Belém 2017
Folhar de nós
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APRESENTAÇÃO A antologia “Folhar de nós” é resultado da oficina de “Escrita Criativa” ministrada pelo escritor/jornalista Daniel Leite Jr pela Fundação Cultural do Pará na Casa da Linguagem em parceria com a Lêstrada no período de 16 de agosto até 05 de setembro de 2017 com carga horária de 30 horas.
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Prefácio A palavra inventa o mundo para quem a cria. Ela inventa o seu próprio criador e é a criatura que nos alimenta. A reunião dos textos que contém essa antologia alumia pra nós a possibilidade da união de muitos mundos-pessoas na invençao da palavra como sugere o título: “Folhar de nós” Daniel Leite Jr
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FICHA TÉCNICA Editor/oficineiro: Daniel Leite Jr
Textos e projeto gráfico Ana Luísa Brandão / Angélica Ferreira de Lima / Anna Silva / Beatriz Fragoso Cruz / Clara Lobo / Daniel Pantoja / Evellyn Ingrid / Felipe Santiago / Giovanna Bitencourt / Isabella Fernanda Rodrigues / Iury Souza / Jamile Freitas / João Augusto / Julia Klautau Guimarães/ Lilian Carlen / Magali Andrade / Marilene Nascimento / Naomi Menna / Silvia Cristina / Sira Sousa / Viviane Menna Barreto / Yasmin Melo
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SUMÁRIO Capítulo de Ana Luísa Brandão......................6 Capítulo de Angélica Ferreira......................9 Capítulo Anna Silva...............................12 Capítulo Beatriz Fragoso Cruz.....................18 Capítulo Clara Lobo...............................24 Capítulo Daniel Pantoja...........................27 Capítulo Evelly Ingrid............................31 Capítulo Felipe Santiago.........................34 Capítulo Giovanna Bitencourt.....................47 Capítulo Isabella Fernanda Rodrigues.............50 Capítulo Iury Souza...............................54 Capítulo Jamile Freitas..........................59 Capítulo João Augusto............................64 Capítulo Julia Klautau Guimarães.................68 Capitulo Lilian Carlen...........................78 Capitulo Magali Andrade..........................82 Capitulo Marilene Nascimento.....................85 Capitulo Naomi Menna..............................89 Capitulo Silvia Cristina.........................91 Capítulo Sira Sousa...............................94 Capítulo Viviane Menna...........................97 Capitulo Yasmin Melo............................100
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Ana Luísa Brandão, 22 anos, nasceu em Belém do Pará “tem os olhos cheios de palavras”
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O espírito não se espelha no corpo
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Fins do mundo Nos meus poucos 22 anos, escutei falar do fim do mundo duas vezes uma na virada do século e outa há poucos anos atrás. Antes disso, sei que várias vezes este fim foi anunciado, mas de fato, nunca chegou. Lembro de reportagens com explicações científicas, lembro de algumas pessoas com medo, lembro da minha irmã dizer que no ano 2000, o mundo ia acabar. No dia seguinte, entretanto, estava tudo normal, nada explodiu, a vida continuava. De uns anos pra cá, fui percebendo que, talvez, o fim já tenha chegado várias vezes. Para mim e, acho, que para todo mundo. Todas as vezes que alguém partiu meu coração sem pena, quando perdi meus avós, quando me virava sozinha em outro país. Todas estas vezes, achei que meu mundo ia acabar. Não via mais a tal “luz no fim do túnel”, não via mais soluções, perdia a confiança em todos e senti um medo enorme de nunca mais ter esperança. Senti pavor do mundo não ser mais o mesmo no outro dia, assim como aconteceu depois da virada do século. Eu vislumbrei o fim do mundo quando chorei por minha irmã que estava perto do atentado das torres gêmeas e quando soube que, por muito pouco, não perdi meus pais num assalto. Eu vi o fim do mundo pela televisão, quando finalmente entendi, que todos os dias, milhares de pessoas morrerem pela fome ou pela violência. Eu vejo o fim do mundo quando vejo jovens morrem sem perspectiva de vida e se entregam pro crime, como se já tivessem nascido sem mundo, sem nada a perder. No fim das contas, acho que meu mundo já acabou várias vezes, mas sempre ressurge em outras pessoas, outros lugares e outras esperanças. Então, se um dia o mundo realmente acabar, seja por uma bomba ou por um cometa, eu espero que ele ressurja, porque se tem algo que vale a pena ressurgir é o amor que nos torna capaz de fazer das outras pessoas o nosso mundo inteiro. FUNDADÇÃO CULTURAL DO PARÁ - CASA DA LINGUAGEM - LÊSTRADA
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Angélica Ferreira de Lima, 17 anos, nasceu em Belém do Pará “sorriso que brilha”
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Cidade de Belém Cidade das mangueiras oh quão maravilhosa oh quão calorosa oh quão adorada só venho lhe dizer o quanto és tão amada nos seringais nas matas ou serras peladas tu serás sempre a mesma tão idolatrada no carimbó no merengue ou na lambada os teus filhos paraenses diram que és cidade amada
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Consumismo Às vezes a dor consome tanto o eu que quando menos espero já não sou meu
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Anna Silva [kit-cat], 16 anos, nasceu em Belém do Pará “quase um unicórnio perfeitinho”
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Pequenas pedras As pedras no caminho não eram pra eu cair mas com o desastre que sou é difícil impedir sorri, mesmo quando me feri minha mãe me ensinou assim cair, mas sempre se levantar como o sol a se por trás do mar e no outro dia raiar firme e tão belo como no dia anterior sem chorar e voltar a brincar passar uma mão no machucado e sem mais nem menos gargalhar e tornar a brincar
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Malemurugar Os barcos chegavam ao Porto e pouco a pouco seus navegantes iam desembarcando e levando para o cais o que traziam dos rios. No alto dos edifícios homens e mulheres de negro observavam a movimentação, em pontos únicos outros de roupas brancas se posicionavam. Diferente dos de negro esses pareciam ser mais belos pois as pessoas paravam para os olhar, e esses apenas se mantinham imóveis com expressões sérias, em um equilíbrio fantástico. Em um movimento rápido um dos homens de negro moveu a cabeça para a esquerda, e fitou um ponto mal frequentado pelas pessoas, parecia atraído por aquele lugar. Inclinou o corpo naquela direção, ninguém prestava a atenção naquele homem de preto que estava prestes a cair, antes de ir ao chão uma máscara foi posta em seu rosto e asas emergiram de seu casaco, como se as mesmas fizessem parte da roupa e não dele. Do outro lado um homem de cinza, suas vestes não repassavam a alegria que era vista em seu rosto, ele ria baixo e sozinho segurando algo que se encontrava pela metade. Sua expressão alegre logo foi substituída por FUNDADÇÃO CULTURAL DO PARÁ - CASA DA LINGUAGEM - LÊSTRADA
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um misto de preocupação e medo, vindo em sua direção uma mulher de sorriso de lado e meramente debochado abriu os braços perguntando: — Não esperava por mim?— Fingiu estar ofendida e ficou de lado para apontar a parede próxima aos dois.— Fiquei ali o tempo todo. Quando voltou a olhar para o homem mal vestido ele já não estava lá, corria para o meio-fio, a mulher bufou batendo os braços ao lado do corpo e foi atrás dele, uma nuvem quase invisível cobriu os dois, assim como cobriu o homem de preto. Milésimos, um suspiro esvaziou os pulmões do homem mal vestido que agora era um rato morto, foi esmagado por um carro, bem no meio da via, seus braços estavam tortos e os órgãos espalhados. Uma cena de dar ânsia. A mulher, ou agora uma gata malhada, andava em círculos na calçada encarando enraivecida o rato burro morto na estrada. O urubu, aquele homem de preto sobrevoava o corpo até pousar ao lado dele. Se abaixou, a névoa para eles não existia, eram apenas homens se matando para se alimentar. O homem de negro se abaixou sentindo o aroma mortífero que vinha do corpo, para ele era inebriante, saboroso. Aproximou a canhota ao rosto deformado do homem mal vestido e suspirou, FUNDADÇÃO CULTURAL DO PARÁ - CASA DA LINGUAGEM - LÊSTRADA
