Exedra // Revista ciêntifica

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REVISTA CIÊNTIFICA

PORTUGUÊS Investigação e Ensino

NUMERO TEMÁTICO 2015 Pedro balaus custódio



CORPO EDITORIAL Diretora Português: Investigação e Ensino Número temático - dezembro 2012 Maria de Fátima Fernandes das Neves Editor do número temático Pedro Balaus Custódio Conselho Científico Maria do Amparo Carvas Monteiro - Artes e Humanidades Pedro Balaus Custódio - Educação/Formação Maria Cláudia Perdigão Andrade - Comunicação e Ciências Empresariais


Ficha técnica Revisores deste número Isabel Sofia Calvário Correia, Leonor Crespo Ramos Riscado, Lola Geraldes Xavier, Natália Albino Pires, Pedro Balaus Custódio, Rosa Maria Nazaré Oliveira Produção Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Coimbra Execução gráfica - José Pacheco (NDSIM) ISSN 1646-9526 | ISBN 978-9898486-01-1 | D.L. 324363/11 Copyright A reprodução de artigos, gráficos ou fotografias da Revista EXEDRA só é permitida com autorização escrita da Diretora.


ÍNDICE Editorial

7

As raízes Greco-Latinas da Língua Portuguesa: A sua importância no ensino Português

11

Escrever: Processo e emoção nos alunos do ensino básico - Luís Filipe Barbeiro

31

Brincando às/com as conjuções - Maria Alice Simões Cardoso

47

Entre Línguas se (des) constroi o texto: Interferência da línguística da Língua Gestual Portuguesa no Português - Isabel Sofia Calvário Correia

57

Aqui há Som: Consciência Fonológica e Diversidade Textual Isabel Sofia Calvário Correia & Rita Maria Ribeiro Gonzalez

67

A história e as histórias do género em português: percursos diacrónicos, sincrónicos e pedagógicos - José António Costa & Celda Morgado Choupina Experiências significativas de leitura no 2o CEB - Representatividade e qualidade dos textos literários - Pedro Balaus Custódio

A Flor vai pescar num Bote: uma dualidade pictórica Anabela de Oliveira Figueiredo

75 87 109

A tradução e interpretação de provérbios e expressões idiomáticas em língua gestual – equivalentes linguísticos e culturais - Maria José Duarte Freire

121

Possibilidades e pontos de resistência na recepção do Plano Nacional de Leitura – Para uma análise de práticas de leitura. Maria José Gamboa

129

Influencia de las creencias de las docentes en el proceso de alfabetización inicial – María Rosa Gil & Montserrat Bigas A Educação Bilingue de Alunos Surdos. Da Legislação às Práticas – Maria do Céu Ferreira Gomes

139 151


161

Gestuar e Ouvir: Divergências e Convergências entre os CODA licenciados em Tradução e Interpretação em Língua Gestual Portuguesa e os não-CODA licenciados em Língua Gestual Portuguesa

179

Building bridges between texts: From Intertextuality to intertextual reading and learning. Theoretical challenges and classroom resources - Tzina Kalogirou & Vasso Economopoulou

189 197 211

Era uma vez... o verbo: abordagem do verbo no 1o ano - Maria João Loureiro Sensibilização ao género e ao número gramaticais no Pré-escolar - Anabela Marques Esgalhado Fonseca Machado

Gente de papel e tinta: A construção de personagens numa oficina de Escrita Criativa João de Mancelos Literacia Familiar e Desenvolvimento de Com-

219 petências de Literacia - Lourdes Mata 229

Ler no ecrã: contributo para uma reflexão sobre estratégias de ensino da leitura na aula de Português - Luís Filipe Barbeiro

243

Conhecimento lexical e consciência morfológica em alunos chineses de PLE: reconhecimento, interpretação e utilização de elementos prefixais do português

271 285 295 309

Ensinar português/LE na Universitat de Barcelona Ensinar português/LE em Portugal - Isabel Sofia Calvário Correia O trabalho com a escrita na escola: modos de (des)envolvimento e propostas de didactização nos 1.os ciclos de ensino - Isabel Sofia Calvário Correia & Rita Maria Ribeiro Gonzalez O avental das estórias. Um projeto do agrupamento de escolas de Buarcos- José António Costa & Celda Morgado Choupina

Aprender a Arte de Escrever no 1o CEB - o contributo do PNEP - Pedro Balaus Custódio

Os Manuais Escolares do 3.o ano no Ensino da Com-

321 preensão de LeituraAnabela de Oliveira Figueiredo 341 363

“Bom Português” – para tudo aprender... e aprender a usar, em todas as disciplinas - Maria José Duarte Freire Transversalidade da língua portuguesa: representações, instrumentos, práticas e formação. Maria José Gamboa


