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Editorial No âmbito do ciclo “Restos, rastos e traços. Práticas de documentação na criação contemporânea”, o Jornal de JaneiroFevereiro do Atelier Real concentra-se na problemática subjacente ao projecto desenvolvido em residência por Alexandra Ferreira e Bettina Wind, e volta ao projecto “Fora de Campo” de Catarina Simão, cuja primeira etapa de trabalho foi apresentada publicamente no dia 28 de Novembro de 2009, no Atelier Real. Com o projecto “This is not the Documentation of a Performance (2010)” (que será apresentado publicamente no dia 23 de Janeiro às 19h00), Alexandra Ferreira e Bettina Wind – acompanhadas por Gonçalo Ferreira de Almeida e Ramiro Guerreiro – escolheram trabalhar sobre a questão da documentação da performance – forma artística efémera que por natureza deixaria poucos traços – ou seja, sobre os limites e as implicações deste tipo de documentação. Até que ponto é que a documentação de uma performance pode prolongar a performance, ou a partir de que momento é que a documentação substitui a performance. Catarina Simão prolonga o projecto “Fora de Campo” com
um dossier (nas páginas centrais) reunindo as intervenções de Ros Gray, professora no Goldsmiths College da Universidade de Londres, Jorge Blasco Gallardo, responsável pelo projecto “Culturas de archivo” em Barcelona, e Alex Arteaga, artista e professor convidado na Universidade Humboldt em Berlim, que foram seus convidados por ocasião da apresentação pública do projecto. Os textos aqui publicados foram escritos especialmente para este jornal e vêm acompanhados de documentos utilizados na apresentação pública. Em complemento, algumas fotografias mostram a sala de documentação dedicada ao projecto, instalada no Atelier real entre 28 de Novembro e 5 de Dezembro. Este dossier vem também concluir uma primeira etapa de trabalho do projecto “Fora de Campo”, primeira etapa que terá servido essencialmente para identificar algumas referências conceptuais e para especificar o território, tanto multi- como trans-disciplinar, ou mesmo infradisciplinar, no qual evolui. David-Alexandre Guéniot, Direcção artística do Atelier Real
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Ciclo Restos, rastos e traços. Práticas de documentação na criação contemporânea
Atelier Real, 23 de Janeiro, 19H00 (Entrada livre) Lotação limitada. Jantar "Comida do Povo" no Atelier Real a partir das 20h00. Reserva: t. 21 390 92 55 ou info@re-al.org
THIS IS NOT THE DOCUMENTATION OF A PERFORMANCE (2010) [1]
de Alexandra Ferreira e Bettina Wind (Portugal-Alemanha) com a colaboração de Gonçalo Ferreira de Almeida e Ramiro Guerreiro
Durante a nossa pesquisa no arquivo de Mousonturm de Frankfurt [2], no princípio de 2009, encontrámos uma cassete vídeo de “Xavier Le Roy by Jérôme Bel”, de 2001. As elevadas expectativas geradas pelo facto de termos descoberto uma relíquia no vasto e disperso arquivo do centro de performance, desapareceram assim que começámos a ver a cassete VHS: era quase impossível reconstituir a performance, devido ao limitado ângulo da câmara, à inexistência de som, e à fraca qualidade da VHS e da própria
filmagem. Para além de um artigo de jornal e de um plano do desenho de luz, o vídeo era o único elemento que supostamente deveria documentar a existência do acontecimento passado, mas que não conseguiu captá-lo na sua totalidade. A exposição que depois realizámos no Mousonturm mostrava traços e documentos do arquivo que desencadeavam diferentes narrativas num cenário semificcional. Decidimos não usar a cassete e depressa nos esquecemos da sua existên-
cia. Apenas quando começámos a reflectir sobre documentação e sobre a relação bastante delicada que mantém com as obras de arte, é que nos apercebemos que o nosso achado no arquivo se podia afinal transformar numa verdadeira descoberta... Quando o Jérôme Bel foi convidado a criar uma nova peça após “Le dernier spectacle” [1998], pediu a Xavier Le Roy, seu colega, para fazer uma peça cujo autor seria contudo Jérôme Bel. Esta forma pouco comum de distribuir tarefas
pôs em marcha uma série de questões sobre autoria, sobre o original e a imitação, tanto ao nível da performance como no contexto da criação. Numa conversa encenada, filmada alguns anos depois da peça, os coreógrafos evocaram os movimentos e as imagens da performance original traduzindo-os em gestos e palavras: uma nova camada foi assim acrescentada à documentação da performance. O nosso interesse por este material de documentação deve-se particularmente
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à sua resistência a uma reconstituição “fiel” do acontecimento e da sua teatralidade, ao mesmo tempo que ambos os documentos – os vídeos da performance e a conversa – evocam uma atmosfera de autenticidade e de “objectividade”. Gostaríamos de partir desta relação paradoxal entre a documentação e o acontecimento, de maneira a colocar várias questões sobre a natureza e a função da documentação: Será ela uma prolongação intrínseca da obra de arte, ou antes uma interpretação suplementar a partir de uma perspectiva exterior, ou as duas coisas? De que maneira é que a documentação facilita ou impede a revitalização de uma experiência? Será que podemos vê-la como uma imitação sem original (como propõe Judith Butler em relação ao género) que dá existência à obra de arte ao descrevê-la como um acontecimento passado? Servirá ela o poder reflexivo da(o) artista ou aumentará simplesmente o capital simbólico do seu CV? Qual é o aspecto mais forte, o rumor que evoca um acontecimento ou a visualização que o documenta? Convidámos o intérprete Gonçalo Ferreira de Almeida e o artista visual Ramiro Guerreiro para trabalhar connosco nestas questões e interpretá-las para a câmara em nosso nome. Entregando a tarefa do questionamento e da reinterpretação do material e dos nossos pensamentos aos intérpretes, esperamos produzir um “estranhamento” [3] na percepção que habitualmente se tem da documentação de uma performance na sua forma mais comum. Gostaríamos de agradecer a: Patrícia Almeida, Pedro Barateiro, Yael Bartana, Gonçalo Ferreira de Almeida, Ramiro Guerreiro, Pedro Lagoa, Milene Matos Silva, Sofia Matos Silva & Marta Pina, Nuno Morão, Adrian Piper, Renata Sancho, Ivo Serra e a equipa da RE.AL pelo apoio e acompanhamento do nosso projecto. [1] “Isto não é a Documentação de uma Performance”: título tirado da obra de Adrian Piper “This is Not the Documentation of a Performance” (1976), Courtesy John Weber Gallery, colecção da artista, com a generosa autorização. [2] O Künstlerhaus Mousonturm é um espaço de criação, de produção e de informação para artistas internacionais de todas as disciplinas, centrando-se na dança contemporânea, no teatro, na música, na performance e nas artes plásticas. Mais informações em http://www.mousonturm.de [3] No sentido do “estranhamento” brechtiano (Verfremdugseffekt), também frequentemente designado em português como “distanciamento”.
Bios Alexandra Ferreira & Bettina Wind O nosso trabalho de colaboração baseia-se sempre num local e num contexto específicos, a partir dos quais desenvolvemos a nossa estética e as nossas narrativas. Após uma primeira colaboração por ocasião de Map Station, uma instalação performativa e uma série de eventos criados para o festival Plateaux – Performance Arts at Mousonturm (Frankfurt/Main 2005/2006), iniciámos em 2006 a série State of Translocality, como plataforma de reflexão e de interacção no vasto campo da translocalidade. Com base numa investigação teórica e empírica exploramos diversas situações (como agências de viagem ou intervenções urbanas com panfletos), para restabelecer uma relação entre os termos sociológicos e geográficos e a realidade sentida e imaginada dos “trabalhadores translocais”. Nas nossas instalações performativas navegamos entre o “fetiche do local” e o “fetiche do translocal”, de forma a questionar um e outro: a revitalização da imaginação nacionalista e a negação de ligações locais, num espaço translocal criado por trabalhadores hiper-migrantes. Passos importantes deste processo foram Enter now, para o New Media Festival First Play – HAU (Berlim 2006); For your safety, durante AnAcademy/Gasthuis (Amsterdam 2007); Association of the State of Translocality, no Festival CALE (Fundão 2007) e Pamphlets for the State of Translocality, na exposição Be(com)ing Dutch (Eindhoven 2008), no museu VanAbbeMuseum. A nossa colaboração mais recente foi 40 Jahre Mousonturm // Eine Retrospektive, uma instalação de arquivos na Künstlerhaus Mousonturm (Frankfurt/Main 2009), realizada juntamente com o artista Pedro Lagoa. http://windferreira.blogspot.com Alexandra Ferreira estudou Artes Plásticas na Escola Superior de Artes e Design (E.S.T.G.A.D.) das Caldas da Rainha e de Barcelona. Desde 1996 trabalha no Departamento de Escultura de Évora e cria esculturas e instalações em estreita relação com sites de apresentação, por exemplo o bairro da Malagueira (Évora 2000) e o Museu de Cerâmica (Caldas da Rainha 2001). Para além do seu trabalho de escultura co-iniciou vários projectos em Portugal, tais como Caldas Late Night, Carcaju e Loja dos Trezentos (a partir de 1996). Nas suas exposições individuais trabalha com diferentes media, sobretudo o desenho, o vídeo e a fotografia, para formar um corpo de trabalho como comentário crítico da estética e do