Jornal Atelier Real nº4

Page 1

atelier real

Atelier Real Mar/Abr 2010

© Noé Sendas, 2010.

Mar/Abr 2010 www.atelier-real.org


02

Carta ao Editor Caro David-Alexandre Guéniot, Escrevo-lhe já instalado na residência Atelier Real, que fica na Rua do Poço dos Negros. Uma rua pouco iluminada de dia e mal frequentada de noite mas que tem o seu encanto, onde grande parte dos seus moradores vivem, ou sobrevivem, de pequenos esquemas. Com alçado e plano em forma de V, esta rua é cortada por pequenas travessas com nomes curiosos: Travessa dos Mastros, Travessa das Gaivotas, etc. Como já há muito não estava em Lisboa, penso que o que mais me tem surpreendido são os ditos — como por exemplo, “estás com cara de quem foi ao Vaginásio” — dignos do saudoso João César Monteiro, que vou ouvindo e coleccionando num pequeno diário enquanto frequento as tascas dos taxistas, tabernas e cafés, à procura de umas pescadinhas de rabo na boca ou de umas pataniscas de bacalhau a preço justo. Possivelmente por estar a ler o Joseph Conrad, tenho estado mais atento a uma memória que esta parte da cidade guarda da sua antiga relação com o rio Tejo. Tenho evitado os artistas locais, e procurado perder-me neste recanto da cidade. No entanto, hoje fui surpreendido por me ver referenciado numa entrevista, publicada no roteiro local. Era acusado de já não saber de que país sou e de viver de bolsas de estudo. Ao querer catalogar-me de forma negativa, a limitada e provinciana entrevistada nem imagina como considero serem esses os meus objectivos, o quanto ainda me sinto desconhecedor de outras culturas, o quanto ainda gostaria de vir a viajar, estudar e experienciar de uma forma © windferreira, 2009. sensorialmente directa outros contextos culturais, com o intuito de me formar no

verdadeiro sentido da palavra, pois sofro do sindroma do Jovem Wilhelm. Adiante. Aproveito desde já para lhe agradecer a si, que me informou, achou oportuno e permitiu financeiramente que me instalasse nesta residência durante dois meses, para desenvolver a minha proposta de trabalho. Confirmo também a sua opinião relativamente ao outro hóspede que se encontrava aqui na casa. O Rui Catalão é impecável, só tenho pena de ter ido a Madrid exactamente no dia em que fez a sua apresentação. Para não falar da simpatia de toda a família Atelier Real: o coreógrafo João Fiadeiro, as Sras. Cláudia, Alaíde, Rita, e a menina Sofia Campos, com quem acabo por conversar mais vezes e a quem prometi fazer um jantar para toda a família a troco de uma bola de cristal verdadeira, que irei utilizar para a minha serie fotográfica Crystal Girls. Tenho estado encerrado o tempo todo a desenvolver o trabalho de investigação que lhe tinha proposto. No entanto, quando me pede 500 palavras para serem impressas num jornal, com o intuito de tornar público e documentar o projecto que estou a desenvolver, sinto que está a pedir-me uma segunda cópia, ou mais exactamente, a tradução do projecto para uma outra linguagem. Colocase-me de imediato um problema. Neste projecto a forma é conteúdo e o conteúdo é forma. O trabalho não é sobre algo, mas é exactamente esse algo. Posso no entanto falar-lhe de algumas das dificuldades com que me tenho debatido, uma vez que se trata de realizar um trabalho de documentação sobre mim mesmo. O trabalho de documentação sou eu, isto é, são as minhas acções. O que dá azo a um velho problema no momento em

que me proponho pensar como estou a descer as escadas, como já dizia o outro, obviamente que vou cair. Depois de me assegurar que não consigo pensar em duas coisas ao mesmo tempo, e de ter perdido por várias vezes o fio à meada ao tentar documentar o que estava a fazer, sem deixar de o fazer, tomei a resolução, não muito original mas eficaz, de colocar uma máquina a filmar o tempo todo, e de tentar dizer em voz alta os raciocínios que me passavam pela cabeça enquanto trabalhava (acabei por optar por escrever em papéis que tinha à mão). Isto de uma forma automática, como quem acende um cigarro sem dar por ela. É um pouco embaraçoso, mas no entanto real, para quem planeava captar e organizar provas sobre o processo de construção do seu próprio trabalho, acabar com frases deste calibre: “a meio da cadeira e as costas começam de fora”. Espero que não me leve a mal o facto de não poder responder ao seu pedido e de não lhe enviar as 500 palavras. No entanto estou desejoso que me possa vir visitar a 20 de Março por volta das 18 horas, como combinado, pois estou entusiasmado com a ideia lhe abrir as portas da residência Atelier Real. Como combinado envio-lhe as fotografias e por uma questão de privacidade peço que omita o nome das pessoas captadas; a restante informação que se encontra no verso das fotografias poderá utilizá-la a seu belo prazer. Finalmente e para lhe responder à sua pergunta original “quem é Noé Sendas?”, respondolhe com outra pergunta: o que é um Noé Sendas? Os meus melhores cumprimentos, Noé Sendas


03

Atelier Real Mar/Abr 2010

Editorial Atelier Real De: David-Alexandre Guéniot Enviado: quinta-feira, 4 de Março de 2010 12:48 Para: 'Noé Sendas' Assunto: Editorial

Caro Noé, Alegra-me saber que a vizinhança imediata da Rua Poço dos Negros e que a proximidade das colaboradoras do Atelier Real são propícias à reflexão e ao labor artísticos. Pela parte que me toca, dedico-me à redacção do Jornal do Atelier Real, que tal como combinámos dedicará as suas primeiras páginas à recolha de alguns elementos de resposta relativamente à questão de saber “Quem é Noé Sendas... (?)”. Pergunta a propósito da qual gosto de me lembrar da tua indecisão quanto à utilização ou não do ponto de interrogação... Como se a resposta estivesse precisamente nessa incerteza, nesse intervalo que separa a afirmação da interrogação, ou como se a resposta fosse simplesmente uma pergunta... Ou, ao que leio (p. 2), já não apenas uma pergunta mas várias. Para acompanhar os indícios que poderás ter recolhido até à apresentação pública de 20 de Março, decidi fazer também eu a minha pequena investigação sobre a figura do atelier do artista enquanto lugar onde se opera o processo artístico, mas onde parece estar igualmente em causa a identidade de quem o ocupa (p. 10). O Jornal apresentará, por outro lado, os projectos que te sucederão em residência. A “Encyclopédie de la parole” e o espectáculo “Parlement”, de Joris Lacoste, projectos que se interessam muito particularmente pelos documentos falados (ou mais precisamente pela documentação da fala) numa perspectiva crítica, lúdica e criativa (p. 15). A propósito, estes projectos inauguram uma abordagem complementar da temática do ciclo “Restos, rastos e traços” e da reflexão sobre a questão das práticas de documentação na criação contemporânea, propondo acolher projectos preexistentes (ou, se preferires, já “produzidos” ou “criados”). Projectos que não se desenvolvem em residência desde a sua origem, como foi o caso do teu projecto, mas que são escolhidos em função de um conhecimento prévio do seu conteúdo. Esperando que o tempo de residência que te resta seja tão fértil como até à data. Um abraço, David-Alexandre Guéniot


04

Bio Noé Sendas ou a agonia de um ventríloquo [Fragmento de um texto inédito de David Barro] Entendo toda a obra de Noé Sendas como uma espécie de auto-retrato agónico, retorcido, a partir de um primeiro plano incómodo. Tal como em Faces de Cassavetes, a proximidade crua, mais do que revelar-nos um mundo táctil dificulta-nos a visão, derrete-a ou asfixia-a. Tudo vai dar a uma obscenidade próxima da cegueira, como no erotismo de Bataille. Como na loucura de Lady Macbeth. Tal é o fôlego nu de Noé Sendas na obra que tira o seu título dessa ambivalente personagem shakespeariana, esse desejo compenetrado, arrefecido ao ponto de solicitar a calma no olhar. “Nada se ganha, tudo se perde, ao obter o que desejamos sem contentamento. É melhor ser aquilo que destruímos, do que pela destruição viver uma felicidade dúbia” [*], declara Lady Macbeth. É o paradoxo de uma vitória virtual em forma de destruição, encarnada numa Lady Macbeth metamórfica, primeiro criminosa, depois demente ou suicida. Essa violência transformadora, esse delírio capaz de desintegrar qualquer ambição, faz-nos pensar que o horror não está no crime mas na metamorfose, nessa viagem a si mesmo que desemboca no suicídio. É isso que atrai um Noé Sendas, que trabalha a aparência e inver-

te os valores, ou melhor, desdobra o seu sentido, como o Shakespeare mais obscuro. Daí o seu interesse em deformar as formas, como a linguagem impotente de uma personagem ferida, agonizante. Mas sobretudo nu, como a morte erótica de Bataille. “A acção decisiva é despir-se. A nudez opõe-se ao estado fechado, quer dizer, ao estado de existência descontínua. É um estado de comunicação, que revela a procura de uma continuidade possível do ser para lá do retraimento sobre si próprio. Os corpos abrem-se à continuidade por esses canais secretos que nos dão o sentimento da obscenidade. A obscenidade significa a perturbação que destabiliza um estado dos corpos conforme ao autodomínio, ao domínio da individualidade duradoura e afirmada” [1]. E no meio, um espelho. Capaz de deformar a imagem, de a esticar, de fazer uma espécie de respiração assistida ao retrato mais apagado. (…) [*NdT] No original: Nought’s had, all’s spent / Where our desire is got without content: / ‘Tis safer to be that which we destroy / Than by destruction dwell in doubtful joy. [1] Bataille, L’érotisme, Paris, Minuit, 1957, p. 24.

