcymar Monteiro, Flávio José, Novinho da
gravado pela RCA foi feito em 1981, época em que Luiz Gonzaga
Paraíba, Nando Cordel, entre outros. Tocou, e foi aclamado, em
dirigia o departamento de música nordestina da gravadora, e
concorridos festejos juninos, como o de Caruaru, e o do Pátio de
Costa Neto/SecultPE
professor. A estreia em long play se dá em Pernambuco. O Mestre do Beberibe, designativo do artista que dá título ao primeiro disco
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São Pedro e Sítio da Trindade, no Recife. Nos anos 1980 ensaiou umas domingueiras de forró no quintal da própria casa, no bairro de Dois Unidos, Olinda, que vieram a se firmar como atração festiva semanal a partir de setembro de 1999, com o nome de Forró do Arlindo. Misto de residência, casa de shows, oficina, escola, assim era caracterizado o ambiente em que Arlindo escolheu viver até os últimos momentos, e por onde passaram exímios tocadores, ouvintes, dançarinos, atraídos por sedutor ritmo nordestino e, ainda, outros gêneros musicais igualmente executados com maestria pelo dono do terreiro. Quase duas dezenas de discos foram lançadas, entre os quais Merengue dela; Arlindo e Amigos dos 8 Baixos; Forró pra 500 anos; Dançando na Chuva; Choro, Forró e Frevo; Mistura Harmônica; Oito Baixos no Frevo. O mais recente, No Forró do Arlindo, saiu também em DVD e livro, com registros da carreira do antigo barbeiro e ex-trabalhador rural. Já pelos títulos percebe-se a variedade de ritmos deliciosamente interpretados com o instrumento que, no Nordeste, ganhou afinação diversa da afinação diatônica adotada em outras regiões do país: a afinação "chorada" ou "transportada", que amplia as possibilidades de modulação musical. Presenteando-nos, em meio ao consistente Raminho e o baixista Adilson, e a promissora neta Daiane nos oito baixos, o Mestre Arlindo não resistiu às múltiplas complicações acarretadas pelo diabetes, falecendo no dia 23 de outubro de 2013, aos 71 anos. Talvez, pela gradativa cegueira que acometeu o mestre, a sensibilidade auditiva do artista tenha desenvolvido ainda maior rigor, ainda mais apuro, premiando-nos, assim, com o virtuosismo e a sofisticação de um instrumento possuído por dedos velozes e ouvidos absolutamente sensíveis.
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Costa Neto/SecultPE
legado musical, com os renomados filhos músicos, o percussionista
Jo達o Silva 165
Roberta Guimar達es
ua dos Amores, Várzea da Alegria. Aí morou João Leocádio da
Recife e, em 1958, época de ouro do rádio, se muda para a então
Silva, endereço assim pleno de poesia, como que
Capital Federal, o Rio de Janeiro, onde começou apresentando-se
harmonizando a verve do artista talentoso que já na infância
em programas de rádio e TV. O difícil caminho de auto-afirmação
dedilhava violão e tocava pandeiro, acompanhando um tio
e reconhecimento artístico que aí tomava corpo não caiu no vazio.
paterno, o cavaquinista Aprígio, e um primo, Luiz Grande, tocador de oito baixos. "Danado de bom" era este compositor, que, a
A sintonia que estabeleceu com Luiz Gonzaga é um dos pilares
partir da década 1960, se transformaria em um dos principais
desta construção. João atraiu para si os olhares do famoso
parceiros de Luiz Gonzaga, tornando-se o autor que mais
sanfoneiro por causa da amizade com um casal, cuja principal
conseguiu gravar com o Rei do Baião. Entretanto, é bom que se
contribuição se concentrou no desenvolvimento artístico do
diga: o legado artístico de João Silva não se restringe à aclamada
iniciante: Abdias dos oito baixos e a mulher, a cantora Marinês.
parceria. Autor, intérprete, produtor musical, pesquisador de
Esta, ao gravar composições suas, das quais Milho Verde
música popular nordestina, João nos deixou cerca de duas mil
repercutiu bastante, catalisou para Silva as atenções de Gonzaga,
composições construídas durante quase oito décadas buliçosa e
iniciando-se a grande afinidade de 25 anos, inaugurada em 1964 e
intensamente vividas em terras pernambucanas e outros estados
mantida até o fim da vida de Luiz, em 1989. A música Não foi
do Brasil. Nascido a 16 de agosto de 1935, nascido e criado num
surpresa, que Silva fez com João do Vale, foi o primeiro trabalho a aparecer em disco de Luiz Gonzaga: o baião está em Sanfona do
Varas, Arcoverde, Pernambuco, João Silva migrou em 1953 para o
povo, de 1964. No ano seguinte, 1965, nova gravação. Desta vez
Roberta Guimarães
ambiente de tradicionais rodas de coco das Caraíbas, na Serra das
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a escolhida é a marcha junina Piriri, de João Silva e Albuquerque.