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saboreando não só o gosto que ele teria ao comê-lo, saboreava a fragrância que exalava do corpo, um prato tão perfeito e cheio de morte. Segurou o cadáver por um dos braços, a força que usou para o lançar para a outra calçada foi mínima, mas o rato voou por ser muito leve. As asas foram abertas novamente e as bateu até estar outra vez perto de seu alimento. Por o corpo já estar aberto o urubu puxou um órgão que se misturou com outro e com mais outro, e foi o mordendo e degustando a carne. Alguns metros de distância dali uma mulher de branco estava dentro do rio, próximo aquele cais, crianças e adultos nadavam e não saiam da água, gelras eram notáveis em seus pescoços, a mulher de branco puxou uma criança. A menor parecia sufocar por estar fora da água, os olhos dela se esbugalharam só por isso, a mulher de branco segurou o pescoço da criança e o torceu sem pudor. Ela tinha unhas e afiadas, e começou a rasgar a pele do miúdo. Aos poucos que ela ia abrindo o lactente, segurava o em seus braços, mordendo a pele dele devagar. Urubu, e garças, qual realmente é o mau? A beleza esconde a face maléfica de uns, e a feiura esconde o bom senso de outros. FUNDADÇÃO CULTURAL DO PARÁ - CASA DA LINGUAGEM - LÊSTRADA
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topa o pé no topo alto torto
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Beatriz Fragoso Cruz [Clarissa Ferreira], 19 anos, nasceu em Belém do Pará “por virtude de tanto imaginar”Ferreira Gullar
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Lenda Urbana Archie é um velho atacarrado e de postura retorcida. Seus rosto é pálido como uma vela, uma vela derretida, como se sua pele lutasse para se manter presa aqueles osssos de vidro. Archie detestava ser chamado assim, preferia mil vezes seu nome de batismo, Achiebald, que sova imponente e solene. Aquela altura da vida, porém já se conformara com o fato de que não era digna de uma denominação tão à altura. Quando criança, frenquentemente, se perguntava, porquê diabos sua mãe havia batizado um menino magricela como ele com tal nome. Sua mãe já morrera há muitos anos - diabetes - com as costelas já salientes, contra uma pele flácida e ressequida, muito parecida com ele no auge dos seus 13 anos. Apesar da crueldade que a vida incidia sobre a sua existência, mediocre desde o nascimento, Archie empenhava-se na função que, em sua opinião, era a mais nobre de todos os labores da vida. Era coveiro, considerava-se um leal ceifador ou até mesmo o próprio Caronte que flutua sobre as águas tenebrosas do Rio Estige. Costuma dizer ser responsável por dar uma morada digna aos receptáculos das almas que enfim se libertaram da vulgaridade da vida terrena. Ele é seu salvador. Outro dia enterrava uma menina de quatro anos que se aforagara na banheira de casa, enquanto a mãe atendia um telefonema na cozinha. Durante o enterro, muitos invadiram a mãe em abraços repletos de compaixão, enquanto afirmavam não compreender como algo tão terrível poderia acontecer a uma menina tão linda, afinal ela não merecia. Mas Archie incluiu-se na parcela de pessoas que sabia. Sabia que aquela mãe estava sendo punida pela sua falha - seja nesta ou em alguma outra vida. E ele era o policial da corte que a algemava após a condenação, para conduzi-la até a cela para FUNDADÇÃO CULTURAL DO PARÁ - CASA DA LINGUAGEM - LÊSTRADA
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cumprir pena perpétua. No domingo passado, fora a vez de um pai de família, comerciante, batalhador que dava de beber aos seus filhos seu próprio suor para que estes não passassem sede. Esfaqueado durante a noite, ao voltar do trabalho. Uma pena, todos diziam. Mas enquanto atirava a terra úmida sobre aquele caixão de segunda mão, Archie notou o olhar da menina de cabelos oleosos e de rosto marcado por uma idade que não pertencia, a filha mais velha do morto. Archie sabia o que aquele olhar dizia. Aquele homem exemplar molestava a menina desde os seus 10 anos de idade, e as vésperas do 10º aniversário da caçula da família, ela decidiu liquidá-lo numa viela escura próxima de casa. Os anciões da cidade contam que Archie trabalha no cemitério desde sempre. Ninguém sabe dizer quando ele apareceu ali, nem de onde veio. O palpite das crianças é de que o velho é um fantasma centenário, assombrando o terreno do cemitério disfarçado de coveiro. Assim, ninguém suspeitaria e seus ossos estariam a salvo do fogo e do sal que o condenariam no Inferno. Mal sabem eles que, ao cair da noite, Archiebald retorna para um sobrado decadente, descendo a ladeira no fim do terreno. Sua casa. Na cozinha, liga a lamparina e põe o bule no fogo, espera a água ferver lendo o jornal do dia. Depois de tomar uma xícara de chá e alimentar Zumbi, seu vira-lata, segue para o quarto, onde uma linda mulher de curvas magníficas e pele cintilante está adormecida entre lençóis encardidos. Ele beija sua face e diz que está na hora de acordar. Ainda sonolenta, a bela moça apanha sobre a cadeira sua longa capa preta e esconde sob ela seus robustos seios. Cobre a cabeça com um capuz negro e presenteia Archie com um beijo singelo. Antes de sair noite afora, pega atrás da porta sua ferramenta de trabalho e fiel amiga: uma foice comprida que reflete a luz do luar em sua lâmina irreverente. FUNDADÇÃO CULTURAL DO PARÁ - CASA DA LINGUAGEM - LÊSTRADA
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Antes do sol nascerCENA ÚNICA
(Homem sentado à mesa de um bar. Mulher se aproxima por trás dele) Mulher: Posso me sentar? (Homem se sobressalta e levanta. Puxa uma cadeira. Homem: Por favor. (Os dois sentam. Pausa longa. Os dois encaram a mesa) Homem: Vou pedir uma dose de uísque. Você... Mulher: Dose dupla, por favor. (Homem faz sinal para a garçonete. A garçonete se aproxima com blocos de notas e uma caneta em mãos) Homem: Três doses de uísque com gelo, por favor. (Garçonete sai de cena) Mulher: Você não parece confortável. Homem: Como ficar confortável com uma situação dessas? Mulher: O que tem de errado com essa situação? (A garçonete traz uma bandeja com três copos de uísque com gelo e serve a mesa. Sai de cena em seguida) Mulher: Faz algum tempo que não nos vemos...Quatro, cinco anos? Homem: Seis (Ele encara e vira uma dose de uísque). A última vez foi no um musical de ano novo. Você estava com um lindo vestido azul...(solta um suspiro) Mulher: E você estava careca e...sua barba estava maior...Acompanhado por uma loira de 1,90m. (Homem sorri) Homem: Vanessa...ela era divertida, mas foi você quem terminou a noite na cama do meu quarto de hotel. Mulher: Lembro que pedimos champanhe, o mesmo que tomamos na véspera do Natal de 2008. Meu pavê de chocolate estava maravilhoso. (Mulher sorri de repente) Mulher: E você queimou o peru. Homem: Minha mãe não me perdoa até hoje. Ela ainda pergunta por você, quer saber quando vai viajar conosco à praia de novo. (Mulher se recosta na cadeira e vira uma dose de uísque) FUNDADÇÃO CULTURAL DO PARÁ - CASA DA LINGUAGEM - LÊSTRADA