Noé Sendas nasceu em Bruxelas, em 1972. O seu trabalho surgiu no panorama artístico de meados da década de noventa. Nos seus vídeos, nas suas esculturas, colagens e fotografias digitais, reconhecem-se influências do campo literário e cinematográfico, com citações recorrentes a Shakespeare, Joyce e Beckett, ou a Godard e Hitchcock. A estas referências junta-se o estudo sistemático da auto-representação e o constante questionamento de métodos expositivos, facto que pode facilmente constatar-se nas relações entre a obra e o espectador, nas suas várias instalações de vídeo, áudio, e escultura. Estudou no Art Institute of Chicago (Chicago, 1997), no Royal College of Arts (Londres, 1993) e no Centro de Arte e Comunicação Visual (Lisboa, 1992-96). Foi Artista residente nos seguintes programas internacionais de residência artística: Peggy Gugenheim Internship, Veneza, 1997; Cité Internationale des Arts, Paris, 1998; Künstlerhaus Bethanien, Berlim, 1999-2000; Casa de Velazquez, Madrid, 2008. Desde 2008, é co-director e co-programador (juntamente com outros 5 artistas) do projecto Galerie Invaliden1, em Berlim (www. invaliden1.com). Website do artista: www.noesendas.com

Sendas com a sua namorada, em pose segundo um quadro de Magritte “como Os Amantes” na Real, R. Poço dos Negros, Lisboa 2010


Atelier Real Mar/Abr 2010

Ciclo Restos, rastos e traços. Práticas de documentação na criação contemporânea

Atelier Real, 20 de Março, sessão contínua com início às 18H00 Conversa com o artista às 19H30 (Entrada livre)

“PROCESSO: QUEM É NOÉ SENDAS?” (2010) de Noé Sendas (Alemanha/Portugal)

“Partindo de uma prática corrente de abrir processos sobre determinados autores ou personagens/narradores ficcionados, vou abrir um processo com o seu nome, onde pretendo examinar o seu processo criativo e de pesquisa, utilizando o seu modus operandi. No entanto, o meu objectivo não é o de me cingir a um estudo da informação reunida e do seu trabalho realizado; proponho-me ir ao encontro de uma experiência sensorial directa com o autor, sob a forma de um interrogatório.” Noé Sendas

05


06


07

Atelier Real Mar/Abr 2010

Página oposta, canto superior esquerdo: Sendas na sua casa de família, “Alfândega da Fé, em Trás-os-Montes”, durante a estação de caça, segurando a arma do seu avô, 1999. Canto superior direito: “A minha primeira fotografia” uma amiga de família, depois da Sauna, férias de inverno na Quinta da Aguieira, c.1982 Em baixo: Primeiro amor de Sendas, “Hora de fecho”, Café Florian, Piazza San Marco, “Primeiro dia, primeira vez em Veneza” Durante o Inter-rail, 1990. Página oposta, canto superior esquerdo: "Um caso", Férias em LA, depois de percorrer o Big Sur, 2004 Acima: Sendas com a sua namorada, por de trás de uma geladaria, “Primeira viagem juntos”, Lago de Como, 2008 À esquerda: Bastidores do teatro Sophiensaele, na imagem, uma colega durante um ensaio “Esta peça nunca foi apresentada”, Berlim, 2007


08


Atelier Real Mar/Abr 2010

Página oposta, canto superior esquerdo: “Modelo para uma escultura”, na Résidence des Recollets, Paris, 2005. Canto superior direito: A grande amiga e “confidente” de Sendas Antigo edifício dos correios, Berlim, 2009. Em baixo: “Amazona, chuva e máscara”, Berlim, c. 2005. Nesta página, acima: Sendas e a sua namorada no apartamento de um amigo, “Após uma inauguração” de Rodney Graham Londres, 2008. Canto superior direito: Nada escrito C. 2007. À direita: “Uma estranha”, fotografia tirada no final da noite “a porta do” recentemente extinto bar “Alt-Berlin”, ponto de encontro de artistas e verdadeiros Berlinenses, Alexander Platz, Berlim, 2009.


Restos, rastos e traços:

retrato do artista no seu atelier A natureza e a função do lugar onde o artista se dedica ao seu trabalho tem vindo a modificar-se substancialmente ao longo dos séculos, oscilando entre duas acepções e dois termos: o estúdio e o atelier. A palavra ‘estúdio’ aparece em Itália durante a Renascença como ‘studiolo’, o estudo, ou seja um lugar de reflexão. Nesta acepção, “o estúdio era um quarto privado no qual um artista culto como Tintoretto podia recolherse, sozinho, para se dedicar ao estudo e à contemplação. Adivinhavam-se nesta definição duas das mais importantes qualidades do estúdio. Em primeiro lugar, apresentava o artista não como um artesão mas como um letrado: o seu quarto privado, tal como um estudo, tornou-se (por contraste com o seu trabalho) ‘numa visão, ou materialização da mente bem aprovisionada da pessoa culta’ [1]. Em segundo, era um espaço pri-

vado ao qual os estranhos dificilmente tinham acesso”. [2] O termo ‘atelier’, por sua vez, reforça a componente prática e manual, artesanal, da criação artística. O atelier é por isso o lugar onde se fabricam, produzem, realizam fisicamente obras de arte. A dimensão corporal do atelier confronta-se assim com a dimensão espiritual do estúdio. Ao isolamento do estúdio, o atelier responde com um lugar onde as relações sociais – essencialmente profissionais – são possíveis: assistentes, modelos, alunos, compradores, comissários, jornalistas são figuras possíveis neste contexto. As representações do atelier do artista (passaremos a utilizar este termo, uma vez que é hoje em dia comummente aceite em francês, tal como em inglês ou mesmo em japonês (atolié), para designar o lugar de trabalho do artista) compõem-se pois em função destas duas

acepções e identificam-se com um lugar intermédio, situado no cruzamento da imaginação com a realidade, “onde as ideias se tornam tangíveis, onde entram no mundo físico” [3], lugar original onde a criação se produz, e onde – consequentemente – se concentra o seu mistério. “É esta noção de fronteira, onde a arte digere a realidade e vem ao mundo, que parece predominar ao longo da história da arte e permanece uma constante fonte de fascinação tanto para artistas, como para académicos, curadores e visionadores de arte. Seja essa fronteira o umbral de uma porta ou uma cortina que se corre num quadro, um espaço quase-psicológico tal como sugere o título do livro de Alice Bellony-Rewald e Michael Pepiatt, Imagination’s Chamber [O quarto da imaginação], ou uma fronteira arquitectónica física onde um atelier encontra o mundo exterior – um vão de

escadas, o umbral de uma porta ou um sistema de entrada com interfone; este limite físico ou simbólico é uma característica específica das representações ou experiências dos ateliers de artista.” [4] É no decorrer do século XVII que o atelier do artista se torna num tema pictórico. Nos quadros que tratam esse tema, os artistas exprimem simultaneamente a sua concepção da arte e mostram a excelência da sua técnica, mas documentam igualmente a sua condição de artistas. O Artista no seu atelier (por volta de 1630) de Rembrandt, Las Meninas (1656) de Velásquez, ou ainda A Arte da Pintura (por volta de 1660) de Vermeer são exemplos disso. “Os artistas situamse num contexto, vendo-se a si próprios e mostrando-se ao público (como qualquer auto-retratista tinha que fazer antes da era da fotografia) através de um espelho. Ao mesmo tempo que o atelier


Atelier Real Mar/Abr 2010

“L’atelier du peintre (1854-5) de Gustave Courbet, um quadro de seis metros de largura com o subtítulo ‘uma alegoria real resumindo sete anos da minha vida artística e moral’, foi descrito pelo artista como ‘o mundo que vem a mim para ser pintado’. O quadro posiciona o artista e o seu modelo ou musa no centro de dois mundos: o mundo da arte à direita, enquanto à esquerda se encontra o que Courbet designava como o mundo de todos os dias. Posicionando-se no centro deste grande fosso, Courbet torna-se mediador, orquestrando e comentando a relação do artista com a arte e com a realidade. Este dispositivo lembra-nos que o atelier do artista sempre foi um sítio onde as fronteiras se cruzam, e onde a realidade e a imaginação colidem. É esta linha fronteiriça que perturba fundamentalmente qualquer leitura unívoca do terreno do atelier, continuando no entanto a fornecer-lhe respostas.” Antonia Harrison, “Where Worlds Collide: The Studio and Beyond”, in Giles Waterfield (ed.), The Artist’s Studio, Hogarth Arts Ltd., 2009.

“Tendo começado numa velha fábrica de confecção de chapéus e mudando-se depois para um loft em Nova Iorque, o espaço aberto da Factory, coberto de folha de alumínio, transformou-se em local camaleão para Warhol e os seus trabalhadores, colaboradores e mundanos. Enquanto atelier, foi-se modificando para se adaptar a uma miríade de actividades incluindo festas, concertos, projecções de filmes e ‘o negócio do negócio da arte’, tal como Warhol veio a defini-lo. Com uma formação de artista comercial, Warhol aplicou um espírito de negócio à arte e assim à sua prática no atelier, ainda que sob o signo da comunalidade e da experiência partilhada. Esta ambivalência foi frequentemente mencionada pelo artista, que descrevia a Factory simultaneamente como ‘um vácuo’ que ‘me deixa em paz para trabalhar’ e como um lugar onde ‘Amigos passam... e fazem o trabalho comigo’. Na Factory, Warhol aplicou uma fronteira movediça entre o artista e o mundo exterior, produzindo trabalho que colocava igualmente questões sobre autenticidade e autoria, tanto em relação à sociedade como em relação à prática artística propriamente dita. O facto de as paredes do atelier serem em si reflectoras constituía a ironia central no âmago da Factory.” Antonia Harrison, “Where Worlds Collide: The Studio and Beyond”, in Giles Waterfield (ed.), The Artist’s Studio, Hogarth Arts Ltd., 2009.


