Jornal Atelier Real - numero especial

Page 1

atelier real Fev/Mar 2011 www.atelier-real.org

ESTE NÚMERO ESPECIAL DO JORNAL DO ATELIER REAL PRETENDE NÃO SÓ FAZER UM BALANÇO, OU SEJA SERVIR DE DESFECHO SIMBÓLICO AO CICLO “RESTOS, RASTOS E TRAÇOS. PRÁTICAS DE DOCUMENTAÇÃO NA CRIAÇÃO CONTEMPORÂNEA”, MAS TAMBÉM PROLONGAR E COMPLEMENTAR ALGUMAS REFLEXÕES QUE FORAM DESENVOLVIDAS NO SEU ÂMBITO. AO LONGO DE QUINZE MESES, ENTRE SETEMBRO DE 2009 E NOVEMBRO DE 2010, FORAM ORGANIZADAS NOVE RESIDÊNCIAS ARTÍSTICAS PARA RECEBER, DESENVOLVER E APRESENTAR PROJECTOS ARTÍSTICOS – ESSENCIALMENTE DE NATUREZA EXPERIMENTAL CAPAZES DE REUNIR EXEMPLOS DE PRÁTICAS DE DOCUMENTAÇÃO, BEM COMO REFLEXÕES SOBRE ESSAS PRÁTICAS. DESSAS RESIDÊNCIAS RESULTARAM MAIS DE VINTE APRESENTAÇÕES PÚBLICAS, RESULTADOS PRÁTICOS DE INVESTIGAÇÕES, DE EXPERIMENTAÇÕES OU DE CONVITES DIRECTOS A ARTISTAS OU PROJECTOS COLECTIVOS. ESSES MOMENTOS PÚBLICOS FORAM SEMPRE ENTENDIDOS COMO PROPOSTAS ARTÍSTICAS DISCURSIVAS, OU SEJA COMO PLATAFORMAS DE REFLEXÃO E DE QUESTIONAMENTO MEDIADAS POR “OBJECTOS ARTÍSTICOS PARCIAIS”, FORMAL E INFORMALMENTE COMENTADOS. É NESSE MESMO ESPÍRITO QUE ESTE NÚMERO ESPECIAL TOMOU FORMA.


Restos, rastos e traços. Práticas de documentação na criação contemporânea Atelier Real. Setembro 2009 - Novembro 2010 TEHNICA SCHWEIZ (#) de Péter Rakósy e Gergely László (Hungria). 26 de Setembro de 2009, 18h00. NAME READYMADE (#) de Janez Janša, Janez Janša e Janez Janša (Eslovénia). 26 de Setembro de 2009, 21h30.

FORA DE CAMPO – Sobre o Arquivo de Cinema de Moçambique (*) de Catarina Simão (Portugal). [Projecto acolhido em residência entre 28 de Setembro e 6 de Dezembro de 2009] Apresentação pública, dia 28 de Novembro de 2009, 18h00, com a participação de Jorge Blasco Gallardo (Fundação Antonio Tápiés, Barcelona), Alex Arteaga (Universidade Humboldt, Berlim) e Ros Gray (Goldsmith College, Londres). Várias visitas guiadas aos documentos da investigação “Fora de Campo – sobre o arquivo de cinema de Moçambique” foram organizadas entre 28 de Novembro e 5 de Dezembro de 2009. THIS IS NOT THE DOCUMENTATION OF A PERFORMANCE (2010) (*) de Alexandra Ferreira e Bettina Wind (AlemanhaPortugal), com a colaboração dos performers Gonçalo Ferreira de Almeida e Ramiro Guerreiro. [Projecto acolhido em residência entre 23 de Novembro de 2009 e 24 de Janeiro de 2010] Apresentação pública, dia 23 de Janeiro de 2010, 19h00. No âmbito dessa residência, foi organizada uma série de apresentações de projectos artísticos e de projecções de filmes de artistas sobre documentação, intitulada “Archive Extended”: dia 8 de Dezembro de 2009: projecção comentada do filme Summer Camp de Yael Bartana, dia 15 de Dezembro de 2009: encontro com Renata Sancho à volta do filme Nuit de Chien, dia 22 de Dezembro de 2009: encontro com Pedro Barateiro à volta dos filmes Aprender de Cor e Travelogue, dia 5 de Janeiro de 2010: encontro com Pedro Lagoa à volta do projecto Archive on Destruction.

PROCESSO: QUEM É NOÉ SENDAS (*) de Noé Sendas (Alemanha-Portugal). [Projecto acolhido em residência entre 25 de Janeiro e 20 de Março de 2010] Apresentação pública (com a cumplicidade e participação de Andresa e Lígia Soares), dia 20 de Março de 2010, 18h00, seguida de uma conversa pública entre Noé Sendas e David-Alexandre Guéniot.

[Continuação página 59]


Atelier Real Fev/Mar 2011

Editorial

Documentação e apropriação

O tema “Restos, rastos e traços. Práticas de documentação na criação contemporânea” surgiu da actualidade e da multiplicidade de exposições e de projectos artísticos, portugueses e estrangeiros, que enunciavam uma vontade não só de reinterpretação, mas sobretudo de apropriação de conteúdos históricos, sociais e políticos, artísticos ou ainda biográficos (implicando também a possibilidade de desvios, de sabotagens ou de ficções desses conteúdos). Identificava a necessidade – da parte de artistas, comissários, programadores e espectadores – de produzir novas abordagens à questão da História, ou mais precisamente a necessidade de interrogar a forma como a História é definida, construída, relatada e monopolizada nas suas versões oficiais e autorizadas[1]. Transmitia assim a urgência de questionar não apenas a história passada, mas antes de mais a urgência de alargar a noção da história no presente, ou seja, de inscrever a sua construção na contemporaneidade; de a democratizar através de uma escrita anacrónica, não teleológica e plural[2]. A actual massificação e democratização do acesso aos meios de gravação, de publicação e de armazenagem de documentos em formato digital (textos, fotografias, sons, filmes) não se limitaram a arejar as nossas representações

do Arquivo, mas causaram literalmente a sua explosão. O Arquivo deixa de ser um lugar opaco, obsoleto, anacrónico, reservado a alguns investigadores, a historiadores autorizados a aceder a esses lugares sagrados da memória colectiva, para decifrar o seu sentido profundo[3]. O Arquivo – ou aquilo que hoje podemos considerar como uma nova configuração do Arquivo – é também um lugar sem centro, em crescente expansão[4], uma espécie de fórum aberto, desmaterializado, acessível a todos em qualquer altura. Consequência da desmaterialização do suporte físico de gravação e de armazenamento (papel, fotografia, banda magnética, etc.) e da separação entre conteúdo e suporte, a nossa concepção do documento (histórico ou outro) já não é a da peça única cujo conteúdo[5] se encontra intrinsecamente ligado ao seu suporte[6], mas a produção anónima de uma relação de cidadania. A ideia de « práticas de documentação » enunciada pela problemática do ciclo « Restos, rastos e traços » remete assim para a prática de apropriação de uma (H)história, enquanto possibilidade (democrática) de manipular o seu capital simbólico e de o transformar em ficção, quer dizer em outras (H)histórias.

David-Alexandre Guéniot

[1] Pelo Estado, através da construção de Arquivos Nacionais ou Municipais, da criação de Institutos e Academias; pelos historiadores e outros biógrafos “autorizados” (vs a democratização – para o bem e para o mal – das fontes de informação, com o aparecimento de plataformas de conteúdos de acesso livre, publicados por anónimos – não necessariamente especialistas – em Blogues, sites como Youtube, Wikipedia, ou mais recentemente Wikileaks). [2] Entendendo a historicidade não tanto como cursor de uma linha progredindo a uma velocidade constante (cronologia progressiva e implacável) mas como ponto de confluência de histórias/de factos/ de modos de representação (ideológicos, sociais, políticos, estéticos, científicos, geográficos, económicos, etc.) na qual passado, presente e futuro se misturam. [3] Este movimento é igualmente perceptível na forma como os dispositivos museológicos evoluíram. A prática de renovar regularmente a disposição das peças de uma mesma colecção tem por objectivo escapar a uma visão cronológica e estática que perpetuaria uma herança cientificamente validada, tal como a expressão “colecção permanente” parece sugerir. [4] Segundo após segundo, o Google publica o espaço de armazenagem gratuito disponível nos seus servidores como uma contagem decrescente invertida, quer dizer como conquista de um espaço ilimitado de armazenagem para novos conteúdos. [5] Um conteúdo não apenas mecanicamente reprodutível (Walter Benjamin) mas também acessível a todos em qualquer altura (à excepção contudo de certos países onde o acesso é controlado: China, Cuba, Arábia Saudita, entre outros). [6] Ligação intrínseca que determinaria a prova da sua autenticidade – e nos faz lembrar a definição ontológica da fotografia enquanto prova física da existência de um acontecimento – e da veracidade desse acontecimento. Não só “isto aconteceu” mas também “isto aconteceu tal como a fotografia o descreve”. A fotografia do acontecimento torna-se num duplo do acontecimento, na sua tautologia visual, no seu fac-simile.


04

O texto “Rests in Pieces” de Myriam Van Imschoot foi-nos sugerido por Paula Caspão – residente do ciclo com o projecto Drama (De)Vices, desenvolvido em parceria com Valentina Desideri – quando o ciclo se encontrava ainda numa fase de preparação e de reflexão à volta dos termos “Restos, rastos e traços”. Interessou-nos particularmente a abordagem feita à partitura coreográfica enquanto documentação do processo criativo, interrogando o arquivo enquanto lugar de fixação (paralisação?) objectivada da memória, ou, no caso da dança, da ideia de repertório. Este texto – inédito em Português – foi publicado pela primeira vez em 2005 na revista francesa Multitudes, aquando do debate sobre os modos de transmissão da dança, iniciado a partir dos anos 2000 na Europa.

Rests in Pieces Sobre partituras, notações e traços em dança

Myriam Van Imschoot

Não nos podemos esquecer que a Arkhè designa simultaneamente o começo e o comando. O termo coordena aparentemente dois princípios em um: o princípio da natureza ou da história, que é o lugar onde as coisas começam – um princípio físico, histórico ou ontológico – mas também o princípio da lei, que é o lugar onde os homens e os deuses comandam, o lugar onde se exerce a autoridade, a ordem social, o lugar a partir do qual a ordem é dada – um princípio nomológico. Jacques Derrida, Mal d’archive

No ensaio “Archives. Performance Remains”, a teorizadora da performance Rebecca Schneider põe radicalmente em questão a lógica do arquivo predominante na cultura ocidental. Schneider considera que o arquivo se encontra inscrito nos nossos hábitos, na medida em que nos compreendemos a nós próprios através da relação que mantemos com os restos que acumulamos. O arquivo é “um ‘campo operacional’ utópico de ‘conhecimento total sob a forma de projecção’ ”, a base a partir da qual a lei extrai a sua autoridade para “comandar”[1]. O arquivo não é apenas o guardião das “origens” professadas, mas também o guarda que policia: a sua prática de conservação é igualmente

uma questão de conservadorismo patriarcal. O seu abraço protector que guarda e alberga é simultaneamente um gesto normativo de restauração com a força de um imperativo. Em Mal d’archive: Une impression freudienne (1995), Jacques Derrida aponta para essa estrutura dual referindo-se às raízes etimológicas do arquivo, a “archè”, que tanto pode designar o começo como o mandamento. O livro de Derrida tornou-se numa referência importante na área da teoria da performance, pois tem implicações para a performance. Vista através da lente da lógica do arquivo, a performance é aquilo que não permanece, aparecendo assim como “perda”. Esta percepção profundamente enraizada explica o estatuto um tanto problemático atribuído à performance na cultura ocidental, uma reputação que partilha com a cultura oral em geral. É nesse sentido que poderíamos completar a ideia da estrutura dual do começomandamento a que Derrida faz referência com um terceiro valor: a condenação. Como dizia Leonardo da Vinci a propósito da música, que acreditava ser inferior à pintura, “Infortunée musique”, “qui périt aussitôt créée” (“Pobre música”, “que morre no preciso instante em que nasce”)[2]. Pensava-se então que a arte visual, por tomar forma de objecto tangível com permanência e durabilidade, era mais “avançada” que a música; por isso toda


05

a arte cujo médium é instável (o som, o gesto, etc.) e dependa de uma “interpretação” (ou “performance”, o termo inglês) para existir, era considerada como “une activité toujours à périr et toujours à recommencer” (uma actividade que constantemente desaparece e que tem de ser constantemente recomeçada). É à luz desta longa tradição de condenação que as artes da performance se têm frequentemente encontrado à procura da salvação. A música pôde ultrapassar o seu “infortúnio” e fazerse respeitar na exacta medida em que foi capaz de obter uma certa “tangibilidade” nos limites do objecto musical: a partitura. O seu apurado sistema de notação, desenvolvido ao longo de mais de 2000 anos e quase universalmente aplicado, assegurou-lhe uma estabilidade que se assemelha bastante ao modo de funcionamento do arquivo: consagrando uma “origem”, a composição, que em seguida se transforma em “mandamento” de todas as interpretações futuras. A partir do lugar da “escrita”, a partitura regularia e prescreveria a acção. Muito depois de o compositor ter morrido, podia assim assombrar como um espectro a vida póstuma da sua criação através da partitura, qual esqueleto de ossos descarnados à procura de nova carne[3]. Rebecca Schneider chama a atenção para esta polaridade entre os ossos e a carne, estabelecendo um paralelo entre o arquivo e os ossos. O arquivo fixa-se nos ossos, que constituem os restos após a decomposição da carne. O arquivo desvaloriza a matéria mole, o material maleável no qual as leis da entropia são mais claramente visíveis. Todo o arquivo é neste sentido igualmente um mausoléu, um túmulo que guarda as partes restantes, quer dizer, os ossos e não a carne. Durante muito tempo pensou-se que se a dança fosse capaz de adoptar o modelo da música prolongando-se num “objecto escrito”, seria igualmente capaz de sobreviver ao seu curto tempo de vida e construir uma base mais sólida para a sua história. Talvez as performances propriamente ditas continuassem a desaparecer, mas graças aos símbolos “crípticos” da notação as peças de dança poderiam ser reanimadas numa série perpétua de ressurreição. A partir do século XVII, circularam amplamente alguns sistemas de notação bastante avançados que tiveram seguidores mais ou menos convictos, tais como os sistemas desenvolvidos por Pierre Beauchamps (1636-1705) e por Raoul-Auger Feuillet (1675-1710) e, mais tarde, já no século XX, o sistema desenvolvido por Rudolf von Laban[4]. Retrospectivamente apercebemo-nos contudo que nenhum desses sistemas foi capaz de estabelecer um suporte duradouro ou suficientemente abrangente. Se procurarmos uma visão geral sobre as tentativas de produzir notações levadas a cabo por coreógrafos e fazedores de dança ao longo dos últimos séculos, o que vemos assemelha-se muito mais a uma espécie de “babelização” de instruções idiossincráticas do que a uma linguagem predominante aplicada amplamente por todos. Para alguns, o sonho de tornar a dança visível e indelével revelou-se pois como uma ilusão. Incapaz de fornecer os ossos, a dança permaneceria do lado de fora, no limiar do arquivo. Os seus praticantes não podiam praticar o amor necrófilo-arquivístico pelo resto (a carícia do vestígio ou dos ossos), mas compensavam essa perda através da recordação. A patologia de que padeciam não era fetichismo – substituindo o objecto (que de qualquer maneira nunca foi um objecto) perdido; encontravam-se antes fascinados pelo “Trauerarbeit” (trabalho de luto) do melancólico[5]. A razão pela qual uma grande parte do discurso da dança tem um tom elegíaco é esta tendência melancólica.