controle: Moi, je t’observe tous les jours, uma experimentação fotográfica (n°241 Rua da Rosa, Lisboa 2005), Alles unter Kontrolle, uma instalação sobre a performance em zonas limítrofes, incluindo vídeo e desenhos (Estúdio Bomba Suicida, Lisboa 2006) e Mountains are for Masochists, uma reflexão sobre a beleza e os limites do controle em escultura, no desenho e na fotografia (Galeria Plumba, Porto 2008). Bettina Wind estudou dramaturgia, literatura e etnologia europeia em Munique, e trabalhou como dramaturga na área da performance, antes de iniciar uma investigação de longo prazo sobre projectos artísticos interdisciplinares em diferentes cidades europeias, cujos resultados apresentou sob a forma de uma série de mapas e de leituras performativas: Incorrect Maps and Imaginary Snapshot (Bruxelas, Lisboa, Porto, Lovaina 2004/5). No âmbito da sua investigação participou em simpósios interdisciplinares como ICATS Summer Academy for Advanced Theatre Studies (Helsínquia 2004) e “IMPACT” em PACT Zollverein (Essen 2004). Nos seus trabalhos individuais utiliza textos, mapas e slide shows para criar situações performativas e plataformas de intercâmbio, tais como Mapping Nomadic Structures (Bruxelas 2007), A Desiring Machine (Ballhaus Ost, Berlim 2008), e Strange Forms of Life (2. Aufgang, Berlim 2008). Contribuiu com textos para a conferência internacional “O Fascínio de Ulisses” (Galeria Luís Serpa, Lisboa 2008), para Maarav Art Magazine (Telavive 2008), e para exposições de Mariana Viegas, Carla Cruz, e Alexandra Ferreira. Ramiro Guerreiro Frequentou o curso de Arquitectura no Porto, que interrompeu para frequentar o Programa de Estudos Independentes na MAUMAUS, Escola de Artes Visuais, em Lisboa. Desde então foi convidado a participar em diversas exposições colectivas, tais como Pilot: 2 (Londres, 2005), Prémio EDP Novos Artistas (Coimbra 2005 – menção honrosa) ou BES Revelação (Porto 2005), entre outras. O seu trabalho prende-se com diversas questões, principalmente relacionadas com os espaços e os seus usos, com a representatividade simbólica e o contexto dos lugares onde intervém, recorrendo a diversos media, incluindo a performance (dependendo do tipo de proposta – de curadoria e/ou artística). Entre as exposições individuais destacam-se Vislumbre (igreja de São Tiago, Óbidos 2008), Acções, Propostas e uma Intervenção (galeria Lumiar Cité, Lisboa 2009) ou Verdes Anos (Museu da Electricidade, Lisboa 2009). Para além do trabalho em artes visuais tem colaborado na área do teatro (espaço cénico e figuração especial) e da dança (com um solo para Tânia Carvalho). Em Abril de 2008 terminou uma residência artística (6 meses) na Casa de Velazquez, em Madrid, com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian. Presentemente (até Julho de 2010), encontra-se em residência artística do programa Le Pavillon, com uma bolsa do Palais de Tokyo, em Paris. Gonçalo Ferreira de Almeida Artista de Variedades. Curso de Teatro da Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa. Como actor participou em espectáculos dirigidos por Maria Germana Tânger, Ricardo Pais, Miguel Loureiro, João Grosso, Lorenzo Mele, Robert Wilson, Filipe Viegas e Graça Lobo. É membro do grupo projecto teatral, tendo participado na criação dos trabalhos: dissidências vers.1997 (1997), para ser cantado sobre as águas (1998); O Sabão (2002); “teatro” (2003); Bouvard e Pécuchet (2004); Édipo em Colono (2004); Transiberiano (2005); estufa (2005-2006); LION NOIR (2008); vazio do teatro (2009). Autor e intérprete dos solos Maria Bakker (1999), Dobro (2003), Royal Box (2004) e Anita O’Day (2006), e co-autor, com Maria Duarte, de keepsake (2007). Participou no filme Morrer como um homem de João Pedro Rodrigues, estreado na edição de 2009 do Festival de Cannes. Intérprete do solo # 6 gonçalo (2009), coreografia de Tânia Carvalho, integrado no ciclo Movimentos Diferentes para Pessoas Diferentes.
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Uma aproximação às questões actuais em torno da documentação da performance
Este texto pretende dar ao leitor – e ao espectador da apresentação do projecto “This is not the Documentation of a Performance (2010)”, de Alexandra Ferreira e de Bettina Wind, no dia 23 de Janeiro de 2010 – uma ideia das questões actualmente debatidas em torno das formas de mostrar documentos relativos a performances artísticas criadas nos anos 19601970, ou das formas de as re-experimentar através de “reconstituições” (ou re-enactments) [1]. Essas performances foram frequentemente apresentadas em galerias, em condições confidenciais (uns quantos espectadores reunidos numa galeria de arte mais ou menos underground) mas constituíram – no caso de algumas delas – momentos importantes da história da arte contemporânea.
Shoot, 1971. Foto DR. At 7:45 p.m. I was shot in the left arm by a friend. The bullet was a copper jacket 22 long rifle. My friend was standing about fifteen feet away from me. Chris Burden.
Durante muitos anos, a performance foi estigmatizada por causa da sua relação intrínseca com a agitação política e reivindicativa que atravessava então os anos 1960-70. Se esse estigma sobreviveu tanto tempo é porque a performance mantém de facto uma relação essencial – não tanto com a política, mas – com o político enquanto questionamento sobre o lugar do indivíduo (espectador e actor) numa determinada sociedade. Enquanto forma artística, a performance
exacerba a copresença do artista e do espectador num dado lugar e num dado momento, uma copresença organizada cuja razão de ser é partilhar, em directo, a experiência da criação de uma obra de arte. O espectador assiste a uma experiência única que é simultaneamente o nascimento e o desaparecimento de uma obra, pela primeira e única vez em que poderá ser observada in situ e en personne. Esta posição do artista em relação ao acto criativo e em relação ao seu
consumo espontâneo constitui uma posição política. No livro Unmarked, Peggy Phelan tira todas as consequências das condições de produção da performance. Uma vez que por essência não é reprodutível, a performance não só não se adapta ao mercado (capitalista) da arte, mas escapa igualmente a qualquer produto derivado sob a forma de um artefacto (fotografias, filmes, etc.) – sob pena de se transformar em outra coisa. (continua página 17)
Dossier
Fora de Campo de Catarina Simão
“Fora de Campo” (FdC) é um projecto in progress. Não só porque há a expectativa que perdure ao longo de algum tempo, mas também porque propõe operar sobre a actualização de acontecimentos: acções, decisões e negociações reais que envolvem o arquivo de cinema de Moçambique.
Fotografias da sala de documentação do projecto “Fora de Campo”, de Catarina Simão. Atelier Real, entre dia 28 de Novembro e 5 de Dezembro de 2009. Fotos de Catarina Simão e David-Alexandre Guéniot.
Este projecto “progride” também nos interstícios de várias disciplinas: recolhe e analisa documentação histórica (como uma investigação académica), relaciona-se com os efeitos da colonização sobre as culturas (como nos estudos pós-coloniais), apresenta-se num espaço artístico (como um site specific), parte da possibilidade da transformação política das imagens estar associada ao tipo de organização a que está sujeita (como na arquivística) e por isso aborda uma colecção de imagens inacessíveis, construindo relações entre os elementos que as envolvem (como numa investigação criminal). A maior parte desses elementos foram reunidos numa sala visitável: mapas cartográficos, documentos, vídeos cedidos pela realizadora Margarida Cardoso (que visitou o arquivo em 2001), fotografias, entrevistas feitas por vários investigadores a produtores e realizadores dos filmes do arquivo, artigos teóricos, livros e um
catálogo videográfico. Este material permitiu desenhar “triangulações” semânticas entre o arquivo e a história pessoal e colectiva de muitos dos seus protagonistas. Mas neste modelo de projecto “em curso” cabe também a possibilidade desta trama se retro-alimentar criticamente através do confronto com acontecimentos induzidos. A ideia é fazer transitar uma reflexão necessariamente documental para o plano do presente e trabalhar colectivamente, experimentando cognitivamente a sua “actualização”. Assim, FdC apresentouse com a participação de mais três intervenientes, que durante algumas horas organizaram uma sessão de trabalho com o público. As contribuições individuais estão expressas nos textos que constam do interior deste dossier FdC: Ros Gray (Universidade Goldsmiths, Londres) faz valer o seu conhecimento sobre a história social do arquivo de
Moçambique, para legitimar uma lógica ininterrupta de relações politizadas que se verificam até aos dias de hoje; Jorge Blasco (www.culturasdearchivo.org, Barcelona) decompõe a palavra “arquivo” para desmontar uma maquinaria de poder; Alex Arteaga (Universidade Humboldt, Berlim) propõe incluir o potencial relacional do corpo com a imagem, como mais um elemento organizador à qual ela está sujeita. Catarina Simão é arquitecta e investigadora independente. Vive e trabalha em Lisboa. Actualmente dirige o projecto em curso "Fora de Campo". Mais informação relativa ao projecto “Fora de Campo” pode ser consultada no Jornal do Atelier Real de Novembro/Dezembro de 2009 e no site www.atelier-real.org.
Fotogramas de gravações vídeo captadas por Margarida Cardoso no INAC, em 2001.