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Mulher: Aquela foi uma das melhores viagens que fizemos juntos. O melhor pôr do sol que já vi. Homem: Lembro que nossos cabelos ficaram cheios de areia de tanto rolar pelo chão. Mulher: Escrevi um poema sobre aquelas noites. Homem: Eu sei, recebi seu e-mail. Você comparou nossos gemidos aos sons das corujas na madrugada. Mulher: Odeio esse poema.(Bebeu a última dose de uísque).Está frio, não? Homem: Nem tanto assim. Você sempre sentiu frio demais e me obrigava a te aquecer, enquanto passeávamos na praça. Como no nosso 1ª encontro. Mulher: Era uma tática inteligente, sempre funcionava e você nunca reclamou. Homem: Não reclamei e jamais vou. Não há arrependimento algum nos momentos em que passei ao seu lado. Mulher: E apesar disso, você se foi. Homem: Você também não ficou. (Pausa longa) Homem: Nenhum de nós esteve presente de verdade. Mulher: Não, na verdade não, mas agora...estamos presentes nessa ausência que passou. Homem: E estamos presentes pra seguir em frente. Mulher: E chegamos onde nunca estivemos antes, mas não juntos. Homem: Não, não juntos, mas tu estás em mim e eu em ti e no momento em que virares aquela esquina e partir...eu partirei contigo (Pausa longa) (Mulher levanta, apanha a bolsa) (Homem e mulher se olham) Mulher: Sendo assim...eu já vou. (Mulher sai de cena) (Homem levanta o braço e faz movimento pra chamar a garçonete) Homem: A conta, por favor! (Luz vai apagando, gradativamente, ao mesmo tempo que foca apenas no homem, até que o palco fica totalmente na escuridão) FUNDADÇÃO CULTURAL DO PARÁ - CASA DA LINGUAGEM - LÊSTRADA
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folha em branco na solidão se cria sonora poesia
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Clara Lobo, 17 anos, nasceu em Belém do Pará “silêncio que causa curiosidade”
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Voltar pra casa Chego e legitimo a solidão dos móveis
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No pressentimento de menininha infame-arrogante faço-me Ófelia Maria e começo a pensar na porta desta sala Oh, porta! -Há quanto tempo habitas esse cubinho? -Ah, Maria...já ouvi de tudo” -Mas há quanto tempo?! -Você é extremamente deselegante, Mariazinha então deixo a porta e penso no ovo e na galinha para sair do invólucro para habitar dois lugares para ser o alimentado e quem alimenta
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Daniel Pantoja, 18 anos, nasceu em Belém do Pará “refletizando”
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o mundo gira entorno do sol não em você
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Sempre me pergunto, como será o fim do mundo? Ou da raça humana? Ou talvez mesmo do universo? Todo começo tem um fim, me pergunto, qual será o nosso?! Existem várias formas que dizem que irá acabar, alguns dizem a própria humanidade já está contribuindo para o fim. Outros dizem que o fim do mundo seria a segunda volta de Jesus Cristo para salvar seus escolhidos e, também, que irá acabar por causa do sol que irá queimar a terra. Isso são teorias que podem acontecer ou não, mas todo fim tem um recomeço, nada acontece em vão, sempre tem algo a se esperar.Acredito no fim do mundo e, também, no começo de outro, nesse mundo só estamos de passagem, nascemos, vivemos e morremos. O mundo vai acabar e, talvez, quando ele acabar saberemos o verdadeiro motivo de termos passado por ele, mas acredito que depois do fim de tudo, irá ter um lugar melhor só para aqueles que merecem estar nele. FUNDADÇÃO CULTURAL DO PARÁ - CASA DA LINGUAGEM - LÊSTRADA
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lembranças ocultas que tentamos alcançar numa fase da vida queremos voltar
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Evellyn Ingrid, 31 anos, nasceu em Belém do Pará “sou estrangeira”
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Corpo páginas sendo lidas
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Retalhos Num esforço desastroso de minh’alma, tentando libertar o indesejável de mim, sombrios e profundos são os muros veludos de espinhos... Portas de marés, tecidos vulgares no sair e entrar de um ego sem fim
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Felipe Santiago, 23 anos, nasceu em Belém do Pará “sou, em grande parte, a mesma prosa que escrevo”Fernando Pessoa
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Da infância que tudo eu podia amar era leve era permitido não era matéria de fraco, imaturo, nem proibido. Sorrir era mais natural era livre, era belo, mais real. Correr era permitido (menino, cuidado!) Ou talvez nem tanto, mas eu corria e eu voava e eu sorria e sem medo eu amava FUNDADÇÃO CULTURAL DO PARÁ - CASA DA LINGUAGEM - LÊSTRADA
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Os detalhes te levam ao Inferno Detalhes. Marcelo era apegado aos detalhes. Ele sempre adorou sentar na cozinha da avó durante a infância, enquanto a dona Jaílma fazia seu famoso bolo de laranja. Bolos são simples. Bolos de laranja são simples. O problema é que não são todas as pessoas que nascem com a aptidão de fazerem coisas simples. A dona Jaílma, avó do Marcelo, caso tivesse nascido homem e em Cuba, certamente seria um dos braços direitos de Fidel. Dona Jaílma, avó do Marcelo, caso tivesse nascido homem exatamente onde nasceu, certamente seria um dos braços direitos do golpe de 64. Mas dona Jaílma, avó de Marcelo, nasceu mulher em uma época e em um mundo difícil para ser mulher e ser ditadora militar ao mesmo tempo, por isso ela só ditava mesmo era na cozinha em dias comemorativos, como no aniversário de Marcelo, quando sempre havia bolo de laranja. Dona Jaílma era rainha naquele território e Marcelo era o único que podia permanecer nele sem ouvir gritos ou ser expulso com palavrões naquela voz rouca e arranhada de tantos anos de tabaco. Esse era um detalhe. Era uma coisa simples da qual todos já estavam acostumados: às seis horas da tarde, todo sagrado dia, quando a dona Jaílma ia lá pro fundo do quintal fumar seu tabaco que ela sempre dizia não fumar para ela, mas para outros. Marcelo só viria a entender o sentido do “fumar para outros” muitos anos depois, quando suas noções acerca de Deus fossem extrapoladas pela presença de outras entidades. Por enquanto, àquela FUNDADÇÃO CULTURAL DO PARÁ - CASA DA LINGUAGEM - LÊSTRADA
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altura da vida, Marcelo só gostava do som metálico que fazia a voz da avó quando expulsava e ralhava todo mundo que se aproximasse, porque fazer bolo de laranja, especialmente no aniversário do único neto, era para a dona Jaílma um ritual sagrado. Como fumar o tabaco todo fim de tarde. Os primeiros sinais de que Marcelo adorava detalhes surgiram justamente com o ato de observar cada ingrediente do bolo de laranja. Marcelo nunca aprendeu a fazer um bolo de laranja, nunca nem sequer desejou fazer um bolo de laranja, porque só havia uma única pessoa na face da Terra capaz de fazer bolo de laranja que valesse a pena ser comido e apreciado com o paladar. Dona Jaílma era essa pessoa e era a única a lidar com os detalhes casuais de um bolo de laranja. Ela não tinha receitas e sempre que alguém perguntava quais as medidas que faltavam acrescentar para fazer o bolo de laranja, dona Jaílma respondia: - Três ou quatro daquelas colheres grandes de trigo e tá bom, minha filha. Tu dás uma olhada, mas é por aí. E fim de papo. O sal do cozido era a mesma coisa. Dona Jaílma pegava com a ponta dos dedos e salpicava. Pronto. Ficava um baita cozido perfeito. Ela tinha o que os cozinheiros caseiros e profissionais chamam de tato. Dona Jaílma tinha tato para pequenos detalhes. Assim como Marcelo. Marcelo era um apreciador nato de detalhes. Nesse instante, agora adulto, Marcelo observa um detalhe quase imperceptível: Rossana tem uma pintinha meio rosada FUNDADÇÃO CULTURAL DO PARÁ - CASA DA LINGUAGEM - LÊSTRADA