Untitled (2005), de Peter Fischli e David Weiss, recria um atelier em desordem constituído por 105 objectos esculpidos em poliuretano. A instalação, que inclui objectos tais como um sofá, um tamborete, um capacete, uma vassoura, uma placa eléctrica, uma máquina de café, e 5 pares de botas, reflecte não só sobre o atelier enquanto espaço real, mas também enquanto espaço que se foi construindo na nossa imaginação através de obras de arte, filme, ficção e outras representações.

se torna, aparentemente, num reflexo deles próprios (tal como qualquer habitação reflecte o carácter e o contexto dos seus habitantes)” [5]. Essas representações focalizam-se em torno da ideia segundo a qual o atelier compõe uma espécie de manifestação do espírito do artista, ou de extensão do seu corpo. “Para Alice Bellony-Rewald and Michael Peppiatt, os autores de Imagination’s Chamber (1982), não é preciso ser céptico em relação à clareza e fiabilidade da imagem do espaço do artista. Os autores tratam as fotografias (na sua maioria) dos ateliers que discutem como provas físicas sólidas de algo não físico. Este espaço está cheio de indícios sobre a natureza do trabalho do artista, indícios que podem ser decifrados. Para eles, ‘a história da arte pode ser contada através do atelier; e mesmo, ‘o atelier é o artista’.” [6] Partindo da ideia segundo a qual o atelier nos apresenta não só restos (de obras), traços (de projectos futuros), mas também indícios sobre a natureza do processo criativo e eventualmente sobre a personalidade do artista, mostraremos aqui dois exemplos da persistência desse imaginário nos dias de hoje. No artigo “Beyond the Threshold” (2004), Sheena Wagstaff tem alguma dificuldade em conter a emoção que

sente quando vai ao atelier do fotógrafo canadiano Jeff Wall, reconhecido internacionalmente pela raridade da sua produção e pelo rigor conceptual da sua abordagem. Propõe assim ao leitor uma descrição naturalista – à maneira de Zola – da pobreza e da miséria que rodeiam o atelier. “O seu espaço de trabalho situa-se numa área desta cidade canadiana do oeste longínquo onde a fronteira pára abruptamente no oceano. É actualmente o domicílio de muitos que chegaram literalmente ao fim da linha. Para a pequena e menos visível população de emigrantes asiáticos, isto não corresponde ao admirável mundo novo que lhes prometeram. Lutam para dar a volta às suas vidas numa paisagem desoladora de edifícios abandonados, fachadas de lojas fechadas e centros de desintoxicação deprimentes. Passar por este bairro diariamente, como faz Wall, é testemunhar um miserável teatro de humanidade abjecta onde cada grupo, consumido pela sua aflição particular – os sem abrigo, os junkies, as prostitutas e os seus predadores –, representa as suas transacções ritualizadas e lúgubres até uma certa apoteose, ocasionalmente animada por uma jovem espectral absorvida pelos espasmos contorcidos e selvagens de uma dança da coca.” Uma

descrição que contrasta radicalmente com a do atelier de Jeff Wall: “O atelier de Wall – uma grande câmara escura tradicional num edifício, e um grande espaço limpo com mesas de luz espaçosas e uma estação de computador no outro – albergam o equipamento necessário que lhe permite fazer os enormes diapositivos e fotografias pelos quais é conhecido. Cada espaço é dedicado à função determinada pelas máquinas que alberga: este é um atelier operacional sem enfeites.” [7] A confrontação destas duas descrições salienta a existência de duas esferas que tudo opõe e a figura móvel do artista que lança uma ponte entre essas realidades. De um lado, um espaço literalmente invadido pela pobreza, onde o próprio corpo daqueles que o habitam é contaminado pela miséria (prostitutas, drogados...); espécie de inferno pós-industrial e suburbano, cúmulo da marginalidade social. Do outro, o atelier de Jeff Wall, espécie de lugar preservado que resiste à corrupção generalizada ou foi reconquistado a essa terra devastada. Um espaço onde reina a ordem, a sobriedade, o estritamente necessário. Face à superabundância de miséria que reina e fervilha no exterior, o interior do atelier dá lugar a uma atmosfera quase

monástica na qual Jeff Wall trabalha em asceta. O atelier de Jeff Wall assemelhase a uma espécie de ilhéu no meio da miséria humana, um lugar de excepção que resiste em virtude de uma consciência transcendental da qual a arte seria o agente activo. “Chegamos pois ao atelier de Wall castigados, apreciando o facto de o seu envolvimento em questões sociais em algumas das suas fotografias nunca pender para o sentimentalismo, mas aparecer sempre aliado, através da sua determinação, a uma preocupação urgente com questões relativas à estrutura pictórica”. [8] Um outro exemplo da persistência do imaginário do atelier de artista, enquanto lugar onde se opera uma certa magia, encontra-se na tendência a restaurar as casas e os ateliers dos artistas e a transformá-los em museus. O atelier apresentar-se-ia assim aos visitantes como sendo o lugar onde o génio do artista permaneceria como que moldado numa cofragem. Após a morte de Francis Bacon, o atelier que ocupava no número 7 de Reece Mews em Londres foi completamente desmontado para ser transportado e reconstruído de forma idêntica na City Gallery The Hugh Lane em Dublin, onde reside desde então hermeticamente selado por trás das vi-


Atelier Real Mar/Abr 2010

Atelier de Francis Bacon, Hugh Lane Dublin City Gallery.

draças. “Esta operação foi levada a cabo com a assistência de uma equipa de arqueólogos que cartografaram o espaço, e etiquetaram e anotaram as posições dos objectos. O atelier reconstruído inclui a porta original, paredes, soalhos, tecto e prateleiras. Mais de 7,000 itens foram encontrados no atelier e catalogados numa base de dados especialmente concebida para o efeito, antes de serem recolocados no atelier. A base de dados de Francis Bacon é o primeiro arquivo computorizado a incluir todos os conteúdos de um estúdio de artista de renome mundial. Cada item do atelier tem uma entrada na base de dados. Cada entrada consiste numa imagem e numa descrição factual de um objecto. A base de dados tem entradas em aproximadamente 570 livros e catálogos, 1,500 fotografias, 100 telas rasgadas, 1,300 folhas arrancadas a livros, 2,000 materiais de artista e 70 desenhos. Outras categorias incluem a correspondência do artista, revistas, jornais e discos de vinil.” [9] O rigor científico com que todos os elementos que compõem o atelier de Bacon foram repertoriados parece evocar um conto à maneira de Borges. Como se entre o caos de papéis, no emaranhado dos tubos de pintura, na disposição de um punhado de pincéis, se encontrasse

a chave do mistério do processo criativo de Bacon... e bastaria que um tubo de pintura não estivesse no seu lugar para que a possibilidade de resolver o mistério se perdesse para todo o sempre. O atelier de Bacon seria como um texto que fala numa língua estrangeira e que seria preciso decifrar. No caos orgânico deste atelier, é também o corpo de Bacon que se desloca em transparência. Vemos sinais visíveis da sua presença, como se ele tivesse acabado de pousar o pincel e de passar ao compartimento do lado. De uma certa maneira, nunca antes estivemos tão perto dele, quer dizer das condições originais (e da fonte misteriosa) que tornaram possível/tangível uma tal obra. Mas o que nos diz exactamente o atelier de Bacon sobre a sua obra? Não agiria antes como uma espécie de metáfora ou de confirmação daquilo que já conhecemos (ou projectamos) da sua obra? Seria por exemplo fácil de ver no caos do atelier de Bacon uma representação do seu cérebro. Cérebro que gostamos de imaginar torturado, assombrado por corpos em contorção, em luta permanente, tanto física como moral. O atelier transforma-se assim em ringue onde as figuras de Bacon combatem e onde o próprio Bacon luta contra os seus demó-

nios estéticos. “Talvez esta reconstrução nos diga mais sobre a era voyeurista em que vivemos, do que sobre o artista propriamente dito, ou sobre o seu trabalho. Ou será que na verdade achamos a ausência do artista mais interessante do que a sua presença? É esta a natureza do território dos ateliers: fornecem um complexo espelho multi-dimensional – ao artista, à arte do passado, a quem quer que esteja a olhá-los ou a imaginá-los, e à própria sociedade.” [10] E o atelier do artista contemporâneo? Como é que os artistas contemporâneos representam os seus ateliers? Será que perpetuam o mito do atelier tal como circula geralmente na cultura popular ou na lógica patrimonial dos ateliersmuseus? A exposição “Production Site: The Artist’s Studio Inside-Out”, inaugurada no passado dia 6 de Fevereiro no Museu de Arte Contemporânea de Chicago, apresenta uma série de 13 obras de artistas contemporâneos em torno dessa questão. Uma das obras apresentadas nesta exposição é Mapping the Studio II with color shift, flip, flop, & flip/flop (Fat Chance John Cage) (2001), de Bruce Nauman. Uma obra que desmistifica a concepção do atelier do artista ao mesmo tempo que joga com as convenções

que se encontram na origem desse mito e formam a sua história. “O que desencadeou esta peça foram os ratos. Tínhamos um grande afluxo de ratos do campo nesse Verão, em casa e no atelier. Eram tantos que até o gato estava a ficar farto deles. Eu andava a sentar-me pelo atelier, frustrado por não ter nenhumas ideias novas, e decidi que temos que trabalhar com aquilo que temos. O que eu tinha era este gato e os ratos, e acontece que tinha uma câmara de vídeo com infravermelhos no atelier. Instalei-a e liguei-a durante a noite, e deixava-a filmar quando não estava, só para ver o que saía. Tenho este material todo espalhado pelo atelier, restos de vários projectos e projectos inacabados e notas. E pensei para comigo: Porque não fazer um mapa do atelier com os seus restos? Depois pensei que podia ser interessante deixar os animais, o gato e os ratos, fazerem o mapa do atelier. Instalei então a câmara em diferentes pontos do atelier onde os ratos tinham tendência a passar, só para ver o que é que fariam entre as remanescências do trabalho. A câmara foi por fim instalada numa sequência de sete posições que me pareciam mapear bastante bem o espaço.” [11] A obra apresenta-se sob a forma de


MAPPING THE STUDIO II with color shift, flip, flop, & flip/flop (Fat Chance John Cage) (2001) Bruce Nauman. Tate (Londres), Centro Pompidou (Paris) e Kunstmuseum (Basel).