Atelier Real Fev/Mar 2011

Peggy Phelan, uma das mais conhecidas teorizadoras da performance e talvez a teorizadora da performance melancólica par excellence, escreveu no seu livro seminal de 1993 – Unmarked: The Politics of Performance – um texto apologético sobre a incapacidade da performance de se transformar num “objecto”[6]. O seu argumento não se distingue propriamente pela análise que faz da performance, que em termos ontológicos considera única, efémera e impregnada de perda, mas pelo valor positivo que atribui ao seu carácter evanescente. Em vez de deplorar a sua impermanência, a sua falta de durabilidade, Phelan celebra-a, defendendo que constitui a resistência política radical da performance. Por não poder transformar-se em objecto e ser reproduzida, a performance resiste à comodificação e consequentemente ao regime capitalista de exploração, pretende Phelan[7]. Esta posição deve ser valorizada, afirma a autora. O facto de se manter no limiar do arquivo e, in extenso, do mercado, obriga a performance a vaguear, a migrar como uma “vagabunda”. O seu movimento não é o da circulação de produtos nas cadeias de produção mas antes o dos rodopios e desaparecimentos; o movimento do esvaziamento, do derrame. O problema com a noção de performance enquanto desaparecimento promovida por Phelan é que não escapa afinal à trama da lógica do arquivo da qual procura desviar-se[8]. Já que é apenas nessa lógica que a performance é percebida como perda. Ironicamente para um posicionamento que professa a “salvaguarda”, o arquivo produz perda precisamente ao condenar toda a produção cultural que não venha a solidificar na tangibilidade de um objecto, e ao afastar a performance do seu campo de relevância ao ponto de a reduzir à aniquilação e a uma negação míope. No seu ensaio – “Archives. Performance Remains” – Schneider explora com maior profundidade estas relações intricadas entre o arquivo e a performance, que (tal como sugere o título deste texto) também deixa restos, quer dizer, se quisermos ver os seus traços. Enquanto Phelan valoriza a performance como desaparecimento, já que acontece uma vez só antes de entrar no campo mnemónico da memória, Schneider fala de performance como memória. E em vez de sublinhar a sua unicidade aponta para as transmissões de corpo-para-corpo, e para a forma como se caracterizam profundamente por uma prática de repetição. Mas mais do que escapar ao arquivo, a intenção de Schneider é alargar a sua esfera, de forma a salientar o valor tanto dos ossos como da carne. A carne – não como matéria passiva mas como campo relacional de interacção, de intensidades, técnicas, histórias, traços e vestígios de informação experienciada. A carne – com a sua própria história e genealogia. Podíamos pegar na linha de pensamento de Schneider e tentar perceber a sua relevância para a dança enquanto campo da performance em que a prática da “incorporação” e da “excorporação” de moldes físicos pela via da imitação e da repetição é ainda muito forte, já que não é apenas perpetuada na formação dos bailarinos, mas também constitutiva de muitos processos de criação em que os bailarinos aprendem copiando o material gerado, usando frequentemente o vídeo como ferramenta. Estes processos disciplinares requerem tecnologias de “leitura da imagem” e de escrita, pois o bailarino “lê” o corpo do mestre, a tonicidade dos músculos, a dinâmica das pulsações, etc., para poder formar (inscrever) a sua própria fisicalidade através da repetição e do ensaio[9]. É precisamente neste terreno instável de perpétua reconstituição (reenactment) e de desejo miméti-


06

co, que encontramos uma abertura para pensar outros tipos de arquivos, muito para além das preocupações imediatas da reprodução. Para além dos arquivos consolidados na arquitectónica da Casa da Lei enquanto depósito sedentário, poderíamos pensar nos intérpretes como corpos-arquivos móveis. Não como meros recipientes domiciliados, mas como ecologias metabólicas que compõem os traços vivos da experiência. Estas arquitecturas móveis de sedimentação não poderiam alinharse com a cultura fetichista dos ossos mortos, pois teriam antes que manter uma ligação de simpatia com os processos dos gazes e das fermentações, tal como se agregam no corpo.

A democratização efectiva mede-se sempre através deste critério essencial: a participação no arquivo e o acesso à sua constituição e à sua interpretação. Jacques Derrida, Mal d’archive

II. O que significa recolher e publicar partituras (scores) de dança no contexto do debate sobre a ontologia da performance, tal como tem vindo a esboçar-se neste texto? Ao longo dos últimos meses o artista plástico Ludovic Burel e eu encontrámo-nos com um conjunto de artistas que trabalham na área da dança, para discutir que uso é que fazem das partituras[10]. Qual é a visão implícita neste projecto? Que tipos de arquivos tínhamos em mente, assumindo a priori que existiam; que tipos de arquivos encontrámos ou produzimos? Que ficções procurávamos? Um dos primeiros artistas que o Ludovic e eu encontrámos em Paris foi Vincent Dunoyer, que trabalha como coreógrafo independente desde o final dos anos 1990. Para Solos for Others (2003), fez uma partitura fotográfica com 99 fotografias, que eram “copiadas” por ele e a seguir pelo jovem bailarino Etienne Guilloteau. Num primeiro momento, Guilloteau estava sentado e mostrava as fotografias a Dunoyer, levantando-as uma por uma seguindo uma ordem aleatória, antes de as atirar ao chão onde se espalhavam em desordem, de forma visível para o público. Dunoyer, o executador, olhava de relance para as fotografias e reproduzia de imediato as poses. O palco estava disposto de forma a criar uma alusão à instalação do estúdio fotográfico (com um background e uma luz forte). De uma maneira geral, a presença do “fotográfico” encontrava-se fortemente acentuada, como se Dunoyer quisesse sublinhar o facto de a auto-representação nunca mais ter sido a mesma a partir do momento em que o paradigma fotográfico fez irrupção na nossa cultura, no século XIX, tendo nomeadamente re-articulado a nossa imagem de nós próprios. Quando encontrámos Dunoyer em carne e osso (“en chair et en os”), pudemos ver mais de perto a partitura de fotografias, que trouxe à nossa entrevista dentro de um envelope castanho. Era uma pilha de fotografias em cartão, exibindo traços de terem sido frequentemente utilizadas ao longo dos tempos. Em todas elas Dunoyer se encontrava em roupa interior, reconstituindo “momentos” da sua própria história da performance: podíamos reconhecer a coluna de Steve Paxton curvando-se

em espiral, de quem Dunoyer copiou um solo improvisado (em Carbon); vestígios de danças de Anne Teresa De Keersmaeker, com quem dançou durante muito tempo; ou fragmentos de uma peça do Wooster Group que interpretou[11]. Na maioria destas “performances-fonte”, Dunoyer copiou movimentos de outros bailarinos ou coreógrafos. “O meu corpo é o meu trabalho”, disse-nos, e por momentos pareceu-nos uma máquina de assimilar que, ligada a um motor de desejo mimético, “incorpora” outros corpos. Seguindo a perspectiva de Schneider, poder-se-ia dizer que Vincent Dunoyer é um arquivo móvel comportando os vestígios vivos da sua memória física. Mas há que ter cuidado para não reduzir este stock vivo – gestos, acções, sons e imagens – ao nível da pura carne. O que negaria precisamente o facto de este corpo nunca ser “pura” carne, mas de se encontrar antes constantemente em extensão num elaborado circuito de tecnologias de todos os tipos. A carne nunca é um “porto” seguro de partida ou de chegada, nem uma história interiorizada que “pertencesse” a alguém; pelo contrário, a carne encontra-se em constante diálogo com outros modos de mediação. Tal como nos auto-retratos fotográficos, quem posa tem que se abandonar para poder “estar com” a câmara, para se apresentar como sendo o próprio (uma deslocação necessária para localizar o próprio como tal). Dunoyer tem vindo a oscilar entre uma série de dispositivos miméticos ao longo de mais de uma década – vídeo, fotografias, o olhar do espectador, outros corpos, etc. Os restos da sua história da performance eram de facto físicos, mas de uma fisicalidade sempre mediada e re-mediada, porque impregnada da existência de outros objectos, de outras relações e intermediações – humanas e não humanas. Mais tarde, quando Ludovic e eu visitámos outros artistas nas suas casas, estúdios, ou espaços de ensaio, tivemos a oportunidade de aprofundar esta compreensão mais complexa das práticas relacionadas com a dança, assim como dos seus restos. A prática da performance não se restringe a nenhum dos lados: o oral ou o escrito, os ossos ou a carne, os objectos ou os traços físicos. O que caracteriza a performance é um perpétuo enredo de todos estes planos de emergência, frustrando qualquer oposição binária. As próprias casas onde vivem são testemunhas disso; os objectos da performance fundem-se com o meio ambiente da vida de todos os dias. Uma mala de transporte de acessórios, tão comum em teatros, servindo de mesa onde se toma o café num ambiente doméstico, ou o acessório de uma performance anterior voltando a ser um sofá, ou qualquer outro objecto de uso quotidiano. Vídeos e dossiers empilhados em estantes, brochuras e notas amontoadas em pastas, recibos e facturas acumulando-se em redor, relembrando as despesas implicadas nas performances. As casas não são mausoléus sem vida, destinadas à comemoração, mas ambientes domésticos práticos onde se entrelaçam vidas pessoais e carreiras profissionais. Durante as conversas esquadrinhámos frequentemente as nossas memórias para recordar as performances que tínhamos visto, ou usámos a nossa imaginação para preencher as lacunas do que não tínhamos visto. Os coreógrafos entravam bastante naturalmente nos seus corpos-arquivos e procediam à demonstração de certos gestos, ou trauteavam as melodias que os tinham ajudado a memorizar movimentos (neenneeNaaaaHUPsakeenee; tatatatatata; dumdumWAITWAITdumdum).


07

Mas também consultámos computadores, visionámos DVDs, navegámos através de blocos de notas, e escutámos gravações em MiniDisc. Todas estas fontes de informação se encontravam já integradas num processo de mediação, de citação, de reciclagem, muitas vezes mudando de um modo para o outro. Falava-se sobre coisas escritas, e escrevia-se o que se falava, enquanto os corpos reconstituíam gestos, manipulavam objectos, entravam em circuitos de informação, activando experiências vividas anteriormente e novas imaginações em torno delas, etc. Procurar “partituras” neste contexto foi um desafio particular. Ao contrário do que acontece na tradição musical, a prática da dança nunca reservou estritamente o uso do termo “partitura” a um objecto específico, codificado numa notação em papel, indicando um corpo de trabalho que pode ser instanciado com grande rigor numa performance. E também nunca dependeu das leis de copyright e dos circuitos de distribuição para publicar e vender essas partituras. Até à data, na área da dança contemporânea só conhecemos um exemplo de uma partitura de dança publicada autónoma e oficialmente, sob a forma de um livro comercializável: Schreibstück (2002), do coreógrafo alemão Thomas Lehmen. De resto a maioria das partituras em dança não aspira a nenhuma forma de “autonomia” ou de “auto-suficiência”; são instrumentos de trabalho cujo uso é ad hoc, local, e que na maioria das vezes vão de par com acordos comunicados verbal ou fisicamente. Para além do mais, o termo inglês “score” cobre uma área de aplicações muito mais larga que o termo francês “partition” [ou que o termo português “partitura”], um facto que se tornou claro ao longo das nossas conversas. E que o coreógrafo francês Mark Tompkins levou ao seu sentido mais vasto ao definir a partitura, na sua prática de improvisação, como “determinação de um ou mais parâmetros para tomar decisões em plena acção”[12]. De forma semelhante, quando Lisa Nelson fala de Tuning Scores, não se refere de maneira nenhuma a uma partitura escrita, mas a um conjunto de acordos e de instrumentos partilhados que juntos constituem “um sistema de comunicação e de feedback para um grupo de jogadores”. Os bailarinos servem-se de “apelos” (“pára”, “vai”, “substitui”, “vira”, “repete”, “acaba”, etc.), que funcionam como ferramentas de edição e lhes permitem coreografar as actividades da performance sobre o terreno. Em certa medida, seguir uma partitura neste caso assemelha-se mais a um processo de aprendizagem e de reconstituição das “regras” de um jogo do que a seguir um conjunto unilateral e linear de direcções. O que não quer dizer que as partituras de dança não possam circular fora dos seus biótopos de trabalho; é sem dúvida o que acontece com algumas. Na Europa e nos Estados Unidos, por exemplo, há grupos de estudo constituídos por bailarinos que continuam a trabalhar com as partituras de Lisa Nelson, os Tuning Scores. Em 1996, William Forsythe utilizou um livro de desenhos preparatórios feitos pelo pintor barroco italiano Tiepolo como base de uma partitura para Daniel Larrieu, no Centro Coreográfico de Tours. Forsythe tinha rabiscado linhas, arcos e números nas reproduções dos desenhos do livro, que juntos formavam um enigmático quebra-cabeças que Larrieu e os seus bailarinos eram livres de interpretar. Forsythe mantinha-se entretanto em diálogo com o grupo, por fax. A coreografia-àdistância que resultou deste intercâmbio, Hypothetical Stream, veio igualmente a gerar outras versões pelo Ballett Frankfurt e pelos estudantes da escola de dança PARTS, em coordenação

Atelier Real Fev/Mar 2011

com Elizabeth Corbett, ex-bailarina do Ballett Frankfurt.No mesmo género, temos também a partitura que Antonia Baehr concebeu para Holding Hands (2001), a primeira peça de uma trilogia de pesquisa sobre a emoção, que foi igualmente utilizada por outros artistas, nomeadamente por Sophia New e Petra Sabisch[13]. Após Schreibstück, Thomas Lehmen desenvolveu sistemas baseados em parâmetros (de natureza “autopoiética”, em analogia com a teoria dos sistemas de Niklas Luhmann), que reuniu numa caixa, Funktionen (2004); servem como kit de ferramentas para qualquer pessoa que se sinta inspirada para delas fazer uso. No entanto, a partir do momento em que se afastam da proximidade imediata do coreógrafo, estas partituras entram numa vasta gama de implementações possíveis, desde tentativas para se manter tão fiel quanto possível à prática de onde emergem, a aplicações livres, e até a audaciosas versões pirata. Mas na maioria dos casos as partituras caracterizam-se fundamentalmente pela contiguidade e pela relação metonímica entre os instrumentos e os executantes: directa ou indirectamente, com mímica ou com malícia, veneradas ou invertidas, as partituras são um traço de, e um retorno a uma praxis. Metaforicamente, porque nos ligam ao corpo e aos seus modos de reconstituição, poderia dizer-se que as partituras são centros neurológicos de indeterminação numa rede sináptica mais vasta onde a informação dispara. As partituras podem ainda proliferar de uma outra maneira: emergindo na arena pública da própria performance. Na realidade, o que caracteriza muitos dos usos que se fazem actualmente das partituras é o facto de as deixar penetrar na ordem da performance. Consequentemente, a partitura deixa de ser uma receita escondida, o esquema “obscuro” que guia e determina secretamente a “coisa” de uma vez para sempre – qual mágico de Oz, por detrás dos panos. Pelo contrário, em muitos dos trabalhos recentes os intérpretes mostram as suas interacções com a partitura e apontam para as condições de emergência específicas das suas acções, em vez de alimentar a ilusão de que o movimento vem unicamente de uma profunda fonte interior. Por vezes isto passa-se de forma bastante subtil, como quando a partitura se encontra presente enquanto índex, sugerindo um conjunto de combinações mais amplo. Por exemplo, em performances de Myriam Gourfink tais como Contraindre (1993), as partituras são integradas na cenografia em ecrãs de computador; e em certas peças de dança de Anne Teresa De Keersmaeker os bailarinos seguem esquemas marcados no chão, fornecidos pelo seu amigo compositor Thierry De Mey. Em Après-Midi (2003), uma proposta de Antonia Baehr, William Wheeler e Henry Wilt, quatro intérpretes do sexo feminino sem experiência de Drag são convidadas para executar em Drag as instruções que ouvem nos auscultadores de um MiniDisc[14]. Em certos momentos durante a performance o público ouve fragmentos dessas instruções em voz alta e pode observar a relação entre a “instrução” e a actividade da performance que está a decorrer. Em Both Sitting Duet (2002), Jonathan Burrows (um coreógrafo inglês) e Matteo Fargion (um compositor inglês) decidiram levar a partitura para o espaço do espectáculo. Interpretaram a dança com os livros em frente, assemelhandose muito a músicos, que nos concertos utilizam as partituras como suportes da memória. Outras vezes as partituras ultrapassam a indexação subtil e tornam-se fontes completamente acessíveis e compreensíveis, para que os espectadores e os intérpretes partilhem a mesma


08

informação. Em The Show Must Go On 2 (2004) Jérôme Bel revela o script que está por trás da peça. Reorganiza as letras do título da peça como se participasse num jogo de Scrabble, e a cada nova palavra que aparece (por exemplo, “s t u n t m a n”, “s h o w m e n”) o bailarino Frédéric Seguette executa uma acção correspondente. É interessante notar que Seguette nunca se lança na acção imediatamente a seguir, mas deixa a palavra que acaba de ser composta ressoar durante uns instantes. Desta maneira transforma o espectador num co-actor que pode também seguir o script e imaginar uma acção. O script transformase então numa partitura tanto para os intérpretes como para o público. Thomas Lehmen deseja igualmente que o público tenha um acesso completo à partitura, que pode inclusive ter na mão enquanto vê a performance de Schreibstück[15]. Segundo Lisa Nelson, uma tal “partilha” democrática das ferramentas ajuda o público a afinar a sua observação: “Quando a inteligência do sistema aparece pode ser muito divertido”. Afinal o objectivo não é a partitura em si (a sua execução), diz, mas o que produz e facilita. As partituras não são sistemas a cultivar enquanto tal, mas enquanto “generatrix” para fazer acontecer e para observar mais interacções complexas. Algumas das partituras com que o Ludovic e eu nos cruzámos durante estes generosos encontros com os artistas foram publicadas na secção “Icônes” da revista francesa Multitudes (2005, n°21). Para esta publicação optei por uma pequena selecção, e talvez seja o suficiente. Há sempre algo de enganador em publicar tais materiais, porque apesar de muitas destas partituras e notações terem uma qualidade estética, o objectivo não é mistificá-las e transformar “documentos (...) em monumentos”[16], “exilados da prática (…), extraindo-os da sua esfera [1] Rebecca Schneider cita Richard Thomas (1993), The Imperial Archive: Knowledge and the Fantasy of Empire, New York, Verso, p. 11. [2] Citação �������������� de Antoine Hennion, Paragone ou parallèle des arts, p. 13 – reeditado na edição de André Chastel do Traité de peinture, Paris, Berger-Levrault, 1987, p. 96. [3] Em The Rational and Social Foundations of Music, o sociólogo alemão Max Weber relaciona este desenvolvimento observado na música com um processo de racionalização predominante na cultura ocidental. O desenvolvimento dos sistemas de notação (entre outros) estandardizaram e estabilizaram a prática musical, culminando com a ditadura da partitura no século XIX. À medida que os compositores derrotavam o reino dos intérpretes musicais, a improvisação desaparecia da performance e as fronteiras entre a composição e a interpretação, que antes eram fluidas, solidificavam. [4] O primeiro manuscrito conhecido de notação em dança foi encontrado nos arquivos municipais de Cervera, em Espanha, e data da segunda metade do século XV. Louis XIV revelou um firme interesse pelo desenvolvimento de um sistema de notação para a dança, estimulando vários mestres de ballet a desenvolver um modelo, a partir do século XVII. Esta ligação histórica entre notação e controle estatal confirma a tese de Weber sobre a racionalização, e consequentemente da burocratização. Para uma visão mais alargada sobre a notação consultar Laurence Louppe (1991) e Ann Hutchinson Guest (1998). [5] Para um texto seminal sobre a melancolia ver Sigmund Freud. [6] Peggy Phelan: “A única vida da performance situa-se no presente. A performance não pode ser guardada, filmada, documentada ou participar na circulação de representações de representações: a partir do momento em que o faz transforma-se em algo diferente de uma performance. Quando a performance tenta

de utilização”[17]. Trata-se ao contrário de acrescentar a estes documentos da performance outras possibilidades de extensão, de (re)emergência e de acesso, à medida que vogam para dentro e para fora de contexto(s), fazendo ressoar as suas existências múltiplas.