Influencia de las creencias de las docentes en el proceso de alfabetización inicial – María Rosa Gil & Montserrat Bigas

A Educação Bilingue de Alunos Surdos. Da Legislação às Práticas – Maria do Céu Ferreira Gomes

373 379

Gestuar e Ouvir: Divergências e Convergências entre os CODA licenciados em Tradução e Interpretação em Língua Gestual Portuguesa e os não-CODA licenciados em Língua Gestual Portuguesa

387

Building bridges between texts: From Intertextuality to intertextual reading and learning. Theoretical challenges and classroom resources - Tzina Kalogirou & Vasso Economopoulou

401

Era uma vez... o verbo: abordagem do verbo no 1o ano - Maria João Loureiro Sensibilização ao género e ao número gramaticais no Pré-escolar - Anabela Marques Esgalhado Fonseca Machado

413 421


É com grande satisfação que a Exedra publica mais um número integralmente consagrado ao ensino do Português No trilho da anterior edição de 2009, o título agora disponibilizado constitui uma nova etapa na apresentação periódica de investigações e de boas práticas neste âmbito. A aprendizagem de uma língua não é uma tarefa conclusa, nem tão-pouco um domínio que não esteja sujeito a constantes estímulos e renovações. Ensinar e aprender constituirão sempre tarefas que colocam a todos desafios permanentes. Assim, a divulgação destas coletâneas de estudos decorre da necessidade de partilha de saberes, de experiências e, sobretudo, de reflexões sobre linhas investigativas no ensino do Português. O presente volume integra, pois, diferentes e variadas abordagens teórico-práticas, algumas delas apresentadas no decurso do II Encontro Internacional de Ensino do Português, em fevereiro de 2011, bem como outros estudos produzidos no decurso de projetos de mestrado e de doutoramento, desenvolvidos na ESEC

EDI TOR IAL

Muitos desses estudos recentes têm-nos alertado, por exemplo, para as dificuldades em domínios específicos, como é o caso, entre outros, da compreensão da leitura, dando-nos razões para nos mantermos atentos a estes obstáculos no quotidiano letivo. O mesmo se passa com o ensino explícito da língua, que deve ser recolocado como um dos centros vitais e nucleares da aprendizagem do Português. O conhecimento gramatical facilita e promove competências nos domínios da oralidade, da leitura e da escrita e, portanto, constitui uma força motriz capaz de propulsionar o ensino da língua. A pertinência desta temática traduz-se no relevo conferido a algumas abordagens sobre aspetos nucleares do ensino da gramática e fazem sobressair a extrema importância deste domínio no conhecimento da língua e na mestria do Português, sobretudo à luz das novas orientações prescritas no Programa de Português recém-chegado ao ensino básico.


As TIC são hoje, também, uma realidade omnipresente. O ensino das línguas não se pode alhear deste novo estatuto das tecnologias da comunicação, sendo imperioso que a elas se alie, de modo produtivo e eficaz, num registo de complementaridade e de cooperação. Como se poderá verificar, também os textos aqui incluídos, pela sua diversidade e ecletismo, constituem um fórum de ideias e de projetos que estão em desenvolvimento no campo de ação do Ensino do Português. Assim sendo, este número da Exedra cumpre um dos objetivos da sua missão, que é consabidamente, ser um espaço de diálogo e de partilha de conhecimentos. Alguns destes artigos veiculam pontos de vista investigativos provenientes de diversos graus de ensino, desde o Básico ao Superior, e procedem, também, de vários países como a Espanha, a Grécia ou o Brasil. De igual modo, há outros estudos que comentam o ensino e a promoção da leitura em diferentes ciclos de escolaridade, realçando a sua importância enquanto atividade fundante.

Alguns dos textos revelam-nos contributos novos e originais sobre essa competência e inauguram caminhos inéditos sobre o seu entendimento e aplicação em contexto didático. O mesmo se verifica com a escrita, outro dos subdomínios aqui representado, comprovando-se a sua centralidade por entre as práticas de ensino. O labor sobre as competências de oralidade e o seu papel na sala de aula é outro dos temas que se constitui como objeto de reflexão teórica. A estes estudos não escapam, ainda, as naturais e necessárias reflexões que versam a transversalidade do Português. Este olhar múltiplo enfatiza a importância do Português como língua de crescente interesse e destaque no plano geopolítico e, ainda, realça a permanente procura de soluções didáticas e as formas como elas se podem materializar em contextos e cenários geográficos diversos, muito para além das nossas fronteiras nacionais.