uma instalação de vídeo, na qual são projectadas em 7 ecrãs as imagens do atelier de Bruce Nauman. A calma das imagens é interrompida a intervalos irregulares pela aparição de ratos, de insectos, e do gato de Nauman, mas também pela irrupção de fundos sonoros tais como a passagem de um comboio, um relincho, o grito de um coiote, o vento ou a chuva. A instalação ilustra também maravilhosamente a revelação precoce de Bruce Nauman quando, confrontado com a questão do “que fazer?” no momento em que acaba de obter o seu diploma, considera que “se eu era um artista e estava no atelier, então o que quer que fosse que estivesse a fazer no atelier devia ser arte.” Mapping the Studio II explora as representações do atelier do artista mas desactiva contudo qualquer possibilidade de espectacularização do processo criativo, e ilude ironicamente a profundidade do manifesto artístico que poderia representar. Por um lado, a instalação funciona num ciclo longo (cada ecrã projecta um filme de 5 horas e 45 minutos construído a partir dos diferentes ângulos de filmagem) e a acção é reduzida a um mínimo. Nada a ver com a explosão electromagnética que parece ter abalado o atelier de Bacon. “O que senti ao visioná-la aproxima-se da meditação. Porque a imagem da projecção é bastan-

te grande, se tentarmos concentrar-nos ou tomar atenção a um ponto específico perdemos qualquer coisa. Por isso temos mesmo que evitar concentrar-nos e deixar trabalhar a visão periférica. Ganhamos provavelmente mais a passear o olhar sem procurar. Temos que nos tornar passivos, parece-me” [12]. Uma relação meditativa mais do que reflexiva, uma experiência a viver e não tanto uma demonstração, ou um manifesto que o artista quereria impor ao espectador. Por outro lado, a acção é filmada durante a noite, tudo o que a priori podia constituir o interesse dessas imagens (espiar Nauman no seu processo criativo, ou surpreender as relações sociais que se estabelecem no atelier enquanto lugar de trabalho) é simplesmente ocultado. O processo criativo que ocupa Nauman quando filma o seu atelier durante a noite é precisamente aquilo que o espectador vê. A única acção – esse jogo incansável do predador e da presa entre o gato e os ratos – parece afinal tomar ares de fábula cómica à imagem dos sketches de Tom e Jerry, sobre o jogo que o artista joga consigo próprio, com a sua obra em processo e com o espectador. Uma fábula que nos conta o trabalho diário e rotineiro, banal e ritualizado da criação artística, no qual o processo se torna ele próprio no objecto central da criação, ou seja esse movimento perpétuo em

direcção a uma finalidade mais ou menos absurda, no qual o que importa não é caçar o rato mas sim, como em Tom e Jerry, construir uma variação infinita de ratoeiras. “Queres fazer alguma coisa... E então a partir do desespero fazes finalmente alguma coisa, uma coisa qualquer – não importa se é uma ideia boa ou má, só tens que fazer alguma coisa. Há um grau de ansiedade e frustração que nos motiva a parar de preocupar-nos sobre se é uma boa ou uma má ideia e a fazê-la simplesmente.” [13] Dominic Molon, comissário da exposição actualmente no Museu de Arte Contemporânea de Chicago, prolonga o olhar crítico dos artistas contemporâneos sobre a representação do atelier, emitindo a hipótese de que “talvez se esteja a conceder à ideia tradicional do atelier um último viva de análise e atenção, antes de abordagens espacialmente mais ambivalentes ou implicando formas de apresentação site-specific se transformarem em regra.” [14]. Novas abordagens do atelier ou o surgimento de uma “chamada sensibilidade ‘pós-atelier’” [15], que acompanham simplesmente a transformação de certas práticas artísticas, e mesmo a emergência de novas concepções do trabalho artístico.

David-Alexandre Guéniot

Actualmente, 2 exposições sobre o tema do atelier do artista: The Artist’s Studio (até 23 de Maio de 2010) Sainsbury Centre for Visual Arts, Norwich, UK. http://scva.org.uk/ Production Site: The Artist’s Studio Inside-Out (até 30 de Maio de 2010) Museum of Contemporary Art Chicago, USA. http://www.mcachicago.org/ [1] Michael Cole e Mary Pardo (eds.), Inventions of the Studio. Renaissance to Romanticism, Chapel Hill, University of North Carolina Press, 2005, p. 25. [2] Giles Waterfield (ed.), The Artist’s Studio, London, Hogarth Arts, 2009, p. 1. [3] Antonia Harrison, “Where Worlds Collide: The Studio and Beyond”, in The Artist’s Studio, op. cit., p. 73. [4] Ibid. [5] Giles Waterfield, The Artist’s Studio, op. cit., p. 3. [6] Ibid. [7] Sheena Wagstaff, “Beyond the Threshold”, Tate ETC, Issue 4/Summer 2005. Consultável online: http://www.tate.org.uk/tateetc/issue4/inthestudio4. htm. [8] Ibid. [9] http://www.hughlane.ie/francis_bacons_studio.php. Consultado em 17 de Fevereiro de 2010. [10] Antonia Harrison, “Where Worlds Collide...”, art. cit., p. 74. [11] Michael Auping, “A thousand words: Bruce Nauman talks about mapping the studio”, ArtForum, vol. XL, n° 7, mars 2002. Consultável online: http://www.speronewestwater. com/cgi-bin/iowa/articles/record.html?record=650. [12] Ibid.[13] Bruce Nauman em entrevista, 4 de Outubro de 2004, Tate Modern. http://www.tate.org. uk/research/tateresearch/majorprojects/nauman/ work_3.htm. Consultado em 17 de fevereiro de 2010. [14] Dominic Molon, “Producing Production Site: Revisiting and Revisualizing the Artist’s Studio”, em http://studiochicago.blogspot.com/2010/01/ producing-production-site-revisiting.html. Consultado em 15 de Fevereiro de 2010. [15] Ibid.


Atelier Real Mar/Abr 2010

Ciclo Restos, rastos e traços. Práticas de documentação na criação contemporânea

Atelier Real, 17 de Abril, 18H00 (Entrada livre, lotação limitada) Conferência-demonstração em Francês ‘simplificado’, sem tradução.

Apresentação do projecto colectivo da Encyclopédie de la parole, e do espectáculo Parlement de Joris Lacoste (França) Com a colaboração e participação de Grégory Castéra, Frédéric Danos, Joris Lacoste e Emmanuelle Lafon. O que haverá de comum entre as palavras ditas em discursos políticos, na poesia oral, nas publicidades, em conversas, leituras, comentários desportivos, entrevistas, mensagens telefónicas, diálogos de cinema, rituais religiosos, canções de rap, documentos etnográficos, pregações, conferências, balbucios, delírios, séries televisivas, instruções, contos, algaraviadas, brainstorming, hipnose, insultos, lábias de vendedor, ditados, crónicas radiofónicas, sortilégios, telejornais, discursos empresariais, tiradas teatrais, leilões, cursos de ginástica, declarações de amor, síntese vocal...? Projecto visando apreender transversalmente a diversidade das formas orais, a Encyclopédie de la parole organiza desde 2007 sessões de escuta, nas quais se podem ouvir todos os tipos de documentos falados. Propostos

por um grupo variável de “colectores” e trabalhados por um artista sonoro, os documentos são compostos em forma de peça sonora em torno de um aspecto formal do discurso oral: Forma da interpelação, Cadência, Compressão, Espaçamento, Indexação, Intonação, Repetição, Responsabilidade, Saturação, Timbre... que constituem outras tantas entradas para a elaboração do índex da Encyclopédie. Desde Janeiro de 2008, as apresentações do trabalho em curso da Encyclopédie de la Parole tomaram a forma de aberturas públicas de 48 horas, ao longo das quais se apresentam não só peças sonoras mas também conferências, instalações, ateliers, peças radiofónicas, um coral, um jogo, e um espectáculo, Parlement. Desde Janeiro de 2010, uma primeira versão da Encyclopédie encontra-se disponível sob a forma de

site internet: www.encyclopediedelaparole.org. Esta enciclopédia não reivindica qualquer cientificidade e não pretende esgotar os elementos sonoros, linguageiros, discursivos, nem as suas infinitas combinações e compilações; tal como um objecto estético, entende-se como ferramenta transversal ao serviço dos praticantes da oralidade. O seu slogan é: “Somos todos especialistas do discurso oral”. A Encyclopédie de la parole é animada por um colectivo de poetas, intérpretes, artistas plásticos, músicos, curadores, encenadores, coreógrafos, teóricos, realizadores de cinema ou de rádio. É coordenada por Grégory Castéra, Frédéric Danos, Nicolas Fourgeaud, Joris Lacoste, Pierre-Yves Macé, Olivier Normand, Nicolas Rollet, Esther Salmona.


Ciclo Restos, rastos e traços. Práticas de documentação na criação contemporânea

Manual de instruções A Encyclopédie de la parole funciona a partir de entradas. Essas entradas formam figuras do discurso oral, espécie de “cenários” possíveis que um locutor constrói – por intermédio do discurso – consigo próprio, com o seu (ou os seus) interlocutor(es), com a situação na qual fala e com a situação à qual se refere. Entre essas entradas, encontram-se por exemplo: Interpelação, Cadência, Espaçamento, Dobra, Responsabilidade, Saturação... Na entrada “Dobra”, o discurso oral será abordado em função das repetições, das interjeições, das digressões observáveis, por exemplo, num relato, quando o locutor aborda o seu tema por aproximações sucessivas, simultaneamente suplementares e complementares, em detrimento de um movimento linear que iria directamente ao alvo. Na entrada “Espaçamento” tratar-se-á de ir até aos limites, ou mais precisamente às margens do discurso oral, aos silêncios que o precedem e suspendem, até “àquilo que o rodeia ou que se abre nele como um vazio”, como “falta de linguagem”. O artigo cita assim o exemplo de uma entrevista de Juliette Binoche na qual os tempos de espera das respostas são tão longos que as regras da entrevista se desagregam e a situação de comunicação se desfaz. “O espectador é remetido para hipóteses. Timidez? Impossibilidade de se exprimir? Capricho? Retracção face à situação de entrevista? Recusa da comunicação? Exprimirá o silêncio um julgamento mudo sobre a si-

tuação, sobre as perguntas do entrevistador? Será uma forma de greve da entrevista? Uma maneira de preferir não?” Na entrada “Responsabilidade” tratar-se-á de mostrar a forma como um acto discursivo implica não só um locutor, mas também aqueles a quem o locutor se dirige e faz referência. O artigo baseia-se no discurso de despedida de Jacques Chirac, no momento em que “cede o lugar” ao seu sucessor Nicolas Sarkozy e em que passa de Presidente a simples cidadão. “O mau estar que toma conta de nós ao escutarmos esse discurso deve-se precisamente ao carácter instável da posição de enunciação. Quem é que fala, exactamente? Será o homem? O cidadão? O Presidente? Estará ele a falar em seu próprio nome? Em nome da França? Do povo francês? Do governo? Estará ele a falar em nosso nome? De quem ou de quê se faz ele a voz? Por quem ou de quê é responsável a sua voz?” Cada entrada é assim ilustrada por exemplos sonoros que são outros tantos elementos que compõem o corpus da Encyclopédie. Exemplos que se apropriam de alguns segundos ou minutos de um discurso político, de um anúncio publicitário, de um sketch humorístico, de uma pregação ou de qualquer outro tipo de documento sonoro falado. É importante sublinhar que esses documentos sonoros não são extraídos de conferências ou diálogos que analisariam os usos do discurso oral. Não, eles fornecem simplesmente exemplos de tal ou

tal uso do discurso oral. Poderia dizer-se que esses documentos falam por si, ou que não dizem mais do que aquilo que são. Assim, na entrada “Cadência”, encontraremos como documentos: um comentário desportivo de uma corrida de cavalos, o discurso do ditador Hynkel no filme O Grande Ditador de Charlie Chaplin, a recitação do alfabeto árabe, um slogan em escansão aquando de uma manifestação ou ainda um teste de microfone para uma gravação na rádio. A Encyclopédie de la parole não é uma colecção. Na realidade, os documentos que lá se podem encontrar não são reunidos em função do valor histórico ou científico do seu conteúdo. Pelo contrário, são na maioria tirados de uma cultura popular (televisão, cinema, rádio) e são relativamente fáceis de encontrar (no Youtube, por exemplo). Outros são simplesmente gravações de conversas entre amigos ou em lugares públicos. Por isso os enciclopedistas preferem utilizar a palavra “colecta” a colecção, e “colectores” a coleccionadores, salientando assim o fenómeno da escuta. Porque o discurso oral de que trata a Encyclopédie é a fala de todos os dias, aquela que ouvimos na rua, no supermercado, no trabalho, no metro, na rádio, na televisão. Quer dizer, aquela que falamos.