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atrás do tornozelo. É um sinal, ele quase tem certeza, porque já havia notado isso antes, há muito tempo. Era uma pintinha discreta, pouco menor que a unha de um dedo mindinho adulto. Era disforme e ondulada, como uma ameba prestes a fagocitar um corpo estranho. Ele deslizou a ponta do dedo indicador sobre a mancha na pele, só para se certificar de que era um sinal e não algum tipo de micose ou anomalia epidérmica. Após se certificar do veredicto, Marcelo acariciou aqueles pés de pele tão clara e lisa, porém não se ateve muito àquela região no intuito de não acordá-la logo, pois planejava encontrar mais detalhes que na noite anterior não fora capaz de descobrir. Por isso utilizou a ponta dos dedos ao longo da perna dela, enquanto subia pelas panturrilhas levemente torneadas. Alguns detalhes poderiam dizer muito sobre as pessoas, mas os detalhes de Rossana diziam tão pouco a Marcelo que o máximo que pôde inferir, a respeito da vida pregressa dela, era que não estivera enfiada em muitas aventuras ou situações de risco. Nem tampouco parecia o tipo desastrada de garota. Não havia cicatrizes em sua perna, nenhuma marca sequer da infância, em nenhuma delas. O fato de ter vivido confinada em um prédio de classe média alta não justificava a falta de correrias, pulos ou travessuras. Porém descobriu outras pintinhas, em ambas as pernas, e na região das coxas elas pareciam muito mais distribuídas e existentes. A pele clara fazia com que elas não fossem negras, mas um pouco mais claras, algumas marrons, quase transparentes, um pouco parecidas com a manchinha do tornozelo, só que em estágio menos avançado de opacidade. FUNDADÇÃO CULTURAL DO PARÁ - CASA DA LINGUAGEM - LÊSTRADA
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Foi durante a noite anterior que descobriu, com grande esforço e merecida conquista, as pintinhas que salpicavam-na os grandes lábios aqui e ali, como confetes em cima de um bolo de laranja com recheio de chocolate. Subindo um pouco mais acima da cintura, Rossana era pintada por detalhes em volta do umbigo e ao longo das costelas, três na direita e duas na esquerda. Mas dessa vez, Marcelo prendeu-se no formato que o corpo dela fazia naquela posição, adormecida de lado na cama com as curvas ora veladas pelo lençol, ora desnudas para a manhã clara de outono. Ele brincou com os dedos pelas sinuosas colinas que formavam seus quadris e cintura, descendo quase em queda livre pela depressão que ali havia para novamente subir pelas costelas, passando pelas pintas que havia descoberto e subindo pela lateral do seio esquerdo, onde ela era enfeitada por uma constelação inteira de sardinhas quase tão transparentes quanto aquela rosada do tornozelo. Marcelo deitou os lábios ali, entre os seios dela, local que guardava certo cheiro de suor, certo cheiro de pele, carne e intensidade. As sardas subiam pelos ombros e misturavam-se aos sinais do pescoço, quase tomando-a o rosto. Marcelo também gostava do pescoço de Rossana: era bem desenhado, esguio e sempre chamativo para um beijo ou outro. Afastou dali os cabelos ruivos para que pudesse beijá-la melhor, e assim o fez, dando mordiscadas na pele bem próximo a orelha, onde passou a mordê-la na pontinha e levemente a mastigar como se fosse a última goma de mascar do planeta. A mistura de sensações ali era como um mar de cores psicodélicas: havia perfume, havia o sabor da pele, havia o sabor do suor seco, FUNDADÇÃO CULTURAL DO PARÁ - CASA DA LINGUAGEM - LÊSTRADA
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havia o sabor do perfume misturado ao da pele e havia a textura dos poros e o roçar dos pelinhos. Foi nesse momento que a garota começou a despertar, abrindo os olhos com um sorrisinho meio atordoado, finalmente compreendendo o que se passava. Ela esticou as pernas e dobrou os dedos dos pés, quase espreguiçando-se como uma gata elegante e manhosa. - Bom dia. – Sussurrou-lhe Marcelo. - Bom dia. – Ela continuou com o sorriso atordoado que logo transformou-se em algo próximo ao incômodo. – Oh, meu Deus. Que horas são? – E procurou o celular por entre os travesseiros. - Qualquer hora, por que? - Eu preciso ir. – E levantou-se num salto. Marcelo impediu colocando a mão cauteloso sobre o peito dela. - Eu tenho que ir embora agora. - Ei, qual é a pressa? - Você sabe. – E arrumou o cabelo ruivo em um rabo de cavalo improvisado. – Meu Deus, eu tenho que ir, porra. - Meu Deus, você é linda. – Caçoou. - Para de brincadeira, cara. É sério. – E tirou a mão que estava em seu peito e saltou da cama, dessa vez Marcelo não a impediu. Ela procurou o que quer que estivesse procurando pela cama, não encontrou e começou as buscas pelo chão. Primeiro, encontrou a calcinha e a vestiu. Depois, o celular. - Puta merda, são dez da manhã. - Cê tinha compromisso? FUNDADÇÃO CULTURAL DO PARÁ - CASA DA LINGUAGEM - LÊSTRADA
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- Tu és meio retardado? – Perambulava em círculos pelo quarto, procurando o resto da roupa. - Talvez. O que que foi? - E se a Lívia chegar? - A Lívia tá viajando. - Tem certeza? - Ubum. - Se qualquer outra pessoa chegar? - Ninguém vai chegar. - Tem certeza? - Uhum. - Para de agir como se tudo fosse normal. - Tudo parecia normal ontem à noite. - Mas não é, Marcelo. A Lívia é minha amiga, isso não foi justo com ela. - A vida nunca é justa. - Safado. Marcelo deu de ombros. Ela já tinha encontrado as calças quando ele a puxou pelo braço e a fez se sentar em seu colo. - Relaxa, garota. - Vai se foder. Eu não devia ter te dado ouvidos. - Você deu mais do que ouvidos ontem à noite. - Ora, vai se foder! – E deu um tabefe no rosto de Marcelo. Ele a apertou pela cintura e mordeu o queixo dela. Rossana nem sequer protestou. - Isso não tá certo, eu não devia ter feito isso. A Lívia é minha amiga. - Você já disse isso. - Ah, meu Deus, Marcelo. O que a gente fez? FUNDADÇÃO CULTURAL DO PARÁ - CASA DA LINGUAGEM - LÊSTRADA
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- Sexo. – Ele a beijou rapidamente na boca. Rossana não pareceu incomodada de devolver. - Ah, meu Deus. - Sim, você também chamou muito por Ele ontem. - Vai se foder, Marcelo. – Outro tabefe e outro beijo. Rossana tentou inúmeras vezes fugir dos braços de Marcelo, mas quanto mais as mãos dele a prendiam com pulsos fortes pela cintura, pelas pernas ou pelas costas, menos Rossana tinha vontade de sair. Parecia tentar fugir apenas por um senso longínquo de moral e ética. As mãos de Marcelo subiram pelas costas da garota, apertou-a com dedos firmes e aplacou-a a nuca, embrenhando os dedos por entre os cabelos naturalmente alaranjados e soltando o rabo de cavalo que os fizeram cair pelos ombros. Marcelo cravou os lábios no ombro direito dela e chupou o suficiente para deixar uma marca. Ela reclamou, porém mais pareceu um gemido do que um protesto. - Nós vamos pro Inferno, Marcelo. – Ela riu entre um arfar e outro. - Vamos sim, ah, nós vamos. Rossana inclinou o pescoço para trás e Marcelo o beijou, afundando o rosto como um vampiro esfomeado. As mãos desceram até as pernas dela e afastaram a calcinha. A garota sentou para confirmar seu ticket de ida. - Porra, que delícia. - Cala a boca. – Ela ordenou, arranhando as costas dele. - Cacete, tá maluca? - Tamo no Inferno, porra. – Deu de ombros enquanto pulava no pau duro dele. FUNDADÇÃO CULTURAL DO PARÁ - CASA DA LINGUAGEM - LÊSTRADA