nordestinos, migrantes ou não. O disco Danado de bom (1984),
Finalmente em 1967, no disco Óia eu aqui de novo, Luiz Gonzaga
por exemplo, com seis canções e produção de Silva, vendeu 1,6
grava a primeiríssima obra dele com João Silva, Garota Todeschini,
milhão de cópias. Em 1989, mesmo ano em que morreu,
além de também gravar a faixa Crepúsculo sertanejo, de Silva com
Gonzagão grava dois LPs instrumentais, nos quais mantém as
Rangel. Esta última foi, aliás, a que primeiro exibiu ao público
trocas com João Silva, resultando na co-autoria de mais de vinte
carioca, quando, logo que se estabeleceu no Rio, esteve no
músicas. E é ainda em 1989 que Gonzaga grava o último disco,
programa Domingueira, apresentado por Arnaldo Amaral, na
cujo título – Vou te matar de cheiro – foi tomado de empréstimo
Rádio Mayrink Veiga. No LP de 1968, São João do Araripe,
de uma das letras com João Silva, cuja participação, neste
Gonzaga grava mais canções de ambos: Madruceu o milho, Lenha
derradeiro trabalho de Luiz Gonzaga, aparece em mais outras
verde e Meu Araripe, esta última conquistando grande sucesso.
faixas: Uma pra mim, uma pra tu; Vê se ligas para mim; Arcoverde
Em meio às tantas composições criadas por Gonzaga e Silva, como
a escrita e titulação da biografia de João Silva Pra não morrer de
meu; Já era tempo. A troca criativa serviu de mote, inclusive, para Pagode Russo, Vou te matar de cheiro, Sanfoninha choradeira,
tristeza: o maior parceiro de Luiz Gonzaga, de autoria do poeta
Sangue nordestino, Nem se despediu de mim, importante
José Maria Almeida Marques e publicada em 2008 pela editora
compreender que João Silva provocou uma guinada decisiva
Bagaço. O título da obra – que alude, na verdade, a uma
quanto à retomada do nome de Gonzaga na boca do povo e nas
composição de Silva com o renomado sambista Wilson das Neves,
paradas de sucessos. Com o humor, a alegria, a galhofa das letras
o K-Boclinho – sobretudo reverencia a fértil trajetória de João, sem
de música de João, o tom lírico e saudoso se deslocou para o
negligenciar a cumplicidade pela qual resultaram, segundo o
satírico, reavivando a presença do Rei do Baião na vida de
biógrafo Marques, 107 músicas de João (com Luiz e com outros
Marcelo Soares/SecultPE
Marcelo Soares/SecultPE
autores) gravadas na voz do Gonzaga.
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Para além de exuberante troca artística, foram estabelecidas
malícia, de Chiquinha Gonzaga, e reedita o LP João Silva, que
parcerias, múltiplas, de João Silva com Dominguinhos, Onildo
havia gravado em 1971. Outro LP, de 1987, Trinta anos de forró:
Almeida, João do Vale, Rosil Cavalcanti, Severino Ramos, Bastinho
João Silva e convidados, tem participação de Luiz Gonzaga, Maria
Calixto, Pedro Maranguape, Anatalício, Ney Matogrosso, Gilberto
Alcina, Trio Nordestino. Em 1991, no CD O rei e eu, grava quinze
Gil, Ivete Sangalo, entre outros artistas e grupos, incansáveis
músicas. Ano seguinte, 1992, grava em Fortaleza o CD Inéditas de
intérpretes das canções de sucesso deste inventivo João, canções
João Silva e Luiz Gonzaga. Em 1995, grava o CD João Silva no
consagradas pelo lirismo e alegria executados em diversos gêneros
forró pé-de-serra e, em 2010, lança o CD João Silva sertão puro,
musicais – samba, merengue, bolero, baião, guarânia, marcha
em que todas as faixas são de própria autoria e a maioria, inéditas.
junina, lamento, carimbó. A primeira gravação autoral, conforme
Poucos anos depois, no dia 6 de dezembro de 2013, morre em
registra o biógrafo Zé Maria, se deu num disco de 78 rotações, o
casa, no Recife, aos 78 anos, alegremente imortalizado nas
arrasta-pé Ó Lia. Entre os discos gravados, há o LP de 1976,
ondas sonoras de tantas canções, de tantas palavras plenas de
Carimbó e Cia. - João Silva e seus convidados, selo Olimpic, da
lirismo e encantamento.
Marcelo Soares/SecultPE
Crazy; em 1980, entra com participação especial no LP Forró com
O compositor João Silva e Dominguinhos em Show do Festival Nação Cultural - Gonzagão 100 Anos, em dezembro de 2012.
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FONTES
Chino ITC e Frutiger
PAPEL
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