David-Alexandre Guéniot

Enciclopédia (E) não é Dicionário (D) Enciclopédia (E) não é Dicionário (D). O Dicionário fornece definição(ões) como conjunto de condições necessárias e suficientes à aplicação de um termo, com paráfrases (possível substituição) e cadeias de sinónimos (=, igualdade). “(...) queremos um dicionário de cada vez que queremos circunscrever a área de consenso no interior da qual um discurso se move” (Eco, “Dicionário vs Enciclopédia” in Sémiotique et philosophie du langage, Paris, PUF, 1984, p.130). A Enciclopédia fornece uma outra maneira de dispor as “coisas”, propondo ao leitor cenários de uso para um termo, uma expressão, – contextos possíveis –, entre os quais o interpretante (locutor, leitor, receptor...)

poderá navegar, activar um ou outro, na sua procura de uma máxima eficácia cognitiva e interpretativa. Eco opõe assim estes dois modelos de semântica, dando preferência ao segundo. Que tem a vantagem de poder aceitar vias adicionais: por exemplo, a inclusão de um novo cenário de uso metafórico. Modelo potencialmente expansivo. A Encyclopédie de la parole não pretende propor definições seriadas ou significações fixas condicionadas, à maneira de um dicionário rígido, mas também não será literalmente uma enciclopédia no sentido dado acima. O projecto apresenta-se antes como uma tentativa de questionamento das formas de fa-

lar a partir de etiquetas mais ou menos óbvias (Formas de interpelação, Humores, Timbres...). Fundada sobre uma teoria do uso difuso, alimentada antes de mais através de fontes gravadas, reunirá análises por entradas, sem unidade metodológica, epistemológica ou estilística a priori. Encyclopédie de la Parole não é História dos Conceitos.

Excerto do artigo “Grand Public, Le candidat à l’entrée se porte bien”, de Nicolas Fourgeaud, publicado no Le Journal des Laboratoires.


17

Atelier Real Mar/Abr 2010

Responsabilidade. Maneira na qual alguém ou algo se encontra de facto implicado num acto discursivo oral, se vê ligado ou envolvido nas palavras de um determinado locutor. Conjunto das instâncias, estatutos, qualidades ou etiquetas que são implicadas, induzidas, ou exibidas numa enunciação. “Amanhã, transmitirei os poderes que exerci em vosso nome a Nicolas Sarkozy, o nosso novo presidente da República”. Aqui ouvimos a maneira como a transferência da função-presidente do Sr. Chirac ao Sr. Sarkozy é correlativamente acompanhada de uma mudança de estatuto do locutor, que passa de presidente a cidadão: ao pronunciar as palavras “o nosso novo presidente”, reconhece pois simbólica e performativamente que cede o lugar. Ademais fá-lo criando um “nós” que corresponde à classe dos cidadãos franceses menos o presidente da República (apesar de ele próprio ser um cidadão, o presidente encontra-se excluído desse “nós” porque não pode dizer “o nosso presidente” falando de si próprio). Mobilizando esse “nós” da nação do qual faz de novo parte, Jacques Chirac mostra que volta nesse momento a ser um cidadão como os outros. É esse mesmo “nós” que recontextualiza imediatamente na história notável da nação francesa: “Somos os herdeiros de uma muito grande nação; uma nação admirada, respeitada, e que conta, tanto na Europa como no mundo.” (…) A continuação do discurso de Jacques Chirac mostra uma ruptura brutal da situação de enunciação: “Vocês têm capacidades imensas de criatividade e de solidariedade”. Quem é este “vocês” a quem de repente se dirige? É a comunidade dos cidadãos; é a comunidade do povo. Mas ao passar do “nós” ao “vocês”, o locutor exclui-se a si mesmo dessa comunidade, adoptando uma posição exterior. Que posição é essa? Será a comunidade daqueles a quem falta a “capacidade imensa de criatividade e de solidariedade”? Será por se retirar do jogo que o locutor Chirac se posiciona no exterior do corpo activo da nação? Aqui o locutor já não fala enquanto chefe de Estado, nem enquanto cidadão (“eu agora estou fora disso tudo”, parece dizer-nos). Estará a falar como um reformado? Será a reforma para a qual se vê relegado, que lhe confere simultaneamente essa modéstia filosófica e essa autoridade paternal? A frase que vem a seguir vai mostrar-nos que não. “Graças a vocês, graças à vossa dedicação...” Eis agora o “vocês” ao qual se dirige (que é o “nós” da Nação menos ele) mobilizado já não simplesmente como forma de interpelação (“estou a falar-vos”), mas enquanto designa actores sociais que se teriam “dedicado”: “vocês participaram”, “vocês estiveram dispostos a ajudar-nos a”, parece dizer-nos. Falando assim, o locutor Chirac propõe uma situação enunciativa muito particular. Já que a priori apenas cada cidadão, individualmente, poderia dizer se se dedicou. Através dessa figura curiosa, o presidente pretende sem dúvida exprimir o seu reconhecimento

Adieux à la France, discurso de adeus de Jacques Chirac, 2007 - Encyclopédie de la parole, entrada “Responsabilidade”.

aos cidadãos, mas na verdade fala por eles, privandoos assim da sua capacidade de se exprimir – quer dizer que os destitui, precisamente, da sua cidadania. De certa forma, fala em nome do “vocês” ao qual se dirige: esse “vocês”, longe de instituir um interlocutor distinto, como poderíamos esperar, serve ao contrário para lhe atribuir intenções que não existem necessariamente. Coloca-se então aqui a questão da legitimidade que terá o locutor para falar assim. Se a sua função presidencial lhe confere a legitimidade institucional de falar em nome do povo, dar-lhe-á ela o direito de atribuir intenções a cada membro desse povo? (…) A continuação do discurso de Jacques Chirac é surpreendente: “Quero dizer-vos a força do laço que, do fundo do meu coração, me une a cada uma e a cada um de vocês. Esse laço é o laço do respeito, o laço da admiração, é o laço da afeição que vos tenho.” Detenhamo-nos um instante nesta passagem, que é digna de nota na medida em que visa construir uma relação íntima entre a pessoa do locutor Chirac e “cada uma e cada um de vocês”. Essa relação íntima é marcada pela expressão “do fundo do meu coração”: aqui já não é o Presidente que se exprime: é o homem. O homem capaz “de emoções, de respeito, de admiração, de afeição” (diz-nos). Ao mesmo tempo que o “eu” muda de estatuto, reparamos que o “vocês” passa igualmente de um estatuto colectivo de “povo” ao estatuto de um “vocês” individualizado, pessoal: um vocês de cortesia. Constrói a ficção de uma familiaridade singular (marcada pela natureza do laço: respeito, admiração, afeição), com cada fran-

cês tomado um a um. O locutor Chirac dirige-se assim já não à entidade global do Povo, mas a particulares. Já não está na posição de servir o interesse geral, mas na posição de cultivar relações individuais. “A força do laço que, do fundo do meu coração, me une a cada uma e a cada um de vocês”: como é possível um tal enunciado? Como é que o locutor pode assumir a existência de uma laço pessoal ligando-o a sessenta milhões de franceses tomados um a um? Como é que pode reivindicar sessenta milhões de relações pessoais? Fala como uma espécie de Pai da nação: “É através de mim (ou em mim) que vocês estão ligados”, parece dizer-nos. Através dessa estranha figura, o “eu” civil do reformado retoma uma elevação singular: no preciso momento em que recupera o poder de falar em seu próprio nome, atribui-se a faculdade de falar a partir de um lugar inacessível: por um lado não é mais do que um homem entre outros homens, mas ao mesmo tempo é aquele através de quem esses homens formam um povo; é ele que mantém de pé o grande corpo da nação; é ele o ponto de vista que contém todos os outros; a mónada que reflecte todo o universo; a presença do Senhor em cada um, “que se interessa verdadeiramente por vocês”. (…) (excertos do artigo “Responsabilité”, in Encyclopédie de la parole, www. encyclopediedelaparole.org, consultado em 12 de Fevereiro de 2010).