NOTA Este texto foi escrito em inglês no original e publicado pela primeira vez em francês, como ensaio introdutório a uma publicação de partituras editada pelo artista Ludovic Burel e por mim, na revista francesa Multitudes (Primavera de 2005, n°21). Todas as partituras são originárias de práticas de dança e de performance então recentes, seleccionadas após uma série de conversas com um grupo de artistas. Por ocasião da presente publicação o texto foi ligeiramente modificado. Não actualizei o texto em termos de referências a práticas artísticas, nem em termos da literatura cada vez mais extensa que se encontra entretanto disponível sobre o arquivo. Desta forma o texto torna-se ele próprio num documento, indexando um tempo e um contexto específicos, pronto a entrar em novas alianças.

Agradecimentos Gostaria de agradecer aos artistas a generosidade, as partituras e o tempo que nos consagraram: Susanne Beggren, Amos Hetz, Myriam Gourfink, Vincent Dunoyer, Antonia Baehr, Thomas Lehmen, Tom Plischke & Kattrin Deufert, Thierry De Mey, Anne Teresa De Keersmaeker, Heike Langsdorf, Elizabeth Corbett, William Forsythe, Lisa Nelson, Jonathan Burrows, Matteo Fargion, Jérôme Bel.

integrar-se na economia de reprodução, trai e reduz a promessa contida na sua própria ontologia. O ser da performance, tal como a ontologia da subjectividade que aqui propomos, só existe através do seu desaparecimento.” (p. 146) [7] “A performance recusa este sistema de produção e resiste à economia de circulação que o sustenta.” (p. 149) [8] Um outro problema, gostaria de assinalar, é que este argumento subestima a perversão do capitalismo tardio, que é capaz de comodificar o “efémero” envolvendo-o numa máquina promocional, em fórmulas e formatos que vendem o evento precisamente como um “evento único”. [9] Jogo aqui com o duplo sentido do termo “mestre”: enquanto figura autoral (poderíamos sem dúvida problematizar os constantes perigos das transmissões de corpopara-corpo, com as suas idolatrias míticas do “paradigma do mestre”); e enquanto “cópia mestra”, a primeira “captura”, que determina as suas futuras interpretações. Para uma teoria neo-materialista da repetição, como moldagem de identidades a partir de uma perspectiva feminista, ver Judith Butler. [10] Encontrámo-nos com Myriam Gourfink (5 de Fevereiro de 2005), Mark Tompkins (6 de Fevereiro de 2005), Christophe Wavelet (6 de Fevereiro de 2005), Vincent Dunoyer (6 de Fevereiro de 2005), Thomas Lehmen (12 de Março de 2005), Antonia Baehr (12 de Março de 2005), Kattrin Deufert & Tom Plischke (13 de Março de 2005), Susanne Beggren (16 de Março de 2005), Thierry De Mey (28 de Março de 2005), Heike Langsdorf (28 de Março de 2005), Elizabeth Corbett (29 de Março de 2005), Lisa Nelson (29 de Março de 2005), Matteo Fargion (10 de Abril de 2005) e Jonathan Burrows (14 de Março de 2005). Todas as citações ou ideias referenciadas nesta secção provêm destes encontros/entrevistas. [11] Em 1997 Dunoyer interpretou 3 Solos for Vincent

Dunoyer, série coreografada para ele por Elizabeth Lecompte, membro de The Wooster Group (“Dances with TV&Mic”), Steve Paxton (“Carbon”) e Anne Teresa De Keersmaeker (“Solo for Vincent”). Entretanto re-utilizou fracções deste material coreográfico na instalação baseada em fotografias Etudes #31 (1999), em colaboração com Mirjam Devriendt, com música de Conlon Nancarrow. [12] Esta descrição surgiu durante uma conversa em Paris, em 6 de Fevereiro de 2005. [13] No âmbito de “Hors-Séries” em Montpellier, em Dezembro de 2004. Num email datado de 26 de Abril de 2005, Antonia Baehr escrevia: “Uma vez que a estrutura de Holding Hands é uma ‘aprendoria’ [apprentorship (sic)], quis tentar ensiná-la a outros, e também percebê-la de fora ao menos uma vez. O resultado foi muito agradável, ver que esta partitura pode ter uma vida própria e pode existir sem a mamã ou o papá.” [14] A carta convidando as intérpretes dirige-se de facto ao seu “desejo”: “É preciso que tenhas o desejo de te vestir de homem e de ser tomada por um homem. O ideal seria que fosses um Drag King com experiência, mas podes também ser um Drag em potência, ainda por nascer. E nesse caso o Drag King Werner Hirsch (aliás Antonia Baehr) terá muito prazer em ajudar no parto. (…) É preciso que tenhas o desejo que te digam o que fazer durante 32 minutos da tua vida, pois a peça não é ensaiada; as intérpretes ouvem as instruções em auscultadores.” [15] Nesse sentido, a primeira frase do livro Schreibstück é bastante significativa: “É um livro de trabalho para coreógrafos, bailarinos, apresentadores, e ao mesmo tempo é um livro para a versão de Schreibstück que cada pessoa imaginar.” [16] Michel Foucault, p. 7. [17] Michel de Certeau, p. 73.


09

Atelier Real Fev/Mar 2011

Bibliografia Baehr, Antonia & William Wheeler e Henry Wilt, “Letter to Interpreter”, versão manuscrita, 2003. Butler, Judith, Bodies that Matter. On the Discursive Limits of ‘Sex’, New York: Routledge, 1993. Burrows, Jonathan, “Time, Motion, Symbol, Line”, Eye magazine, issue 37 vol. 10, Autumn 2000, p. 30-37. Butt, John, “Performance on Paper. Rewriting the Story of Notational Progress”, in Acting on the Past. Historical Performance across the disciplines, ed. M. Franko & A. Richards, Wesleyan University Press, 2000. De Certeau, Michel, The Writing of History, New York: Columbia University Press, 1988 (trad.Tom Conley). Derrida, Jacques, Mal d’archive, Paris: Editions Galilée, 1995 (trad. Eric Prenowitz, Archive Fever. A Freudian Impression, The Johns Hopkins University Press, 1995). Foucault, Michel, The archeology of Knowledge and the Discourse on Language, New York: Pantheon Books, 1972 (trad. A. M. Sheridan Smith). Freud, Sigmund, “Mourning and Melancholia”, Collected Papers, ed. e trad. Joan Riviere. Vol. 4. New York: Basic Books, 1959 [1917]. Hennion, Antoine, “Infortunée musique, qui périt aussitôt créée…”, Marsyas, n° 34, juin 1995, 13-17. Hutchinson Guest, Ann, “Notation”, in International Encyclopedia of

Thomas Lehmen, Funktinen (2004). Funktionen é um kit de ferramentas desenhado por Katrin Schoof/Gabi. Berlin, e editado por Sven-Thore Kramm e William Wheeler. O kit consiste numa série de cartões que permitem realizar partituras, tarefas, e outros sistemas. Funktionen contém três sistemas coreográficos diferentes: Categorias, Mais valia..., e Funções. As fotografias são da autoria de Thomas Lehmen. Para mais informação consultar http://www. thomaslehmen.de

Dance, vol. 4, Oxford, New York: Oxford University Press, 1998. Kobialka, Michal, “Historical Archives, Events and Facts. History Writing as Fragmentary Performance”, Performance Research, 7 (4), 3-11. Lehmen, Thomas, Schreibstück, Berlin: Thomas Lehmen, 2002. Lehmen, Thomas, Funktionen, Berlin: Thomas Lehmen, 2004. Louppe, Laurence, Danses Tracées. Dessins et Notations des Chorégraphes (catalogo da exposição em Les Musées de Marseille, 1991). Phelan, Peggy, “The Ontology of Performance. Representation without Reproduction”, in Unmarked. The Politics of Performance, Routledge,1993. Schneider, Rebecca, “Archives. Performance Remains”, Performance Research, 6 (2), 100-108, 2001. Richard Thomas, The Imperial Archive: Knowledge and the Fantasy of Empire, Verso, 1993. Wavelet, Christoph, “Quel corps? Quels savoirs? Quelles transmissions?”, Marsyas, n° 34, juin1995, p. 39-44. Weber, Max, Die rationalen und sozialen Grundlagen der Musik, Tübingen: J.C.B. Mohr, 1921 (traduzido com o título The Rational and Social Foundations of Music, trad. e ed. Don Martindale, Johannes Riedel e Gertrude Neuwirth, Carbondale: Southern Illinois University Press, 1958).


10

Jonathan Burrows e Matteo Fargion, Both Sitting Duet (2002). Sentados face a dois cadernos dispostos no chão à vista do público, o coreógrafo Jonathan Burrows e o compositor Matteo Fargion executam durante 45 minutos uma partitura de dança concebida a partir de um tema musical de Morton Feldman. A mesma peça coreográfica é interpretada em dois sistemas de notação diferentes, cada um deles em função do background dos performers. Em cima: Fotografia da partitura de Matteo Fargion. Pelo fotógrafo da revista Multitudes. Em baixo: Fotografia da partitura de Jonathan Burrows. Pelo fotógrafo da revista Multitudes. Para aceder a mais partituras e a mais informação consultar www.jonathanburrows. info


11

Jérôme Bel, The Show Must Go On 2 (2004). Numa lógica anagramática, Jérôme Bel recombina as letras – impressas em formato A4 – compondo a frase The Show Must Go On 2 de forma a constituir palavras como S-T-U-N-T-M-E-N (Duplo – em vocabulário cinematográfico), ou sequências de palavras (S-U-N / H-O-T, etc.), que o bailarino Frédéric Séguette executa no palco. Fotografia de Multitudes.

Atelier Real Fev/Mar 2011


12


13

Páginas 12, 13, 14 e 15 Antonia Baehr, AprèsMidi (2003-2005). AprèsMidi é uma performance baseada numa partitura escrita para bailarinos não profissionais, a última de uma trilogia sobre as emoções {com William Wheeler). Páginas 12 e 13: Desenho-Partitura realizado a partir dos contornos de uma fotografia evocando L’Après-Midi d’un faune de Claude Debussy. Páginas 14 e 15: Desenho-Partitura elaborado a partir de posições tiradas de fotonovelas (Lissy n°8/01, história em fotografias ‘Auf den Hund gekommen’ e Bravo n°8/02, ‘Foto-Love Story Extra’).

Atelier Real Fev/Mar 2011


14


15

Atelier Real Fev/Mar 2011


16

1

2

3

Vincent Dunoyer, Solo for Others (2003). Obra para dois bailarinos e um pianista, ao som de um tema de Beethoven. Mirijam Devriendt realizou as noventa e nove fotografias que comp玫em a partitura de fotografias que Vincent Dunoyer e Etienne Guilloteau reproduzem sucessivamente no palco, seguindo uma ordem aleat贸ria. 1,2,3: Fot贸grafa: Mirijam De Vriendt. 4: Captura de imagem v铆deo de Solo for Others.

4


17

Páginas 17, 18 e 19 William Forsythe, Hypothetical Stream (1996). Excertos de um livro de desenhos de Tiepolo anotados e comentados por William Forsythe, que serviram de partitura base a uma coreografia de Daniel Larrieu. Outras versões de Hypothetical Stream foram posteriormente realizadas pelos estudantes de PARTS, sob a direcção de Elizabeth Corbett.

Atelier Real Fev/Mar 2011


18


19

Atelier Real Fev/Mar 2011


20

Por razões independentes da nossa vontade, a residência artística de Simon Bowes ficou reduzida a alguns dias. A ideia era desenvolver um projecto original (dramaturgia e performance) intitulado If. Esse projecto consistia em trabalhar com um arquivo de fotografias de família onde aparecem pessoas de quem a própria família não conhece os nomes. “Estas pessoas pertencem ao Outro, ao Antigo Mundo, ao mundo antes de nós, quando não éramos mais do que uma possibilidade”. Projectava assim trabalhar sobre o evento da ausência. Simon Bowes acabou afinal por apresentar – em companhia do seu pai – o projecto “Where We Live & What We Live For” e aproveitou a oportunidade para trabalhar na redacção de um texto que agora publicamos. Esse texto serve de extensão teórica ao projecto “Where We Live & What We Live For” e propõe uma abordagem literária das questões ligadas à documentação/ficção biográfica e à sua representação/performatividade teatral.

Algumas notas sobre performance e documentação [a propósito do projecto “Where We Live & What We Live For” apresentado no Atelier Real, 19 de Junho de 2010]

Simon Bowes A introdução: No seu livro E os nossos rostos, meu coração, breves como fotos, John Berger cita o poeta russo Yevgheny Vinokurov: “Um dia gostava de escrever um livro / um livro só sobre o tempo / sobre como não existe / acho que toda a gente, a que vive, a que já viveu, e a que há-de viver / está viva neste momento / gostava de reduzir o assunto a pedaços, como um soldado a desmontar a espingarda.” [1] Esta será uma apresentação fragmentária de uma peça que concebi e apresentei com o meu pai entre 2008 e 2010. Ele tinha 73 anos aquando da primeira apresentação (Battersea Arts Centre, Londres, Setembro de 2008) e 75 por altura da última (Atelier Real, Lisboa, Junho de 2010). Intitulámo-nos “Kings of England” [Reis da Inglaterra], e chamámos ao espectáculo “Where We Live & What We Live For” [“Onde vivemos e por que vivemos”]. Enquanto eram negociados os prazeres e as dificuldades de fazermos uma performance juntos, quis escrever e reescrever uma história familiar: especular sobre o que não podemos saber do nosso passado, e criar um documento desse gesto especulativo. Depois de Berger, depois de Vinokurov, quis escrever um livro, um livro todo ele dedicado ao tempo. Estas notas, tal como a performance sobre a qual reflectem, são um rascunhoem-pedaços: esboços tentando ir um pouco mais além nessa eventual possibilidade.

Muitas destas notas foram ensaiadas entre os dias 14 e 21 de Junho de 2010, durante a residência no Atelier Real, parte no papel, parte em actos performáticos. Foram editadas num Domingo de Agosto em Leytonstone, no lado Este de Londres. Primeira nota: “Tempo Perdido & Não Contado”: o trabalho fez-se em resposta ao tempo perdido, a um momento não lembrado (não esquecido, mas antes nunca conhecido), um momento do qual o meu pai não pôde dar-se conta. Segunda nota: “Ficções”: post de um blogue que escrevi em Agosto de 2008, o primeiro deste processo de trabalho: “Tenho vindo a falar com o meu pai a propósito de criar uma companhia em que ele e eu somos os principais inventores e intérpretes. Ontem chegámos a um acordo e hoje intitulámonos “Reis da Inglaterra” [Kings of England]. Por agora estamos só a montar o esquema para ter algum dinheiro, mas entretanto fazemos o nosso caminho modestamente. Uma conversa que tivemos há umas semanas atrás, quando estava a pesquisar, levou-o a citar-me a passagem seguinte de Writing home [Escrever para casa], de Alan Bennett: ...as monótonas distorções causadas pelo tempo, em frases que soam correctas mas que não o são… Disse: Olha, não


21

Atelier Real Fev/Mar 2011


22

sei, não me lembro; e a seguir: esquecemo-nos sempre do que é mais importante, as coisas de que não conseguimos lembrar-nos acabam por ser as que nos ficam[2]

respostas mas permite que a força de cada resposta diferente interrompa constantemente o sucesso do encerramento (Peters, ibidem).

