Os Segredos da Medicina Popular
PREFÁCIO ____________________________ Agostinho Veras, um Barrosão, bafejado pelas linfas do Rabagão, inspirado pelas águas da Mizarela, depois de publicar em 2013 A Alma de Um Povo - História e Lendas da Tradição Barrosã, surge agora com uma sequência, Os Segredos da Medicina Popular. No País e em Trás-os-Montes muitos são os livros, teses, estudos que passaram pelas montras nestes últimos anos, inspirados no saber da medicina popular. Surpreendeu-me e apraz-me o tema enunciado, há décadas levantado por mim em Vilar de Perdizes, nos 27 congressos de medicina popular. Ao saber deste amigo, jovem Barrosão de Vila Nova, pegar e aprofundar os valores e carências nesta área tão rica da nossa cultura e identidade, é algo extraordinário, não só para a região Barrosã, mas obviamente para todo o País. O livro agora editado, empenha-se no registo da memória oral tradicional, com o objectivo de a preservar e projectar para as gerações vindouras. Vai às nossas origens celtas, romanas, com divindades testemunhadas em Vilar de Perdizes, Deus Larouco, Deus Sucelus, onde assentam cultos, rituais, lendas, tradições chegadas até nós, caracterizando e marcando profundamente a alma de um povo. Fé e superstição, ateísmo e crendice rural e urbana, religião popular das ermidas, distantes, o vazio da descrença, o recurso ao invisível, os curas da igreja, orações para todas as
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mazelas e medos, o oculto, as mezinhas, são objecto aprofundado, estudado, pelo autor, na plenitude Barrosã, onde a mulher mais que o homem é depositária, seguidora, personalizando todo este saber tradicional ancestral. Convido o autor a apresentar este tema e o livro no 28º Congresso de Medicina Popular aos seus leitores em Vilar de Perdizes, em Setembro de 2014. Vilar de Perdizes 30-12-2013 António Lourenço Fontes
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INTRODUÇÃO “De pequena bostela, se levanta grande mazela” (ditado popular) A medicina popular é com toda a certeza uma das ciências mais antigas da humanidade. Ela detém uma íntima relação com os mais profundos temores e anseios do homem. Este saber original iniciou-se em modelos de tratamento muito simples, baseados em superstições aguerridas de índole emocional, ligadas à natureza e às suas divindades. Daí nasceram paulatinamente processos inerentes à credibilidade curativa, sendo a maioria das maleitas combatidas através de: rezas, benzeduras, mezinhas, amuletos, sacrifícios…, que se foram enraizando intimamente no seio dos mais diferentes povos. Este saber e os medos que o envolvem fazem parte do fenómeno da renovação e evolução da humanidade. A sua transmissão foi progressiva ao ponto de cada povo elaborar a sua própria concepção de acordo com a sua matriz geográfica, sempre em sintonia com a sua natureza Divina. Assim, o homem vivia/vive aprisionado às díspares maleitas que deram origem ao surgimento do temor medonho e à fama em torno da pseudo descoberta da origem da moléstia. Por conseguinte, as superstições tomaram um caminho exclusivo praticamente universal, ao forçar o homem a acreditar que as doenças provinham do seu comportamento, e aí procurou as fórmulas para neutralizar os males daí provenientes. Não vou, nem quero, obviamente falar no contexto cirúrgico, embora se saiba que esta temática vem sendo praticada há milé-
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nios no seio popular – abre o teu porco e verás o teu corpo. Abordarei simplesmente o invólucro inerente à maleita singela do quotidiano e pouco mais. À medida que a vida evolui, sobressai o avanço tecnológico e científico na área da medicina contemporânea. Este progresso repentino das últimas décadas desligou decisivamente o homem do saber ancestral da acção colectiva dos povos. É deste modo que os dogmas e crenças ancestrais do mais pequeno povo se perdem no tempo com o florir da ciência. Esta levou o homem a afastar-se literalmente das suas antigas superstições medonhas/divinas. Porém, felizmente, ainda encontramos muitos desses “tesouros” obscuros que o homem primitivo criou para se livrar das coisas más numa relação muito íntima entre o Sagrado e o profano. A investigação deste tema é bastante afunilado, pois conduz o investigador para vias sem saída. Posso afirmar, neste caso concreto, que o contacto com as pessoas que preservam tal saber não é nada fácil (são muito reservadas e cautelosas). Inicialmente cheguei a pensar que não queriam transmitir a sua sabedoria, mas depressa compreendi que não era de todo assim; o receio das pessoas inquiridas é acharem-se associadas às práticas ocultas, mais conhecidas por bruxarias. Este receio leva-as a não desvendar (infelizmente) pitada do seu conhecimento e testemunho. Considero esta área de investigação muito pertinente e complicada de abordar. Pois os inquiridos deixam-se tomar pelo nervosismo e pelo medo e tentam a todo custo mudar de assunto. Só a sós, e depois de inúmeras abordagens labirínticas da minha parte, acordam