18

Ciclo Restos, rastos e traços. Práticas de documentação na criação contemporânea

Saturação. Conjunto de fenómenos que conduzem o discurso oral a um determinado limite. Maneira de perturbar ou de revigorar o fluxo do discurso, operando tanto no plano semântico como no plano formal. Pode-se dizer que um discurso oral se encontra saturado quando alguns dos seus aspectos aparecem como excessivos; chamaremos saturação a todo um conjunto de fenómenos que afectam o discurso oral, saturando um ou vários dos seus parâmetros: a interpelação, o volume, a interlocução, a afectividade, a inteligibilidade da mensagem, a economia das informações, etc. A saturação manifesta-se assim através da exacerbação de certas dimensões do discurso oral, que podem destabilizar a estruturação das práticas verbais e a organização da participação (réplica, escuta, compreensão) numa determinada situação. Identificaremos pois os casos de saturação no discurso oral em referência ao contexto no qual decorre: o âmbito de emergência de um discurso oral veicula standards e normas, em função das quais podemos avaliar aquilo que nele se pode ou não realizar, e em relação ao qual um determinado elemento será percebido como excessivo. A saturação é assim uma operação que põe em jogo o âmbito de emissão de um discurso, perturbando-o, incomodando-o, parodiando-o, confundindo-o, parasitando-o ou recusando-o. (…) No exemplo seguinte, o discurso encontra-se completamente saturado, todo ele excessivo, mas mantém-se balizado pela situação: uma mulher fora de si telefona para as urgências para evitar uma possível tentativa de assassínio cometido por ela própria sobre a pessoa do seu filho. A interlocutora vai muito profissionalmente tentar manter (e fazer partilhar) as restrições do diálogo-tipo próprio deste género de plataforma (pergunta/resposta). De forma bastante curiosa, essas restrições são respeitadas praticamente à letra: apesar de não parar de gritar, a mulher responde correctamente a todas as perguntas que lhe são dirigidas. Entre solilóquio e exigência de interacção (“I need an officer at my house”), o âmbito restritivo imposto pela plataforma telefónica permanece intacto, funciona aqui como uma verdadeira ferramenta de des-saturação, é um meio de manter um contacto inteligente e inteligível com um interlocutor (– “Ma’am, how old is your son ?” – “He’s fifteen !”, – “Ma’am, what’s your name ?” – “Monica Wilson”). A repetição e o timbre são os principais operadores aqui mobilizados. Uma mesma ideia se repete de maneira redundante, praticamente nos mesmos termos, ao longo de todo o diálogo: “I need an officer at my house”, “I need an Officer out here”, “if you don’t send a motherfucking Officer out here...”, “I need an Officer, and I need him out here quick”, “Either get an officer over here, or I’m gonna kill this motherfucker”. Este protesto serve de fio condutor a toda a conversação. O

calão “motherfucker” ou “motherfucking” volta em 14 ocorrências. Este termo é sucessivamente associado ao filho (“little motherfucker”, “I’m gonna kill this motherfucker with this hammer”, “motherfucking ass”), ao agente da polícia (“motherfucking officer”), à sua própria casa (“motherfucking house”), ao martelo (“motherfucking hammer”), à sua interlocutora do 911 (por sinédoque: “your motherfucking head”), e depois ao mundo inteiro (“motherfucking world”). Concentradas em duas frases no fim da conversação, as ocorrências deste termo fazem claramente aparecer o carácter progressivo e processual da saturação, igualmente sensível ao nível de entoação da voz e ao débito. O timbre é saturado desde o início, mas os outros parâmetros (volume, débito, entoação) parecem não mais querer parar de aumentar (a interlocutora do 911 tenta interrompê-la 4 vezes com uns “Ma’am” para lhe colocar a sua pergunta, em vão: tem que esperar que ela tenha terminado o período no qual se lançou). No final tudo se encontra saturado, incluindo quando declina, no mais absoluto respeito do âmbito do intercâmbio, a sua identidade gritando: “Monica Wilson!” O que ganha em articulação quando diz “and I hope you’ve recorded every fucking thing that I’m saying because I’m sick and TIRED of this motherfucker”, é imediatamente perturbado pelo uivo da palavra “tired”. (…) Excertos do artigo “Saturation”, in Encyclopédie de la parole, www.encyclopediedelaparole. org, consultado em 12 de Fevereiro de 2010.

“Os tipógrafos da imprensa aplicaram durante muito tempo as regras formais de apresentação apenas ao nível sintagmático da escrita no qual o sentido se distribui então e se impõe na página bem ordenada trancada de pontos de vírgulas de travessões de aspas de parênteses de divisões em parágrafos de códigos académicos de ortografias certificadas ao passo que postas no ar as palavras fragmentos ligados em frases mais ou menos construídas levam constantemente o sentido de uma expressividade fonte de interpretação de sinais internos daquilo que está simultaneamente em vias de se dizer e de se viver no presente numa respiração pensada que anima o espaço entre si e o outro e deixa vibrar no exterior o seu fluxo de palavras intrigantes articuladas ou alteradas por estados particulares emocionais do riso ao grito como necessidade de afirmação dos limites da sua própria existência para além de qualquer identidade para quem quiser ouvir e escutar num dado momento.” Ève Couturier Texto de apresentação da peça sonora “Espaçamentos”, de Ève Couturier, composta a partir de documentos reunidos por Chiara Gallerani, Joris Lacoste, Kenji Lefèvre-Hasegawa, Nicolas Rollet, Esther Salmona, Ève Couturier.

Are you talking to me?, extracto do filme “Taxi driver”, Martin Scorcese, 1976 (voz de Robert de Niro) – Encyclopédie de la parole, entrada “Interpelação”.


19

Atelier Real Mar/Abr 2010

Hold & Release, extracto de “Pelvic Pleasures”, Erotic Aerobics, Pierre Raymonde and Bugs Bower, 1982 – Encyclopédie de la parole, Entrada “Timbre”.

Discurso de Hynkel, no filme “The Great Dictator”, Charlie Chaplin, 1940 – Encyclopédie de la parole, entrada “Cadência”.

Indexação. Propriedade de um discurso ligado a um acontecimento que designa, descreve, segue, comenta ou informa, e do qual extrai algumas das suas características formais. Operação implicando a partilha de uma duração temporal, de uma linha de acção ou de um encadeamento de objectos, em relação aos quais a pessoa que descreve terá um maior ou menor grau de influência e de antecipação.

Rothko, extracto de um leilão, Christie’s New York, 2008, YouTube – Encyclopéide de la parole, entrada “Responsabilidade”.

Dos cinco dedos da mão, o indicador é prioritariamente aquele que serve para designar, para apontar para um objecto e segui-lo nas suas eventuais deslocações: “É um pássaro! Não, é um avião! Não, é o Super-homem!” exclama Cathy Berberian, com o dedo apontado ao

céu. Um discurso dir-se-á indexado a um acontecimento que lhe é exterior na medida em que com ele partilha uma certa duração temporal, uma linha de acção à qual o locutor se encontra ligado de uma maneira ou de outra. O comentário desportivo é assim um discurso que extrai do acontecimento que comenta não só a sua razão de ser, mas também certos caracteres formais inerentes ao seu desenvolvimento. Numa corrida de cavalos, por exemplo, podemos ouvir a maneira como o débito do discurso do comentador se acelera à medida que os cavalos se aproximam da linha de chegada; a maneira como o locutor reduz progressivamente as suas descrições suplementares, introduz acentuações que são outros tantos marcadores de intensidade; o débito, o envelope acústico, o conteúdo do discurso acompanham a progressão aparente da corrida, ajustam-se a ela, criam efeitos de suspense e de tensão crescente. Uma vez que a indexação implica não só um ajustamento, mas também uma partilha de duração temporal, que linguisticamente se traduz em relações particulares com o volume, a cadência, o espaçamento. Quanto mais o comentador produzir um comentário ofegante, mais os auditores terão a impressão de assistir efectivamente a essa corrida. (…) No caso da corrida de cavalos, podemos supor que os cavalos aceleram na recta final, e atribuir ao discurso indexado do comentador um princípio de analogia (a escansão para o galope). Não é contudo tanto o ritmo real da corrida como a proximidade do fim (a redução


20

Ciclo Restos, rastos e traços. Práticas de documentação na criação contemporânea

do espaço a percorrer, a diminuição do tempo restante) que dá a impressão que tudo se acelera: com a proximidade da linha de chegada os detalhes precisam-se, acumulam-se, encadeiam-se, colidem. O comentador aumenta o seu débito e a sua intensidade para anunciar e dramatizar o resultado da corrida. A aceleração da cadência e a intonação específica do discurso são também particularmente evidentes no caso do comentário de futebol, ainda que a linha de modulação seja mais exponencial do que recta. Também ali a dimensão espacial é determinante, já que o comentador acelera a escansão quando a bola se aproxima das redes. Mas contrariamente à corrida de cavalos, é difícil de prever o tempo que os jogadores levarão para chutar. Esse evento inesperado (mas sempre dado como iminente) dá origem a uma aceleração súbita e breve (“É a [posição] de fora de jogo”) acompanhada de uma progressão dos agudos (“Vahiura vai atacar, a jogada a retomada no ext-”), que um grito saturado vem interromper: “GOL!!!” (…) Excertos do artigo “Indexation”, Encyclopédie de la parole, www.encyclopediedelaparole.org, consultado em 12 de Fevereiro de 2010. It’s Superman, Cathy Berberian, extrait de “Stripsody”, TV Svizzera, 1969 – Encyclopédie de la parole, entrada “Indexação”.

Bios Joris Lacoste nasceu em 1973. Vive e trabalha em Paris. Escreve para o teatro e para a rádio desde 1996. Vários dos seus textos encontram-se traduzidos em inglês, italiano, alemão, croata e português. Entre os seus últimos projectos contamse: Comment faire un bloc (Inventaire/Invention, 2005); 9 lyriques (em collaboração com Stéphanie Béghain, Laboratoires d’Aubervilliers, 2005); Purgatoire (Théâtre National de la Colline, 2007), peça apresentada em Junho de 2009 no Teatro Maria Matos, numa encenação de Martim Pedroso; Encyclopédie de la parole (Laboratoires d’Aubervilliers, desde 2007); Au musée du sommeil (France Culture, 2009), W (colectivo de investigação sobre a representação teatral, desde 2004). Foi bolseiro do Centre National du Livre em 1997 e em 2003, e laureado do programa Villa Médicis hors les murs 2002. Foi autor associado ao Théâtre National de la Colline em 2006-2007. De 2007 a 2009 foi co-director dos Laboratoires d’Aubervilliers. É o encenador de Parlement, um espectáculo construído a partir do corpus sonoro de Encyclopédie de la parole. Grégory Castéra nasceu em 1981. Vive e trabalha em Paris. Curador, dirige e participa em várias pesquisas em torno das formas e efeitos da palavra – actualmente: Playtime, festival no Bétonsalon (Paris, 2008 e 2009), em colaboração com Mélanie Bouteloup; Encyclopédie de la Parole, colectivo de investigação sobre os factos do discurso oral (desde 2007); Ecole Publique de Paris (Bétonsalon, 2009); Second scénario, exposição na La Box (Bourges, 2010), em colaboração com Céline Poulin. Desde Janeiro 2010 assume a co-direcção dos Laboratoires d’Aubervilliers. Colabora, juntamente com Frédéric Danos, na dramaturgia do espectáculo Parlement.

Comentário desportivo de um jogo de futebol – Encyclopédie de la parole, varias entradas.