O que, no essencial, é aquilo de que trata o nosso primeiro trabalho – as ficções que terão de ocupar o lugar dos factos, caso ocorra algum esquecimento[3].

Investigar e errar seriam semelhantes. Errar é mudar e voltar a mudar, é entregar-se à magia do desvio (mudar… é) o movimento próprio à investigação (Blanchot[7])

Terceira nota: “O Salto e A Queda”: 1958: O meu pai, antes de ser meu pai, saltou de um rochedo para o mar. A fotografia apanha-o a meio do caminho. 2001: o meu pai, a passear de bicicleta com a minha mãe nas colinas perto de casa, sofreu um acidente isquémico transitório (uma espécie de pequeno derrame). Caiu da bicicleta e durante uma hora não conseguia lembrar-se onde estava, ou como é que tinha ido ali parar.

Tal como a vejo, a investigação performática tem muito pouco a ver com maestria, e muito mais a ver com receptividade às contingências e circunstâncias de fazer performance. Considero a performance como um modo de investigação na medida em que acolhe o desconhecido e a indeterminação. A filosofia ética de Emmanuel Levinas propõe reconhecer neste acolhimento o começo da subjectividade, e eu por vezes tento usá-la como provocação para a performance. Por isso acrescentaria ao uso que Peters faz de Blanchot uma citação de Emmanuel Levinas:

Quarta nota: “Sem Tempo e Sem Lugar”: Durante a sua Hora Perdida teve a minha mãe para confortá-lo, e ela tentou explicar-lhe a situação em que estava (embora não soubesse o que se passara no cérebro dele, sabia onde estavam, qual era a paisagem, e o percurso que tinham feito para chegarem ali). Dessa Hora Perdida não existe documento. Tampouco uma recordação em primeira-mão. Tudo o que sabemos dessa hora é a recordação que a minha mãe tem dos exercícios que tentou pôr o meu pai a fazer, para ele recuperar: “Quantos dedos tenho na mão?”, “Diz a tabuada do três”. Enquanto artista-performer (ou dúbio académico), gostaria de considerar que o meu pai estava, ali naquele momento, sem tempo e sem lugar, incapaz de reconhecer aquilo que o rodeava. Estava noutro lugar. Quinta nota: “A Recuperação”: “Depois da queda anda cada vez mais esquecido, e o espectáculo é uma tentativa modesta de lhe devolver algo, ou de lhe mostrar aquilo que deixou para trás. Temos tentado recuperar esta hora perdida, juntar o espaço do salto (que foi voluntário) ao espaço da queda (que não foi), de maneira a trazê-lo de volta em segurança e a celebrar o momento em que se apercebeu que tinha sobrevivido. Criar um espaço de jogo e de suposição, inventar o que não pode ser lembrado. Juntos tomamos em linha de consideração o amor, a perda, a felicidade e a maneira de melhorar com a idade.” Simon Bowes, Kings of England (notas do programa “Where We Live & What We Live For”, 31-09-2010). Sexta nota: “Sobre Investigação”: Mais ou menos a partir da viragem do século tem havido um movimento[4] para reconhecer os processos criativos de performance como metodologias de investigação[5]. Através deste discurso, Dr. Gary Peters deu uma definição de investigação artística deveras provocadora. Citando um vocabulário desenvolvido pelo escritor Maurice Blanchot, Peters pretendeu redefinir a noção de (uma fria) maestria artística fazendo-a acolher a fragmentação e a interrupção. Peters considerou que: O mestre está destinado… não a polir o campo das relações, mas a perturbá-las, não a facilitar os caminhos do conhecimento, mas sobretudo a torná-los, mais do que difíceis, verdadeiramente impraticáveis[6]. … o desejo de certeza não se impacienta a apressar as suas

A ética [a performance] nunca foi ou é coisa nenhuma. A ética [a performance] não tem essência; a sua ‘essência’ é por assim dizer precisamente o facto de não ter essência, é perturbar as essências. A sua ‘identidade’ é precisamente não ter identidade, é desfazer identidades.[8] Penso no meu pai, antes de ser meu pai, a saltar do rochedo para o mar. Sétima nota: “O Acontecimento e O Seu Registo” (1) Trabalho de Outra Pessoa: Debbie Pearson, uma artista canadiana sediada em Londres, mostrou recentemente um trabalho-em-curso chamado “Tal como eras antes” [Like you were before].[9] A artista senta-se numa cadeira de baloiço entre dois monitores de vídeo. Do lado esquerdo do palco, o plano geral de uma viagem de comboio. Do lado direito, um vídeo dela com alguns amigos, feito há uns anos atrás, no dia em que comprou uma câmara de vídeo. “Agora”, diz ela com as palavras que disse “então”. Fala do quanto adora novas amizades (novas amizades com outras mulheres, não homens) e não é a primeira vez (nem será a última) que eu anseio por saber só um pouco mais sobre raparigas, na primeira pessoa. Explica que este é o primeiro e único vídeo que fez com a câmara até hoje. Entusiasmada com a ideia de documentar o mundo à sua volta, rapidamente começou a sentir que o acto de gravar “matava” fosse o que fosse que tentasse preservar. Oitava nota: “O Acontecimento e O Seu Registo” (2) Discurso de Outra Pessoa: Peggy Phelan defendeu em tempos que a haver uma característica ontológica que defina a performance, essa característica é sem dúvida a sua efemeridade[10]. Efémero – do dia – desaparecimento do Grande “Aqui & Agora”, e aparecimento do Grande “Então & Lá”. Certamente, os encontros ao vivo podem encorajar-nos a questionar o tempo, o lugar, a subjectividade, a ética e a política de estar com os outros. Depois de Phelan, Philip Auslander considerou que este encorajamento, esta provocação, se deve também às formas de mediação que usamos para documentar a performance[11] – imagens nunca completamente fixas. Entre o acontecimento e o seu registo encontramo-nos instáveis.[12]


Atelier Real Fev/Mar 2011

23

Nona nota: “Como Perder Coisas no Tempo”: Tal como Pearson, já tive essa sensação, mas reconheço que o documento nos ensina a perder coisas no tempo. O documento apenas preserva na medida em que transforma, e é justamente essa qualidade preservadora, transformadora, que me compele a escrever em resposta às fotografias. Décima nota: “Fats Waller Viveu Aqui”: Penso no filme de Michel Gondry “Be Kind Rewind”. A personagem de Danny Glover convence toda a gente que o pianista de jazz Fats Waller nasceu em Passaic, Nova Jersey, no quarto por cima da loja de vídeo da personagem de Danny Glover. O que não é verdade. As personagens de Jack Black e Mos Def refizeram, ou ‘suedizaram’[13], uma série de filmes clássicos depois de um acidente alucinante ter apagado o conteúdo de todas as cassetes de vídeo nas prateleiras. Mais tarde, a personagem de Mia Farrow convence a multidão à porta da loja de vídeo: “O nosso passado é nosso. Se quisermos podemos mudá-lo.” A população da cidade põe-se então a fazer um filme intitulado ‘Fats Waller viveu aqui’, e o acto de fazer e mostrar um vídeo, tal como o acto de fazer e mostrar uma performance, constitui uma maneira específica de estar-com-os-outros. Depois da exibição do vídeo, a loja é demolida e a personagem de Danny Glover fica sem meio de subsistência. Mas a loja de vídeo esteve ali, em tempos, e no fim do vídeo pode sempre ser rebobinada. Décima-primeira nota: “Falta/Excesso”: O documento (e aqui estou a pensar especificamente em fotografias) confronta-nos com uma falta. Penso em várias fotografias do meu pai (antes e depois de ser meu pai): quando era criança, quando era adolescente, depois aos vinte anos, e depois aos trinta – e quero reconhecer em cada uma delas a prova de que é o mesmo. Prova dos grandes e variados desconhecimentos a que os fotógrafos aludem mas que não conseguem representar correctamente. O que me preocupa não é o quanto me dizem da sua vida, mas quão pouco. Há nessas fotografias uma falta de certezas e um excesso de possibilidades. O que fazemos com essa falta e com esse excesso é um problema nosso (o nosso passado é nosso e se quisermos podemos mudá-lo). Décima-segunda nota: “Reescrever” (1) Penso na velocidade a que ele ia na bicicleta. Penso nele a cair e na gargalhada que disse ter dado. Penso nele na vertente da colina, espantado com a vista. Penso nos seus pensamentos, impossíveis de saber, impossíveis de contar, mas permito-me imaginá-los muito bonitos (tal como se disse uma vez no colectivo Goat Island[14]: “todo o pensamento é movimento, interiorizado”).[15] Regresso a dois excertos da performance que fizemos: Primeiro excerto: Artigo 8. “Uma Educação ao Correr do Tempo” Bentley, South Yorkshire, 1939/FILHO: Não tem mais do que cinco anos. Já aprendeu alguma coisa sobre o tempo mas ainda não sabe como é que pode contá-lo. Por isso, uma noite pergunta:

não tinha sido escolarizado. Polvorista, a quem cabia pôr os explosivos na jazida de carvão, chamavam-lhe o melhor pequeno adjunto na Cova de Bentley, sempre animado faça o tempo que fizer, nunca se esquivou a nenhuma tarefa, comportamento magnífico. Mas-ainda-miúdo ele sabia-que a corrida entre a mão grande e a mão pequena era uma vigarice, um truque. E-portanto-recusou essa lógica de lugares comuns mas sensível que via fins, finalidades, em todas as coisas e em qualquer vida, preferindo-antes-acreditar naquilo a que os académicos e os teólogos chamariam um princípio de Eternalismo. Isto herdou ele do seu próprio pai, por sua vez pouco instruído, mas que sabia, tal como os melhores-homens-de-letras o sabiam, que a mente de uma criança é um fogo para ser ateado e que o mais ínfimo pensamento será sempre-maior do que aquilo que a mente do pensador é capaz de imaginar. Segundo excerto: Artigo 10. Bicicleta na Vertente da Colina, Distrito de Peak, 2001/FILHO: Apesar dos ensinamentos do seu pai, os anos passam. Trabalha em vários empregos, casa-se, divorcia-se, volta a casar-se. Faz-lhe a corte com bailes e cantigas. Vê o novo século, reforma-se, ainda canta, ainda dança. Por insistência da mulher leva-nos a passear, a andar de bicicleta e a fazer palavras cruzadas. O FILHO PASSA A BICICLETA AO PAI. O PAI TOMA POSIÇÃO. O FILHO DIZ: Na vertente da colina ele repara na quietude-que-faz, que agradável. Mas à medida que a colina se torna mais íngreme, as batidas regulares do seu coração aumentam juntamente com um zumbido nos-nervos-dos-seusdentes, como-se-estivessem congelados, pelo-que-se-apercebe-de-um-calafrio em cada inspiração e em cada expiração. A MÃE E O FILHO CAMINHAM ATÉ AOS SEUS LUGARES, EM FRENTE AO PAI. RETIRAM A FITA VERMELHA E CAMINHAM EM DIRECÇÃO AO PAI. O FILHO: Pedala mais rapidamente e já se imagina na linha da meta, que atravessa com uma discreta dignidade [O PAI ERGUE OS BRAÇOS EM SINAL DE VITÓRIA] e, feliz de ter ganho a corrida, permite-se divagar. À sua direita vê ervas-raras, molhos de urze roxa, e-depoisa entrada para uma toca de coelho. Por momentos pensou na mina em que o pai dele trabalhou e lembrou-se do seu tom de voz quando lhe disse: “tu não vais lá para baixo, filho. Tu não vais lá para baixo”. Interrogou-se quantos coelhos estariam na toca, e depois lembrou-se dos mil e cem homens que era suposto descerem à mina em cada turno, num elevador a que chamavam a gaiola. Estas especulações foram interrompidas quando ouviu a voz da esposa atrás de si: O FILHO DIZ: “Estás bem?” O PAI DIZ: “Chiu”, O FILHO DIZ: “Ele disse”

PAI: “Que horas são?” O PAI DIZ: [muito baixinho] “Ouve” FILHO: O velho – o seu velho – não foi educado, ou melhor;


24

O FILHO DIZ: “Imagino-o a tentar pôr-a-bicicleta-no-descanso, uma palavra balbuciada ao-cair-no-chão. Mais tarde veio a saber-se que teve um acidente isquémico transitório, devido a um distúrbio-temporário-no-fornecimento-de-sangue de uma área-restrita-do-cérebro, o que deu origem a uma breve disfunção neurológica que se mantém, por-definição, durante menos de 24 horas. Se os sintomas persistem então é reclassificado como derrame. O PAI DEIXA CAIR A BICICLETA, TIRA A MOLA [QUE APERTA AS CALÇAS] E O CHAPÉU, PÕE A MÃO DIREITA EM CONCHA NO OUVIDO DIREITO, INCLINA A CABEÇA PARA A DIREITA. Supomos agora que ele ouviu uma pequena explosão aguda. Supomos-agora que a explosão – que-ele-estava já a ouvir – foi causada pelo pai dele a fazer explodir uma carga de dinamite na Fenda de Dunsil da Mina de Carvão Bentley, algures em meados dos anos 30. Era um som que em rapaz sempre-quisera-ouvir mas nunca-conseguiu: um baque surdo e-depois-uma-onda de pressão que nos atinge num-doslados-da-cabeça.

Décima-quinta nota: O documento (quer dizer, a fotografia em que ele salta do rochedo para o mar) coloca o jovem a uma distância apropriada. Queria conhecer este homem mas não consegui – o tempo nunca o permitiria. A performance é uma série de (outras) permissões[17]. Décima-sexta nota: “Cães”: Tentei escrever isto muitas vezes mas nunca fiquei satisfeito até à semana que passámos no Atelier Real, em que coloco a questão desta maneira: “Já disse que o meu pai agora me faz lembrar mais um rapaz do que um Velho, mas gostaria de corrigir o que disse. Há nele uma selvajaria, uma selvajaria canina. Há um cão que vive dentro do meu pai e esse cão diverte-se mais do que qualquer outro cão alguma vez visto. Caça raposas. Enterra ossos velhos. Quando quer correr de um lado para o outro corre de um lado para o outro. Quando quer dormir à sombra dorme à sombra. Arreganha os dentes e está sempre a rir, se é que os cães riem (sei que este ri). Ri muito. Décima-sétima nota: O Acontecimento e o Seu Registo (3): Roland Barthes: “A fotografia em si não tem nada de animado (não acredito em fotografias ‘vivas’), mas anima-me.”[18]

O FILHO ENCAMINHA-SE PARA A ÁREA POR TRÁS DO PAI, E DEITA-O NO CHÃO. Décima-terceira nota: “Re-Escrita” (2): “O Conhecido”: A minha resposta ao desconhecido – à Hora Perdida – foi reescrevêla como algo que pudesse vir a ser conhecido. Procurei a lógica e a razão contra a lógica e a razão. A Hora Perdida não pertence a ninguém, nem mesmo ao meu pai, é o seu próprio mundo. Nela quis escrever a pura possibilidade: abstracta, poética, causalidades, um mundo de circunstância e contingência no interior do qual nascemos há muito tempo[16]. Décima-quarta nota: “O Desconhecido enquanto Desconhecido”: na ética levinasiana, a crítica do conhecimento intencional reverte para o acto de ver e o acto de ver reverte para o acto de segurar, agarrar. Da perspectiva interior, a Hora Perdida não pode ser conhecida de nenhuma destas maneiras. E não podemos tê-la de volta. Levinas reequaciona a intencionalidade enquanto forma de acolhimento, anterior e para além de qualquer conhecimento. Penso na luz que vem saudá-lo quando abre os olhos. A performance, e a escrita em volta, documentam uma resposta ao desconhecido. É uma resposta de tipo particular. É pura maquinação, claro: uma construção de querer, poder e mandar, robusta à sua maneira, mas não praticável. Acho que construímos isto, ele e eu, para preservar a dignidade do desconhecido enquanto desconhecido. Imaginei uma família com um talento especial para dobrar, repetir e entretecer o tempo, capaz de dançar nesse emaranhado e de se escapar de lá sem problemas, linhas entrelaçadas em linhas num tear. Quis que o pai do meu pai soubesse praticamente tudo aquilo que eu sei de estética e filosofia: desde as páginas dos meus livros até ao tutano dos ossos dele. Quis que o Pai do meu Pai quisesse escrever um livro e passá-lo ao Filho para uma ocasião em que dele tivesse necessidade. Na realidade, a satisfação deve-se a uma falta desta necessidade.