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Àquela altura a ruiva já tinha os olhos fechados, para quem parecia se preocupar com a presença da amiga ou a condição de pós-morte, estava lubrificada demais. Marcelo apenas guiou o movimento dela com as mãos encaixadas na cintura, vez ou outra levantando-a e descendo-a com mais força por seu pau enquanto ela gemia e o mandava calar a porra da boca sempre que dizia uma coisa ou outra. Selaram com uma rapidinha, alguns “cala a boca”, tabefes na bunda, na cara e gemidos o roteiro de viagem para o Inferno. Marcelo gozou fora, nas coxas dela, embora ele quisesse mesmo era gozar dentro ou, no mínimo, naqueles pelinhos alaranjados que cresciam na virilha. Era mais de onze da manhã quando Rossana saiu do banheiro e vestiu as roupas. Os cabelos não estavam molhados, apenas presos, secos e bagunçados em um rabo de cavalo agora mais cuidadoso. Elas nunca saem de cabelo lavado no dia seguinte da sua casa. - Quer comer alguma coisa? - Nem se eu quisesse, tenho é que dar logo o fora daqui. - Já tivemos essa conversa antes. – Marcelo sorriu. - Ah, vai sonhando. – Mostrou o dedo do meio. – Vê se lava esses lençóis e varre o quarto, limpa tudo, cara. - Pra quê isso? - Ela pode encontrar qualquer coisa por aqui. Até cabelo. Mulher é foda pra essas coisas, Marcelo. - A Lívia nem vai notar. - Eu conheço ela, vai sim. Por favor, só não vacila. Ok? – Deu um beijo de despedida nele e foi embora. FUNDADÇÃO CULTURAL DO PARÁ - CASA DA LINGUAGEM - LÊSTRADA
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Para quem apreciava detalhes, Marcelo sentiu-se um bobo por não pensar o óbvio. Pela manhã, ele varreu todo o quarto e até usou o aspirador de pó que havia comprado por capricho na Polishop e que fora usado duas ou três vezes. Limpou o recipiente que havia dentro da máquina e despejou tudo no lixo. Colocou todos os panos da cama na máquina juntamente com as roupas que havia usado. Pela tarde, Rossana enviou uma mensagem: “Faz o que eu te disse e não dá mancada, por favor. Eu gostei de ontem e como acordei hoje, bjss! (apaga essa mensagem)”. Marcelo sorriu ao lembrar de cada detalhe da garota e ao se certificar de que nada incriminador havia ficado pelo quarto. Apagou a mensagem. Pela noite, Lívia ligou para ele: - Eles retiveram os documentos – ela disse, visivelmente cansada – e não pude voltar hoje à tarde. Consegui passagem para amanhã de manhã, tudo bem? - Tudo bem, amor. - Te vejo amanhã, desculpa atrasar tudo. Te amo! - Também te amo. Rossana e ele trocaram mensagens. Ela já não parecia tão temerosa assim pela condenação ao Inferno. Ele perguntou a ela qual o perfume usava, porque imediatamente lembrou do corpo da garota, lembrou a próxima vez em que se veriam, lembrou da manchinha atrás do tornozelo e, consequentemente, lembrou de como detalhes eram importantes. Lembrou-se da dona Jaílma e o famigerado bolo de laranja. Detalhes. FUNDADÇÃO CULTURAL DO PARÁ - CASA DA LINGUAGEM - LÊSTRADA
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- Qual perfume você usa? – Ele perguntou. - O quê? Por que? - Só me diz. - Aquele verde que vende na farmácia. - Porra, na farmácia? - É, por que? - Por nada. Na mesma noite, Marcelo foi à farmácia e encontrou o perfume verde, o destampou para se certificar e comprou-o no débito automático. No dia seguinte, quando Lívia voltasse de viagem, ela perguntaria que perfume era aquele. Marcelo responderia que saiu de casa para o trabalho e esquecera de passar perfume, então fora à farmácia para comprar o primeiro que encontrasse e o salvasse do perrengue envolvendo fedor e suor. Lívia acreditaria. Isso facilitaria as coisas. Ela jamais julgaria que o perfume na roupa dele ou nos lençóis seria de sua amiga, mas sim do novo perfume estranho que Marcelo andava usando. Detalhes. Marcelo era apegado aos detalhes, desde a infância analisando os ingredientes do bolo de laranja da dona Jaílma, até a idade atual, enquanto ansiava por ver mais uma vez aquela manchinha rosada no tornozelo de Rossana. Detalhes: “O Diabo está nos detalhes”, era o que as pessoas diziam. Marcelo sabia disso. Marcelo sabia também que são os detalhes que te levam ao Inferno. Ele adorava ir ao Inferno. FUNDADÇÃO CULTURAL DO PARÁ - CASA DA LINGUAGEM - LÊSTRADA
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sentado na cruz diante do sagrado vendo vídeo, whatsapp desempregado, chega um dá o susto mostra a arma: passa o celular passa foto passa música, (bora logo, rapá!) “delegacia não adianta” dizem os conselhos, pois celular que vai embora em tuas mãos evapora
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Giovanna Bittencourt, 24 anos, nasceu em Belém do Pará “sou filha do acaso”
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Quero um amor estilo Caetano Veloso mas eu que não sou nenhuma Elis Regina tenho amor MC Brinquedo
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Cada pessoa no mundo, morre sozinha 28 de agosto, 2017
Eu me sinto exausta em aguardar um amor, acho que meu amor, acho que meu amor de verdade sou eu. Eu me enxergo poesia e vejo minha tristeza, vejo meus olhos grandes e os reparo inocentes e manipuladores, mas me amar cansa. Igual a todos os amores normais, porque só eu me entrego pra mim mesma e eu tenho problemas leves que são fáceis, mas eu não quero me mudar, pois eu sou minha chapa. Entretanto, esses problemas aparecem com frequência esses dias e eu me sinto mais cansada ainda, as olheiras aparecem e ei esqueço de pentear os cabelos e me vejo tão cinza. Cansei de ser meu maior amor e me ver sendo mercadoria barata na mão dos que me rodeiam e deixam me rodear sozinha, talvez, o meu amor, assim como o dos outros, é repleto de ilusão e nada mais.
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Isabella Fernanda Rodrigues, 17 anos, nasceu em Belém do Pará “se me contemplo, tantas me vejo, que não entendo quem sou, no tempo do pensamento”
Cecília Meirelles
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Se tu vais nessa lua eu logo invento uma desculpa nem se fosse jambeiro em outra estação eu te vejo nem perde tempo comigo se quiser no caminho eu te explico muda de lugar como cada dia um pingo eu sinto quando ela vem eu tenho meu alento o corpo se entrega na calma no meio desse tormento a chuva esfria o asfalto quente
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Carta para mim
Esta é a Isabella Fernanda Rodrigues de 2017, falando para ela mesma em 2027. Em apenas 17 anos muita coisa já aconteceu, eu nem imagino com 27 anos. Eu espero que esteja viva, não deixar pensamentos ruins levarem é muito difícil. Nossa realidade é mascarada na beira do abismo, iludidos pela ideia de um vôo livre, quando na verdade a queda é certa e fatal. Os seus traumas e abismos marcados na alma não podem apagar a luz que ela emite. Nem todos os dias são fáceis, mas o modo como você o encarar pode facilitar as coisas, sentimentos e pensamentos, sem o medo de pedir ajuda, respire pelo nariz e solte pela boca, pare por um minuto e se ouça. Escreva pela arte, pela vida e pela morte, quem canta os males espanta e nunca esqueça os mantras. Olhe pra si mesma e questione se é a mulher que um dia imaginou ser, e se não for não tem problema, se estiver feliz tudo valeu a pena. Eu poderia escrever um caderno sobre as coisas que eu diria para mim mesma, para tentar não repetir os mesmos erros, para não se culpar por eles, para priorizar a liberdade e a felicidade acima de tudo, mas ainda estou vivendo, errando e aprendendo, penso que a vida é isso. Não permaneça, mude, mas se reconheça, cresça, mas não perca a essência de criança que gosta de cafuné na cabeça. Seja árvore e mantenha a firmeza. FUNDADÇÃO CULTURAL DO PARÁ - CASA DA LINGUAGEM - LÊSTRADA
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Tão-somente Quando penso nessa cidade, vejo o poço de desprezo, as marcas do abandono refletida em tudo que é parte. Um amigo, de um amigo meu, com a mesma história, levou uma gringa no veropa, “cidade linda e suja” é o que eles dizem sem culpa. E a culpa é de quem? Hoje o povo vive refém, preso em casa com medo do carro prata. É da escola pro trabalho, no final é tudo em casa. A mente presa na cultura da ilusão, onde tudo é perfeito, mas só na televisão. Ninguém tem pra onde correr e os moleques já estão cansados, chegou na praça, cadê o lazer? PM chegou, foi embassado. Melhor ficar em casa, assistindo tv, porque eles não querem neguinho informado e muito menos armado com a arte ao seu lado.