Emmanuelle Lafon actua nomeadamente com Klaus Michael Grüber e Michel Piccoli, Frédéric Fisbach, JeanBaptiste Sastre, Bernard Sobel, ou ainda Vladimir Pankov (SounDrama, colectivo moscovita). Como intérprete interessa-se especialmente pelas relações entre a música, o texto, o

som, e a voz. Em 2004 co-funda o colectivo F71 (www.collectiff71.com ) com Sabrina Baldassarra, Stéphanie Farison, Sara Louis e Lucie Nicolas: ligadas por um desejo comum de repensar a organização do trabalho, cada uma delas é simultaneamente autora, encenadora, actriz, e todas participam na produção dos seus espectáculos. No cinema, contracena com Marie Vermillard, Patricia Mazuy, Bénédicte Brunet, Denise Chalem (Talents Cannes 2004). É a intérprete de Parlement. Frédéric Danos vive e trabalha em Paris desde 1959, gostaria muito de se diluir no geral e seguir o grande fluxo da vida. Enquanto espera é intérprete, mestre ignorante e botânico sem mestre, responde sim a tudo. Projectos em curso: Monologue de Lenz au bosquet, uma fuga para o futuro em prosa e sans titre, Jeune fille orrible (princípio de infâmia lírica com Janin Benecke, Olivier Nourrisson, Audrey Gaisan), Encyclopédie de la parole, a manutenção de un film que j’ai commencé il y a 8 ans, La femme du patron para Anisia Uzeyman, Coordination des intermittents et précaires d’Île de France. Colabora, com Grégory Castéra, na dramaturgia do espectáculo Parlement. Parlement é um solo composto a partir do corpus sonoro de Encyclopédie de la parole: a partitura compõe-se de gravações de discursos diversos... Essas gravações, que foram primeiro reunidas pelas suas qualidades próprias, constituíram a matéria de uma escrita teatral específica, procedendo por montagem e composição não de textos, mas de sons. Fazendo suceder-se uma centena de vozes num só corpo, o da actriz Emmanuelle Lafon, Parlement produz um discurso transformista e poético, atravessado pela diversidade da oralidade humana. Uma primeira versão de Parlement foi produzida e apresentada nos Laboratoires d’Aubervilliers (Paris), em JaneiroFevereiro de 2009. A versão actual foi criada na Fundação Cartier em Paris, no dia 4 de Junho de 2009.


21

Atelier Real Mar/Abr 2010

Chris Marker, cineasta da memória “Terei passado a vida a interrogar-me sobre a função da recordação, que não é o contrário do esquecimento, mas o seu avesso. Nós não recordamos, reescrevemos a memória como reescrevemos a história”. (Sans Soleil, 1983) Os filmes de Chris Marker apropriam-se de imagens encontradas que – tal como as imagens filmadas pelo realizador – adquirem o estatuto de documentos. São as imagens de um mundo que seria visto por aquele viajante do futuro a quem se refere a narradora/leitora de Sans Soleil. “Ele não vem de outro planeta, vem de outro futuro: o ano 4001, a época em que o cérebro humano atingiu o estádio do seu uso total. Tudo funciona na perfeição, tudo aquilo que nós deixamos dormir, incluindo a memória. Consequência lógica: uma memória total é uma memória anestesiada. Após tantas histórias de homens que tinham perdido a memória, eis aqui a de um homem que perdeu o esquecimento. E que, por uma bizarria da sua natureza, em vez de se orgulhar e desprezar essa humanidade do passado e as suas trevas, se afeiçoou a ela, primeiro por curiosidade e depois por compaixão. No mundo de onde vem, convocar uma recordação, emocionar-se face a um retrato, tremer ao escutar uma música só podem ser o sinal de uma longa e dolorosa pré-história. Ele quer compreender: essas enfermidades do tempo, sente-as como uma injustiça.” (Sans Soleil, 1983) Imagens permanentes, omnipresentes, pictóricas, cinematográficas, fotográficas, televisivas e hoje em dia digitais, imagens de tudo e sobre tudo, imagens que formariam a memória total de um mundo que Chris Marker, enquanto arqueólogo do futuro, teria vindo descobrir, quais monumentos de uma civilização passada. O cinema de Chris Marker é um cinema da memória. Uma memória

La Jetée, Chris Marker (1962)

que é estudada nas suas funções mas que é também explorada, com os meios do cinema, no seu funcionamento. Estudando a memória nas suas funções, Chris Marker torna-se historiador.

Estuda as imagens do passado, quer dizer as imagens de um mundo que existiu mas já não existe, e do qual restam apenas imagens, filmes, textos. Serve-se pois dessas imagens como de documen-

tos representando não tanto a história propriamente dita, mas a nossa abordagem social da História. Esses materiais documentais ganham assim contornos iconográficos e mitológicos que nos informam sobre a construção e a história dessas mesmas imagens. Os filmes de Marker relatam o paradoxo da imagem, que enquanto agente mnemotécnico da história da humanidade se transforma – sob os efeitos da televisão e da intensidade dos fluxos mediáticos – em recordações-reflexos condicionados por uma iconografia comum. Documentos visuais que não privilegiam tanto a memória que contêm (e o contacto com a história que tornam tangível) mas a acessibilidade e imediaticidade dos clichés, favorecendo uma relação afectiva com a imagem e a História, em detrimento de uma relação reflexiva. “Esta abordagem ‘teórica’ do material do arquivo não anda longe da concepção de uma arqueologia do saber de Michel Foucault. Na discussão sobre imagens documentais, poder-se-ia também seguir a natureza discursiva dos factos num ‘arquivo’, para compreendê-las já não como ‘documentos’ (de uma verdade escondida ou de um código), mas como monumentos: com Foucault, esse arquivo ‘não seria a totalidade dos textos [imagens, no nosso caso] preservados por uma civilização, nem o conjunto de traços que poderiam ter sido salvos da sua destruição, mas antes a série de regras que determina, numa cultura, o aparecimento e o desaparecimento de enunciados (énoncés), a sua sobrevivência e a sua obliteração, a sua existência


22

paradoxal enquanto acontecimentos e enquanto coisas’ (Foucault 1994, 708). Esta análise foucaldiana do discurso científico não deve de maneira alguma ser aplicada directamente ao cinema. No entanto, a discussão epistemológica da história parece-me iluminar, num certo sentido, a função do arquivo informatizado moderno, especialmente tal como Marker o apresenta.” (Christa Blümlinger, “The Imaginary in the Documentary Image: Chris Marker’s Level Five”, Image & Narrative, Vol 11, N° 1, 2010) Por outro lado, os filmes de Chris Marker parecem querer penetrar na relação que associa imagem e memória. Qual é o estatuto da imagem nas nossas recordações? Como é que uma imagem transporta memória? Ou como é que a memória adere à imagem? Os seus filmes procuram não só conhecer a natureza do laço que se estabelece entre imagem e memória, mas também criar experiências de memória através da ferramenta e da forma cinematográficas. La Jetée (1962), Sans Soleil (1983) ou Level Five (1997) baseiam-se num dispositivo que implica uma relação particular com o tempo e com a percepção. Estes filmes funcionam como um incessante vaivém entre o passado e o futuro, a tal ponto que o tempo presente se fragmenta e perde toda a autonomia, limitando-se a ser apenas o futuro do passado. O presente define pois um tempo hipotético, fundamentalmente desconhecido e impossível de conhecer; um tempo que não cessa de actualizar as suas hipóteses sobre a sua própria essência e sobre o seu

Sans Soleil, Chris Marker (1983)

sentido. É a este movimento de actualização que obedecem os filmes de Chris Marker. Uma hipótese desenvolve-se ao longo do filme, mas não necessariamente num sentido linear. Pelo contrário, ela enrola-se sobre si mesma, interrompese, reformula-se, divide-se ou procede subitamente de um salto. É individualizada por intermédio de um narrador em voz off que comenta as imagens que nós vemos, que ele vê e nos mostra. Chris Marker situa o espectador na distância que separa a imagem dos seus significados. Entre um contínuo de imagens ópticas e a actualização de algumas delas como “imagens-recordação”, às quais os comentários vão referir-se. “Será que me vejo dentro de dez anos, separado de ti, lendo a notícia da tua morte no jornal, com uma vaga impressão de déjà-vu?” (Level Five, 1997). Um espectador situado algures na interface entre o olho e o cérebro.

David-Alexandre Guéniot

Filmes em consulta no Gabinete Audiovisual: Les Statues meurent aussi, 1953, 30 min, co-realizado com Alain Resnais La Jetée, 1962, 28 min. Sans Soleil, 1983, 100 min. A.K., 1985, 71 min (sobre o Akira Kurosawa). Le Tombeau d’Alexandre, 1992, 120 min (sobre o Alexandre Ivanovitch Medvedkine) Level Five, 1997, 110 min. Une journée d’Andrei Arsenevitch, 1999, 55 min (sobre o Andrei Tarkovsky)

Sans Soleil, Chris Marker (1983)

Gabinete Audiovisual e Gabinete de Leitura

Bio

O Atelier Real disponibiliza, durante tudo o ciclo “Restos, rastos e traços”, um Gabinete audiovisual e um Gabinete de leitura – dois espaços de consulta em livre acesso, onde os interessados podem consultar materiais audiovisuais e livros relacionados com o tema do ciclo.

Chris Marker Nasceu em Neuilly-sur-Seine (França), em 1921. Estudou filosofia e integrou a Resistência francesa durante a ocupação germânica. Trabalhou como jornalista, crítico de cinema e escritor. Desde 1952 tem realizado documentários e filmes de ficção com intenções históricas e documentais. Ganhou projecção internacional com a curta-metragem La Jetée, realizada em 1962. Recentemente, o seu trabalho tem sido objecto de exposições que incluem experimentações tecnológicas e instalações multimédia.