[1] Cf. John Berger, And our faces, my heart, brief as photos, 1984, p. 21. [2] Alan Bennett, Writing Home, 1998, p. 258. [3] http://bowesandson.blogspot.com. [4] Em instituições de educação superior britânicas com cursos de Estudos de Performance. [5] Este aspecto tem sido explorado intensivamente no âmbito do projecto “Practice as Research in Performance” (PARIP) [A Prática enquanto Investigação na área da Performance]. [6] Blanchot, 1982, p. 5-6 (in Peters, 2002), http://www. ijea.org/v4n2/index.html. [7] Blanchot, 1993, p. 3, 8 (p. 25 in Peters, ibidem).[8] (Nemo in Levinas, 1985, p. 10). [9] Battersea Arts Centre: 5-9th May 2010 (http:// www.bac.org.uk/whats-on/you-were/) Edimburgo: (http://www.guardian.co.uk/ culture/2010/aug/10/melanie-wilson-abigail-conway-deborah-pearson). [10] Cf. Peggy Phelan, Unmarked: The Politics of Performance, 1993, p. 146. [11] Cf. Philip Auslander, Liveness, 1999. [12] Nota do editor: Ver também “Uma aproximação às questões actuais em torno da documentação da performance”, no Jornal do Atelier Real nº3, Janeiro/Fevereiro de 2010 disponível no site www.atelier-real.org. [13] Nota da tradução: “sweded” no original. O verbo “to swede” é um neologismo. Trata-se de recriar, de forma sumária, filmes populares com orçamentos anódinos e uma simples câmara de vídeo. No filme “Be Kind Rewind”, estas versões anedóticas são ainda mais caras do que os originais. O argumento é que as cópias são importadas da Suécia. Daí serem ‘suedadas’. [14] Nota do editor: Goat Island é um colectivo de performance sediado em Chicago (www.goatislandperformance.org). [15] Matthew Goulish, membro do Goat Island, in A Summer School, Nuffield Theatre, Lancaster, 2006. [16] J. Berger, ibidem. [17] Segundo Natalie Woolf, uma espectadora de “WWL&WWLF”, Atelier Real, Lisboa, Junho de 2010. [18] Roland Barthes, citado por Henry Sayre, The Object of Performance: The American Avant-Garde Since 1970, 1992, p. 263.


Atelier Real Fev/Mar 2011

25

O projecto URRA, de Pedro Letria, tem a particularidade de introduzir a dimensão arqueológica na nossa reflexão sobre as práticas de documentação na criação. URRA não tira tanto a sua originalidade do assunto que trata – um levantamento fotográfico sobre o concelho de Grândola – mas do processo no qual se vê involuntariamente envolvido. Assinala uma vertigem onde coexistem e se confrontam, num mesmo plano, várias relações temporais: um tempo passado (quando as fotografias foram feitas e impressas), um tempo suspenso (quando elas ficaram ignoradas e esquecidas) e um tempo presente (quando elas foram redescobertas e reinterpretadas). URRA consegue assim articular de forma complementar e conceptual: fotografia, ficção e arqueologia.

URRA de Pedro Letria

As fotografias aqui expostas são a única prova que Pedro Letria recebeu em 2001 uma encomenda para fotografar o concelho de Grândola. Percorreu todo o seu território, fotografou-o, imprimiu a sua escolha em papel Ilfochrome e entregou estas ampliações de 13 por 18 centímetros ao comissário do projecto. No entanto, uma vez consumada a posse do novo elenco autárquico, no final do mesmo ano, toda a urgência verificada até então na entrega das fotografias desaparecera e só perante a insistência do fotógrafo é que o comissário o informou que o projecto tinha morrido. De facto, verifica-se que este projecto não existe nos registos da Câmara e não foi encontrado qualquer auto ou contrato que refira a iniciativa. O registo das despesas de alojamento em Tróia, as deslocações em carro da edilidade, inicialmente acompanhado por uma funcionária, e o pagamento das provas fotográficas ao laboratório estão omissos em qualquer documento camarário. Não foi paga qualquer remuneração ao fotó-

grafo pelo trabalho prestado. Estas ampliações foram resgatadas por Pedro Letria ao comissário e guardadas, até hoje, numa caixa vermelha de papel fotográfico – de uma marca alemã entretanto falida –, onde consta a inscrição A Identidade Dalagron, escrita a tinta indelével, de cor azul marinho. Em 2002, de passagem pela península de Tróia, Pedro Letria entrou na torre Magnólia, onde ficara alojado. Procurava o exemplar de Florida, de Walker Evans, que deixara esquecido no quarto que ocupara, no quinto andar, com uma vista soberba para o estuário do Sado e para o Oceano Atlântico. A funcionária da recepção, depois de o procurar, regressou e entregou-lhe um envelope castanho, para uso interno, com o seu livro. Por fora, escrito à mão, lia-se: Pedro Letria, Câmara de Grândola. [Texto que aparecia à entrada da exposição URRA de Pedro Letria na KGaleria, Lisboa, 6 de Maio - 10 de Julho 2010]


26


27

Atelier Real Fev/Mar 2011


28


29

Atelier Real Fev/Mar 2011


30


31

Atelier Real Fev/Mar 2011


32


33

Atelier Real Fev/Mar 2011


34


35

Atelier Real Fev/Mar 2011


36


37

Atelier Real Fev/Mar 2011


38


39

Atelier Real Fev/Mar 2011


40


41

Atelier Real Fev/Mar 2011


42

Entrevista com Pedro Letria por Patrícia Almeida e David-Alexandre Guéniot

Patrícia Almeida [PA]: O texto que aparece à entrada da exposição é particularmente interessante porque faz coexistir diferentes níveis de leitura sobre as fotografias que vemos a seguir. Começa como o relato de uma encomenda institucional que morre subitamente e desliza para a criação de um enredo policial. A ausência de documentos ou provas que essa encomenda (não) deixou ganha contornos enigmáticos. Depois de dez anos de esquecimento, as fotografias voltam à superfície não só para se mostrar (nunca foram expostas) mas também para comentar o que aconteceu “entretanto”. Ou seja, ao serem resgatadas, estas imagens parecem encontrar um novo destino. Por isso, a primeira pergunta que eu te queria fazer é ‘O que ia acontecer exactamente com aquela encomenda? Qual era o primeiro destino destas fotografias?’ Pedro Letria [PL]: Aquela encomenda ia resultar num livro e numa exposição em Grândola. Foram convidados quatro fotógrafos: um americano, um francês e dois portugueses. Foi essa informação que o comissário me deu quando me convidou. O convite foi formalizado em conversa – nunca passou da conversa, nunca houve qualquer papel – no início de 2001, e portanto ao longo do ano eu

desloquei-me várias vezes ao concelho para trabalhar. O comissário facultoume o contacto da pessoa da câmara, com quem eu passei a falar. Essa pessoa organizava tudo que era preciso, eu dizia “gostava de estar da semana A à semana B”, ela arranjava o hotel, que era aquele hotel em Tróia de que fala o texto. Desloqueime em carro da câmara, com a funcionária da câmara. Nunca tive qualquer tipo de ingerência do comissário. Isto parece coisa daqueles filmes Missão impossível. Recebe-se o telefonema e vai-se ao trabalho, realizar o que se tem que fazer… PA: Pergunto-te o que ia acontecer com a encomenda porque se pode especular que o que nós estamos a ver hoje, esta exposição, seria nesse contexto efectivamente outra coisa. Viveria hoje noutro arquivo que não só o teu, pessoal, e teria tido com certeza uma outra leitura. Porventura uma leitura mais ligada à descrição do território do concelho de Grândola e menos às questões da fotografia enquanto objecto e enquanto prova de algo que aconteceu. Também em termos formais, as fotografias nunca seriam certamente apresentadas assim, com esta característica de objecto único, de escala pequena, de objecto encontrado, ‘desenterrado’.

PL: Absolutamente! No arquivo em que estariam as imagens, nunca existiriam as 34 que estão expostas. Seriam se calhar 15 ou 20. Ou seja, o que está exposto são as provas físicas em papel para edição que entreguei ao comissário quando terminei o trabalho e fiz a minha escolha. Seria a partir dela que ele construiria o seu percurso, juntando-lhe as obras dos outros três autores. Portanto, este conjunto de facto nunca seria todo visível. A razão de ser de agora eu mostrar estas 34 é de mostrar aquilo que de facto sobrou, que sobreviveu. Mais do que a mera representação de um local num determinado dia, este conjunto é em si mesmo a evidência de umas imagens, de umas provas em papel, que serviriam para construir um outro discurso. E portanto fornece uma espécie de léxico para a construção de um percurso. Que fica agora refém de toda a história que lhes aconteceu… PA: E esta outra história pareceu-me associada a uma espécie de falhanço sistemático. Muda a autarquia, vem outro governo, cada um quer deixar a sua marca… Quando se lê o texto à entrada há uma situação que de facto reconhecemos como lugar comum do poder autárquico…


Atelier Real Fev/Mar 2011

43

David-Alexandre Guéniot [DAG]: … e quando se vêem as imagens, não? Tenho a sensação que as imagens prolongam também esta ideia de eterno recomeço. Mostram sítios que estão no meio de uma transição, uma transição que parece que nunca acaba, que nunca vai acabar ou então fica parada num espécie de situação caótica onde coexistem elementos da tradição portuguesa e sinais de modernidade. Gostaria de saber se existe da tua parte a vontade de fazer um comentário sobre essa ideia de falhanço sistemático… PL: Sim, expor este projecto agora manifesta, se calhar, algum desalento meu e portanto será uma reacção a um estado das coisas, em que eu possa através de um exemplo demonstrar como as coisas se perpetuam de uma maneira algo perversa. Mas ao mesmo tempo não nego que sinto um certo deslumbramento perante as próprias imagens… E não consigo desligar-me daquilo que elas representam e deixo-me embalar de novo pelo que elas fantasiam. Tem mais a ver com a sensação de estar a olhar para aquilo, aquela definição, de ver o pormenor muito bem definido, com uma cor muito bem escrita por aquele processo químico. E isso é uma coisa que me permite sentir que tudo não está perdido, que alguma coisa sobrou do esforço. Mas sim, sem dúvida, decidir mostrar isto agora tem em absoluto a ver, a vários níveis, com a questão de que um trabalho não pode ser tratado de forma tão despreocupada, que merece respeito. Porque a ideia de uma encomenda ou de um projecto cultural, é uma coisa de facto séria, e que tem que poder respirar e viver a sua vida uma vez encetado. De facto, eu vejo as coisas a repetirem-se. As coisas aconteceram sempre de boa-fé, mas quando deixam de acontecer é uma força negativa, que não se percebe como foi permitida - como foi, de facto, permitido. Para mim é muito importante as imagens poderem ser reaproveitadas… e absorvidas, mesmo com esta distância temporal. Há qualquer coisa nelas que me continua a seduzir e que é mais largo, que é mais irracional, se quiseres… PA: Pois, mas isso é o apelo do objecto… PL: …e daí escolher identificar o objecto com o trabalho e não só com a imagem representada… Expor os cantos da fo-

lha de papel inteira para se poder ver a dimensão da folha toda. Nunca na altura do projecto poderia pensar nesse tipo de opção. Provavelmente iriam pedir-me impressões de, sei lá, 60 por 80 centímetros, com passe-partout e moldura… DAG: Para continuar, se calhar, o que estava a comentar há pouco, tenho a sensação que este projecto funciona como uma time capsule. Desenterra-se um projecto que tem 10 anos, abre-se a cápsula e vê-se que hoje em dia as coisas não são assim muito diferentes e que se calhar essa time capsule não tem tempo, as fotografias revelam uma coisa intemporal… Não é um projecto que marca um tempo, a não ser o lado mais da prova que é o próprio papel. Este papel, este processo químico da impressão, estas condições técnicas já não existem… Cada uma destas fotografias é única, e este projecto com as suas 34 fotografias é único. Ou seja, o projecto ganha uma nova dimensão conceptual através da posteridade dessas fotografias, da contingência das suas condições técnicas (materialmente datadas) e da fantasia ficcional (de policial) que lhe é atribuída.

ali condensado. E esse tempo excedia largamente aquele tempo fotográfico do instante de segundos ou micro-segundos da imagem… Para mim, há uma questão que esta conversa revela de uma certa forma, ou seja: como é que um projecto destes acontece? Vejo tudo como parte do processo. Quando comecei a pensar nesta exposição a única imagem que me vinha à cabeça era aqueles filmes de acção tipo “A identidade Bourne”… PA: Um policial portanto? PL: Sim, sim… com o Matt Damon que é um agente da CIA a quem roubam a identidade por uma razão qualquer… e ele tem de provar que existe à sua própria instituição, porque passa a ser procurado pela própria CIA. A ligação disso a uma relação kafkiana é evidente, não é? Uma pessoa encontrar-se numa situação para a qual não encontra causalidade. Nada fez nada para merecer o que lhe está a acontecer nem compreende o porquê. Mas comecei a achar piada a esta ideia de identidade que nomeia, que por si mesma é sinónimo dessa existência. PA: Por exemplo?

PL: Essa cápsula teve mesmo uma materialização, que foi a caixa onde eu guardei estas provas. Quando percebi que o projecto não ia acontecer, o máximo que eu consegui foi ir ao comissário pedir-lhe as provas. Ao menos ficaria com qualquer coisa de palpável. Ele devolveumas e eu guardei-as numa caixa de papel fotográfico da marca Agfa. Ora bem, quando eu encontrei agora esta caixa, e quando sucede a possibilidade da exposição e a abro, já havia essa sensação de entrar numa cápsula. Porque a caixa era da Agfa de papel a preto e branco que já não se fabrica, a Agfa já não existe... as próprias provas são de um papel que também já não existe, ampliadas por um laboratório que já não amplia por processos químicos. E portanto de repente foi de facto a sensação de estar a lidar com objectos únicos… e isso foi para mim curioso, porque sendo fotografia e sendo eu dono dos diapositivos originais, poderia sempre reproduzir estas imagens… mas tive a noção de que aquilo que eu segurava nas mãos, representava mais do que a mera reprodução daquele original. Era de facto qualquer coisa mais do que o que estava ali… e que passava exactamente por esse tempo que estava

PL: Tu por exemplo chamas-te Patrícia Almeida mas tens também um número de BI e esse número é a mesma coisa que tu… mal ou bem. A Identidade Dalagron não estava escrita na caixa quando, na altura, eu pus as fotos na caixa. A Identidade Dalagron é uma construção… Não me fez sentido chamar-lhe A Identidade Grândola e comecei a procurar anagramas de Grândola, nomes feitos com as mesmas letras, as mesmas pistas. Este título na caixa era para condensar esta ideia de uma coisa que perde a sua identidade, mas que, no entanto, não deixa de existir. Comecei a pensar como se constrói esta ideia de ausência, que só é desmentida nestas folhas de papel, como é que eu as posso tornar legítimas de novo.

[Nota: Jason Charles Bourne é uma personagem ficcional que aparece nos romances de Robert Ludlum e nas adaptações cinematográficas. Aparece pela primeira vez no romance The Bourne Identity (1980), que narra as aventuras de um homem que acorda sem memória após ter sido baleado por um desconhecido. Quando recupera, só encontra uma única pista sobre a sua identidade: um chip implantado no quadril, em que está gravado o número de uma conta de um banco em Zurique, Suíça. No cofre do banco descobre que se chama Jason Bourne.]


44

O projecto Fora de campo – sobre o arquivo de cinema de Moçambique [FdC], de Catarina Simão, marcou o ciclo não só por ser o primeiro a ser acolhido em residência, mas porque representava também uma vontade secreta quando foi lançado o convite à apresentação de propostas: receber não só propostas artísticas mas também projectos assentes em zonas mais ambíguas e dinâmicas, entre a arte e a investigação, projectos que, de uma certa forma, instrumentalizavam a arte. FdC soube usar, num balançar à procura de um equilíbrio ético, de uma liberdade criativa capaz de criar passagens e relações críticas entre as várias camadas (estéticas, políticas, ideológicas, humanas) da história passada e presente dos filmes guardados no arquivo de cinema de Moçambique. Iniciada em Setembro de 2009, a investigação passou por sucessivos e renovados confrontos públicos (ver Biografia do projecto P. 50 ), onde os materiais da investigação eram não só expostos mas também comentados pela Catarina Simão no âmbito de visitas guiadas. Por outro lado, serviram de matriz de programação para projecções de filmes, conferências e mesas redondas. Pareceu natural voltar a esse projecto na altura de fechar o ciclo, para percebemos como se desenvolveu (e se transformou) ao longo dos quinze últimos meses.

Reflexões sobre um ano do projecto ‘Fora de Campo – sobre o arquivo de cinema de Moçambique’ Catarina Simão What I see is my seeing, as I only see if I see sense. Alex Arteaga - Conferência Julho 2010, Bruxelas.