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Iury de Paula Souza, 22 anos, nasceu em Belém do Pará “o silêncio mais poeticamente barulhento que escutei”
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sílaba poética procura a métrica na rigidez da regra
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Daqui, em 2015, senti orgulho da arte Minha rotina é tediosa. Não quero ser pretensioso a ponto de compará-la a Odisseia por mero invencionismo metafórico. Os quatro ônibus diários não se assemelham em nada às caravelas portuguesas ou ao Titanic, são quentes, escuros e repletos de gente indiferente, como aqueles livros com histórias paradas e personagens indispostos. Sei que falhei novamente em minha promessa de evitar a prepotência literária que exerço de modo involuntário. Peço desculpas, mas é impossível não imaginar toda a produção (e a criatividade) dos artistas naquele longínquos tempos de repressão militar, quando vejo, da janela do ônibus, a vida devolvida ao Solar da Beira: um renascimento recente, ainda que vigiado pela contenção das armas, mas fruto do desejo de renovação e, sobretudo, de resgate. 2015. Mercado Ver-o-Peso. Calor O velho espaço Solar da Beira parece se preparar para acolher um grupo de estudantes. Há alguns dias, o lugar recuperou a capacidade de respirar, implorava pela ruptura do cadeado que o tornava coadjuFUNDADÇÃO CULTURAL DO PARÁ - CASA DA LINGUAGEM - LÊSTRADA
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vante de sua própria função: a promoção da arte, a arte viva e retumbante, de voz mais intensa do que o desencontro de ritmos da reclusão do abandono. Vejo artistas prontos, não interessa se levianamente taxados de amadores ou profissionais. Vejo paraenses, embora não conheça essas pessoas. Nunca as vi, mas a naturalidade no documento de identificação que as registra torna dispensável a meu ver. Aquela mulher, que está na janela do Solar agora, pode nem ter nascido por aqui. Será americana, islandesa. Jupiteriana? Não sei. Mas está espalhando arte para um grande público. Resgatando um patrimônio do sucateamento Paraense? Sim, ou talvez, não ligo para rótulos. Eu permaneço aqui, na mesma janela. Decido visitar o Solar para compreender o movimento artístico. Desço do ônibus, vejo um guarda armado e impressiono-me com o contraste do instante: um revólver, repleto de projéteis de cinismo e medo de transformação, ao lado de um artista que retoma o brilho de um símbolo arquitetônico cheio de história. FUNDADÇÃO CULTURAL DO PARÁ - CASA DA LINGUAGEM - LÊSTRADA
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Inquietude
De repente a soberba dos dicionário parece moribunda inexistente personagem inútil diante de um enredo infinito de cores árvores mangas águas e contrastes cidade profunda embora marcada pelas superfícies palpáveis ilusórias daquele povo que busca identidade por entre a exuberância da floresta densa mostre-me uma palavra que defina Belém FUNDADÇÃO CULTURAL DO PARÁ - CASA DA LINGUAGEM - LÊSTRADA
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Jamile Freitas, 22 anos, nasceu em Belém do Pará “a absoluta certeza da inconstância”
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elos singelos flagelos cegos do ego
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Sob os cuidados de Kali A noite é longa e quente. A janta está no fogão e o “O show de Truman” já não me agrada mais. Nesses momentos, comuns, de tédio, você para e pensa se dali vai passar ou não. A angústia aumenta e eu não sei se a ansiedade vai me matar ou me torturar. Levanta, corre, senta, come. De todos as atitudes loucas e saudáveis, o ser humano prefere abraçar o caos. E eu abracei. Ironicamente, o player tocava “A mulher do fim do mundo” e então, finalmente, percebo que estou morrendo e se for pra morrer, que seja com tudo aquilo eu tenho direito. Começou. A roda de Santa Maria (de uma pessoa só) está aberta. Um, dois, três suspiros e a fumaça queima lentamente o coração. Um, dois, três goles e o veneno de maçã congela com a fúria do fogo da realidade. O ambiente queima, gira e uma leve brisa beija o meu FUNDADÇÃO CULTURAL DO PARÁ - CASA DA LINGUAGEM - LÊSTRADA
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rosto. Kali se aproxima e tira devagar a minha pele. O desespero surge, o quarto encolhe e o ar foge do meu peito. Era aquilo então, meu mundo está em chamas. Sob o torpor da esperança e da saudade, imploro para que a Deusa tenha misericórdia: “Minha Senhora, por favor, não destrua as lembranças daqueles que partiram”. Kali, sutilmente, sorri e afaga o meu rosto dizendo: calma minha menina, isso aqui é para o seu próprio bem”. Depois de ouvir tal preciosidade, observo a força de Kali destruindo o meu mundo, na esperança de nascer de novo e de novo. A astrologia sacana está certa. Finalmente, a lua está em Câncer.
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Teu cheiro, tua pele, tua forma é como o tecido desgastado do lençol da cama da minha mãe. Suave e nostálgico. Poderia eu, ao transbordar em ti, voltar pra casa?
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João Augusto, 18 anos, nasceu em Belém do Pará “quando tira o bigode, 10 anos de despacito”
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Cidade de Belém A cidade das mangueiras da chuva silenciosa da tarde da rivalidade entre Remo e Paysandu a cidade do Círio de Nazaré Repleta de histórias e mais sábia que toda ciência da terra a cidade do açaí e do tacacá que é conhecida no mundo inteiro A cidade que tem belos cartões postais como a famosa Praça Batista Campos a sagrada praça Santuário A cidade que tem grandes artistas Que fazem sucesso no Brasil Espalhando a cultura pelo país inteiro
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Uma alimentação saudável No Brasil, muitas pessoas tem uma alimentação bastante fora do equilíbrio, ou seja, uma refeição frita e a base de churrasco, hambúrguer, batata frita e muitos outros alimentos que fazem aparecer prejuízos na saúde das pessoas. A população precisa se conscientizar sobre os riscos que os usos em excesso de alimentos gordurosos causam para a saúde. O número de fast foods, atualmente, vem crescendo muito nas cidades, as lanchonetes criam anúncios especiais para chamar a atenção das pessoas e, principalmente, das crianças que são as principais consumidoras de todos esses riscos que podem fazer mal a saúde. Infelizmente, na maioria dos fast foods pelo mundo não existem nutricionistas para criarem cardápios para montarem uma alimentação equilibrada para as pessoas. Um país que futuramente pode ter o maior número de pessoas obesas do planeta, muitas FUNDADÇÃO CULTURAL DO PARÁ - CASA DA LINGUAGEM - LÊSTRADA
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pesquisas revelam que a população brasileira vem engordando nos últimos cinco anos. Por isso, tantas pessoas enfrentando problemas com colesterol e o vício em açúcar contribuindo para tantos casos de diabetes. Uma alimentação saudável proporciona qualidade de vida, pois faz nosso corpo funcionar adequadamente, respondendo a todas as funções e é uma das melhores formas de prevenção para qualquer doença. Talvez você já esteja cansado de ouvir a frase “você é o que você come”, porém é a mais pura verdade que precisamos aceitar.
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Julia Klautau Guimarães, 22 anos, nasceu em Belém do Pará “não tem vida que me resuma, não tem resumo que eu viva”
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Como é que pode o tal bicho me assustar desse jeito que não seja sob minha cabeça ou caçando um leito Que não o seu próprio pois como é o humor da vida quando brinca com a morte de pequeno ou médio porte Num era ele um lembrete do fim do caminho? num era ele uma estrela em movimento? num era ele o ciclo? Um símbolo? Mas aí é muita prepotência minha, fingir que eu não sei que tanto vale o meu resto, quanto vale um urubu morto no concreto
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Ele/Ela/Eu Não sou católica. Nunca pratiquei qualquer de seus rituais, a não ser na confusa infância. É quando imaginava que o referente Deus se personificava como uma versão mais gorda do meu avô, mas sem barriga de chope ou os óculos pendurados como um colar. Não tinha medo do vovô, mas temia Deus. Toda a culpa e vergonha que se gerava nos pecados ditos às crianças – desobedecer aos pais, às autoridades, usar palavras feias – se traduziam em suas sobrancelhas arqueadas, grosseiras e escuras, ainda que de tom acinzentado por conta da idade. Claro, era idoso, porque Deus era sábio, então Deus era velho. Isso explicava porquê todas as crianças ao redor eram nonsense, inclusive aquela minha versão pocket. Podia confiar nos adultos, mas não podia falar com estranhos. Adultos estranhos eram tipo os que tinham narigão? Os que eram muito altos? Cabeça maior que o corpo? Estanhas éramos nós, crianças, que aceitávamos baixar a guarda pra qualquer narigudo alto e cabeçudo. E se Deus fosse exatamente assim? Mas eu fingia que rezava, fingia que o amava acima de todas as coisas (acima dos meus brinquedos?! Sei lá quem é esse cara). Morria de medo nos momentos de oração na escola, caso o professor notasse que eu não estava concentrada em abrir um canal com os céus. Estava tentando tirar uma soneca FUNDADÇÃO CULTURAL DO PARÁ - CASA DA LINGUAGEM - LÊSTRADA
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de dois minutos. Morria de medo de vir uma anotação na agenda e meus pais descobrirem que eu estava meio perdida em relação a isso, mas para eles também era muito ok eu tremer no escuro por causa do bicho-papão, então acho que acaba sendo tudo a mesma coisa. Hoje eu tenho mais de 18 anos, então eu posso achar o que eu quiser. Posso ter medo do que eu quiser, mas toda essa liberdade não me impediu de ainda ficar doidinha quando me falam de divindade. Já passei por todas as fases. Deus velho e barbudo, decorar os dez mandamentos (nem que para isso eu tivesse que colar na eucaristia), canções para Nossa Senhora de Nazaré, promessa no Círio, preguiça de Círio, fome no Círio, livro de Alan Kardec, visita a João de Deus em Abadiânia (só para ele falar tão baixo a ponto de eu não entender nada), uns médiuns conhecidos da família, antidepressivo, vídeos sobre budismo, Stephen Hawking, teoria da relatividade, semiótica, todos os três filmes do Zeitgeist, ódio à caça às bruxas e os Illuminattis. Não é Deus, é Deusa. Tudo que ficou mesmo foi a minha desconfiança na maçonaria. Crença mesmo, continuo tendo no bicho-papão doido pra puxar meu pé.