“há outros estudos que comentam o ensino e a promoção da leitura em diferentes ciclos de escolaridade, realçando a sua importância enquanto atividade fundante.” De igual modo, há outros estudos que comentam o ensino e a promoção da leitura em diferentes ciclos de escolaridade, realçando a sua importância enquanto atividade fundante. Alguns dos textos revelam-nos contributos novos e originais sobre essa competência e inauguram caminhos inéditos sobre o seu entendimento e aplicação em contexto didático. O mesmo se verifica com a escrita, outro dos subdomínios aqui representado, comprovando-se a sua centralidade por entre as práticas de ensino. Presentemente, a didática da escrita é um lugar de permanente revisitação e um objeto de trabalho que exige constantes experimentações, de modo a apurar soluções metodológicas atrativas, envolventes e eficazes para alunos de todas as idades. O labor sobre as competências de oralidade e o seu papel na sala de aula é outro dos temas que se constitui como objeto de reflexão teórica. A estes estudos não escapam, ainda, as naturais e necessárias reflexões que versam a transversalidade do Português. Com efeito, esta preocupação suprassegmental com o domínio do Português deve marcar qualquer trabalho nesta área. As representações, os instrumentos, as práticas e a formação neste âmbito, são decisivos para compreender a centralidade na aprendizagem do Português, em todos os níveis de escolaridade.

Para além destes, é imperioso sublinhar de novo que este volume abrange um arco de interesses e de temas de largo espetro dentro do domínio do Português, quer como língua materna, quer como língua estrangeira. Assim, e por entre este elenco de estudos, podemos encontrar alguns que se debruçam sobre esta área de inquestionável relevo e atualidade: o ensino do Português língua não materna (PLNM) e, ainda, abordagens de caráter analítico e comparativo, de realidades programáticas e curriculares muito distintas.


O mesmo sucede com diferentes estudos que incidem sobre o ensino do Português como Língua Segunda a surdos. Com efeito, este volume inclui um conjunto de reflexões de grande utilidade para todos aqueles que trabalham diretamente com o ensino da língua gestual. Assim, são abordadas questões essenciais da didática do PLNM adaptado ao público de alunos surdos, trabalho inédito a nível nacional, reflexões linguísticas e comparatistas em torno das duas línguas, o português e Língua Gestual Portuguesa (LGP) que motivarão, certamente o desbravar destas áreas, e se constituem como instrumentos de trabalho basilares na sala de aula das Escolas de Referência para o Ensino Bilingue de Alunos Surdos (EREBAS). De facto, para se conseguir ensinar esta população, respeitando as diretrizes do Decreto-Lei no 3/2008 de 7 de janeiro, temos de compreender esta minoria linguística. Também aqui são apresentadas reflexões sobre a identidade surda, o biculturalismo e o papel fulcral do intérprete. A LGP também pode ter uma vertente escrita, importantíssima para o estudo do PLNM, e que é aqui divulgada num estudo também inédito no nosso país.

Olhando as crianças falantes de Português, é necessário contribuir para a formação em valores cívicos, culturais e linguísticos. Assim, aqui se vertem algumas propostas de materiais didáticos para o ensino da LGP. Deste modo, e pela primeira vez na Escola Superior de Educação de Coimbra e, cremos, no ensino superior português, a LGP encontra um espaço de reflexão e de debate ao lado da língua com que todos os dias contacta, o Português. A encerrar esta breve nota introdutória, é obrigatório que deixemos algumas palavras explicativas sobre o excessivo atraso a que esta edição se viu sujeita. A somar à proverbial, e cada vez mais aguda carência de estruturas de apoio, sobrevieram naturais alternâncias nos órgãos de direção desta revista. Adicionalmente, e fruto de diversos fatores, o NDSIM – Núcleo de Desenvolvimento de Sistemas Interativos e Multimédia, gabinete responsável pela parte técnica e compositiva desta edição, viu-se dramaticamente reduzido e, em simultâneo, obrigado a copiosas tarefas. A este conjunto de obstáculos logísticos e técnicos, vieram juntar-se algumas demoras excessivas por parte de vários autores que, com justificação, nos fizeram chegar os seus textos fora dos prazos estabelecidos. Outros houve ainda que, infelizmente, não reuniram condições para nos remeter atempadamente os seus artigos. Sendo essas as causas próximas, queremos penitenciar-nos por este prolongado compasso de espera editorial junto do público em geral, e dos autores em particular, apresentando a todos as nossas mais sinceras desculpas. Esperamos, pois, que os textos que agora são dados à estampa possam constituir mais uma etapa significativa na divulgação de estudos e de práticas, e que sejam, pelo seu interesse e novidade, capazes de contribuir para o enobrecimento do ensino da língua que nos é comum e que define uma parte tão substancial da nossa identidade.