2

1

1 Fotografia tirada na sede do Instituto Nacional do Audiovisual e Cinema (INAC) - recepção. Maputo, Junho 2009. 2 Fotograma retirado do vídeo “Negativo, substantivo” – Manifesta 8/Catarina Simão. Lisboa, Setembro 2010. ver http://vimeo.com/16781025


Atelier Real Fev/Mar 2011

45

1. Considerações gerais Em Novembro de 2009 apresentei pela primeira vez o projecto Fora de Campo – sobre o Arquivo de Cinema de Moçambique [FdC] no âmbito do Ciclo “Restos, rastos e traços: Práticas de documentação na criação contemporânea”, promovido pelo Atelier Real. Trata-se de um trabalho artístico que tem por base uma investigação em torno da questão da organização política das imagens. Fora de Campo foi desenvolvido a partir da visita ao arquivo do Instituto Nacional do Audiovisual e Cinema (INAC), em Maputo, viagem que realizei durante o mês de Junho desse mesmo ano. Essa visita coincidia com a minha participação num evento internacional em Moçambique, o Campus Euro-Africano de Cooperação Cultural, organizado por uma agência de cultura de Barcelona e pela OCPA. Nesse evento, de escala excepcional, decidia-se a atribuição de financiamento a projectos culturais em África, através de um programa de encontros entre a Comissão Europeia (que gere a atribuição de financiamentos aos investimentos de política exterior) e as agências europeias de cooperação. Assim, e durante alguns dias, às minhas manhãs passadas no arquivo seguiam-se encontros nos auditórios e corredores, ornamentados oportunamente com stands de artesanato africano, do Centro de Congressos Eduardo Mondlane. Calhou, logo no primeiro dia como participante do Campus, trazer comigo uma lata de filme de 35mm que retirei da pilha de “lixos” do arquivo[1]. Ainda que queimada, ferrugenta e vazia, essa lata atraiu até mim, e com uma eficácia surpreendente, o mais poderoso e requisitado decisor político presente no evento. Antes de me apresentar a essa pessoa, pergunteime qual deveria ser a minha postura perante as propostas que me viesse a fazer pelo facto de ter uma peça do património fílmico Moçambicano debaixo do braço. Decidi que deveria clarificar as minhas intenções o mais possível e dessa necessidade surgiu a seguinte formulação: - “Mademoiselle, j’ai beaucoup d’intérêt pour votre projet” - “Oui monsieur, justement, c’est votre intérêt qui m’intéresse...” O que me interessou, pelo menos num primeiro momento, foi ler o arquivo de cinema de Maputo como um corpo autónomo, dependente contudo de uma cadeia de influências exteriores. Vários agentes estrangeiros teriam vindo a intervir nessa configuração gerada em torno do processo da Independência Moçambicana. Cooperantes, técnicos, activistas, cineastas, etc. – foram atraídos pelo entusiasmo da implementação do cinema como maquinaria moderna ao serviço da reestruturação social e ideológica de um país africano. Um continuum de interdependências históricas e intelectuais se criou a partir daí, permanentes ou em ruptura, absorvidas ou esgotadas pelas mudanças que afectaram o país e o mundo no ultimo quarto do século XX... Como se apropria o cinema moçambicano da condição tecnológica do cinema e como emerge desse “caldo” de influências? De que forma essa cadeia encontra continuidade ou herança hoje, nas políticas europeias de apoio feitas à medida das cinematografias africanas e, em particular, para a recuperação e organização da sua memória fílmica? Como coexistem, nestas imagens, as atribuições patrimoniais e os discursos valorativos ocidentais, e a eventual reapropriação da ideologia que as determinou? 2. O vector arquivo-poder (I) Enquanto estivermos a falar de cinema de propaganda ou de cinema militante, podemos contar à partida com o uso da vocação condutiva do cinema aliada ao seu poder demonstrativo. A esse nível, da colecção do arquivo Moçambicano constam não só os filmes militantes de inspiração socialista, os filmes informativos e de reconstrução social, e ainda alguns filmes da luta armada de apoio à FRELIMO. Também (e dominando em percentagem), os filmes feitos durante a época colonial. Ou seja, entre mais de 25 000 latas de filme, e na longa história da utilização do cinema em Moçambique – desde 1897, segundo Guido Convents [2] – até à actualidade, este arquivo aparece como dando corpo à identidade relacional de Moçambique – enquanto país livre em reconstrução – com Portugal e outros colonizadores, enquanto agentes opressores. Contudo, o que fez atrair a Moçambique, no final dos anos 1970, personalidades


46

3

como Jean-Luc Godard, foi a sensação de que se estava (ou podia estar) a construir um mundo novo, e que era preciso inscrever esse processo na história, através de uma nova ordem de imagens. Independentemente das possibilidades de realização da utopia, os “mundos novos” controem-se em grande medida com base numa hiper-consciência histórica dos acontecimentos e, desejávelmente, no dos seus registos. A combinação entre um programa ideológico, o envolvimento da elite esclarecida e a influência da vinda de intelectuais na produção do cinema revolucionário, contribuiu de forma particular para o desenvolvimento de um tipo de bivalência nessas imagens. No final dos anos 80, com a implementação da televisão, os formatos de cinema foram substituídos pelas fitas magnéticas. Estas eram sucessivamente regravadas, não permitindo fixar os acontecimentos ou transformá-las em História. Nesse período, e depois da morte do líder Samora Machel, as utopias também já não inspiravam gestos colectivos, nem os filmes serviam já a relação entre o poder e o povo. Em contrapartida, no período de preparação da teledifusão, o Instituto produziu uma série de actualidades cinematográficas, o Kuxa Kanema[3], que envolvia oito unidades de cinema móvel doadas pela União Soviética. Através do cinema móvel, os filmes eram difundidos pelas províncias moçambicanas: a relação entre o poder e o povo estabelecia-se aí. A atribuição do próprio nome “Kuxa Kanema” que significa “o nascimento do cinema”, contêm o espelho da sua pré-determinação histórica. Para o documentário com título homónimo, realizado em 2003 por Margarida Cardoso (a primeira realizadora portuguesa a utilizar os filmes do arquivo moçambicano), não foi difícil encontrar documentadas as actividades do jornal cinematográfico nos próprios números dessa série: imagens da chegada das unidades móveis às aldeias, o efeito da recepção das imagens junto da população, mostrando como o carisma do líder se construía também na magia da sua imagem projectada na tela. O mesmo tipo de demarcação é notado na recorrência de expressões comemorativas nos títulos dos filmes, por vezes até atribuídos sob a forma de slogan; o cartaz que promove o filme emblemático de Ruy Guerra “Mueda, memória e massacre”, de 1978, incorpora por exemplo a frase “Primeiro filme de ficção da República Popular de Moçambique”. Também, e de um modo mais complexo, na reutilização dos filmes da propaganda colonial que faziam parte do arquivo; o filme “Estas são as Armas” de Murilo Salles e Luis Bernardo Honwana, de 1978, faz uma remontagem subversiva de sequências retiradas do cinema colonial português. 3 Excerto do painel associograma [FdC]. Artigos: Cinéma Action nº 23 – Entrevista a Jean-Luc Godard e Filmografía Sumária. Entrevista a Murilo Salles por Serpulveda Siqueira onde Murilo fala de “Kodak Imperialista”.


Atelier Real Fev/Mar 2011

47

Independentemente da irregularidade na qualidade dos filmes produzidos, parece que a época de maior inscrição de imagens em Moçambique correspondeu também à construção de uma certa homogeneidade, na qual o peso das imagens para a história se alia ao peso da sua função social – fundamentalmente, estas produções continham já em si um corpo arquivístico à espera de ser constituído como estrutura de poder. Nesta matéria, porém, há a questão da forma e a questão de fundo. A questão formal não tem uma resposta fácil. O arquivo de Maputo – ou qualquer arquivo histórico – é um lugar discursivo e físico onde as negociações entre as práticas genealógicas e os dispositivos de poder encontram o seu lugar. Mas se assim é, que funções discursivas se atribuem hoje às intervenções financiadas por países europeus (como é o caso de Espanha ou de Portugal), ao proporem a organização e a recuperação desse mesmo arquivo? Há trinta anos atrás, Samora Machel e o novo poder político da FRELIMO viu no cinema uma linguagem moderna para combater o imperialismo e criar uma “nova identidade nacional”. Hoje, a FRELIMO persiste no poder e continua a ser a interlocutora das negociações com os governos europeus para receber os fundos para a recuperação dessas mesmas imagens. De que modo são oferecidos estes apoios e, sobretudo, como são recebidos? Até que ponto tais negociações reproduzem o modo como essas imagens são interpretadas pelos Europeus? – pelos Moçambicanos? – por um sistema não totalmente descolonizado? Como trabalhar as imagens da independência de um país ex-colónia sem reproduzir, veicular as mesmas lógicas de subordinação imperialista? Como representar a autoridade dessas imagens a partir de uma cultura pós-colonial? In Folha de sala do projecto Fora de Campo, no Ciclo Documente-se! – Museu Serralves, Abril/Maio 2010, Porto. Sendo relativamente inovadoras (para usar uma expressão neutral) no âmbito dos estudos pós-coloniais, todas estas formulações terão importância pelo seu simbolismo e também pela sua capacidade de provocar o debate sobre o poder que está implícito na organização da memória colectiva, ou seja, no entendimento do arquivo como uma construção social. É para esse debate que Fora de Campo gostaria de contribuir, ao ler nos aspectos materiais e simbólicos do arquivo de Maputo a história que não está escrita nos filmes, mas nos dispositivos que os organizam. Esse desejo corresponde não tanto a uma reivindicação do acesso aos registos inscritos no contexto do passado colonial, mas à possibilidade de abrir um espaço de diálogo e entendimento participativo com a matriz desse poder. Ainda assim, a percepção dessa matriz só será possível se o vector arquivopoder for reconhecido, identificado e assumido colectivamente. 3. O vector arquivo-poder (II) Desde 2008 que uma equipa de cooperantes portugueses trabalha numa missão de recuperação no Arquivo de Cinema de Moçambique. Essa missão incluía a inventariação da colecção, a formação e avaliação de técnicos locais e a recuperação faseada dos filmes do Instituto Nacional do Audiovisual e Cinema. O financiamento inicial foi distribuído entre a Fundação Calouste Gulbenkian, a Cinemateca Portuguesa e o Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento (IPAD). A primeira fase da missão ficou concluída em finais de 2009, tendo a equipa regressado a Portugal. Na teoria de Kenneth J. Gergen sobre o movimento do Construcionismo Social na Psicologia[4], o autor refere o indivíduo como resultado de uma combinação de influências colectivas e sociais. Esta teoria estava a ser relembrada intensivamente quando me propus seguir os passos da equipa portuguesa no arquivo de Maputo. Face às condições irrepetíveis que se apresentavam, e face à convicção de que partilharíamos e veicularíamos globalmente os mesmos pressupostos culturais, tomei como base de trabalho os dados e os comentários dos relatórios elaborados por esta equipa. Para além disso fui pontualmente inquirindo os cooperantes em fases diferentes do processo. Um dos cooperantes, Nuno Barbosa, aceitou ser entrevistado quando Fora de Campo foi apresentado no Porto, em Abril de 2010. Esta entrevista foi produzida especificamente para o Museu Serralves e fez-se em paralelo com a de Américo Soares, o primeiro director do Instituto de Cinema Moçambicano, logo em 1976, a data da sua constituição.


48

Através desta entrevista dupla, com a justaposição da narrativa do primeiro director com a daquele que considerei ser “o último” dos agentes envolvidos na organização do arquivo, resconstitui um dos paradigmas mais evidentes da arquivística: a da unanimidade politica e histórica do seu início e o das infinitas possibilidades no que toca a considerar o seu final. Logo, a este associou-se um segundo paradigma: o arquivo, como as demais áreas de produção de conhecimento, pode ser portador das ideologias associadas ao seu contexto cultural de produção. Segundo os relatórios da equipa portuguesa, esta questão terá sido colocada a ambas equipas de técnicos, nomeadamente no desencontro das convenções vigentes, contrárias nos dois países, neste caso, quanto à inscrição da nacionalidade portuguesa ou moçambicana dos filmes produzidos em Moçambique durante a época colonial. No projecto Fora de Campo, foi central lançar esta questão perceptiva que liga o arquivo a uma construção social, para desde aí começar a trabalhar na dissolução das narrativas verticais do arquivo e abrir formas e processos relacionais com a organização de uma colecção de imagens. Um arquivo é um sistema de organização de informação no qual o conhecimento reside na sua própria construção. Artistas, cineastas, instituições e os próprios arquivistas confrontam-se desde há muito com esta forma, ainda que envolvidos, na prática, pelas questões de fundo: a imagem ideológica e o seu espelho; que ligação intrínseca se estabelece entre a apropriação de uma imagem política e a sua consequente actualização discursiva? Como trabalhar as imagens do produto ideológico do passado, de outro país, sem criar desordenados mitos contemporâneos, traficados entre múltiplas representações eurocêntricas? Como organizar todos esses aspectos na imaginação artística? 4 . Notas finais O Fora de Campo propôs-se trabalhar os dispositivos que organizam as imagens e as suas construções. A visibilidade desse processo foi sendo elaborada ao longo de um ano de trabalho, experimentando os formatos e os espaços, aperfeiçoando as instâncias que regulam o acesso à experiência visual. Contudo, a dificuldade nesse processo nunca se pôs ao nível do que se vê, mas à escala da visibilidade a que se está de facto a trabalhar. Reorganizar uma colecção de filmes que foi produzida com a consciência de que se estava a organizá-la na história, lembra-nos que as problemáticas que se põem em relação à construção do futuro podem ser muito semelhantes àquelas que se põem em relação à construção do passado. Aqui, mais uma vez, Gergen pode ajudar na identificação dessa arqueologia do conhecimento, pois ela é parcialmente visível mediante uma abordagem historicizada. É quando se identificam interferências com o poder implícito nessas organizações que ela, de facto, se faz visível. E finalmente, trabalhando o potencial relacional do corpo com as imagens, incluindo-o como mais um elemento organizador à qual estas estão sujeitas, que estes processos se vão tornar visíveis na experiência individual e colectiva. A imagem que procura criar Fora de Campo é pois a de um arquivo “performático” que passa pela reconstituição da experiência cognitiva trabalhando, no tempo, estas três escalas de visibilidade.

[1] Ver capa do Jornal Atelier Real Nov/Dez 2009. [2] Guido Convents, “1º Simpósio sobre a História do Cinema Moçambicano”. Maputo, 2010. [3] A série de actualidades Kuxa kanema produziu-se esporádicamente a partir de 1977, e depois semanalmente a partir de 1981 com uma duração fixa de 10 minutos e até 1991, data da implementação definitiva da Televisão Moçambicana. [4] Gergen, K. J. (1999). An invitation to social construction. London. Sage.

4

4 Excerto do painel Assossiograma (FdC): Sequência de fotogramas retirados dos registos feitos na sala do laboratório do INAC (Arquivo pessoal de Margarida Cardoso – 2001) a partir de Kuxa Kanema nº198 (1979-80). Um grande embondeiro simboliza as “raizes” da cultura nativa. Aos pés da árvore, famílias que vivem em comunidade e em contacto com a natureza.


49

Atelier Real Fev/Mar 2011

5 5 Fotogramas: Kuxa Kanema nº36 e Kuxa Kanema nº262. Fotogramas: arquivo pessoal de Margarida Cardoso (INAC 2001) “Sessão da Assembleia Popular”, em “Samora Vive”, 86’. Fotogramas: vídeo “Negativo, substantivo” – Manifesta 8/Catarina Simão. 2010 “25” de Celso Luccas e José Celso 77 e discurso de Samora Machel em “Samora Vive”,86’


50

Biografia do projecto Novembro 2009. Lisboa: 1ª apresentação no contexto da residência artística do Atelier Real com sessão de trabalho aberta ao público, participação de Ros Gray, Professora da Universidade Goldsmiths (Londres), Jorge Blasco, invesigador e director de www.culturasdearchivo.org (Barcelona) e Alex Arteaga, filósofo e investigador da Universidade Humboldt (Berlim). Abril e Maio 2010. Porto: Museu Serralves, Ciclo Documente-se!. Instalação documental e audio-visual, produção de entrevistas a Américo Soares e Nuno Barbosa. Projecção do filme “Estas são as Armas” INC 78, por Murilo Salles e Luís Bernardo Honwana. Debate com a participação de João Sousa Cardoso (ULHT-ULP), António Pinto Ribeiro (FCG) e Manuel Loff (FLUP) e moderação de Fernando Luís Machado (FLUP). Porto: Aula do Mestrado da UBLP dirigido por Inês Moreira. Junho 2010: Viena: Akademie der Bildenden Künste Wien. �������������������������������� Curso de Cinema Africano dirigido por Christian Kravagna. Setembro 2010: Maputo: participação no 1º Simpósio sobre História do Cinema Moçambicano, Festival Dockanema, dirigido por Pedro Pimenta. Outubro-Novembro 2011: Vila Nova de Famalicão: Casa das Artes. Comissariado por José Maia para a exposição colectiva IMAN. Outubro a Janeiro 2011: Múrcia: Bienal de Arte Comtemporânea Manifesta 8. Equipa curatorial Tranzit.org. Off screen project com Instalação audio-visual e documental e produção do vídeo “Negativo, substantivo”, 17’. Fora de Campo tem-se associado à reflexão em torno das práticas artísticas entendidas como processo e no reconhecimento da imagem e do arquivo como experiências relacionais. Nesse contexto foi convidado a participar no Grupo de Investigação “Archivo, Arte, Ciencia y Sociedad” com direcção de Jorge Blasco, na Fundació Tapiès, em Barcelona. http://www. amateurarchivist.net/amateur/?p=402 informação: Atelier Real: http://www.atelier-real.org/ CatarinaSimoFORADECAMPO.htm Manifesta 8:http://www.manifesta8. com/manifesta/manifesta8. artista?nombre=Catarina-Simao&codigo=92 Buala:http://www.buala.org/pt/ afroscreen/fora-de-campo-sobre-oarquivo-de-cinema-de-mocambique Vídeo: http://vimeo.com/16781025 6 6 Fotogramas retirados do vídeo “Negativo, substantivo” – Manifesta 8/Catarina Simão. Lisboa, Setembro 2010.