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Pour Marie O rato fora avisado. Daqui a algumas horas, ele terá de se esconder em algum canto do terreno vizinho, impregnado de plantas e garrafas de plástico. Ou talvez devesse adentrar no terreno do outro lado da Casa, repleto de mato crescido e coqueiros, mas seria tão ou mais perigoso do que ficar onde está, no corredor lateral que dá entrada à Casa Vermelha. Ele sabe que, nestas horas, o melhor é ficar quieto e deixar o caçador cuidar de si, velar a Casa Vermelha de Salinas. O rato ainda precisa comer qualquer resto antes da chegada triunfal - e se mandar. A Casa Vermelha de Salinas abriga muitos animais. Principalmente gias, que disputam terreno com as osgas, lagartos, grilos e muita mosca. Rato só tem um, todo cinzento, porque saiu do terreno baldio do outro quarteirão quando neste fora construído um condomínio residencial. Eram muitas casas lado a lado; talvez vinte ou mais, mas tudo pariforme e logo repetitivo, ladeado por grades grossas e antipáticas. O pedaço de estrada frente ao condomínio fora devidamente asfaltado, mas passando uma esquina ainda era a primitiva terra vermelha. Essa estrada ainda parecia pertencer aos bichos que ali circulavam, na anarquia da terra que muito provavelmente virá a ser, no futuro, tomada pelos mesmos condomínios e asfaltos higienizadores, a lá civilisation. FUNDADÇÃO CULTURAL DO PARÁ - CASA DA LINGUAGEM - LÊSTRADA
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Nem sempre a Casa fora Vermelha. Antes de ganhar essa cor, era branca e não chamava tanto a atenção aos olhos, apesar de sempre ter sido extremamente aconchegante. Agora ela se destacava não somente pela nova pintura, mas pelos quase vinte anos que estava incorrupta naquele cantinho ao lado de muito mato. Dependendo do ponto de vista de quem andava na rua, porque essa não tinha nome e muito menos sentido de tráfego, ela era a primeira ou a última casa. Ficava num extremo, e só apenas casas, terrenos baldios e uma esquina depois, ficava o tal condomínio asfaltado. Um gato preto já tinha feito passagem nessa esquina vermelha, entrou na Casa pela lateral, subiu o muro de tijolos e se engraçou na muda de plantas. Lambia suas patas dianteiras com a calmaria de um felino sóbrio, mas talvez impulsionado pelo cansaço promovido pelo pico de adrenalina ao ter caçado sua última refeição. Um grilo de estimação, uma barata cascuda. Os animais mais tolerados por pessoas que passavam por ali eram o gato, grilo e osga, porque falavam que osga trazia boa sorte, e até que eram bonitinhas. O rato, não; rato traz azar, doença, coisa ruim. Tem rato que é bonitinho porque não é de rua (ratazana? Indico-lhes a contribuir com as definições de espécimes) e é criado por gente, do lado de gente, pertinho de gente, mas mesmo assim o aspecto dos roedores faz essa mesma gente tremer na base. Alguns passam mal, mas só se não parar pra pensar que, FUNDADÇÃO CULTURAL DO PARÁ - CASA DA LINGUAGEM - LÊSTRADA
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bem, o rato branco está limpinho, é inofensivo, então talvez seja merecedor de afeto. O mendigo rato cinza da Casa Vermelha de Salinas, não. Talvez fosse a mesma projeção que se faz com qualquer ser vivo que more nas ruas, nas estradas, nas principais via de acesso público e mal cuidadas, ainda que esses seres vivos sejam feitos de sua semelhança. Mas vai saber. O grilo que sempre vagava pela Casa Vermelha era grande e verde, as pernas alongadas como se esticassem seu destino a cada chão que pisava. A cada pulo desconfortável se reerguia com as anteninhas, contribuindo a este bulho de sons, de passarinhos e de grilos. O grilo canta alto e é quando ele faz sua plateia perceber que o cantor se esconde, em algum lugar dentro ou fora do seu próprio palco. Não dá para ignorar um grilo, um grilo verde e barulhento, cantor, encabulado demais para se preocupar mais com o cunho de seu estrelato do que com a obra. A música popular não pedia conteúdo, e o grilo era especialista em avaliar isso, pois nunca fora importunado enquanto cantava. Logo, devia ser bom. Devia ser algum calmante para a noite fria, quando seu principal rival, o gato presepeiro, já estava ora dormindo, ora em cima de algum muro alto. De dia, no entanto, o grilo permanecia nas coxias. Havia três ou mais gias pequeninas se engraçando nas paredes vermelhas da Casa. Como se apegar a um sentimento e entender esse sentimento na sua percepção FUNDADÇÃO CULTURAL DO PARÁ - CASA DA LINGUAGEM - LÊSTRADA
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física e pegajosa; dessa forma elas se atraem às paredes vermelhas da Casa, e passam a caminhar por elas durante todo o dia. Dividem as paredes com as duas osgas. Nunca houve guerra declarada entre gias e osgas, e nem haveria de ter. Como laços de amizade, ainda que velada, na democrática parede vermelha os anfíbios e os répteis davam trégua. Os cachorros haviam, portanto, se tornado o símbolo da apreensão na vizinhança. Se antes se via a figura dos caninos antigos, com seu pescoço alongado e sua postura dominante, a imagem do cão protetor e irmão, então esses animais já não admitiam a mesma aparência. Os vira-latas, diferentes dos outros bichos, eram apenas visitantes incômodos que chegavam para fazer balbúrdia - assim tão logo se instaurava seu reinado e eles sabiam disso. Podiam passar direto pela rua e nunca entrar nos terrenos, ou podiam vasculhar todos os cantos atrás de comida e entretenimento - e aí coitados dos pequenos animais. De qualquer forma, sua presença sempre era percebida. Diferente dos vira-latas, esse cão em especial era pequeno e aventureiro, e o rabo tão espichado quanto era sua coluna. A vida – ou como melhor se entende, sua utilidade em le monde des hommes - o tinha desenhado deste modo para que lhe fosse permitido invadir tocas de texugos. Essa invasão ainda era melhor habilitada por conta de suas patas dianteiras e traseiras, um quarteto FUNDADÇÃO CULTURAL DO PARÁ - CASA DA LINGUAGEM - LÊSTRADA
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de pequenas e gordas partes de uma locomotiva, que consistia tal velocidade cômica a um animal tão balofo. Desenvolto, caçador de recompensas, lhe foi reconhecido ainda um olfato apurado e desafiador, que lhe convidava a cheirar tudo em seu entorno. A descoberta do mundo pequeno do animal lhe soprava nas grandes e desleixadas orelhas os sons mais distantes, e a curiosidade se apossava do corpinho do cão. Ainda que já em avançada idade, era hiperativo, e só não o era quando encontrava um escaninho almofadado. Sonhava ainda em sua mais pura hiperatividade, porque a isso era quase impossível de renunciar em sua legítima natureza. Sonhava com todos os cantos que havia passado o focinho gelado e molhado, com cada arcano barulho que fosse detectado por suas orelhas. Repassava em sua mente um filme, e é sim possível de afirmar, os cães caçadores sonham com suas presas, pois movem as pernas enquanto fantasiam e soltam confinados latidos que só se realizam em roncos brutos. Incrivelmente faminto, nada podia atravessar seus olhos sem que os fizessem acender com resplandecência, encharcando-o de brilho ao menor sinal de pão. Ao caso de suas patas serem nanicas e sua coluna alongada, o grande problema era a quantidade de comida que ingeria. Afinal, se dependesse do cão, não acabaria a fartura e a fome seria fábula desconhecida. O peso sobre suas patas causaria dor insuportável, ainda mais para quem está tão acostumado FUNDADÇÃO CULTURAL DO PARÁ - CASA DA LINGUAGEM - LÊSTRADA
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a saltar e correr, e sua coluna poderia ceder. Por isso, o terror animal precisava de cuidados, e a sua sorte era não ser vira-lata - era um animal de compagnie. Tomados esses cuidados, com a garantia de sua segurança e vida próspera, quando cansava de beijos, lambidas e abraços, corria atrás de tudo que andava ou rastejava. É sabido pelos bichos das redondezas que um enorme lagarto fora morto por obra do tal cachorro, bem como diversas lagartixas e um passarinho, certo dia. Talvez por isso não precise mencionar que cada um que entrava na Casa Vermelha, quando o animal se hospedasse durante alguns dias, lá entrava por sorte própria, e a dura lição da vida selvagem era recontada pela eminência de seu destino. Pois quando o cãozinho chegou à Casa Vermelha, numa tórrida tarde de julho, nem mesmo os vira-latas ousariam tolher a mordomia do pequeno pedigree. Por sua lógica condição física, o cachorrinho iria atacar não somente determinados moradores da casa, como gias, osgas e pássaros que não pousassem tão próximos do chão - e ainda que voassem alto, certamente, ainda ouviriam os rugidos autoritários de um daschund fêmea, moleca, que desce do carro de viagem em posição de caça aos latidos com um aviso súbito: eu cheguei, mes amours.