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Um arquivo de aspirações Ros Gray
Durante alguns breves anos, no final da década de 1970 e início da década de 1980, Moçambique era um sítio chave no mapa global do cinema revolucionário. Era um lugar onde se realizavam várias experimentações sobre a forma como o filme pode agir enquanto agente de mudança social radical. O cinema devia fazer parte de uma frente cultural internacional contra o imperialismo capitalista, mas era igualmente explorado em função de um projecto local de descolonização. Quando a FRELIMO estabeleceu o Instituto Nacional de Cinema [INC], pouco depois da independência, encorajaram duas correntes de realização fílmica radical. A primeira era a realização fílmica levada a cabo durante a luta armada. Não dispondo de condições próprias para a realização de filmes, a FRELIMO convidou vários realizadores estrangeiros para documentar o novo tipo de sociedade que estavam a criar na base de Nashingwea, perto de Dar es Salam na Tanzânia, e nas zonas liberadas. Os filmes que então se realizaram incluem A Luta Continua (1972), do americano Robert van Lierop, Behind the Lines (1971), da inglesa Margaret Dickinson, Dieci giorni con I guerriglieri nel Mozambico Livro (1972), do italiano Franco Cigarini, bem como Nashingwea (1975) e Do Romova ao Maputo (1975), de Dragustin Popovitch. A segunda era a produção colonial de filmes, que produziu predominantemente propaganda imperialista. Foram contudo feitos dois filmes que criticavam o regime, e que por isso foram imediatamente banidos: Catembe – 7 dias em Lourenco Marques (1964), de Manuel Faria de Almeida, e Deixam-me pelo menos subir as palmeiras (1972), de Joaquim Lopes Barbosa, ambos mostrando as realidades da discriminação e a brutalidade colonial. Quando chegou finalmente a independência, os amadores dos cineclubes coloniais constituíram um bem crucial para o INC. Foi neste contexto que o realizador amador José Cardoso fez curtas metragens experimentais que criticavam o regime. A abolição da censura que se seguiu à Revolução dos Cravos, em 1974, significou que toda uma variedade de filmes e de teoria de “Terceiro Cinema” se tornou acessível aos cineclubes, indicando ao desejo revolucionário um novo conjunto de direcções. O INC estabeleceu-se com equipamento confiscado às casas de produção colonial, e com câmaras e unidades de cinema móvel doadas pela USSR. O arquivo do filme continha uma colecção eclética de propaganda soviética, comédias musicais indianas, documentários britânicos, que eram utilizados para ensinar os rudi-
mentos do cinema a uma nova geração de realizadores moçambicanos. O arquivo também incluía produções coloniais, que eram largamente apropriadas por um novo tipo de texto fílmico cuja intenção era denunciar os mitos do imperialismo português. Apesar do espírito de experimentação e da relativa liberdade dos primeiros anos do INC, verificaram-se tensões desde o início, entre realizadores interessados na expressão artística e a exigência de documentar a revolução e de fazer propaganda. Dois filmes feitos em 1975 sublinham este conflito, mas dão igualmente uma ideia da variedade de produções. Ambos eram celebrações da independência moçambicana: Do Romova ao Maputo, de Popovitch, filmava a marcha triunfante de Samora Machel do rio Romova, no Norte, a Maputo, no Sul, a viagem significando a simbiose da FRELIMO com os desejos do povo moçambicano. No mesmo ano, os brasileiros José Celso e Celso Lucas fizeram “25”, um filme extraordinariamente experimental que é sobre Moçambique, mas expressa também uma imaginação política global que tem quase uma dimensão mística. Numa série de cenas justapostas, vemos as celebrações oficiais da independência, com oficiais da política a fazer discursos e a levantar bandeiras, contrastando com cenas de uma praia onde uma multidão se reúne à volta de uma fogueira ao pôr-do-sol – “o povo”, ao que parece, está noutro lugar. Têm os seus próprios gestos e modos de expressão, que não podem ser comportados ou representados pelos símbolos e pela retórica da política oficial. Durante os anos 1970 e 1980, realizadores militantes a título individual e delegações de países simpatizantes vieram de vários pontos do globo para formar os realizadores moçambicanos e para fazer filmes. As trajectórias de realizadores como o mauritano Med Hondo, o senegalês Ousmane Sembene, o cubano Santiago Alvarez, para referir apenas alguns deles, formam um mapa radical no qual Moçambique aparece como um sítio chave. O brasileiro Ruy Guerra era uma figura chave do cinema moçambicano, tanto enquanto realizador como no seu papel de conselheiro “por trás dos panos” do INC. O seu filme Mueda, Memoria e Massacre (1979) é o filme de uma comunidade inteira reconstituindo o massacre de Mueda, em 1960, que galvanizou o início da luta armada. Num artigo publicado no Tempo, Guerra descreve o filme como fazendo um “cinema imperfeito” a partir de um “teatro imperfeito” – referindo-se ao ensaio de Julia Garcia Espinosa, “For an Imperfect Cinema”. A equipa do filme encontrava-se
completamente imersa no drama que se desenrolava, mas o filme é entrecortado por testemunhos de sobreviventes do massacre – camadas de representação e de testemunho sugerem uma noção bastante complexa da construção de uma narrativa histórica e da identidade nacional, através da memória colectiva e da expressão cultural autóctone. Os realizadores franceses Jean Rouch e Jean-Luc Godard também levaram a cabo uma investigação, realizando filmes e dando formação em Moçambique, no final dos anos 1970. Esses projectos foram mais abrangentemente discutidos no âmbito da literatura crítica, mas o trabalho deles ainda levanta muitas questões sobre as contradições e complexidades de dois realizadores europeus tentando utilizar a realização de filmes como uma ferramenta de auto-afirmação no contexto de uma nação africana emergente, cujo processo de descolonização era dirigido por um regime que se estava a tornar cada vez mais autoritário. Entretanto a produção principal do INC era mais propícia aos objectivos da FRELIMO. O jornal cinematográfico Kuxakanema fez-se primeiro esporadicamente em 1978, e depois a partir de 1980 semanalmente, com 10 minutos de filme. Era distribuído através do país à população mormente rural, com as unidades de cinema móvel fornecidas pela União Soviética. O Kuxakanema devia tecer uma imagem coesa da identidade nacional, que apagaria as diferenças étnicas e linguísticas. O nome significa “Nascimento do Cinema”, com palavras de Ronga, Changange, Chua e Macua combinadas, para simbolizar a unidade da nação. O jornal cinematográfico tinha a função não apenas de informar, mas também de promover o fervor revolucionário exemplar do “novo moçambicano” incarnado na figura de Samora Machel, líder carismático da FRELIMO. Machel tinha uma postura muito característica, e a maneira como intimidava e persuadia o seu público, usando formas retóricas de pergunta-resposta, era enormemente popular junto dos espectadores de cinema. Apesar de a ênfase se manter no documentário, fizeram-se duas longas metragens durante os anos 1980. Os Tempos dos Leopardos (1985), uma co-produção com a Jugoslávia, é um filme de ficção que se passa no tempo da luta pela independência. A experiência dos realizadores moçambicanos envolvidos no projecto – dependência material, falta de liberdade criativa e racismo – revelou a falsidade da “Amizade Socialista” entre a Jugoslávia e Moçambique. Apesar de esta narrativa bastante didáctica poder não ter sido o género
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de filme que os realizadores moçambicanos queriam fazer, Os Tempos dos Leopardos foi um enorme sucesso junto do público do cinema, aquando da sua saída. No mesmo ano, José Cardoso realizou O Vento Sopre do Norte (1985). O filme foi filmado em preto e branco, de forma a poder ser revelado pelo laboratório do INC. O Vento desloca-se entre várias personagens e cenas, para pintar uma memória muito pessoal da Lourenço Marques colonial. Talvez o facto de contar uma história de injustiça colonial numa altura em que a FRELIMO estava ela própria muito comprometida, não seja apenas uma coincidência. Em 1986, Samora Machel perdeu a vida quando o avião em que viajava foi misteriosamente desviado e se despenhou em território sul africano. Em 1989, a FRELIMO renunciou formalmente ao marxismo-leninismo, abrindo caminho às negociações que levaram às eleições multipartidárias e à adopção do mercado livre no país. A crise económica originada pela guerra e pelo enfraquecimento do projecto colectivo do governo, associados à retirada do apoio dos países do bloco soviético, significou que durante os anos 1980 os benefícios do INC tinham sido gradualmente apropriados pelo Estado para outros fins. As produções eram canceladas, e os cinemas através do país caíam em estado de degradação. Na noite de 12 de Fevereiro de 1991, aparentemente em consequência de uma falha eléctrica, o INC foi quase completamente destruído pelo fogo. O paradoxo é que este arquivo incarna um conjunto de aspirações, que na altura em que surgiram pareciam ser o início de algo novo e imparável. Na verdade marca o fim de uma época, tanto em termos de uma viragem tecnológica para a televisão, para o vídeo e as formas digitais, como em termos da incapacidade dos Estadosnação socialistas africanos para criar uma rede de distribuição e de produção de cinema independente do imperialismo capitalista. As revoluções africanas dos anos 1970 são hoje em dia habitualmente caracterizadas pela desilusão e pela catástrofe que se seguiram ao seu despertar. Essa desilusão, que é o pressuposto de uma certa posição de observação a partir da qual o ocidente vê e se encontra permanentemente “desiludido” com África, serve de ecrã para atravessar circuitos audiovisuais dominantes. Nas palavras de Edouard Glissant, “Vemos muito de África na televisão – SIDA, massacres, guerras tribais, misérias... Mas na realidade não vemos África. É invisível.” O próprio arquivo do filme, que poderia gerar uma visão diferente – os filmes da luta armada e os filmes feitos pelo INC –, está hoje praticamente destruído e os seus restos dispersos e em fragmentos. O que sobrevive do arquivo, não obstante, reanima o momento em que Moçambique se encontrava no coração da esperança revolucionária. Dá provas de uma forma diferente de globalização, tecida a partir de conexões e de esperanças vividas e sonhadas através do cinema.
[1] “On voit beaucoup l’Afrique à la télévision – le sida, les massacres, les guerres tribales, les misères… Mais en fait, on ne voit pas l’Afrique. Elle est invisible.” (Boniface Mongo-Mboussa, Désir d’Afrique, Paris, Gallimard, 2001, p.233)
Ros Grey é escritora e teorizadora. Lecciona Estudos Críticos no Departamento de Arte do Goldsmiths College, na Universidade de Londres, e é directora de investigação no Departamento de Curadoria de Arte Contemporânea, no Royal College of Art.
A versão integral deste texto (em inglês) encontra-se disponível em: www.atelier-real.org.
