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DA VIDA E DA MORTE José Luís Seixas, Advogado
JOSÉ LUÍS SEIXAS,
ADVOGADO
DA VIDA E DA MORTE
I Peças de seda, pelo menos assim me pareciam, envolviam silhuetas que flutuavam em meu redor. Reconhecia os rostos, pelo menos alguns. Sentia-me impelido para o meio delas, envolvido pelos seus múltiplos braços, rodeado pelos panos que me tentavam aprisionar. Resisti o quanto pude. Depois caí num torpor que se aproximou do autêntico vazio. Acordei do coma. Mas estas imagens recorriam constantemente. Seriam os prolegómenos da morte? Estaria realmente vivo? Ou passara já para a dimensão etérea? Continuava deitado na UCI, preso à cama - tamanha a minha agitação - com personagens indistintas em permanente azáfama. Vi-me num comboio sem carris à espera não sei do quê. Como anteriormente me senti no alto de um guindaste abandonado aos céus. Como vi colegas e conhecidos a quem implorava libertação e que persistentemente me ignoravam. Mas tudo me parecia real e verdadeiro. As alucinações enganavam-me e impunham-me o absurdo. Com elas, a ideia de estar cativo, amputado da minha liberdade e impossibilitado de cumprir as minhas obrigações. Não fruto da gravidade da doença – cuja dimensão ainda não descobrira – mas por uma estranha determinação de um colectivo frenético que se postara contra mim. Encontrava nos rostos gestos de escárnio, ameaças de agravamento e, finalmente, aprisionamento físico. A agitação que vivia era enorme. O pressentimento que estaria a chegar ao fim persistente. E não conseguia ver a minha mulher e os meus filhos. Despedir-me deles. O fim é difícil. Doloroso. Sentido. Pode ser um momento, um segundo. Mas é sempre a partida. Sabe-se o que se deixa. Não se sabe o que se vai encontrar. Momento violento, como o de todas as partidas. Principalmente sendo a definitiva. Como homem de Fé, acredito que nada se confina à vida presente. Que há uma outra que aguarda o espírito despojado das amarras humanas.
II Foram três internamentos em UCI sucessivos e prolongados. Desde princípios de Dezembro de 2020 até Maio de 2021. Com entubamentos invasivos e comas induzidos. O meu estado era para lá de crítico. Só um milagre poderia evitar um desfecho final. Tudo dito e escalpelizado à minha mulher que tudo aguentou acompanhada dos nossos filhos. O mais novo, a frequentar o mestrado em Munique, regressou a Portugal de imediato para prestar o seu inestimável apoio. Organizaram-se grupos de oração e a minha família e amigos não esmoreceram. Nossa Senhora ouviu-os e eu fui sobrevivendo. A custo. Etapa após etapa. O grande problema foram as recidivas. Quando me julgava bem ou em franca recuperação aparecia um novo episódio, um novo internamento, uma nova ameaça. Por ocasião das altas (e foram três) os médicos comentavam que só um transmontano suportava tanto. Respondia que só um transmontano teria tanto apego à vida. Agora estou de novo em recuperação. Sinto-me bem. Mas sobre mim paira a sombra viva do passado recente. Não estou seguro nem me sinto protegido. Sei que a todo o momento tudo se esfuma. E esta conclusão é inquietante. E, se não tiver cuidado, paranoica. Ao contrário de outros, a UCI não me perturbava pelo barulho das máquinas e dos alarmes. Perturbava-me sim pelas alucinações (como erradamente qualificava a “confusão mental” que me afectava). Essa confusão mental fez-me viver um suposto incêndio numa ala do hospital gerado por um festival de pirotecnia pretensamente organizado pelo cozinheiro, chinês de Xangai. Retiraram todos os convivas à minha excepção que ali permaneci sem que ninguém me acudisse. Aprisionou-me a um sofá, implorando ajuda a todos os meus conhecidos que passavam por mim com total indiferença. Conduziu-me, de forma ruborescida, a Fátima, num autocarro, apenas com a bata do hospital sem qualquer outra peça de roupa. Enfim, vivi em permanência uma realidade inexistente, uma ficção que sentia, palpava, tinha por certa e verdadeira. De vez em quando era impetrado por uma enfermeira que me interrogava sobre se sabia onde estava. E porque estava ali. O que só fazia acrescer a minha confusão. Vi-me em salas de família, em gares e aeroportos, em guindastes (como acima referi), nas situações mais estranhas. Mas, pelos vistos, nunca saí do mesmo lugar, da mesma cama, da mesma ‘box’. Mesmo após as altas, a confusão mental perdurava dias para desespero de quem me apoiava. E, curiosamente, recordo todos os episódios, todos os momentos, todas as vicissitudes. Com sofrimento. Porque algumas – que aqui não relato – foram de especial crueldade.
III Depois de muita reflexão, pude concluir que nisto tudo houve muita somatização de sentimentos e estados de alma que fragilizaram resistências e potenciaram uma doença pouco conhecida, de origem ignorada, de prognóstico imprevisível, agravada pelo covid. Não sei quanto tempo me espera e qual a margem de fruição da vida que me resta. Tudo farei para que seja bem gozada. Na companhia dos meus e nas paisagens que amo. Tudo o resto é secundário e, como tal, passageiro.
IV Pretendi deixar aqui este testemunho. Pode ser que quem o leia reflicta sobre si e sobre o que a si vai fazendo. l