O coordenador de edição Pedro Balaus Custódio


Ensinar português/LE na Universitat de Barcelona Ensinar Português/ LE em Portugal

Rosa Oliveira & Ignacio Vázquez rosa@esec.pt, Escola Superior de Educação de Coimbra ivazquez@ub.edu, Universidade de Barcelona


palavras chave

keywords

português

portuguese

espanhol LE

gramática atitude pedagógica

spanish L1/L2

grammar pedagogical point of view

RESUMO

ABSTRACT

O ensino de qualquer língua estrangeira acarreta problemas que se revelam divergentes dependendo do par de línguas confrontadas. No caso do português, deparamo-nos com questões muito subtis quando em diálogo com o espanhol, língua tão próxima e, simultânea e paradoxalmente, tão estranha. Tencionamos com este artigo dar notícia de alguns pontos de fricção no ensino do português a hispano falantes. Apontamos para a necessidade de uma gramática comparativa que vise o uso real dos dois idiomas.

Teaching a foreign language presents several problems depending on the relationship between L1 and L2. If we consider Portuguese and Spanish, two apparently very similar languages, we will discover that they are not so similar after all. The purpose of this article is to investigate and clarify some points of conflict in Portuguese language when taught to Spanish speakers. We require the need of a comparative grammar in the every day use of the language.


O

título desta comunicação advém da nossa experiência como professores de Português na Universitat de Barcelona (onde coincidimos de 1996 a 1998) e das nossas reflexões posteriores e longas conversas desses anos a esta parte, continuando um de nós na referida universidade e regressada a outra à ESEC onde, entre outras docências, tem sido responsável por ensino do português a portugueses (LM), a estrangeiros (estudantes Erasmus - português LE) e, mais recentemente, a docentes que têm nas suas turmas alunos imigrantes e, portanto, se deparam com questões levantadas pelo ensino do português L2. Será, no entanto, o português LE de que hoje trataremos, ainda que esta nossa reflexão possa remeter para as outras possibilidades que acabamos de nomear.

O

título desta comunicação advém da nossa experiência como professores de Português na Universitat de Barcelona (onde coincidimos de 1996 a 1998) e das nossas reflexões posteriores e longas conversas desses anos a esta parte, continuando um de nós na referida universidade e regressada a outra à ESEC onde, entre outras docências, tem sido responsável por ensino do português a portugueses (LM), a estrangeiros (estudantes Erasmus - português LE) e, mais recentemente, a docentes que têm nas suas turmas alunos imigrantes e, portanto, se deparam com questões levantadas pelo ensino do português L2. Será, no entanto, o português LE de que hoje trataremos, ainda que esta nossa reflexão possa remeter para as outras possibilidades que acabamos de nomear.

UNIVERSITAT D


DE

Importa, desde já, esclarecer que, entre as várias caraterísticas e vicissitudes do ensino do português no estrangeiro ocorre um facto que funciona simultaneamente como adjuvante e oponente numa ambivalência linguística e simbólica que, a ser aqui analisada, “daria pano para mangas”. Na verdade, frequentemente, no ensino superior no estrangeiro, o estudo do português está associado ao do espanhol – e vice-versa. Em muitos lugares da Europa e da América, apenas existe um departamento de Estudos Hispânicos em que as duas línguas e culturas peninsulares estão agregadas e os alunos, na sua maioria, estudam as duas, uma quase que por arrastamento da outra. No caso de Espanha, obviamente, a associação não é esta, mas antes a naturalíssima entre o português e o galego, como no caso da Universitat de Barcelona. Atualmente em Barcelona, a designação genérica, após o plano de Bolonha, é aquela que vigora em Portugal há já tempos, a de “Línguas e Literaturas Modernas”, onde se inserem o espanhol e o português entre outras línguas vivas. Ou seja, uma situação em tudo semelhante ao que se passa em Portugal.

BARCELONA


T

endo pois como ponto de partida a nossa experiência comum como docentes na Universitat de Barcelona, gostaríamos de propor uma breve reflexão acerca de alguns aspetos problemáticos com que os estudantes espanhóis (alguns com o catalão como língua materna) se deparam no processo de aprendizagem do português. Julgamos que a nossa contribuição pode ser proveitosa devido ao interesse crescente em Portugal pela língua espanhola, funcionando assim alguns dos temas que aqui serão tratados como contra-imagem reflexa de questões que ao ensino do espanhol se colocarão em Portugal e, mais genericamente, como hipóteses de abordagem de metodologias, estratégias, e até “truques” de bom senso no ensino do português como LE e como L2.