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Lilian Carlen, 24 anos, nasceu em Santa Maria no Pará “eu achei que não conseguia mas sou habitada por tudo”
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o copo de água mata minha sede sede que mata
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segredo guardado guardo o segredo dado
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Minha amada vó minha querida quando eu te vi partir, minha dor foi tão grande que não consegui externalizar preferi deixar minha alma em ti e hoje eu sinto teu coração bater em mim
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Magali Andrade, 75 anos, nasceu em Belém do Pará “experimentei minha infância de novo nesses textos”
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O tempo corre tão veloz quanto a água do igarapé voltar pra casa é retornar ao abrigo das antigas cavernas
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Cidade de Belém Belém, atualmente, cidade difícil de aceitar Dado seus vários problemas que nos causa muita tristeza quando lembro como eras tão formosa Perdeste a fama de cidade das mangueiras visto que as árvores já não tem mais força para ficar em pé Não foi só isso outras belezas foram destruídas como retalhos ao vento Dói a cada um de nós a sensação é de náufrago no dia-a-dia da vida
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Marilene Nascimento, 38 anos, nasceu em Belém do Pará “cheia de energia como passarinho a cantar na escuridão”
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vazio por dentro ando pelo caminho curto
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Infância querida perto de meus pais brinquei de casinha fazer comidinhas um lar feliz a presença de Deus, quem me dera se toda infância fosse assim gostosa de se viver com inteligência e paciência, ah que saudade da minha infância querida onde descobri o lado doce da vida
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O tempo mais precioso é aquele que não é desperdiçado pelo sopro de um vendaval
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Naomi Menna Barreto de Vilhena, 17 anos, nasceu em Belém do Pará “olhar curioso procurando o mundo”
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minha casa é meio fora do comum mas recebe bem qualquer um fixo somos oito sem contar com meus cachorros minha casa transborda amor por qualquer lado que for não é de assustar se alguém de fora encontrar lá é tipo coração pequeno mas tem espaço de montão tem casa na árvore e jambeiro é resistência muito intensa eu amo a sua essência parece clichê mas minha maior referência é você! e tinha como não ser? você é amor, loucura e liberdade meu sonho é ser um pouco de você quando crescer é militância, luta e resistência é índio ribeirinho ou puta na tua casa não tem preconceito aprendi desde cedo casa que não é pequena quando chega é recebido com poema FUNDADÇÃO CULTURAL DO PARÁ - CASA DA LINGUAGEM - LÊSTRADA
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Silvia Cristina Campos do Nascimento, 40 anos, nasceu em Belém do Pará “olhar forte e disposto a atravessar o horizonte”
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chuva fresca cai meio fumaça fina
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No despertar de um lindo dia talvez minha cidade acorde do desprezo que ronda o espaço As autoridades que hibernam para o triste que vive no cenário de abismo das mazelas do lugar a cidade de frondosas mangueiras ainda respirando e tendo conforto de histórias valentes da massa acordada Assim vivemos tentando amanhecer nos olhares nas moradias da triste falta de cidadania
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Sira Sousa, 50 anos, nasceu em Portel no Pará “procura a si mesmo nas próprias palavras”
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Uma reflexão sobre o consumo Na sociedade capitalista o consumo de produtos alimentares é variável e indispensável para a manutenção do lucro e consumismo desenfreado faz parte dessa lógica. Essa busca permanente pelo consumo passa despercebida pela população, pois perdemos a noção do que é realmente necessário para a sua sobrevivência, enquanto, ser humano. Além disso, os meios de comunicação tem o papel fundamental ao divulgar essa busca exacerbada de produtos industrializados, os quais são postos cotidianamente nos supermercados, por exemplo: carnes, refrigerantes, café, chocolate, bebidas alcoólicas e etc. Por isso, algumas pessoas gastam mais do que ganham, isso pode prejudicar seriamente seu orçamento e acarretar em prejuízos, preocupações, stress e outras coisas que afetam a saúde. Logo essa “tendência” de comprar não é apenas uma fase de consumo ou desequilíbrio psicológico. O consumismo está entranhado na sociedade e por causa disso é indispensável refletir com responsabilidade e consciência sobre o ato de consumir. FUNDADÇÃO CULTURAL DO PARÁ - CASA DA LINGUAGEM - LÊSTRADA
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Belém cidade tão bonita porém esquecida pela governança vendida e tão sofrida A beleza é o forte vem lá do Forte que é aqui do Norte trás sorte Sorria Belém a noite já vem e eu me sinto tão bem aqui em Belém A lenta linda borboleta beija a flor
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Viviane Menna Barreto, 52 anos, nasceu em São Paulo “uma força para sonhar”
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quando a cidade some o tédio encolhe o rio cresce e eu me encontro
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Tempo
quando a terra vira passado a cidade só-linha o celular si-lêncio resta ser-eu transito intenso de mim no ir e vir deixo a realidade no porta mala e perco a chave
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Yasmin Melo, 19 anos, nasceu em Belém do Pará “queria cazuzar a vida”
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o vento vem o tempo vai a alegria sai
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Segregação alimentar na sociedade brasileira A sociedade brasileira, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia Estatística) mostra que 60% da população prefere comidas mais gordurosas na hora da sua alimentação, contudo, outra parte da população, como a apresentadora, de um programa de alimentação, Bela Gil optam por uma refeição saudável ou até mesmo vegana. Essa realidade de má educação alimentar já é comum nos Estados Unidos que é uma das populações que mais consomem produtos fast food, gerando assim uma dependência entre crianças e jovens no mundo todo. Dessa forma, muitos jovens brasileiros já estão acostumados com a ideia e consomem muitos produtos da MC Donald e da Coca-Cola causando nos mesmos um sobrepeso. É preciso um comprometimento dos país, educando a forma como o seu filho se alimenta, pois é dessa forma que os mesmos vão mostrar para essa criança que legumes e frutas são muito bons, portanto, a educação alimentar é um dever social que não só a criança possa comer bem, mas todos de sua família. Diante dessa realidade, o Governo deve aprimorar-se na questão da alimentação escolar, pois em algumas escolas ainda é comum ver as cantinas com lanches cheios de gordura que só aumentam a taxa de colesterol em crianças e jovens, portanto, a família é importante para uma boa formação alimentar, acostumando-os desde pequeno a comer bem.
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vida louca vida não me leva antes que eu te viva
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