“Apprendre, apprendre, apprendre, apprendre...”, Jean-Luc Godard – Rapport sur le voyage nº 2B de la Société Sonimage au Mozambique – 1978
Kodak Catarina Simão
O realizador brasileiro Murilo Salles (“Estas são as armas”, INC 1978 – fotograma 37 a 45) e Jean-Luc Godard, encontraram-se em Moçambique no final dos anos 70. O primeiro conta [1] que Godard, para provar que a marca de filmes Kodak era imperialista e racista, fez um filme no qual o branco estava bem reproduzido e o negro não. Não há vestígios deste filme (nem sequer provas técnicas que subscrevam a tese godardiana), mas um outro documento dá conta do posicionamento ideológico de Godard, por detrás das suas experiências com a imagem em Moçambique: o “Rapport sur le voyage nº 2B de la Société Sonimage au Mozambique” vê na utilização democratizada do vídeo a possibilidade de criar no futuro um canal independente de difusão que mostrasse as imagens da auto-representação do “povo” moçambicano. Sabemos que estas ideias nunca encontraram eco nos objectivos do poder político e que o seu projecto foi recusado. A época era mais para um cinema de propaganda pouco sofisticado mas mais de acordo com a realidade social Moçambicana, a braços com dificuldades económicas e ataques armados por todo o país. Contudo, a experiência de “Rapport...” veio a sair como número especial de Cahiers du Cinema (nº 300, Maio de 1979). São exactamente trinta anos que separam a produção de “Rapport...”, de 1978, do artigo de José Manuel Costa, “Mission in Maputo: Saving the film collection at INAC” para o Journal of Film Preservation, de 2008. O paralelo entre os dois documentos está no facto de ambos veicularem um conjunto de pressupostos e interesses da cultura europeia sobre a produção de imagens de um outro país. Efectivamente, nunca como agora os governos europeus haviam manifestado, e com tanto interesse, a intenção de recuperar, organizar e constituir um arquivo “patrimonial” com estes filmes. No caso de Portugal (porque a Cooperação Espanhola apresentou a mesma oferta para recuperar o arquivo), o processo é suportado pelo Governo Português e por fundos de desenvolvimento, com a participação da Cinemateca Portuguesa, como explica no seu artigo José Manuel Costa, responsável técnico e coordenador deste processo. Filmar o povo e devolver a imagem ao Povo: um slogan para uma estratégia de imagem. Há trinta anos atrás, Samora Machel e o novo poder político da FRELIMO viu no cinema uma linguagem moderna para combater o imperialismo. Contudo, hoje a FRELIMO persiste no poder e conti-
“Mission in Maputo: Saving the film collection at INAC”, José Manuel Costa – Journal of Film Preservation /76 – 2008 (ver online: www.fiafnet.org/pdf/FIAF76.pdf).
nua a ser o interlocutor das negociações com os governos europeus, para receber os fundos para a recuperação dessas mesmas imagens. De que modo são oferecidos estes apoios e, sobretudo, como são recebidos? Até que ponto tais negociações reproduzem o modo como essas imagens são interpretadas pelos Europeus? – pelos Moçambicanos? – por um sistema não totalmente descolonizado? Neste contexto, que mensagem veicula a palavra “APPRENDRE” (aprender) em Godard, e a palavra “Mission” (missão) no artigo de José Manuel Costa? [1] “Filmografía Sumária” - Entrevista a Murilo Salles por Serpúlveda Siqueira“
Compreender a imagem Alex Arteaga
Compreender a imagem como instância activa e não como representação de uma realidade já existente, que é ou foi gerada independentemente da imagem que com ela se relaciona. Esta ideia é o eixo central de uma nova teoria da imagem: a teoria do acto imagético [Theorie des Bildaktes]. Desenvolver esta teoria constitui o objectivo do Grupo de Estudos Avançados do Acto Imagético e da Incorporação [Kollegforschergruppe “Bildakt und Verkörperung”] da Universidade Humboldt de Berlim. A incorporação, a segunda componente que consta na designação deste grupo de investigação, refere-se à Filosofia da Mente Incorporada e Situada [Philosophy of Embodiment]: às novas teorias cognitivas que consideram que o processo cognitivo humano é constitutivamente determinado pelo facto de a unidade cognitiva, todo o sistema cognitivo, ser incorporado – ser corpo – e situado – e interagir constantemente com o meio ambiente que o rodeia. Neste contexto, uma das referências teóricas principais é a chamada abordagem enactiva [enactive approach], ou simplesmente enactivismo [enactivism
com o seu meio ambiente, constitui uma das principais teorias de base para desenvolver uma explicação não metafórica da origem e da estrutura da maneira como as imagens actuam, para contribuir para revelar le secret de l’image [2] , para compreender como é que é possível que uma matéria inanimada – imagens – contribua para gerar realidade ao mesmo tempo que gera as unidades cognitivas que com ela interagem generativa e perceptivamente – se é que esta distinção faz algum sentido. A abordagem enactiva, juntamente com a teoria do acto imagético, oferecem assim uma nova perspectiva para enfrentar a realidade dos filmes armazenados no arquivo de Maputo. Para lá do dualismo de uma abordagem puramente imediata destas imagens em movimento, ou de uma contextualização política e sociológica como condição heurística indispensável, o conceito de uma co-emergência, de uma simul-
[1] ].
A modalidade enactivista de especificação destes dois termos principais – incorporada e situada – relaciona-se com o eixo central da teoria autopoiética [autopoietic theory]. Uma unidade autopoiética – ou seja, um ser humano – é uma instância física, química, topológica e cronólogica especificada, que é autónoma em razão da sua própria organização ou encerramento, e concorrentemente dependente do seu meio ambiente em razão do estado de emparelhamento estrutural em que ambos se encontram. A autoorganização da unidade autopoiética determina o campo de possibilidades de interacção com o meio ambiente – o chamado domínio cognitivo – e a actualização desta potencialidade, a emergência específica e simultânea da estrutura actual tanto da unidade poiética como do seu meio ambiente, ocorre no processo concreto da interacção entre os dois, em razão dessa mesma interacção e enquanto processo de interacção. Este conceito funcional, relacional e processual da existência dos seres vivos enquanto unidades autónomas
tânea e mútua enacção [enaction] do filme e do observador, ambos na sua existência fenomenológica e tanto numa dimensão presente como histórica, abre novas possibilidades para fazer sentido. O que estes filmes são e a forma como deveriam, em consequência, ser arquivados – organizados, armazenados e mostrados – não é algo a ser descoberto, induzido, deduzido ou fixado, mas essencialmente algo que tem que ser enactivado [enacted]: algo que tem que ser criado com a consciência do processo criativo que emerge da interacção entre os filmes e nós, enquanto condições activas equivalentes do próprio processo. Alex Arteaga é actualmente assistente de investigação no Grupo de Estudos Avançados do Acto Imagético e da Incorporação [Kollegforschergruppe “Bildakt und Verkörperung”] na Universidade Humboldt de Berlim e director associado da Unidade de Investigação em Arquitectura Auditiva na Universidade das Artes de Berlim [Universität der Künste Berlin].
Caderno especial de Cahiers du Cinema, nº 300, Maio 1979 [parte integrante da apresentação feita por Ros Gray na apresentação do projecto “Fora de Campo” no Atelier Real, Lisboa, 28 de Novembro de 2009]
[1] NdT: O “enactivismo” é uma teoria do funcionamento da mente – proposta, entre outros, por Gregory Bateson, Humberto Maturana, Francisco Varela, Eleanor Rosch, e Alec McPheters – que sublinha a forma como os organismos e a mente humana se auto-organizam à medida que interagem com o meio ambiente que os rodeia. Esta perspectiva relaciona-se de muito perto com a cognição situada e incorporada, e apresenta-se como uma alternativa ao cognitivismo, ao computacionismo e ao dualismo cartesiano. [2] NdT: Em francês no texto original: “o segredo da imagem”.