Entre muitos dos aspetos passíveis de análise

comunicação centrar-se-á esta

em

2

que consideramos fundamentais:

1.

A utilidade de uma gramática comparativa (português-espanhol).

2.

A utilidade de um estudo coordenado das variantes portuguesa e brasileira: qual a atitude pedagógica, metodológica ou normativa a ter.


“Ao aprendermos inglês, por exemplo, aprendemos um outro universo linguístico.” Obviamente o mesmo se poderá dizer para situação paralela deste lado da fronteira. Aquilo que parecia ser uma navegação à vista, em breve mostra os seus escolhos. É o caso da especificação semântica do português que acarreta um assinalável esforço ao falante espanhol. Ao aprendermos inglês, por exemplo, aprendemos um outro universo linguístico. Tudo é desconhecido, (enfim, na verdade grande parte, se abstrairmos do muito léxico comum latino e grego) – tanto a palavra de raiz germânica, como a semântica a ela associada. Diversamente, quando estuda-

mos uma língua próxima, como é o caso do português e do espanhol, deparamo-nos inicialmente com o facto de não precisarmos de aprender muito léxico novo ou, pelo menos, muito diferente do de raiz já conhecida para criarmos as primeiras frases, mas, quando percebemos que as mesmas palavras têm sentidos, usos ou especificações totalmente divergentes em cada uma das línguas, começam os verdadeiros problemas. É um emaranhado deles.


“É U M EMARAN HADO DEL ES”

“Quando percebemos que as mesmas palavras têm sentidos, usos ou especificações totalmente divergentes em cada uma das línguas, começam os verdadeiros problemas.” Quanto ao primeiro destes dois destaques, podemos, desde já, assinalar um facto por todos nós bem conhecido: existe a ideia generalizada e precipitada de uma grande semelhança entre o espanhol e o português construída, sobretudo, a partir da fácil constatação da partilha de um largo espetro de léxico. De um lado e do outro da

fronteira, com mais ou menos boa vontade e inspiração, todos se acham capazes de falar Portunhol e, pelo menos quando se leem textos utilitários ou técnicos, a intercompreensão é alta. Mas, ao iniciarem o estudo sistematizado da língua portuguesa, os alunos espanhóis percebem rapidamente que o caminho será longo e complicado.



La cena ha sido exquisita. / O jantar foi delicioso. Tiene un comportamiento raro. / Tem um comportamento esquisito. Tiene el pelo largo. / Tem o cabelo comprido. El largo trayecto. / O longo percurso. La calle es ancha y larga. / A rua é larga e comprida. Es una película espantosa. / É um filme terrível. Es una película maravillosa. / É um filme espantoso. Ese niño es travieso. / Ese menino é traquina. Un nido de golondrinas. / Um ninho de andorinhas.


“Referimo-nos sobretudo a diferenças mais complexas como, por exemplo.

uma única palavra espanhola com dez significados precisar de dez vocábulos diferentes em português para cada um desses dez significados”

Um espanhol... cree en Dios cree todo lo que le dicen coge un libro coge el autobús coge cerezas del árbol coge al vecino por las solapas y se coge a la rama de una higuera.

Um português... crê em Deus acredita em tudo o que lhe disserem, julga que a crise ainda vai durar, acha que chegará atrasado;

apanha um livro apanha o autocarro colhe cerejas da árvore agarra o vizinho pela lapela e segura-se ao ramo de uma figueira.


Ou seja, se há uma grande sobreposição das duas línguas num nível imediato e, diríamos, superficial, sobretudo nos domínios lexical, semântico, mas também morfológico, há, no entanto, nas suas estruturas profundas, diferenças bem notórias e perigosamente travestidas de parecença na sua superfície. Se a este e outros problemas de natureza gramatical acrescentarmos a hipótese de o aluno ter um professor português e depois um brasileiro (ou ao contrário), então o problema amplifica-se consideravelmente. Imaginem o que é receber “as mesmas explicações”, a mesma norma legível numa gramática que é um clássico de coautoria entre um brasileiro e um português (Celso Cunha e Lindley Cintra) e depois ver práticas tão diferentes relativas a aspetos fundamentais. É o caso extremo da colocação dos pronomes pessoais cuja norma é única para os dois lados do Atlântico, mas realizada pela maioria esmagadora dos falantes de cada um dos países de forma totalmente diferente:

Chamo-me António ~ Me chamo Antônio


1.