Atelier Real Fev/Mar 2011

51

O cinema e a imagem em movimento – bem como o som – foram provavelmente as práticas menos bem representadas no ciclo. Tentámos minimizar este aspecto com o Gabinete Audiovisual do Atelier Real, nomeadamente com a aquisição de DVDs de cineastas que se dedicaram à questão do documento sem serem necessariamente considerados documentaristas, como por exemplo Peter Watkins, Chris Marker, Chantal Akerman ou Harun Farocki. Convidámos o Nuno Lisboa, co-programador do Seminário Doc’s Kingdom, dedicado em 2010 à “Imagem-Arquivo”, para escrever um texto sobre a relação do cinema com o documento através das figuras (de estilo) que caracterizam o trabalho do cineasta Hartmut Bitomsky, a última “aquisição” do Gabinete Audiovisual.

O Cinema e a morte (1988, 56’), de Hartmut Bitomsky.

A manipulação das imagens Nuno Lisboa

1. “ATENÇÃO!” O aviso antecede a explosão controlada que vemos no primeiro de muitos excertos das dezenas de “filmes culturais”[1] alemães produzidos entre 1933 e 1945, analisados por Hartmut Bitomsky em Imagens da Alemanha[2]. A voz dirige-se aos operários que vemos nas imagens, mas não deixa de visar indirectamente o espectador, indicando o que lhe é pedido na experiência deste filme. Seguem-se, antecipando o genérico inicial, fragmentos de imagens e sons que se sucedem como flashes da vida colectiva – imagens do trabalho e do lazer, do

campo e da cidade, imagens anódinas e imagens carregadas de signos, uma aula de ginástica, uma lavagem de rua, um comício nazi – numa sucessão rápida e heterogénea. Cada um destes fragmentos – separados por uma fracção de segundo a negro sempre que os planos não se sucedam nessa ordem no filme de onde provêm – irá ser reintegrado em sequências organizadas em capítulos cronológicos. O conjunto de excertos correspondente a cada ano não é proporcional entre si na duração total do filme, nem relativamente à produção cinematográfica desse

ano, nem tão pouco representativa da quantidade ou da importância dos factos históricos respectivos. Por exemplo, a 1939 corresponde apenas um plano de trinta segundos: a dança aérea sobre uma paisagem rural; em grande plano, a cruz suástica da cauda do avião a que se encontra acoplada a câmara – a imagem é neste caso literalmente emblemática. No capítulo de 1935, Bitomsky apresenta, entre outros, o excerto de um filme intitulado Mãos no trabalho: uma mão aberta, em grande plano desfocado, age em consonância com um rosto que conseguimos


52

Nesta página e na página seguinte: O Cinema e a morte (1988, 56’), de Hartmut Bitomsky.

vislumbrar entre os dedos, mesmo que o movimento da mão pareça querer impedir o nosso olhar. Porém, o gesto e a face parecem pertencer a corpos distintos, num jogo de reflexos que baralha e sobrepõe escalas incompatíveis. Um líquido é espalhado sobre uma superfície, tornando-a opaca. Na passagem progressiva da transparência ao reflexo, verificamos que se trata de um espelho a ser fabricado. O trabalhador é o primeiro a reflectir-se nele, vendo-se a si próprio enquanto trabalha. Esta curta sequência de imagens “sem nada de especial”, integrada num filme de propaganda nazi, constitui um ícone do cinema de Hartmut Bitomsky, o princípio e a prática dos seus filmes[3]. “Como podemos falar destas imagens? Do que podem estas imagens falar?” – pergunta o narrador de Imagens da Alemanha. Entre as duas questões, o diagnóstico é apresentado: confiscadas pelos arquivos, as imagens são tratadas como documentos; pacificadas pela História, ilustram como foi o fascismo; enclausuradas no museu, o seu resgate tem que ser pago e são libertadas apenas se testemunharem contra si próprias, para que o contexto as torne inofensivas. Bitomsky questiona o seu próprio gesto cinematográfico e a situação problemática em que se encontra aquele que apela à desconfiança do espectador e simultaneamente à sua crença, solicitando-lhe que não acredite nas imagens mas que acredite no realizador que “manipula imagens que foram feitas para seduzir,

que foram manipuladas em primeiro lugar enquanto produto para servir um determinado propósito, o que é particularmente claro nos filmes nazis, que nunca mostram nada sem uma razão”[4]. 2. O posicionamento do cineasta face a imagens que não originou é uma questão prática fundamental para Bitomsky. Trabalhando com imagens que lhe preexistiam, sejam “imagens de arquivo” resgatadas à clausura dos tombos ou reproduções VHS ao alcance da mão, trata-se sempre de “tomar posição”: recusando, por um lado, a sua própria neutralidade enquanto artista e, por outro, impedindo a neutralização e a pacificação das imagens reduzidas ao estatuto de documentos, num duplo movimento de aproximação e distanciamento que previna tanto a imersão total como a abstracção pura, para se conseguir saber alguma coisa do que se tem perante si, mas também de si próprio e do lugar em que se está[5]. O gesto de Bitomsky consiste menos numa prática experimental de reapropriação, nas tradições do found footage, do ready made ou do objet trouvé, do que num empreendimento pedagógico de transmissão da memória do cinema. Porém, o realizador não procura ilustrar teses nem explicar imagens, resguardado na posição imparcial do mediador. Pelo contrário, não pode deixar de expor o seu próprio gesto como um encadeamento de ideias, descrevendo(-se) e citando(se), requerendo uma “atitude científica”

do espectador que é solicitado a analisar argumentos, transformado em espectador de si próprio, passando-se “menos coisas nele do que se passam com ele”[6]. Nos seus filmes sobre filmes – que são simultaneamente o resultado da experiência pedagógica das suas aulas e uma extensão da sua prática crítica – Bitomsky desenvolve, como Godard nas suas História(s) do Cinema, uma série de capítulos possíveis para “uma verdadeira história do cinema”[7], feita com os meios que lhe são próprios, os sons e as imagens. Bitomksy lembra que “o material artístico do realizador consiste na câmara, lente, filtros, luz, som, montagem, em toda a história do cinema e em todos os métodos de fazer um filme que existem ou que ainda não existem”[8]. Godard sublinha que essa “verdadeira história do cinema” seria a história dos filmes que não foram feitos. Mas se o estilo resulta da relação entre o que se quer e o que se pode, entre uma ideia e os constrangimentos que a limitam, isto é, que a materializam e a tornam possível, encontraríamos mais diferenças do que semelhanças entre os dois cineastas. Da mesma forma, os diversos filmes que Bitomsky realizou sobre o cinema divergem bastante entre si, consoante os temas, as matérias e as limitações que se colocam em cada projecto. Em O cinema e a Morte[9], o cineasta investiga o motivo omnipresente da morte no cinema. Ou antes, do morrer, uma vez que o cinema não trata de estados mas de acções, como


Atelier Real Fev/Mar 2011

53

ouvimos dizer o narrador. Em grande plano, sucedem-se fotogramas de filmes (Griffith, Stroheim, Buñuel, Godard, Chabrol, Aldrich, Hitchcock, Cassavettes, ...): ícones de mortes, suicídios, assassinatos; índices do cinema que os produziu. A impossibilidade legal de utilizar excertos de filmes obriga o cineasta a um constrangimento criativo similar à “cinematografia da decepção” que ele reconhece em Hitchcock, ao descrever a mais descrita sequência de Psico, onde se dá a ver uma morte sem mostrar um único ferimento. Em vez das imagens em movimento que se sucedem no ecrã, as mãos de Bitomsky manipulam fotogramas seleccionados, ampliados e impressos, compondo sequências de imagens fixas. Nas múltiplas variações do gesto que empresta o movimento às imagens – fazendo-as suceder face à câmara substituindo um fotograma pelo seguinte; acumulando fotografias, sobrepondo cada uma à anterior que assim fica escondida sob a que se segue; retirando cada imagem de uma pilha onde a imagem seguinte aparece sob a anterior – o filme toma a forma do seu assunto, com o realizador filmado como um detective que vai recolhendo e analisando provas. Noutro dos seus meta-filmes, Bitomsky trata especificamente das questões do “documentário”: O Cinema e o Vento e a Fotografia: Sete Capítulos sobre o Documentário[10] apresenta excertos de filmes (de Flaherty, Lorenz, Vigo, ...), álbuns de fotografia (Atget, Walker Evans), revi-

sões de leituras (Krakauer) e propostas de teses – o documentário como “exílio da realidade” e como “expressão de uma crise”. Descrevendo The River, no primeiro dos “sete capítulos”, Bitomsky faz desfilar sobre a mesa de trabalho uma sequência de fotogramas do filme de Pare Lorenz. Finalizada a sequência, repete o gesto com as mesmas imagens e outras palavras. O discurso recorrente é incapaz de compreender, de abarcar o fluxo das imagens que se escapam desde o primeiro momento, permanentemente, como a água do rio que não pode ser contido nas suas margens. A corrente da voz – in ou off – que acompanha a corrente das imagens “não é mais do que a bóia de salvação lançada ao espectador para que ele não se afunde no naufrágio”. Não se trata tanto de um discurso sobre as imagens, mas de um diálogo com as imagens. Menos um comentário do que uma descrição que, de cada vez, pode modificar os seus termos porque testemunha um novo encontro com as imagens, integradas no tempo da enunciação e na duração performativa do pensamento. A memória do filme é assim integrada dentro do próprio filme. Por vezes, reconhecemos nos fotogramas momentos fixados que acabámos de ver em movimento, retirados do fluxo do ecrã e reapropriados no movimento próprio do gesto. A circulação inversa também acontece, com a câmara passando do fotograma ao ecrã, da imagem fixa à imagem em movimento, ou de um monitor a

outro, quando ainda ouvimos a descrição da sequência anterior e já vemos as imagens de outro filme. O diálogo com as imagens acolhe como interlocutores os assistentes do realizador e – no círculo entre as imagens, quem fala e quem ouve – o espectador. Por outro lado, o realizador não deixa de ser o primeiro espectador das sequências que compõe face à câmara enquanto actor ou agente das imagens que movimenta entre mãos. No limite, alguns dos enquadramentos ao quadrado, de grandes planos dos monitores de televisão ou dos fotogramas manuseados, podem ser entendidos como planos subjectivos do realizador-actor-espectador que descreve uma experiência partilhada das imagens. Em Superfícies, Cinema, Bunker – O Cinema e os Cenários [11], para abordar o tratamento do espaço pelo cinema, Bitomsky realiza um plano-sequência que percorre os monitores instalados no estúdio onde passam extractos de filmes (as escadas de Lang, a cidade de Huston, as ruínas de Rossellini, o campo de milho de Hitchcock...): sem cortes que interrompam a unidade espaço-tempo, o realizador descreve as várias sequências de filmes, não deixando de dirigir, no mesmo fluxo da voz, os gestos dos assistentes e os gestos da câmara. Com os seus colaboradores, manipulam livros, cassetes, fotogramas, postais. O gesto que filma e o gesto filmado tornam-se indissociáveis, confundindo e expondo as fronteiras entre ensaio e cena filmada, improvisação


54

e mise en scène, entre o que está dentro e fora do filme, o que está perante e por detrás da câmara, entre imagens e imagens de imagens, numa desmultiplicação em circuito fechado. 3. O questionamento das “práticas de documentação” no cinema implicaria colocar uma multiplicidade de perguntas, demasiadas e demasiado vastas para poderem ser tratadas aqui e agora, sem retomar toda a problemática do “documentário” em termos (históricos, estéticos, técnicos, linguísticos) demasiado generalistas. O que é um documento? O que é uma imagem? Como é que o cinema produz documentos? Como é que o cinema transforma documentos em imagens? O cinema documental de Hartmut

Bitomsky responde a uma dupla questão que condensaria todas as outras: O que pode o cinema documentar? Como se pode documentar o cinema? A “manipulação das imagens” pode compreender aqui uma acepção comum, quando nos referimos à deturpação deliberada de um sentido supostamente original, a uma criação de efeitos que preside à (re)produção das imagens. Mas pode também ser entendida literalmente, referindo-se aos gestos de trabalho do cineasta na realização de um filme, por detrás da câmara e à mesa de montagem. No trabalho de Hartmut Bitomsky, em particular nos filmes que realizou com imagens “em segunda mão”, esse trabalho é exposto no próprio filme, face à câmara, na duração da filmagem. Filmam-

se as operações de montagem como um conjunto de procedimentos artesanais, baseados nas acções da mão que sobrepõe, descobre, justapõe e articula os fragmentos. Estas operações são descritas à medida que se desenvolvem, num laboratório de pensamento ao vivo. “Como se passa de uma imagem a outra? O que procuramos nas imagens? O que esconde uma imagem?” [12] Para cada questão, um procedimento e um gesto: sobrepor, justapor, articular, correspondem aos gestos concretos de abrandar ou acelerar o fluxo de imagens num televisor, fazer uma panorâmica de um monitor para outro, folhear um livro de fotografias ou um molho de fotogramas. Ao fazer filmes sobre filmes, com excertos de outros filmes, citando outros filmes

Nesta página e na página seguinte, fotogramas de O Cinema e o vento e a fotografia - Sete capítulos sobre o documentário (1991, 52’), de Hartmut Bitomsky.


Atelier Real Fev/Mar 2011

55

dentro do filme, estes procedimentos são para Bitomsky figuras retóricas que equivalem ao uso das aspas ou das notas de rodapé num texto, prosseguindo a arte da citação tal como foi praticada por Walter Benjamin. Os gestos reforçam o carácter material das imagens como objectos do mundo e não apenas como suas representações. As imagens são manipuladas e manipuláveis, solicitadas, aceites, trocadas, rejeitadas, ajustando-se e resistindo às associações de ideias. Por outro lado, se Bitomsky trata as imagens como objectos do mundo, estes são tratados como imagens a decifrar. “Pode dizer-se que um documentário trabalha com objectos ready made: coisas que já existem, prefabricadas numa forma e num estado particulares já desenvolvidos, com uma

história própria” [13]. Na sua obra vasta e eclética – com filmes dedicados ao bombardeiro B-52 [14], ao automóvel Volkswagen [15], às auto-estradas do Reich [16] ou, no limite do objecto e no limite da imagem, ao pó [17] como arquivo da humanidade – cada objecto é uma constelação de imagens, de actos e ideias, de uma época e de um lugar, enquanto os filmes são diagramas abertos que resultam do desenho traçado na pesquisa, delineando a genealogia – estética, económica, política – de cada objecto, de cada imagem. [1] Os Kulturfilm, equivalentes às “actualidades”, eram à época projectados antes dos filmes de ficção nas sessões de cinema. [2] Deutschlandbilder, 1984, 60’. [3] Cf. O Cinema e o Vento e a Fotografia: Sete Capítulos sobre o Documentário (Das Kino und der Wind und die Photographie: Sieben Kapitel über Dokumen-

tarishe Film, 1991, 52’). [4] Intervenção de Hartmut Bitomsky no Doc’s Kingdom – Seminário Internacional sobre Cinema Documental, Serpa, 16-20 Junho de 2010. [5] Cf. Georges Didi-Huberman – Quand les images prennent position, Minuit, Paris, 2009. [6] Cf. Bertold Brecht – Théâtre épique, théâtre dialectique, L’arche, Paris, 1999. [7] Cf. Jean-Luc Godard – Introduction à une Veritable Histoire du Cinéma, Paris, Albatros, 1980. [8] Cf. Hartmut Bitomsky – “The documentary world”, in Hartmut Bitomsky: Retrospective, Goethe Institut München, 1997 (consultável em Doc’s Kingdom 2010. A imagem-arquivo. Textos de apoio, disponível em www.docskingdom. org e no Gabinete de Leitura do Atelier Real). [9] Das Kino und der Tod (1988, 56’). [10] Das Kino und der Wind und die Photographie: Sieben Kapitel über Dokumentarishe Film (1991, 52’). [11] Flächen, Kino, Bunker – Das Kino und die Schauplätze (1991, 52’). [12] Cf. Hartmut Bitomsky – Die UFA (1992, 88’); Jean-Pierre Rehm – “Que cherche-ton? Au regard de l’histoire, le cinéma en question”, in Catalogue FID Marseille, 2006. [13] Cf. Hartmut Bitomsky – “The documentary world”, idem. [14] B-52 (2001, 122’). [15] Der VW-Komplex (1990, 93’). [16] Reichsautobahn (1986, 90’). [17] Staub (2007, 90’).