DOSSIER FORA DE CAMPO
Porquê “arquivar” em vez de “arquivo” Jorge Blasco Gallardo [traduzido do espanhol por Catarina Simão]
Este pequeno texto responde ao convite feito por Catarina Simão para responder à pergunta: porque será que é mais útil, neste momento, utilizar o verbo “arquivar” que o substantivo “arquivo”, quando abordamos formas de organizar a informação? Em primeiro lugar, “arquivo” remete para um lugar, um espaço que determina quem arquiva e quem não o faz, quem tem direito a “arquivar” e quem não o tem. Um lugar que dá corpo a uma forma de entender a sociedade e o mundo por parte daquele ente abstracto a que chamamos “poder”, e no qual todos participamos. Mas “arquivo” corresponde à primeira pessoa do verbo “arquivar”: eu arquivo, tu arquivas, ele arquiva e, sobretudo, nós arquivamos. O “arquivo” é como um acto, uma acção que acontece constantemente e que, às vezes, acontece de maneira particular, assinalada por um lugar e controlada pelo poder que a assinalou – qualquer peça de teatro requer um cenário, para actuar de uma maneira teatralmente reconhecida, pelo menos segundo os modos mais clássicos desta disciplina. Mas o mais importante é que, tratando-se de “arquivar”, a responsabilidade já não recai sobre o profissional que arquiva, nem sobre o poder sob o qual aquele actua como funcionário. “Arquivar”, e todos os verbos que se aproximam do seu campo semântico, encontram-se presentes de maneira passiva ou activa na nossa vida. Desde o registo do cartão Visa, à factura do telefone, à ida ao notário, até ao modo como organizamos a memória familiar ou a memória do outro, ou mesmo quando destruímos provas de algo que não queremos que seja visto ou registado... todos arquivamos, todos nós arquivamos. É essa a realidade e o desafio: sermos conscientes da responsabilidade pessoal que implica viver numa sociedade em que temos todos uma enorme capacidade tecnológica para registar, para arquivar e para sermos registados e arquivados. Há pois muitas decisões sobre as quais reflectir. Pode-se dizer que agora não se trata tanto de trabalhar com os lugares, ou de produzir deles imitações, tão habituais nas salas dos museus de arte contemporânea, mas de explorar um mundo de actos interligados que constroem a realidade, a história, as diferentes verdades de grupo, que se encontram tão presentes no mais antigo dos gabinetes de curiosidades como na actual
e omnipresente Net. Existimos em rede, vivemos em rede, construímos em rede. E não é só por usarmos computadores. Não seria aliás nada fácil determinar o que veio primeiro, a necessidade ou ferramenta, ou seja, se já vivíamos em rede e a Internet apenas deu corpo a essa forma de vida, expandindo-a. Reconstruir um arquivo (materialmente), restaurá-lo, não tendo em conta estes aspectos, não é menos estranho do que maquilhar belamente um cadáver para o seu enterro definitivo, uma tarefa funerária. Sem verbo não há vida, só há património, um dos grandes males do Ocidente, não haja dúvida. Os lugares de arquivo podem ser cadáveres inúteis desde que sejam tratados como tal. Mas contra isso temos os actos, a capacidade de praticar o verbo “arquivar” no seu mais amplo sentido. Porque arquivar é também entender o conjunto de relações que se estabelecem com o possível cadáver; arquivar de um modo teórico – sem intervir no corpo – é uma maneira de fiscalizar a tarefa dos patrimonialistas, de recordar que isso não é mais que um cadáver e que o que é importante é a maneira como está a ser tratado, assim como os actos que provoca. Toda uma coreografia de relações à qual convém atribuir uma notação. Esta notação de relações, a rede anotada, não será uma verdade imutável, mas pelo menos é algo que se aproxima mais dos nossos actos do que os documentos, que ao fim e ao cabo mentem sempre. No caso em questão, os filmes de propaganda, a mentira é uma arte, uma delicada e refinada arte de criação de realidades. Abordar o caso de Maputo sem tocar nos filmes e sem ter oportunidade de ver mais do que algumas imagens, é uma acertada prática de arquivo, de teoria, de arquivar teoricamente. Neste acto está implícita a sensação de que o pós-colonialismo é uma construção cognitiva útil, mas que não é menos contemporânea que o colonialismo, um colonialismo igualmente baseado, em muitos casos, no tráfico de imagens. Esta primeira proposta de não olhar o documento, por não ser possível, por estar putrefacto ou inacessível, é uma proposta de não olhar o documento em nenhum caso. Porque a beleza e o interesse do documento a que estamos habituados, oculta a perversão que viaja clandestinamente no tráfico de imagens entre colonialistas e ex-colónias. No restauro do documento, tomado
como primeiro passo, perde-se a oportunidade de ver o que oculta na sua relação com outros documentos e com outros verbos que vão de par com o verbo “arquivar”: negociar, colonizar; certas flutuações do poder abstracto a que todos pertencemos, a partir do momento em que praticamos outro infinitivo: viver. De qualquer das formas, quando abordamos um arquivo (lugar-monte de documentos) não se trata de trabalhar com a memória, nem com a política, nem com o cinema. Trata-se de fazer memória e de fazer cinema, enquanto se arquiva-activa o arquivo, aqui e agora. Trata-se sobretudo não de lhe arranjar um contexto, porque o contexto é neste caso o arquivo total a que pertence, e ao qual pertencemos. Qualquer tentativa de trabalhar um arquivo sem compreender que pertence a um mundo de interligações – por vezes sublimemente paranóico-críticas – e de tráfico num mapa de linhas e variações constantemente vivas que fazem do cadáver um Frankenstein, um cadáver esquisito, científico, histórico e total, é uma patrimonialização, uma taxidermia, um analfabetismo contemporâneo. De alguma maneira, todo aquele que aborda o monte de documentos históricos, converte-se inevitavelmente num forense ou num detective de um crime constantemente perpetrado, in progress. Um cadáver insepulto que nunca encontrará o seu eterno descanso. Se, como parece, as nossas ideias de restauro de cadáveres de celulóide é inevitável, uma simples recomendação nas palavras de Gianikian/Ricci Lucchi – esses excelentes artistas-restauradores – citados por Christa Blunmiguer, em Culturas de archivo [vol. 1]: A nossa intenção não é utilizar os arquivos em si mesmos. Não é arqueologia nem nostalgia, mas arquivos para o presente. Hoje com os materiais de ontem. Manipulações do objecto encontrado do amanhã. *
* Yervant Gianikian, Angela Ricci Lucchi, “Voyages en Russie. Autour des avant-gardes”, Trafic N° 33/2000, p. 47.
Jorge Blasco Gallardo dirige o projecto em curso Culturas de arquivo (www.culturasdearchivo.org), iniciado em Outubro de 2000. Actualmente trabalha no desenvolvimento de projectos e publicações vinculadas a Culturas de arquivo e na produção do AIAN (Archive of the Anonymous Narrated Image), secção Guerra Civil Espanhola.
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Fotogramas de gravações vídeo captadas por Margarida Cardoso no INAC, em 2001.
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Fotografias da sala de documentação do projecto “Fora de Campo”, de Catarina Simão. Atelier Real, entre dia 28 de Novembro e 5 de Dezembro de 2009. Fotos de Catarina Simão e David-Alexandre Guéniot.
Agradecimento especial a: Alex Arteaga, Alexandra Ferreira, Alexandra Lucas Coelho, Alejandro de los Santos Pérez, Ângela Ferreira, Alaíde Costa, Anne-Claire Rebibo, António Cabrita, Bettina Wind, Cláudia Nunes, Clément Darrasse, Sr. Cristalino Castigo, Consulado de Moçambique em Lisboa, David-Alexandre Guéniot, Sr. Djamal Lourenço, Drew Thompson, Eloy Enciso, Emily Witt, Filmes do Tejo, Gonçalo Velho, Henrique Neves, Jorge Blasco, José Marmeleira, João Fiadeiro, José Filipe Costa, Jürgen Bock, Lúcia Marques, Luis Simão, Manuela Sanches Ribeiro, Sr. Mascarenhas, Margarida Cardoso, Maria Antónia Simão, Marta Lima, Max Porta, Miguel Azevedo, Miguel Llanso, Nikolai Nekh, Nuno Barbosa, Nuno Lisboa, Patrícia Almeida, Pedro Pinho, Pedro Pimenta, Rachel Ogle, Ricardo Matos Cabo, Rita Forjaz, Rosa Spaliviero, Ros Gray, Susana Sousa Dias, Sandra Vieira Jürgens, Sofia Campos, Sete Tele.
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(continuação página 8)
“A única vida da performance situa-se no presente. A performance não pode ser guardada, filmada, documentada ou participar na circulação de representações de representações: a partir do momento em que o faz transforma-se em algo diferente de uma performance. Quando a performance tenta integrar-se na economia de reprodução, trai e diminui a promessa contida na sua própria ontologia. O ser da performance, tal como a ontologia da subjectividade que aqui propomos, só existe através do seu desaparecimento. [...] Num sentido estritamente ontológico, a performance é não reprodutiva. É esta qualidade que faz com que a performance seja a filha anã da arte contemporânea. A performance obstrui a maquinaria lisa da representação necessária à circulação do capital. [...] A performance implica o real através da presença de corpos vivos. No acto de olhar a arte da performance há um elemento de consumo: não há restos, o espectador que olha tem que tentar absorver tudo. Na ausência de uma cópia, a performance live mergulha na visibilidade – num presente maniaca-
mente carregado – para desaparecer na memória, no reino da indivisibilidade e do inconsciente onde escapa à regulação e ao controle. A performance resiste às circulações equilibradas da finança. Não guarda nada; só gasta.” Peggy Phelan, Unmarked: The Politics of Performance, London, Routledge, 1993, p. 146 e 149.
Ao longo dos últimos anos temos vindo a assistir a exposições que efectuam uma releitura pacificada e interessada da energia reivindicativa/performativa da arte dos anos 1960-70, a exposições organizadas em torno do tema da performance ou do espectáculo, ou ainda a reprises de performances e de espectáculos de dança desse mesmo período. Podíamos citar como exemplo as recentes exposições Anos 70 – Atravessar as fronteiras, no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian (Outubro de 2009), Um teatro sem teatro, apresentada no Museu Colecção Berardo (Novembro de 2007) em Lisboa, ou ainda a reprise do espectáculo da coreógrafa americana Anna Halprin, Parades & Changes – obra referência de 1965 – por
Anne Collod & Guests, apresentada na Culturgest em Lisboa, e no Auditório do Museu da Fundação Serralves no Porto, em Janeiro de 2009. Um outro exemplo é o da artista performer Marina Abramovic, que em 2005 apresenta o projecto Seven Easy Pieces (http://www. seveneasypieces.com) no Museu Guggenheim de Nova Iorque, no âmbito do qual apresenta a reconstituição de uma série de performances criadas nos anos 1970 por Bruce Naumann, Vito Acconci, Valie Export, Gina Pane, Joseph Beuys e ela própria. Com este projecto, Marina Abramovic propõe ao espectador a possibilidade de se reapropriar dessas peças, ou seja de criar novas interpretações em função do contexto político e artístico em que se encontra. Ao mesmo tempo propõe a vulgarização de um modo de transmissão da performance que se autonomiza da sua contingência histórica e ontológica tais como Peggy Phelan as descreve. “Sinto a necessidade não só de reexperienciar algumas performances do passado, mas também de pensar na maneira de as re-interpretar hoje, face a um
Vito Acconci. Blinks, Nov 23, 1969; afternoon. Photo-Piece. Greenwich Street, NYC; Kodak Instamatic 124, b/w film. DR. “Holding a camera, aimed away from me and ready to shoot, while walking a continuous line down a city street. Try not to blink. Each time I blink: snap a photo.”
público que nunca as viu. Desta forma posso abrir uma discussão sobre a possibilidade de abordar a arte da performance da mesma maneira que uma composição musical. Será que podemos tratar as instruções da performance como uma partitura musical – algo que qualquer pessoa devidamente treinada para tal pode tocar de novo? Quero também abrir uma discussão sobre a maneira de preservar a performance. Qual é forma adequada de documentar uma performance? Como é que se pode mostrar em museus após o acontecimento? E em que condições é que a performance pode ser repetida? [...] Através da interpretação de Seven Easy Pieces gostaria de propor um modelo para reconstituir as peças de performance de outros artistas no futuro: Condições . Pedir permissão aos artistas. . Pagar direitos de autor ao artista. . Realizar uma nova interpretação da peça. . Mostrar o material original: fotografias, vídeos, vestígios. . Mostrar uma nova interpretação da peça.