A utilidade de uma gramática comparativa

Sabemos que existem no mercado gramáticas e tratados gramaticais descritivo-comparativos do português e do espanhol. A comparação das duas línguas é centrada na norma de cada uma delas, enquanto o uso quotidiano e real é comentado apenas esporadicamente. Há pois uma maior preocupação e importância normativa e uma menor projeção comunicativa. É nossa opinião que, para o ensino de línguas estrangeiras, se deveria também escrever tratados que apresentassem dificuldades com grau de frequência relevante partindo da experiência de ensino. Estamos conscientes de que essa experiência difere consoante o país e, nalguns casos, consoante a região/autonomia/cantão onde se ensina o português e ainda conforme a/s língua/s aí em vigor. Para nós, portugueses, esta questão está muito arredada da nossa débil consciência de variação linguística, pelo facto de sermos um país tão profunda e empedernidamente monolingue. Já em Espanha o bi e plurilinguismo é uma realidade e controversa. Pois, como diria Leporello no Don Giovanni “Ma in Ispagna son già mille e tre...” Queremos pôr em foco apenas quatro aspetos importantes que exemplificam a necessidade de tal gramática comparativa:


Centrando-nos agora na nossa experiência na Catalunha, rapidamente se pôde constatar que a fonética portuguesa está mais próxima da sua congénere catalã. Portanto, seria de esperar que esses alunos da UB tivessem menos problemas quando falam português do que os que teria um castelhano ou um andaluz. Vejam-se estes exemplos:

Português

Espanhol

Catalão

Francês

Quero comer

Quiero comer

Vull menjar

Je veux manger

Falo português

Hablo português

Jo parlo portugues

Je parle portugais

Estou em Coimbra

Estoy en Coimbra

Sóc a Coimbra

Je suis à Coimbre

Buscar o Pai

Buscar al padre

Cercar el pare

Chercer le pére

Apesar de tudo

A pesar de todo

Malgrat tot

Malgré tout


Como se observa, o catalão está mais próximo no léxico do francês enquanto o espanhol o está do português. Para os alunos, os textos portugueses aparecem associados ao espanhol e mentalmente teriam de proceder a duas operações quase simultâneas: primeiro, dissociar a grafia portuguesa da espanhola e logo a seguir re-aprender a pronunciar essas palavras com a fonética catalã, ironicamente a deles. O que verificámos é que os alunos, falantes de catalão, demoram bastante tempo a interiorizar esta sequência de operações. Este curioso fenómeno é apenas uma manifestação da falsa proximidade português/espanhol, quando, em muitos casos seria mais lógico e mais económico do ponto de vista linguístico aparentar português e catalão, e parece-nos prender-se com as políticas linguísticas seguidas e frequentemente impostas até épocas recentes. Com efeito, até aos anos oitenta, os falantes de

catalão, galego e basco eram alfabetizados exclusivamente em espanhol, embora falassem quotidianamente as suas línguas em domínios privados. E, como sabemos, a abstração linguística  necessária para aprender outro idioma costuma dar-se a partir da língua de alfabetização. Pelo que não admira que, para além da falsa similitude ortográfica português/espanhol, os alunos tendam a recuperar mentalmente a língua de alfabetização ao aprender uma nova, ainda para mais parecida. No caso da Catalunha, os estudantes de português que já acederam ao ensino em catalão, depois dos anos 80, apresentam uma tipologia diferente. No entanto, apesar de foneticamente poderem aproximar mais facilmente o catalão do português, as interferências lexicais permanecem por via do espanhol, com os erros inerentes.


1.2

A colocação dos pronomes átonos

Outro item conflituoso que tem a ver com a própria “discórdia” portuguesa é a colocação dos pronomes. Claro que, com exceção dos galegos, os alunos têm de aprender uma estrutura nova diferente daquela da sua língua, como acontece em qualquer LE. Mas há ainda uma questão que antecede esta: trata-se da origem europeia ou sul-americana do professor, que, fora de Portugal, tanto pode ser português como brasileiro. O docente ensina as mesmas regras sintáticas, embora haja grande divergência entre norma e realização em Portugal e por aí adiante... Esta costuma ser uma etapa confusa para os alunos não nativos. Daí a necessidade de darmos uma coerência ao ensino deste aspeto gramatical.

De facto, a aprendizagem das formas enclíticas (o/lo/no-lhe-se-nos-vos) não provoca normalmente grandes problemas. É a colocação dessas formas na frase que o aluno deve interiorizar. Quando já conseguiu aprendê-las com frases afirmativas simples, a tendência posterior é empregar por analogia o mesmo procedimento em qualquer oração. A nossa experiência diz-nos que é a partir desse momento que o professor deve lutar contra a hipercorreção. Frases como as seguintes s. Ao transformar estas frases na forma negativa o pronome muda de lugar e aparece o primeiro conflito, que neste caso se resolve com facilidade: erência ao ensino deste aspeto gramatical.

*Não chamo-me Luís > Não me chamo Luís, etc.