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em divulgar um pouquinho do seu saber, mas só após garantirem a minha palavra de honra em manter sigilo absoluto e não divulgar por qualquer motivo a sua identidade a nível social. Só então começam a surgir a medo os primeiros desabafos. Não obstante, curiosamente continuam sistematicamente a pedir sigilo: – O senhor veja lá, por amor de Deus não me descubra! Este preconceito tamanho faz-me lembrar os relatos dos tempos idos na Idade Média, onde o medo da fogueira da Inquisição estava sempre presente na mente popular. Do presente estudo, as mulheres dominam por inteiro esta arte, pois assumem (a medo) o poder de esconjurar/talhar todos os males, mas também encontramos homens, poucos, é certo, mas são muito dedicados à arte. A recolha textual feita no terreno prova que o povo preserva na memória tão importante saber como refúgio e prevenção contra todos os males. Para muitos, esta realidade é de difícil entendimento, porém, prova que o povo engenhosamente desenhava conscientemente acções de força e coragem para combater as moléstias e os medos semeados especialmente por bruxas maléficas e demónios terríficos provenientes das trevas. É de todo importante esclarecer o leitor que o corpus deste trabalho foi elaborado ao longo de anos nos concelhos que compõem o “País Barrosão” (Montalegre e Boticas), nomeadamente, nas localidades mais remotas e isoladas, onde muitas destas questões etnomedicinais, ainda hoje são tratadas à moda antiga, pelas mãos dos “mestres desta arte” que são – como já disse – maioritariamente mulheres de idade avança-
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da e muito experimentadas. É neste cenário que o investigador recolhe a matriz mais genuína que um povo detém. Não é por acaso que, em Vilar de Perdizes – Montalegre, se realiza anualmente o congresso de medicina popular, que conta em 2014 com a 28ª edição, cujo mestre e mentor é o distinto Padre, António Lourenço Fontes. Este congresso acolhe anualmente milhares de Portugueses e Espanhóis que procuram na ciência popular algo mágico-religioso capaz de impulsionar o corpo e a mente de crentes, aflitos e curiosos. Este saber ancestral disponibiliza uma vasta e peculiar farmacopeia do fenómeno doença/cura e adivinhação. Este simbolismo elucida bem o leitor da importância que o povo Barrosão detém no contexto da antropologia médica de cariz nativo. O corpus que faz parte desta curiosa antologia perpetuará para o futuro a tradição cultural e a essência popular Barrosã que, ao ser a sua raiz desnovelada com perícia, torna-se apaixonante, virtuosa e digna de ser revelada; faço minha a frase de Garcia Morente1: “A tradição é o nervo da história; sem tradição não pode haver História, e a História não é mais, repito, do que a própria tradição viva, não morta.”
1
in Razão e Fé – Garcia Morente, pág. 18.
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CAPÍTULO I A MEDICINA E A RELIGIÃO NA ANTIGUIDADE “Mal prolongado, morte em cabo” (ditado popular) O homem primitivo do paleolítico (Idade da Pedra) tinha uma esperança de vida muito curta, porém, com a passagem de nómadas a sedentários os surtos epidémicos aumentaram drasticamente após a domesticação e criação de animais. Esta conjuntura viria a provocar um enorme índice de mortalidade no seio das tribos. Supostamente seria a partir de então que o homem deu início à grande revolução primitiva de índole curativa, recorrendo para tal aos movimentos celestes e à cultura megalítica para adivinhar o futuro no contexto da saúde, sobretudo quando baseados numa forte componente psicológica assente em velhas crenças e rituais mágicos que já detinha. Este facto desenrolou-se ente a relação dos Deuses da cura e dos demónios do sofrimento e da maleita com ligações ao pecado. A cultura megalítica fez parte do nosso passado de culto pré-histórico. As “pedras sagradas” eram consideradas Divindades, por isso eram veneradas com assaz respeito. Na nossa tradição popular, lembremos as pedras baladeiras, em que os seus oráculos eram muito procurados para predizer o futuro2. Os menires, quando localizados em pontos estratégi2
O leitor poderá consultar o livro A Alma de Um Povo – História e Lendas da Tradição Barrosã, pág. 33, Apeiron edições, 2013, para ficar elucidado a este respeito.
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