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Este novo modelo que se propõe podia dar à arte da performance, que começou como movimento transitório, uma base estável na história da arte. Levaria a um melhor diálogo entre diferentes gerações de artistas performáticos e garantiria uma posição mais clara à performance, enquanto disciplina mais artística.” Marina Abramovic, 7 Easy Pieces. Editor Charta, Milano 2007.
Mas este novo modelo parece comportar também uma nova esperança comercial para a performance, a avaliar pelo sucesso do filme realizado por Babette Mangolte sobre o projecto artístico Seven Easy Pieces, de Marina Abramovic. Um filme de 95 minutos que circula actualmente nas exposições e nos festivais internacionais, não só como obra documental do projecto Seven Easy Pieces, mas também como fonte (secundária) de documentação sobre as performances originais de Naumann, Acconci, Valie Export, Pane ou Beuys. À semelhança da experiência levada a cabo por Marina Abramovic no Guggenheim, parece que o impacto da questão ontológica levantada por Peggy Phelan é sentida de forma colateral pelos próprios artistas performers. A obra é reprodutível, pode ser repetida e encontrar assim um mercado. Esta questão da reprodutibilidade é uma questão que a dança contemporânea, por exemplo, nunca pôs em causa, enquanto arte do espectáculo consciente da impossibilidade de reproduzir completamente, de representação em representação, um gesto ou uma intenção – sobretudo quando esse gesto ou essa intenção são entendidos e trabalhados como prolongamento indissociável da identidade de quem os executa, isto é do intérprete enquanto criador e não apenas enquanto executante. A questão da reprodutibilidade do espectáculo de dança ou de teatro contemporâneos colocou-se em termos de inevitáveis diferenças e de proveitosas dissidências emergindo da repetição [2]. Já a performance vem de uma outra tradição, a das artes plásticas, que valoriza de uma maneira incisiva e “ontológica” o original e o único em detrimento da cópia. Alguns espectáculos de dança são dançados durante muitos anos, dezenas ou centenas de vezes, com o elenco original ou com uma mistura de velhos e novos bailarinos. Mas a questão da reprodutibilidade da obra de arte do espectáculo não resolve a questão das formas da sua perpetuação/conservação/documentação. No seu texto de introdução ao simpósio After the Act [3], Barbara Clausen resume friamente o dilema que atravessa a coluna vertebral dos artistas das artes performativas: ou os artistas-performers
documentam as suas obras, ou não resta
encomendam ou acolhem. Mas as auto-
Marina Abramovic. Lips of Thomas. Solomon R. Guggenheim Museum, Nova Iorque, 14 de Novembro de 2005. Duração: sete horas. DR. Como lentamente 1 quilo de mel com uma colher de prata. Bebo lentamente 1 litro de vinho tinto num copo de cristal. Parto o copo com a mão direita. Recorto uma estrela de cinco pontas no meu estômago com uma navalha de barbear. Chicoteio-me com violência até deixar de sentir a dor. Deito-me sobre uma cruz feita de blocos de gelo. O calor de um aquecedor suspenso apontado ao meu estômago faz sangrar o recorte da estrela. O resto do meu corpo começa a gelar. Permaneço na cruz de gelo durante 30 minutos até o público interromper a peça removendo os blocos de gelo. (performance apresentada pela primeira vez na Galerie Krinzinger, Innsbruck, 24 de Outubro de 1975. Duração original: duas horas)
nada (ou quase nada) delas. “Os artistas da performance que se abstêm de documentar o seu trabalho perfomático encontram-se hoje, na sua grande maioria, esquecidos”. Clausen deixa assim no ar a ameaça não só do total desaparecimento das obras criadas mas também do completo esquecimento dos seus autores. Ann Demeester e Eva Wittocx, na apresentação das conferências “The Manifold (after) Lives of Performance” [As diversas (pós-)vidas da performance], organizadas em Lovaina em Novembro de 2009, reforçam essa ideia e insistem numa mudança de posição. Actualmente, os artistas-performers e os organizadores e comissários de exposição parecem partilhar a mesma consciência e responsabilidade relativamente ao dever de documentar as performances que uns criam (os artistas) e que os outros (comissários ou organizadores)
ras afirmam igualmente que a documentação das performances pode ser considerada como uma espécie de dimensão complementar da obra performática. A performance já não é apenas a experiência da performance em directo, mas uma constelação de pontos de vista que convergem no objecto da performance. “Se a performance era inicialmente um momento live único e irrepetível, hoje em dia os artistas recorrem cada vez mais a diferentes modelos de apresentação dos seus trabalhos. Usam documentos escritos, guiões e personagens/actores; já não se agarram à natureza ‘única’ da performance, mas repetem uma performance várias vezes; e o mais importante é que parecem lidar conscientemente com os traços e vestígios deixados pelas suas performances. A noção de performance parece pois atravessar um significativo processo de
redefinição, com as fronteiras da área a tornar-se ainda mais difusas e invisíveis que no seu período inicial. Podemos para além disso estabelecer que nos últimos dez anos os artistas têm vindo a mostrar um interesse crescente pela rearticulação de performances ‘icónicas’ ou canónicas já existentes – termos como reconstituição [re-enactment], recriação, remaking, reconstrução, reencenação e produção/projecção de legendas em tempo real [respeaking], combinados com noções tais como as de apropriação, de re-contextualização, de se reposicionar e retrabalhar, são palavras que estão muito em voga. Ao mesmo tempo, os organizadores e curadores parecem ter desenvolvido uma obsessão pela fixação, registando e retendo o ‘agora’ imediato no qual a performance acontece. Procuram novos formatos – para além de fotografias, vídeos, testemunhos pessoais escritos, correspondência que tenha antecedido a performance, notas do artista e relatos orais – para captar a essência do momento performativo e preservá-lo para a posteridade. A qualidade efémera das performances é reconhecida, mas ao mesmo tempo estão a desenvolver-se estratégias e metodologias para transformar o efémero em ‘algo’ que possa ser mostrado, preservado e sobretudo reexperienciado.” Texto de apresentação das conferências “The Manifold (after) Lives of Performance”, organizadas por Ann Demeester (de Appel) & Eva Wittocx (STUK), uma coprodução de Appel, Amesterdão e STUK Kunstencentrum, Lovaina, 13, 14 e 15 de Novembro de 2009. Disponível em: http://www. deappel.nl/.
Concluiremos esta apresentação das questões actualmente discutidas em torno da documentação da performance com a hipótese avançada por Philip Auslander, teórico americano especialista em performance, que defende a ideia de que é o próprio acto de documentar uma obra enquanto performance que a constitui como performance: “A documentação não gera apenas imagens/afirmações que descrevem uma performance autónoma e declaram que de facto aconteceu: ela produz um acontecimento que é como uma performance”[4]. Não é muito importante que o espectador de um artefacto de uma performance, saiba em que condições e sob que forma esse artefacto foi produzido; se a performance aconteceu em público, por exemplo, ou se foi especificamente produzida para ser fotografada ou filmada, ou mesmo se aconteceu verdadeiramente. Auslander toma como exemplo duas obras: Shoot de Chris Burden e Le saut dans le vide de Yves Klein, representativas de duas posições opostas e contraditórias relativamente à noção de documentação. Uma é por assim dizer “documental” (Shoot), pois os documentos existentes retraçam
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podemos deixar de apreciar as maneiras particulares que Cindy Sherman tem de incarnar uma enorme variedade de personagens e de imagens, só porque nunca temos acesso directo ao seu corpo executando a performance? Se insistirmos num critério de autenticidade quando contemplamos a documentação de uma performance, temos que nos interrogar se pensamos que a autenticidade se encontra nas circunstâncias da performance subjacente, que pode ou não ser visível na documentação. [...] Talvez a autenticidade do documento da performance se encontre mais na relação que estabelece com o seu observador do que num acontecimento ostensivamente originário: talvez a sua autoridade seja mais fenomenológica que ontológica. Tal como podemos ter o prazer de ouvir Sinatra a cantar duetos com cantores com os quais não teve nenhuma interacção real, podemos ter o prazer de ver Klein saltar para o vazio, ou o prazer de contemplar as implicações do facto de Burden se ter permitindo levar um tiro. Estes prazeres são gerados pela documentação e por isso não dependem do facto de haver ou não um público que assistiu ao acontecimento original. A possibilidade mais radical é que eles podem nem sequer depender do facto de o acontecimento ter ou não acontecido. É muito possível que o nosso sentido da presença, do poder, e da autenticidade dessas peças não venha do facto de tratarmos o documento como um ponto de acesso indexado a um acontecimento passado, mas de entender o próprio documento como uma performance que reflecte directamente o projecto artístico ou a sensibilidade de um artista, e do qual constituímos o público presente.” Philip Auslander, “The Performativity of Performance Documentation”, PAJ: A Journal of Performance and Art, No. 3 (PAJ 84): 1–10, Sep 2006, Vol. 28. [5]
David-Alexandre Guéniot
Yves Klein. Le Saut dans le vide. 5, rue Gentil-Bernard, Fontenay-aux-Roses, Outubro de 1960. Fotografia originalmente publicada no Jornal Dimanche do dia 27 de Novembro de 1960 (uma publicação do autor) no âmbito do “Festival da Arte Vanguarda” [Festival d’Art d’Avant-garde] com a legenda seguinte: “Um homem no espaço! O pintor do espaço lança-se no vazio” [Un homme dans l’espace ! Le peintre de l’espace se jette dans le vide]. Fotografia de Shunk-Kender. DR.