Notas biográficas sobre os autores

56

Myriam Van Imschoot (1969) trabalha no cruzamento onde a performance, as artes visuais e a escrita se encontram. Trabalhou como crítica de dança até integrar o Instituto de Estudos Culturais do KULeuven, onde co-fundou a secção de Estudos de Performance. É a fundadora de Sarma, um laboratório discursivo de crítica, dramaturgia e investigação artística na área da dança e em outras áreas (www.sarma.be). Desde 2004, o seu trabalho move-se entre a teoria e a prática; trabalha como dramaturga, coach, curadora e cada vez mais como performer e (co)encenadora. Colaborou com Vera Mantero, Meg Stuart, Benoît Lachambre, Antonia Baehr, Dianne Weller, Tristero, Philipp Gehmacher, Aurélien Froment. A partir de 2008 tem vindo a desenvolver o seu próprio trabalho, explorando os temas da memória, da entrevista, da oralidade. Actualmente prepara a performance Living Archive para o festival Performatik no Kaaitheater (Março de 2011), e uma nova tecnologia para a publicação de documentação oral e de trabalhos de som. Simon Bowes (1980) é artista freelance e investigador, com base no Noroeste da Inglaterra. O seu trabalho deriva das Artes do Espectáculo, da Performance e do Teatro, movendo-se entre a conferência performance, a conversa, sessões de canto, trabalhos discretos, sessões de tête-à-tête, viagens, caminhadas breves, conversações longas e dias grandiosos de passeio. Juntamente com Peter Bowes, dirige a companhia “Kings of England”, com a qual criou “Where We Live & What We Live For”. Desenvolve �������������� actualmente “I Belong To This Band!”, um projecto de colaboração com outros artistas e músicos, que tem por objectivo reconstituir e reinterpretar práticas populares antigas, canções e danças. É membro do colectivo de artistas Sometimes..., que produz projectos de implicação pública, em associação com Greenroom e com as pessoas de Manchester. Pedro Letria (1965) obteve uma licenciatura na School of the Art Institute of Chicago em 1989, e desde então tem trabalhado em projectos pessoais de fotografia de longa duração, bem como na sua publicação em forma de livro. A ‘E.N. 118’, o seu primeiro livro de 1994, seguiram-se mais cinco monografias, das quais ‘Mármore’, de 2007, é a mais recente. Publicado pela Assírio e Alvim, este último vai juntar-se aos títulos ‘Terraformada’, ‘Verbos’ e ‘Inventário’ que fazem parte do catálogo da editora. Tem exposto o seu trabalho de forma regular em exposições colectivas e individuais. Desde 2000 ensina fotografia no programa de artes visuais da ESAD, Caldas da Rainha. Pertence ao colectivo Kameraphoto (link: www.kameraphoto.com). Catarina Braga Simão (1972) é arquitecta e investigadora independente. Depois dos estudos em arquitectura (FAUTL 96) amplia a sua formação na ETSAB em Barcelona. Trabalha em Espanha de 2000 a 2005 para instituições culturais, desenvolvendo investigações artísticas sobre política e tecnologia. Dirigiu a Fundação 30km/s, onde foi responsável por convocatórias de apoio a projectos artísticos de edição e difusão. De volta a Lisboa em 2006, trabalha em programação de cinema, envolvendo a sua actividade na sustentação da diversidade na distribuição cinematográfica de autor. Participa em projectos de promoção da literacia visual. Em 2008 foi directora da programação artística multidisciplinar www.luso-phonia.org, onde o argumento electroacústico é chave para uma leitura social. Desde 2009 dirige o projecto Fora de Campo – sobre o arquivo de cinema de Moçambique, desenvolvendo um programa de apresentações sobre a problemática dos actos de transformação da imagem política. Nuno Lisboa (1974) é co-programador do Doc’s Kingdom – Seminário Internacional sobre Cinema Documental, doutorando na Universidade Nova de Lisboa, professor na Escola Superior de Artes e Design de Caldas da Rainha.


Atelier Real Fev/Mar 2011

57

Atelier Real O Atelier Real é herdeiro do trabalho de experimentação artística iniciado nos anos 1990 pela RE.AL (www.re-al. org) com projectos pioneiros na área da transdisciplinaridade como, por exemplo, o LAB/Projectos em Movimento (1993-2006). Aposta num modelo de relação com o trabalho artístico que privilegia o processo em detrimento do produto. Pretende a afirmar-se enquanto espaço de trabalho e de fruição artística, em que a programação se define a partir de residências artísticas, entendidas como modos de articulação e de intensificação do trabalho artístico, com o artista a ter a possibilidade de experimentar novos dispositivos de mediação e o espectador outros estados de percepção. O Atelier Real investe assim na residência artística enquanto formato original e “nobre”, paralelamente a outros formatos como os da exposição, do espectáculo ou da conferência. Com efeito, estamos convictos que a residência artística constitui uma verdadeira experiência, quer para o artista confrontado com um novo ambiente de trabalho (e de vida), quer para o espectador que tem a oportunidade de ser desafiado de uma maneira aberta (e eventualmente mais directa do que a pro-

porcionada por formatos convencionais) sobre as maneiras como práticas e ideias artísticas se inscrevem na nossa relação com a sociedade contemporânea. O ciclo de residências artísticas “Restos, rastos e traços. Práticas de documentação na criação contemporânea” foi a primeira programação do Atelier Real exclusivamente constituída por residências artísticas entendidas não tanto como meios (para criar) mas sobretudo como experiências para partilhar. Resultou de um convite à apresentação de propostas lançado em Julho de 2009. Foram recebidas mais de 170 propostas, vindas não só de Portugal mas também da Alemanha, da Áustria, da Bélgica, da Croácia, de França, de Espanha, de Inglaterra, de Itália, dos Países Baixos, da Roménia, da Sérvia, da Ucrânia, dos EUA, da Austrália, da América Latina e da África do Norte, bem como de (quase) todas as disciplinas artísticas. Os artistas seleccionados receberam, para além de um espaço de trabalho, de material técnico e das condições logísticas proporcionadas pelo Atelier Real, um apoio financeiro para a realização das suas propostas. A forma de apresentação das várias pro-

Atelier Real Direcção artística: David-Alexandre Guéniot RE.AL Direcção artística: João Fiadeiro / Direcção de produção: Sofia Campos / Gestão financeira: Sílvia Guerra / Secretariado: Alaíde Costa Jornal Editor: David-Alexandre Guéniot / Tradução do texto “Rests in Pieces”, de Myriam Van Imschoot: Paula Caspão / Tradução do texto “Algumas notas sobre performance e documentação”, de Simon Bowes: Rui Catalão / Revisão: Paula Caspão / Transcrição da entrevista com Pedro Letria: Alaíde Costa / Grafismo: Linda Romano / Textos e imagens: copyright dos autores / Agradecimentos: Patrícia Almeida. A programação do Atelier Real teve o apoio financeiro da Fundação Calouste Gulbenkian e da Câmara Municipal de Lisboa. Parceiros logísticos: WIP-Hairport, Bomba Suicida, Casa Agrícola Horácio Simões.

postas manteve um formato livre: desde a instalação até à projecção, passando por conferências-demonstração e visitas guiadas aos materiais de investigação dos projectos. O novo ciclo de residências artísticas do Atelier Real, com início em 2011, intitulado GHOST – acrónimo formado pelas palavras Guest e Host, aponta para a relação entre ser convidado e ser anfitrião. Ou, para ser mais preciso, gira em torno da possibilidade de ser simultaneamente convidado e anfitrião. Ao recebermos projectos que hão-de apropriarse, de forma temporária mas intensa, do espaço e dos meios do Atelier Real para organizar as suas próprias actividades, mas também para investir esse espaço de novos usos e esses meios de novos sentidos, levantaremos questões centrais sobre práticas colaborativas, tais como são actualmente desenvolvidas e questionadas na Arte contemporânea, bem como na sociedade civil. Será uma oportunidade para nos afastarmos da residência artística enquanto experiência monástica e solitária, e para criarmos a experiência colectiva de um lugar e de um projecto.

O Atelier Real é uma produção RE.AL. RE.AL, estrutura financiada pelo MC (Ministério da Cultura) / DGArtes (Direcção-Geral das Artes)


58

RESIDENCIAL Mesmo no centro de Lisboa, entre o Bairro Alto e Santos, a Real oferece um espaço único de trabalho e de alojamento para artistas, professores, estudantes, investigadores, programadores e outros agentes culturais, portugueses ou estrangeiros, das diversas disciplinas artísticas, que se encontrem em Lisboa para desenvolver projectos de criação, reunir com colaboradores, assistir a apresentações de espectáculos ou exposições, participar ou dirigir um workshop… Composta por 3 QUARTOS single e 2 duplos, a residência permite acolher até 7 pessoas em simultâneo que podem usufruir dos espaços comuns existentes como a cozinha (totalmente equipada), o pátio e zona de refeições, as casas-de-banho, a sala de estar com Tv e leitor de DVD, o gabinete de leitura e audiovisual e uma sala de trabalho. Existe telefone para recepção de chamadas e acesso wireless à internet. Paralelamente, existem espaços de trabalho que podem ser disponibilizados para projectos externos ao Atelier Real: um ESTÚDIO com 120 m2, ideal para ensaios e apresentações informais, e um SALÃO com 40m2, para reuniões, pequenos ensaios, lançamentos de livros ou projecções de vídeo. Ambas as salas estão equipadas com sistema de som, projector de vídeo, mesas e cadeiras.

Para mais informações, visitas ou reservas: REAL Rua Poço dos Negros 55. 1200-336 Lisboa. Email: info@re-al.org Tel. (+351) 21 390 92 55 www.re-al.org


Atelier Real Fev/Mar 2011

59

A exposição dos projectos “Quem é Noé Sendas, 2010” e “A Mesa do Alfarrabista, 2010” de Noé Sendas ficaram patentes no Atelier Real entre 20 e 24 de Março de 2010. COLECTIVO ‘ENCYCLOPÉDIE DE LA PAROLE’ (#) com a participação de Frédéric Danos, Grégory Castéra, Joris Lacoste e Olivier Normand (França). [Projecto acolhido em residência entre 5 e 18 de Abril de 2010] Apresentação pública, dia 17 de Abril de 2010, 18h00. A OPORTUNIDADE DO ESPECTADOR (*) de Rogério Nuno Costa (Portugal). [Projecto acolhido em residência entre 15 de Março e 22 de Maio de 2010] Apresentação pública (com a participação de Tânia Ribeiro e Teresa Athayde e a colaboração de Nelson Guerreiro), dia 22 de Maio de 2010, 18h00. No âmbito dessa residência, foi organizada no dia 19 de Maio de 2010, às 19h00, uma sessão pública de trabalho do projecto “A Oportunidade do Espectador”, em torno do filme “The Five Obstructions” de Lars von Trier e Jørgen Leth, com a participação de David-Alexandre Guéniot, João Fiadeiro e Rogério Nuno Costa. WHERE WE LIVE & WHAT WE LIVE FOR/KINGS OF ENGLAND (*) de Simon Bowes (Reino Unido). [Projecto acolhido em residência entre 14 e 21 de Junho de 2010] Apresentação pública (com a participação de Peter Bowes), dia 19 de Junho de 2010, 18h00, seguida de uma palestra de Simon Bowes sobre “Performance & Documentação”. UNE ÉTENDUE (*) de Rémy Héritier (França). com a colaboração de Audrey Gaisan Doncel, Loup Abramovici e Eric Yvelin [Projecto acolhido em residência entre 5 de Agosto e 26 de Setembro de 2010] Apresentação pública, dia 25 de Setembro de 2010, 18h00. PIECE OF CAKE (#) com Patrícia Almeida (Portugal), Katharina Bosse (Alemanha), Kelli Connel (EUA), Bert Danckaert (Bélgica), Goetz Diergarten (Alemanha), Charles Fréger (França), Marina Gadonneix (França), Yann Gross (Suíça), Matthias Koch (Alemanha), Seba Kurtis (Reino Unido), Birgitta Lund (Dinamarca), Loan Nguyen (Suíça), Andrew Phelps (Áustria), Justin James Reed (EUA), Friederike Von Rauch (Alemanha). [Projecto acolhido em residência entre 17 e 24 de Outubro de 2010] Apresentação pública do trabalho de Charles Fréger, dia 22 de Outubro de 2010, 19h00. Apresentação pública do trabalho de Seba Kurtis, dia 23 de Outubro de 2010, 18h00. DRAMA (DE)VICES (*) de Paula Caspão & Valentina Desideri (Portugal-França-Itália). [Projecto acolhido em residência entre 20 de Setembro e 21 de Novembro de 2010] Apresentação pública, dia 20 de Novembro de 2010, 10h00. No âmbito desta residência, Paula Caspão e Valentina Desideri convidaram a artista Ariane Loze (Bélgica) para apresentar, no dia 3 de Novembro às 19h00, o projecto MOWN (Movies On My Own), uma investigação artística sobre a montagem cinematográfica e as suas consequências no processo narrativo.

(*) Projectos seleccionados a partir de um convite internacional à apresentação de propostas, divulgado em Julho de 2009. (#) Projectos directamente convidados para explorar práticas, disciplinas ou problemáticas complementares.


Da documentação de um processo de criação à realização de obras que usam protocolos de arquivamento para se constituir em realidade ficcional, e passando por propostas que questionam a forma do “documentário” em termos artísticos, os termos “restos”, “rastos” e “traços” permitem dinamizar as noções de documento e de documentação através de uma abordagem pluri- e trans-disciplinar, bem como abrir a compreensão e a análise do tema a especulações teóricas e artísticas. Representam hipóteses de trabalho, já que cada um dos termos – “restos”, “rastos” e “traços” – parece implicar sempre os outros, interferir constantemente com os outros. 1. RESTOS (DE PROCESSOS): se definirmos o resto como a parte inutilizada, a parte que sobra de um processo de fabricação/criação, a “documentação dos restos” consistirá em reflectir sobre o uso (e o não-uso), a utilidade e/ou inutilidade desses excedentes, bem como sobre a natureza voluntária ou involuntária do resto enquanto resultado de uma escolha artística ou da ausência dela. Quer isto dizer que no contexto artístico abordaremos o resto (e os seus “documentos”) enquanto parte inexplorada de uma obra já constituída ou em curso de criação. Interessa-nos assim promover uma reflexão prática sobre as potencialidades artísticas do resto tal como existe, por exemplo, em obras que só usam materiais encontrados ou produzidos por anónimos. Mas interessa-nos também reflectir sobre a relação que o artista estabelece com os materiais ou as suas “proto-obras” que ficaram inacabadas, abandonadas ou esquecidas. A essa família, pertenceram, por exemplo, os projectos “Processo: Quem é Noé Sendas” de Noé Sendas, “Une Étendue”, de Rémy Héritier, ou ainda os projectos “Immigration Files” ou “Shoe Box” de Seba Kurtis, membro do colectivo Piece of Cake (POC). 2. RASTOS (DE FICÇÕES): de maneira geral, o rasto pode ser definido como o que fica de uma actividade num dado local e num dado tempo. A “documentação do rasto” consiste então em mostrar os indícios dessa actividade, transformando/materializando esses indícios em vestígios, e organizando-os de forma a reconstituir uma realidade completa ou parcialmente desaparecida, parcial ou totalmente inventada. O documento-rasto constitui-se assim como uma a mostra, como um extracto a partir do qual é possível (re)constituir/(re)inventar a acção ou a realidade que originou o rasto. Em relação às práticas artísticas na arte contemporânea, a noção de documento-rasto tem sido trabalhada na sua vertigem documental (entre a prova e a manifestação), descontextualizando documentos de uma realidade pré-existente ou criando documentos de uma realidade imaginada, ou seja, criando uma espécie de arqueologia de um mundo ausente, ou de falsificação de um mundo presente. O mesmo é dizer que a prática da documentação na criação contemporânea pode também ser vista como motivo e móbil do processo criativo, processo no qual o que constituía a pesquisa preliminar de um trabalho artístico passou a definir a própria matéria e a predeterminar a forma do próprio objecto artístico. A essa família, pertenceram, por exemplo, os projectos “Identikit” de Péter Rakósy e Gergely László/Tehnica Schweiz, “Where We Live & What We Live For/Kings of England” de Simon Bowes, ou ainda “Drama (De)Vices” de Paula Caspão e Valentina Desideri. 3. TRAÇOS (DE REALIDADES): por definição (numa abordagem tradicional, analógica), o documento é um traço. O documento recebe a inscrição de um acontecimento, ou seja, transporta um significado, preserva uma informação, constitui-se enquanto testemunho de algo. A “documentação dos traços” consiste em recolher e exibir documentos que comprovam a existência e a realidade de um acontecimento. No entanto, a documentação dos traços levanta a questão da intencionalidade dos documentos. À semelhança do documento fotográfico (e do uso da legenda), o documento-traço constitui-se enquanto prova material de um acontecimento (“isto aconteceu”), mas é também a manifestação de referências estéticas, sociais, ideológicas… que o documento absorve e transporta com ele. Neste sentido, o “documento-traço” constituise enquanto marcador de uma representação da realidade social e política, onde o que não é mostrado é tão importante como o que é mostrado. A essa família, pertenceram, por exemplo, os projectos “Name Readymade” de Janez Janša, Janez Janša e Janez Janša, “Fora de Campo” de Catarina Simão ou ainda o projecto colectivo da Encyclopédie de la Parole. CONTACTOS: ATELIER REAL, RUA POÇO DOS NEGROS Nº55. 1200-336 LISBOA. ATELIER@RE-AL.ORG | WWW.ATELIER-REAL.ORG


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.