Quanto à colocação de enclíticos com verbos simples, numa oração subordinada a questão não é tão fácil. Se esta for afirmativa, no aluno evidencia-se a tendência geral, ou seja, a primeira regra que aprende - pospor o pronome ao verbo. No entanto, no caso da subordinação, o processo torna-se complexo e o pronome fica posposto à conjunção e anteposto ao verbo. Há alunos que depois de vários anos de aprendizagem do português e com um nível linguístico muito bom, ainda se enganam. Não é de estranhar, visto no Brasil frases como esta serem comuns (e nos últimos tempos, em Portugal): “... é nesse plano que insere-se a questão da necessidade de uma regulação social...” Como poderemos resolver esta dificuldade? Os métodos tradicionais não ajudam, pois limitam-se a fornecer-nos regras infindáveis, difíceis de memorizar e, sobretudo, não funcionais. Em Barcelona, nós usamos uma metáfora: os pronomes átonos são chamados assim, porque carecem de tonicidade própria, são satélites que precisam de se ligar a um planeta, sendo este, em cada frase, a palavra mais importante, a que introduz a informação primordial (do ponto de vista da história da língua a lei é clara: a palavra essencial enfatiza a informação e unem-se a ela as outras, dependentes):

 

Orações simples Chamas- te Amália

Como te chamas?

Levanta- se às dez

Todos os dias se levanta às dez

Deixa- me só!

Não me deixes só!

Chama- se António

Não se chama João?

Orações compostas Ela disse que se ia embora

Perguntou quando se ia embora

Fomos para casa porque nos aborrecíamos

Embora lhe explicasse, não perceberia

Se me ligasse, eu atendia

Come tão pouco que se cansa facilmente


1.3.

Os verbos no passado (comi ≠ tenho comido)

No que diz respeito à conjugação verbal, de entre os vários usos dos tempos verbais nas duas línguas, queremos apenas destacar as duas formas do pretérito perfeito e a sua equivalência em espanhol. O português forma estes tempos com o auxiliar TER (deixando HAVER para um uso escrito e/ou culto) e o espanhol com HABER. Mas há uma diferença substancial nos seus empregos. Enquanto a língua espanhola diferencia o pretérito indefinido e o pretérito perfecto segundo o princípio de aproximação ou afastamento do passado em relação ao falante, o português efetua uma distinção entre o pretérito perfeito simples e o composto segundo uma significação aspetual reiterativa.

Espanhol...

Português...

Ayer hice sopa de pescado Estama manãna he heco sopa de pescado

Ontem fiz sopa de peixe Hoje de manhã fiz sopa de peixe

Ultimamente he hecho sopa de pescado Lievo hecha sopa de pescado Lievo

Tenho feito sopa de peixe

Ya he hecho sopa de pescado Lievo

Estes são tempos de uso problemático para os nossos alunos espanhóis, que traduzem um pretérito perfecto pelo homónimo composto português. Por exemplo: Esta mañana he ido al mercado > *Esta manhã tenho ido ao mercado. Esta manhã fui ao mercado.

A partir de exemplos deste teor, vamos explicando de forma contrastiva o funcionamento diverso das duas línguas perante uma forma verbal que apresenta a mesma estrutura morfológica mas que tem uma semântica muito diferente.


Quando os alunos começam a falar português, deparam-se com três formas diferentes para se dirigirem a um interlocutor: tu, você e o senhor. Quer o espanhol, quer o catalão só possuem duas formas de tratamento tú/usted e tu/vostè.

2ª pessoa

SUJEITO

SUJEITO

INFORMAL

INTERMÉDIO

TUTU

VOCÊ (verbo na terceira

SUJEITO FORMAL O SENHOR / A SENHORA

pessoa do singular)

2ª pessoa

VÓS // VOCÊS (verbo na terceira pessoa do plural)

VOCÊS (verbo na terceira pessoa do plural

Explicar quando se usa tu e o senhor é fácil, mas você já é mais complicado. E vejam ainda a dificuldade aumentada quando o você é dito por um português ou por um brasileiro. É sempre difícil encontrar uma correspondência em espanhol e catalão. Só o contexto permite aproximarmo-nos de uma boa tradução: que pode ir do tú, usted, compadre (dialetal, como para nós no falar alentejano) a um muito raro vuestra merced. A conclusão que se tira destas breves reflexões, que nos levaram a afirmar a necessidade de uma gramática comparativa entre o português e o espanhol, é que, sendo duas línguas tão próximas, surge o paradoxo de vermos que a complexidade de as aprender radica precisamente nessa aparente proximidade. No respeitante ao léxico, por exemplo, os alunos estão constantemente a fazer um exercício mental de ampliação ou estreitamento de sentido/acepções ou mesmo de vocabulário, por vezes, a partir de formas escritas iguais ou muito erroneamente parecidas na língua em aprendizagem e na já conhecida. Um verdadeiro brainstorm linguístico-comparativo...