um acontecimento que se produziu realmente; a outra é “teatral” (Le Saut dans le vide), pois o documento existente apresenta um artifício fotográfico (na fotografia – que toda a gente conhece dessa obra – uma rede de protecção foi dissimulada pela sobreposição de uma outra fotografia, dando a impressão que Yves
Klein se vai estatelar no chão). “Ao nível fenomenal não há necessariamente uma maneira intrínseca de determinar se a imagem de uma determinada performance é documental ou teatral. E mesmo quando sabemos, que diferença faz esse saber? Será que so-
mos privados do prazer de ouvir Sinatra a cantar com os seus partners em dueto pelo facto de ele não o ter realmente feito? Na mesma ordem de ideias, será que a nossa apreciação da imagem em que Klein salta para o vazio é perturbada pelo facto de ele ter apagado a rede de segurança da fotografia? Será que
[1] No contexto anglo-saxónico das artes/teorias teatrais e performativas, o termo mais frequentemente utilizado para designar essa prática de reconstituição de performances já existentes é re-enactment (que literalmente significa "reactivação"). Trata-se na verdade de um termo que começa a circular no contexto da performance e das artes teatrais em várias outras línguas. [2] Por razões culturais, a dança contemporânea herda a tradição da dança clássica, que se encontra estruturalmente ligada a uma tradição musical. Da mesma maneira que uma música é transcrita numa partitura (recorrendo a um código finito de notas e de tempos) e pode assim ser transmitida a várias gerações de músicos, o ballet é transmitido a várias gerações de bailarinos recorrendo a notações compostas por um código finito de posições e de figuras, de modo a constituir um repertório. [3] Simpósio After the Act / Die (Re)Präsentation der Performancekunst, Mumok, Museum Moderner Kunst Stitung Ludwig Wien, Novembro de 2005. O livro “After the act” encontra-se disponível no Gabinete de Leitura do Atelier Real. [4] Philip Auslander, “The Performativity of Performance Documentation”, PAJ: A Journal of Performance and Art, No. 3 (PAJ 84): 1–10, Sep 2006, Vol. 28. [5] O texto pode consultar-se gratuitamente em: http://www.mitpressjournals.org/ toc/pajj/28/3.
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INTRODUÇÃO AO CINEMA-ENSAIO DE HARUN FAROCKI
Videograms of a Revolution, Harun Farocki & Andrei Ujica, 107 Minutos, 1992.
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Eye/Machine I (Instalação vídeo), Harun Farocki, 2000.
Prison Images, Harun Farocki, 2000.
Videograms od a Revolution, Harun Farocki & Andrei Ujica, 1992.
No filme Nicht löschbares Feuer [Fogo inextinguível] (1969), Harun Farocki, após ter lido o testemunho da vítima vietnamita de um bombardeamento americano com napalm, dirige-se ao espectador com estas palavras: Como é que podemos mostrar-vos o napalm em acção? E como é que podemos mostrar-vos as lesões causadas pelo napalm? Se vos mostrarmos fotografias de queimaduras de napalm, fecharão os olhos. Primeiro fecharão os olhos às fotografias. Em seguida fecharão os olhos à memória. Depois fecharão os olhos aos factos. E depois fecharão os olhos a todo o contexto. Se vos mostrarmos uma pessoa com queimaduras de napalm, ferimos os vossos sentimentos. Se ferirmos os vossos sentimentos, sentir-se-ão como se tivéssemos experimentado napalm em vocês, à vossa custa. Podemos apenas dar-vos a sombra de uma ideia de como funciona o napalm.”Farocki pega então num cigarro aceso, que esmaga no braço. Substituindo o efeito da explosão de uma bomba de napalm pela queimadura mais familiar – e quase insignificante – de um cigarro, Farocki propõe-se dar uma ordem de grandeza às imagens banalizadas das explosões de bombas de napalm e provoca assim um sentimento de horror, a tal ponto a ordem de grandeza dessas dores ultrapassa a nossa compreensão. Nicht löschbares Feuer é uma obra representativa da constante preocupação de Farocki com a análise das relações entre a percepção e o intelecto, entre as imagens e as suas significações. As investigações e reflexões de Farocki sobre a utilização e a manipulação das imagens tomam na maioria das vezes a forma de “filmes-ensaio”, que justapõem imagens originais – filmadas por Farocki –, imagens de arquivo, inter-títulos e comentários em voz off. As imagens de arquivo provêm das mais variadas fontes: arquivos do Estado e arquivos militares, filmes industriais e de instruções, publicidade, vídeo-vigilância, filmes de amadores, telejornais ou ainda excertos de “clássicos” da história do cinema. Farocki procede contudo não tanto à maneira de um cinéfilo, mas de um médico legista investigando sobre as causas de um crime ou de uma doença, e examina meticulosamente esse corpus audiovisual para lá descobrir provas. Isolando ou reconfigurando essas imagens, Farocki põe a nu os pressupostos políticos e económicos que presidem à formação (e à deformação, e à desinformação) dos cidadãos contemporâneos. Mostra as derivas ideológicas das imagens tais como são orquestradas pelo Estado moderno. Em Die Bewerbung [A Entrevista] (1997), filma um curso de preparação para en-
trevistas de emprego, uma formação proposta às pessoas desempregadas, e revela a mecânica de condicionamento e de alienação do desempregado que tem que aprender a vender-se. Farocki interessa-se igualmente pela emergência de novos regimes visuais tais como as imagens introduzidas na vida corrente pela vídeo-vigilância ou ainda as imagens introduzidas nos telejornais de todo o mundo por ocasião da primeira guerra do Golfo, que mostravam o voo de um míssil efectuando um “golpe cirúrgico”. Na trilogia Auge/Maschine [Olho/Máquina I] (2001-3), explora os procedimentos de vigilância electrónica, de reconhecimento de um objecto ou terreno tais como são utilizados pelas ditas “armas inteligentes”. Analisa a forma como os movimentos de percepção que são assim operados pela evolução das tecnologias da imagem influenciam as nossas representações da realidade. Por outras palavras, a forma como essas tecnologias da imagem recaem afinal sobre o exercício do poder e do controle dos cidadãos. Ao longo dos dez últimos anos, os filmes de Farocki (mais de 100 filmes realizados desde os anos 1960) parecem ter recuperado um interesse não só público (provavelmente devido à actualidade e à acuidade das questões que Farocki coloca sobre o papel das tecnologias da imagem e da informação) como também profissional, provavelmente devido neste caso à propensão dos museus e das galerias a alargar a sua área de acção a outras práticas artísticas tais como a música, o design ou o cinema. Em 2009, Farocki apresentou o seu trabalho em dez exposições individuais, em lugares de prestígio tais como o Jeu de Paume (com Rodney Graham) em Paris, ou o Museum Ludwig em Colónia/Alemanha, e participou igualmente em dezenas de exposições colectivas internacionais. Esta rápida adaptação ao mundo da arte contemporânea deve-se provavelmente à sua condição de realizador independente de longa data, endurecido pelas condições de produção frequentemente improvisadas, mas também à plasticidade dos seus “filmes-ensaio”, que são actualmente apresentados sob a forma de instalações em ecrãs múltiplos, ocupando salas inteiras de museus ou galerias, e nas quais o espectador circula observando os seus contemporâneos a ser filmados e observados.
Texto adaptado do artigo “Regarding History”, de Coco Fusco, publicado na revista Frieze 127, Novembro-Dezembro 2009.
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Filmes para consulta Ein Bild [Uma Imagem], 1983 O tema deste filme surgiu após quatro dias passados num estúdio, a trabalhar numa fotografia para a página central da revista Playboy. A revista em si trata de cultura, de carros, de um certo estilo de vida. Talvez todos esses aparatos estejam lá só para encobrir a mulher nua. Talvez seja como um rolo de papel. A mulher nua no meio é um sol em torno do qual gravita um sistema: de cultura, de comércio, de vida! (É impossível olhar ou filmar a contraluz.) Podemos facilmente imaginar que as pessoas que criam uma tal imagem, cuja gravidade se supõe que segure tudo aquilo, executam a sua tarefa com tanto cuidado, seriedade, e responsabilidade, que é como se estivessem a separar urânio. Este filme, Uma Imagem, é parte de uma série em que tenho a vindo a trabalhar desde 1979. A estação de televisão que mo encomendou assume nestes casos que estou a fazer um filme que critica o tema do qual trata, e o proprietário ou gerente da coisa filmada assume que o meu filme lhes faz publicidade. Não tento fazer uma coisa nem outra. Também não pretendo fazer algo entre as duas, mas algo que esteja para lá de ambas. (Harun Farocki, Celulóide, n° 27, Outono de 1988)
Die Schulung [A Doutrinação], 1987
são como novo local histórico. Entre 21 de Dezembro de 1989 (o dia do último discurso de Ceaucescu) e 26 de Dezembro de 1989 (dia da primeira síntese televisiva do seu julgamento), as câmaras filmaram quase sem excepção acontecimentos nos mais importantes locais de Bucareste. O suporte de transmissão determinante de uma época sempre marcou a história, e de forma quase inequívoca no caso da história da Europa moderna. Esta foi influenciada pelo teatro, de Shakespeare a Schiller, a depois pela literatura, até Tolstoy. Como sabemos, o século XX é fílmico. Mas só com a câmara de vídeo, com as suas possibilidades acrescidas em termos de filmagem do tempo e em termos de mobilidade, é que o processo de filmagem da história se pode completar. Na condição, claro está, de haver história. (Andrei Ujica) Harun Farocki concebeu e montou “Videograma de uma Revolução” juntamente com Andrei Ujica. Nascido em Timisoara em 1951, Ujica é um escritor romeno que vive na Alemanha desde 1981, onde é professor universitário de literatura e de teoria dos media. Tem bons contactos com amigos e colegas romenos, que não só abriram os arquivos da televisão aos autores, mas permitiram-lhes igualmente entrar em contacto com operadores de câmara de estúdios de filmagem estatais e com vários videastas amadores que tinham documentado os acontecimentos nas ruas de Bucareste, muitas vezes dos telhados de edifícios altos. “Se no início da revolta apenas uma câmara ousou filmar”, declarou Farocki, “no dia seguinte havia centenas delas em acção.” (Dietrich Leder, Film-Dienst 24/92)
Este filme é sobre um seminário de cinco dias cujo objectivo é ensinar a gerentes comerciais como “vender-se” melhor. Desenhado para gerentes, o curso ensina as regras básicas da dialéctica e da retórica, e dá formação em linguagem corporal, gestualidade e expressão facial. O objectivo de vender alguma coisa sempre foi um princípio da acção comercial. Mas só através do casamento da psicologia com o capitalismo moderno é que a ideia de se vender a si próprio vem a ser aperfeiçoada. (Lutz Hachmeister)
Videogramme einer Revolution [Videograma de uma Revolução], 1992 Na Europa, no Outono de 1989, a história aconteceu diante dos nossos olhos. O “Videograma” de Farocki e Ujica mostra a revolução romena de Dezembro de 1989 em Bucareste, numa forma de historiografia baseada nos novos media. Os manifestantes ocuparam a estação de televisão [em Bucareste] e transmitiram continuamente durante 120 horas, estabelecendo assim o estúdio de televi-
Bio Harun Farocki (1944) nasceu em Novi Jicín, na actual República Checa. Estudou na Deutsche Film Fernsehakademie Berlin (DFFB) [Academia de Cinema e Televisão de Berlim], de onde foi expulso em 1968 por razões políticas. Para além de escrever textos teóricos – entre 1974 e 1984 foi autor e editor da revista Filmkritik de Munique – tem assinado o guião de vários filmes e produções televisivas. O seu trabalho foi apresentado na Documenta 10 & 12 de Kassel, bem como em várias retrospectivas internacionais, tendo recebido muitos prémios.