Horários Todos os dias da semana, 10h00 às 18h00. (ENTRADA LIVRE)


23

Atelier Real Mar/Abr 2010

Image Branding No momento em que os espectadores se preparam para entrar no estúdio do Atelier Real (AR) para assistir à projecção do filme “This Is Not The Documentation Of A Performance (2010)”, um projecto desenvolvido em residência artística no âmbito do ciclo “Restos, rastos e traços. Práticas de documentação na criação contemporânea”, as autoras Alexandra Ferreira e Bettina Wind distribuem pelos espectadores um pequeno papel do tamanho de um cartão de visita. Nele podemos ler o texto seguinte:

Consciente que a “estrutura” visada é a RE.AL ou o Atelier Real, interrogo a Alexandra Ferreira sobre o significado deste gesto, que me responde que se trata “de uma performance”. Um pouco mais tarde no decorrer da noite, ouvirei precisar-se que é o aspecto político (existente no acto performativo) que se quer salientar. A situação é tão inédita e surpreendente que merece um comentário. Os artistas acolhidos em residência no âmbito do ciclo “Restos, rastos e traços. Práticas de documentação na criação contemporânea” foram seleccionados a partir de um dossier apresentando uma proposição artística a desenvolver ao longo de uma residência de dois meses. Para realizar os seus projectos, os artistas recebem uma ajuda financeira de 2’000 Euros, um apoio logístico (espaço de trabalho e alojamento) e técnico (material de som e vídeo), bem como o acompanhamento da equipa de produção da RE.AL. Em contrapartida é-lhes pedido que apresentem um resultado da residência num momento público. Os participantes são informados que não lhes é pedido que produzam uma obra (possibilidade que se deixa contudo em aberto), mas uma proposta no sentido em que não é o grau de fechamento e de finalização da forma que importa, mas sim o contrário: a sua abertura. Uma proposta é a formalização de uma reflexão artística original em torno do tema do ciclo. Essa reflexão deve ser enriquecida pela experiência e pelas experimentações levadas a cabo pelo artista durante a residência. Ela deve ser partilhada publicamente num modo mais ou menos performativo – deve de qualquer maneira considerar a presença do artista como um meio não negligenciável de criar um relação de partilha e de diálogo com o público. Uma proposta pode assim tomar a forma de uma conferência-demonstração, de um debate, de uma projecção, de uma publicação, de um workshop, de um dispositivo, etc. No entanto, a proposta não é uma obra de arte, nem no sentido comercial do termo (um produto), nem no seu sentido artístico (uma finalidade). Como tal, convém lembrar que o Atelier Real não representa os artistas que são acolhidos (o

AR não é uma galeria de arte) e que não vende bilhetes para as apresentações que organiza (o AR não é uma sala de espectáculos ou de exposições). A sua relação com os artistas acolhidos ou com o público não é lucrativa. Se “obra” há no final da residência, não será considerada como tal. A noção de obra entendida como uma entidade auto-suficiente, que falaria sobre si mesma e por si mesma na ausência do artista, é estranha ao quadro programático do Atelier Real. De certa forma, o estatuto programático do Atelier Real (um espaço de investigação e de experimentações) “impede” a obra de se tornar obra, já que não tem poder simbólico nem económico para legitimar a obra enquanto obra. A sua legitimação teria pois mais que ver com o procedimento artístico do que com os objectos por ele gerados. O Atelier Real programa propostas que constituem reflexões experimentais e que, por natureza, são processuais e não objectais. Voltemos agora ao pequeno papel e tentemos compreender o que quer dizer, ou melhor, tentemos situar a concepção de trabalho artístico em nome da qual fala. Acusar publicamente (e de surpresa) o AR de se apropriar do capital simbólico de uma obra (às custas das suas autoras) é uma acusação que consideramos grave. Põe em dúvida os princípios éticos de uma estrutura que se tem dedicado, desde 1990, a criar um quadro de referência exigente e renovado, independente e alternativo, para os artistas, o público e os agentes culturais. Sobre este aspecto, as centenas de artistas e de colaboradores que participaram nos nossos projectos ao longo dos 20 anos de existência da RE.AL são a prova de uma estrutura que sempre mostrou uma grande curiosidade, generosidade e solidariedade para com a comunidade artística nacional e internacional na qual se inscreve. Ao mesmo tempo, essa acusação revela um erro grosseiro de apreciação do contexto cultural português, ao identificar a RE.AL ou o Atelier Real como uma instituição abusando do seu poder de legitimação ou financeiro, apropriando-se do capital simbólico de uma obra criada nos seus espaços para cultivar uma estratégia de marketing. Compreenderíamos melhor que as autoras atacassem instituições culturais, financeiras ou “legitimadoras” mais possantes e menos alternativas. Por último, essa acusação evidencia um erro de interpretação do quadro programático do Atelier Real ao colocar a obra – neste caso, a criação de um “filme” – no centro do trabalho artístico e da razão de ser do artista quando, na verdade, esse quadro se limita à exposição e partilha de propostas. Má interpretação claramente confirmada pela criação – depois do “filme” – de uma segunda obra, desta vez performativa, devidamente datada (“23/01/2010”) e assinada (“windferreira”). Não deixa de ser igualmente curioso constatar que a estratégia da “image branding” é aqui denunciada por intermédio de uma obra cuja assinatura se assemelha a um logótipo. Esse culto da assinatura, essa ditadura da obra, essa celebração do artista enquanto criador de objectos, promove uma lógica à qual as residências do AR desejam propor uma alternativa. Deploramos a atitude lamentável de Alexandra Ferreira e Bettina Wind, sem contudo desvalorizarmos o interesse da reflexão que trouxeram ao ciclo aquando da sua residência e da apresentação pública do seu resultado. David-Alexandre Guéniot Direcção artística do Atelier Real


24

Programa

Real Rua Poço dos Negros nº55. 1200-336 Lisboa T (+351) 21 390 92 55 F (+351) 21 390 92 54 info@re-al.org www.re-al.org

Atelier Real atelier@re-al.org www.atelier-real.org

Sábado 20 de Março Ciclo Restos, rastos e traços. Práticas de documentação na criação contemporânea Sessão contínua com início às 18h00 Conversa com o artista às 19h30

Processo: Quem é Noé Sendas? (2010) de Noé Sendas (Alemanha - Portugal)

Sábado 17 de Abril 18h00 Ciclo Restos, rastos e traços. Práticas de documentação na criação contemporânea

Apresentação dos projectos “Encyclopédie de la Parole” e “Parlement” com a participação de Joris Lacoste, Grégory Castéra, Frédéric Danos e Emmanuelle Lafon (França).

Fora de campo – Sobre o arquivo de cinema de Moçambique de Catarina Simão, acolhido e apresentado no ciclo “Documente-se”, no Museu de Serralves, de 14 de Abril a 16 de Maio. A edição 2010 do ciclo “Documente-se” promove, a partir de um conjunto de propostas artísticas e de abordagens de cientistas sociais, uma reflexão sobre os processos do (não) reconhecimento do eu individual e social na contemporaneidade, estruturando identidades, relações de poder e contextos sociais. O projecto “Fora de Campo – Sobre o arquivo de cinema de Moçambique” de Catarina Simão, iniciado e desenvolvido durante uma residência artística do ciclo “Restos, rastos e traços” do Atelier Real (ver jornais NovDez 2009 e Jan-Fev 2010), será um dos projectos apresentados em permanência entre 14 de Abril e 16 de Maio no Museu de Serralves. Uma mesa redonda será igualmente organizada em torno do projecto, com a participação de Catarina Simão, António Pinto Ribeiro, António Loff e João Sousa Cardoso, com a moderação de Fernando Luís Machado, no dia 16 de Maio às 21h30. Há trinta anos atrás, Samora Machel e o novo poder político da FRELIMO viram no cinema uma linguagem moderna para combater o imperialismo e criar uma “nova identidade nacional”. Hoje a FRELIMO persiste no poder e continua a ser o interlocutor das negociações com os governos europeus, para receber os fundos para a recuperação dessas mesmas imagens. De que modo são oferecidos estes apoios e, sobretudo, como são recebidos? Até que ponto tais negociações reproduzem o modo como essas imagens são interpretadas pelos Europeus? – pelos Moçambicanos? – por um sistema não totalmente descolonizado? Como trabalhar as imagens da independência de um país excolónia sem reproduzir, veicular as mesmas lógicas de subordinação imperialista? Como representar a autoridade dessas imagens a partir de uma cultura pós-colonial? É possível interagir com tais imagens sem tomar uma posição e sem fazer política? Na proposta para “Documente-se!”, interessou a Fora de Campo recolher não os filmes, mas as acções e os documentos com eles relacionados, e articulá-los numa imagem síntese, na qual se pretende reproduzir um processo de construção de imagens colectivas.

Um acervo de filmes que se apresenta como partidário de uma ideologia fixa serve agora para ancorar um sistema de reconhecimento complexo e multi-facetado, capaz de criar uma rede de significados dentro das duas culturas.

Autocarros nº60, 706, 727, 794 (paragem Conde Barão / Av. D. Carlos I) Eléctricos nº25 (paragem Conde Barão), nº28 (paragem R. Poiais S. Bento ou Cç. Combro) Metro Linha Verde, Linha Azul: Estação Baixa-Chiado: saída Largo do Chiado. Comboio Linha de Cascais: Estação Santos.

O Atelier Real é uma produção RE.AL. Atelier Real Direcção artística: David-Alexandre Guéniot RE.AL Direcção artística: João Fiadeiro Direcção de produção: Sofia Campos Gestão financeira e administrativa: Cláudia Nunes Secretariado: Alaíde Costa Contabilidade: Saldo Certo/Rui Silva Assessor jurídico: Duarte Gorjão Henriques Limpeza: Rita Guimarães Jornal Editor: David-Alexandre Guéniot Tradução (inglês, francês, português): Paula Caspão Grafismo: Linda Romano Textos e imagens, copyright dos autores. Fotografia da capa: Cortesia Cláudia Serpa Soares/ John Bock. Fotografias p.2 à p.9: Cortesia das Galerias Cristina Guerra/ Galeria Fernando Santos/Galerie Invaliden1 e do artista. Agradecimentos Noé Sendas agradece a Andresa e Lígia Soares, Cláudia Serpa Soares, Cristina Guerra, David-Alexandre Guéniot, Diogo Lopes, Fernando Santos, Joana Gomes, Lourdes Sendas, Sandra Feio e Sofia Campos, Nuno Soares, Filipa Coelho. Galeria Cristina Guerra, Galeria Fernando Santos, Galerie Invaliden1 team (António/Cristina/Paul/Santiago/Sérgio e Rui). O Atelier Real agradece a Calvin Winner, João Ribeiro, Patrícia Almeida, Ricardo Matos Cabo. A RE.AL é uma estrutura financiada pela Direcção Geral das Artes (DG Artes)/Ministério da Cultura (MC)

Financiamento

Apoios

Parcerias

Fora de Campo – Sobre o arquivo de Moçambique, de Catarina Simão. Foto Patrícia Almeida.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.