OS SENHORES / AS SENHORAS


No caso da Facultat de Filologia da Universitat de Barcelona, os alunos de português têm professores de três nacionalidades (brasileira, portuguesa e espanhola) lecionando em duas variantes possíveis: a europeia e a americana. Este facto, acarreta, obviamente, complicadas questões de aprendizagem. Na realidade, verifica-se que os alunos, quando aprendem a língua portuguesa no seu nível mais básico, com um professor de uma variante e tendo os níveis seguintes com um docente de uma outra, acabam por não dominar nenhuma e misturam as duas, sem de tal terem consciência. A mesma complexidade de escolha e gestão das variantes a lecionar pode vir a colocar-se, se não acontece já pontualmente, em Portugal, com professores de espanhol europeu ou americano.

A questão que nós colocamos é a seguinte: que atitude tomar, enquanto docentes de variante europeia, quando, por exemplo, nos apercebemos de que um estudante aprende muito mais facilmente, devido ao decalque da sua L1, a estrutura “estar + gerúndio”, (“estou fazendo”) típica do português padrão do Brasil (e regional em Portugal)? Considerar o uso desta estrutura um erro está fora de questão, mesmo sabendo que se trata, muitas vezes, de um caso de transferência (em espanhol é “estoy haciendo”). Os estudantes não utilizam a referida expressão por optarem por uma variante específica, mas sim por um decalque, na maioria das vezes inconscientevariante específica, mas sim por um decalque, na maioria das vezes inconsciente.


Como consequênciadas questões aqui afloradas, foram-sedesenhando

1

- a primeira: informar repetidamente acerca das duas possibilidades oferecidas por cada um dos padrões das duas variantes, aceitando ambas;

3

3

opções:

- a terceira possibilidade e a escolhida pela área de português da Facultat de Filologia da UB: criar uma disciplina específica, no último ano do curso de “Línguas e Literaturas Modernas”, na qual se aprofundasse, num estudo comparativo do padrão das duas variantes e num estudo interno do português usado em cada país, ou seja, de algum modo, contrapor a norma de ambos os países às respetivas variações dialetais. Vejam-se estes casos que exemplificam o conteúdo e estruturação dessa cadeira:

2

- a segunda: criar um programa que ofereça, num dos níveis, se comparativo acerca das diferenças existentes entre as duas variantes;


Referidos à fonética Principais diferenças no vocalismo e consonantismo entre Portugal e Brasil Portugal / Vocalismo tónico oral / Brasil

(c) > o, ó

(c) > o, ó

-ante (m) e (n)

-ante (m) e (n)

António (a’ndnw)

António (a’ndnw)

Brasil Cadê? ( = o que é de...?) A palavra cadê tornou-se, na linguagem popular do Brasil, num equivalente de onde interrogativo, p.e. Cadê meu lenço? ( = Onde está o meu lenço?)


3

. Conclusões

Concluímos resumindo o anteriormente exposto: o ensino de português a espanhóis apresenta aspetos específicos que derivam da proximidade e da aparente transparência entre as duas línguas. No caso da UB, esses aspetos adquirem uma nova dimensão, visto que se trata de ensinar duas variantes do português a alunos que têm como língua materna o espanhol ou o catalão e, nalguns casos, o galego. Outro fator particulariza ainda mais esta aprendizagem: a maioria destes alunos são bilingues em espanhol/catalão, alguns em espanhol/galego e outros, ainda, trilingues em espanhol/catalão/galego. Por tudo o que foi exposto, é evidente que o facto de os alunos terem professores das duas variantes, sem que estas sejam comparadas, acaba por gerar mistura, o que, consoante o uso que os discentes façam do português no futuro, lhes pode causar não poucos problemas profissionais, seja em matéria de docência, tradução, interpretação. Do ponto de vista teórico, a solução da UB parece-nos adequada, sobretudo se tivermos em mente que há apenas três níveis de língua. Usar um deles para comparar o padrão de Portugal com o do Brasil significaria condensar ainda mais aquilo que já é difícil de ensinar em apenas três quadrimestres. Concluímos pois que esta atitude de aceitação geral das duas variantes, apesar de implicar um assinalável trabalho suplementar quer para docentes quer para alunos, reverte a favor dos sabores diferentes que a língua portuguesa pode adquirir pelo mundo fora.


REVISTA CIÊNTIFICA

Escola Superior de Educação de Coimbra



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