Mais informações sobre Harun Farocki, consultar: Website oficial do artista: www.farocki-film.de Filmes online: www.docalliancefilms.com Extractos de filmes no Vídeo Data Bank: http://www.vdb.org/
Die Bewerbung (A Entrevista, 1997) No Verão de 1996, filmámos cursos de formação em elaboração de candidaturas, nos quais se aprende como candidatar-se a um emprego. Os que deixam a escola, os que têm formação universitária, pessoas que fizeram uma segunda formação, os que estão há muito tempo sem emprego, viciados em droga recuperados, e gerentes de nível intermediário – todos devem aprender como comercializar-se e vender-se, uma habilidade designada pelo termo “auto-gerência” [self-management]. O “eu” talvez seja apenas um cabide metafísico onde pendurar uma identidade social. Kafka foi quem comparou ser aceite num emprego à entrada no Reino dos Céus; os caminhos que levam a um e a outro são totalmente incertos. Hoje em dia fala-se de arranjar um emprego com um servilismo extremo, mas sem grande esperança.
O livro “Working on the Sight-lines” (2004), uma selecção de textos e entrevistas de e sobre Harun Farocki editada por Thomas Elsaesser está disponível no Gabinete de Leitura do Atelier Real.
(Harun Farocki)
FONTE: www.farocki-film.de (21 de Dezembro de 2009)
Ein Bild, Harun Farocki, 25 Minutos, 1983.
Gabinete Audiovisual e Gabinete de Leitura Em complemento às apresentações e às aberturas públicas que os artistas em residência podem proporcionar ao público, o Atelier real disponibiliza, durante tudo o ciclo, um Gabinete audiovisual e um Gabinete de leitura – dois espaços de consulta em livre acesso, onde os interessados podem consultar materiais audiovisuais e livros relacionados com o tema do ciclo, inclusive os que foram utilizados ou referenciados pelos participantes na elaboração das suas propostas. O Gabinete audiovisual desenvolve também uma programação própria relacionada com o tema da documentação. Disponibiliza retrospectivas (em DVD) de cineastas e artistas que trabalham a partir de uma postura documental e numa reflexão crítica sobre o género documentário. Horários Todos os dias da semana, 10h00 às 18h00. (ENTRADA LIVRE)
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Atelier Real Jan/Fev 2010
Programa de Residências Artísticas
Atelier Real, 20 de Fevereiro, 18H00 (Entrada livre, lotação limitada)
RUI CATALÃO Portugal [em residência de 1 até 20 de Fevereiro]
Dentro das palavras Durante o Outono de 2008 e Inverno de 2009, apresentei oito pequenas cenas improvisadas em Miercurea Lejera – um programa semanal realizado no CNDB (Centro Nacional de Dança em Bucareste), dedicado a pequenas experiências performativas. A minha proposta consistia em entrar em palco sem saber o que fazer, partilhando depois com o público o contexto que nos era comum, a lógica de construção e o processo de escrita da performance. Por ocasião da primeira dessas cenas improvisadas, duas decisões a que fui alheio haveriam de definir a identidade das restantes sete. Não sabendo o que eu iria apresentar, os organizadores limitaram-se a escrever “Rui” no fim da lista de participantes do programa; dado o carácter inesperado da proposta (ignorava-se, por exemplo, a duração), optaram também por a minha apresentação ser a última. O nome, “Rui”, aliado ao facto de estar sozinho em palco, sem preparação, fezme imediatamente pensar num auto-re-
Bio
trato. Não o auto-retrato de Rui Catalão, mas o auto-retrato do “Rui” que se apresentava à frente do público, no presente, ainda sem passado nem futuro. O que viesse a desenvolver-se daí para a frente (uma recordação que fosse) teria de partir dos condicionalismos emocionais daquele momento, sem contemplações para com o sentido de verdade inerente à personalidade, ao carácter ou ao comportamento habitual de “Rui Catalão”. A palavra inglesa character significa personalidade e personagem. Se imaginarmos um solo intitulado My character, estão criadas as condições para uma peça que pode consistir num retrato psicológico na primeira pessoa (quem sou), mas também denunciar o dispositivo fictício (o que represento). Na língua portuguesa, personalidade e personagem, tal como ser e representar, são termos antitéticos. O objectivo deste trabalho é apagar a linha que os separa. Rui Catalão Fotografia de ensaio. Paulo Lopes. DR.
O trabalho de Rui Catalão tem-se caracterizado pela diletância. Em Portugal, assinou apenas uma peça: Elogio da classe política portuguesa (ZDB, 2004); Untitled, Still Life (ZDB, 2009) é uma colaboração com o casal João Galante e Ana Borralho. Na Roménia, apresentou Atît de frageda (2006), Coada soricelului (2007) e
Follow that summer (2008), fazendo ainda as séries de improvisação Acum totsi împreuna e Rui (Centrul National al Dansului Bucuresti). Jornalista e crítico do Público (1994-1999), iniciou em 2000 uma colaboração formativa com o coreógrafo João Fiadeiro, que culminou na peça Existência. Trabalhou ainda com
Miguel Pereira (Portugal), Brynjar Bandlien (Noruega), Mihaela Dancs, Manuel Pelmus e Madalina Dan (Roménia). No cinema, é co-autor dos argumentos O capacete dourado (2008) e Morrer como um homem (2009). Como actor participou em A cara que mereces (2006).
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Programa
Real Rua Poço dos Negros nº55. 1200-336 Lisboa T (+351) 21 390 92 55 F (+351) 21 390 92 54 info@re-al.org www.re-al.org
Atelier Real atelier@re-al.org www.atelier-real.org
Sábado 23 de Janeiro 19h00 Ciclo Restos, rastos e traços. Práticas de documentação na criação contemporânea
This is not the Documentation of a performance (2010) de Alexandra Ferreira & Bettina Wind (Portugal - Alemanha) com a colaboração de Gonçalo Ferreira de Almeida e Ramiro Guerreiro. Reserva: tel. 21 390 92 55 ou info@re-al.org
Autocarros nº60, 706, 727, 794 (paragem Conde Barão / Av. D. Carlos I) Eléctricos nº25 (paragem Conde Barão), nº28 (paragem R. Poiais S. Bento ou Cç. Combro) Metro Linha Verde, Linha Azul: Estação Baixa-Chiado: saída Largo do Chiado. Comboio Linha de Cascais: Estação Santos.
Sábado 20 de Fevereiro
Atelier Real Direcção artística: David-Alexandre Guéniot
18h00 Programa Residências artísticas do Atelier Real
O Atelier Real é uma produção RE.AL.
Rui Catalão (Portugal)
RE.AL Direcção artística: João Fiadeiro Direcção de produção: Sofia Campos Gestão financeira e administrativa: Cláudia Nunes Secretariado: Alaíde Costa Contabilidade: Saldo Certo/Rui Silva Assessor jurídico: Duarte Gorjão Henriques Limpeza: Rita Guimarães
Jantar “Comida do Povo” no Atelier Real a partir das 20h00.
com o projecto “Dentro das Palavras” Uma apresentação do(s) resultado(s) da residência artística a ocorrer entre 1 de Fevereiro e 20 de Fevereiro.
Próximas apresentações Sábado 20 de Março 18h00 Ciclo Restos, rastos e traços. Práticas de documentação na criação contemporânea
Jornal Editor: David-Alexandre Guéniot Tradução e revisão (inglês, francês, português): Paula Caspão Grafismo: Linda Romano Textos e imagens, copyright dos autores. Imagem capa: windferreira 2009. Agradecimentos Patrícia Almeida. Ferreira & Campos, Lda. pelo apoio à residência artística de Catarina Simão. A RE.AL é uma estrutura financiada pelo Ministério da Cultura / Direcção Geral das Artes
Financiamento
Apresentação do projecto de investigação de Noé Sendas (Alemanha-Portugal). Sábado 17 de Abril 18h00 Ciclo Restos, rastos e traços. Práticas de documentação na criação contemporânea
Apresentação do projecto "Parlement" de Joris Lacoste (França) com a colaboração e participação de Grégory Castéra, Frédéric Danos e Emmanuelle Lafon.
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