Caderno de Textos Curso de Realidade Brasileira

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Caderno de Textos de Conclus達o do Curso de Realidade Brasileira Distrito Federal, 2006-2007.


EXPEDIENTE Caderno de Textos do Curso de Realidade Brasileira Consulta Popular - julho de 2007 Coordenação:

Fábio Marvulle Bueno Editoração: camará comunicação e educação popular www.camaracom.com.br


ÍNDICE Agradecimentos............................................................................................... 6

Aproveitamento hidroelétrico corumbá iv: a serviço da sociedade ou da acumulação do capital?

Leonardo Bauer Maggi (Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB)...... 72 Apresentação

Fábio Marvulle Bueno (Consulta Popular) .............................................................. 7 Leitura popular da bíblia uma interpretação a partir dos pobres e oprimidos A constituição social dos pescadores artesanais do Lago Paranoá: exclusão, organização e resistência

Jacqueline Chaves do Nascimento (Centro de Estudos Bíblicos – CEB) ............. 79

Adriane Lobo Costa (Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB)............ 13 Candangos e pioneiros: uma distinção histórica e de classe

Bianca Nunes de Queiroz (Consulta Popular)......................................................... 88 Escravidão legalizada no sul do Brasil

Alisson Zarnott (Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB)................... 34 O discurso da juventude nos movimentos sociais

Jesuita Dias Pinto (Pastoral da Juventude - DF).................................................... 95 Cartilha organizativa da semana de democratização da comunicação

Marcelo de Oliveira Arruda (intervozes).................................................................. 50

“Os cândidos”: crítica literária da formação e interpretação do brasil. o projeto literatura e trabalho no brasil

Artur Antônio dos Santos Araújo (Movimento Estudantil da Unb).................... 99 Ensaio sobre o movimento popular em Ceilândia e a educação popular

Núcleo Rosa Luxemburgo: Andréia Jordânia Martins Soares (Centro de Estudos Bíblicos – CEBI) Cícero Fernando Barbosa da Silva (Vida e Juventude) Gracilene Santana (Movimento Passe Livre – MPL) Magda Maria da Silva (Vida e Juventude) Márcia Alves Ximenes (Vida e Juventude) Mônica de Souza Santos (Centro de Estudos Bíblicos – CEBI) Roberto Vieira (Movimento Evangélico Progressista – MEP)............................... 56

A cor do DF: consolidação da classe trabalhadora e do desemprego vista a luz do racismo no DF

Paulo Henrique da Silva Santarém ou Paíque (Movimento dos Trabalhadores Desempregados - MTD).................................... 106

A construção do sujeito militante

Kelly Ramos de Souza (Consulta Popular) e Rafael Pereira Bitencourt............ 121

A cidadania e os programas sociais: um estudo sobre o programa de erradicação do trabalho infantil

Dificuldades dos trabalhadores para se colocar no mercado de trabalho do DF

Maria Lúcia Pereira e Sonia Maria Costa Ferreira (Consulta Popular)........................................................................................................ 61

Francisco Lima Pereira - Chicão (Movimento dos Trabalhadores Desempregados – MTD)................................... 129


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AGRADECIMENTOS Muitos foram os que ajudaram nesta caminhada e merecem nosso mais aprofundo agradecimento. À Universidade de Brasília, na figura do reitor, Timothy Mulholland, que nos recebeu e apoiou prontamente. À Faculdade de Educação da Unb, nas pessoas dos professores Sônia Marise, Airan Lima e Renato Hilário, que prontamente nos acolheram e ajudaram nos trâmites burocráticos dentro da universidade.

Aos Sindicato dos Urbanitários no Distrito Federal (STIU-DF), Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Purificação e Distribuição de Água e em Serviços de Esgotos do Distrito Federal (SINDÁGUA-DF), Movimento Consulta Popular do Distrito Federal (MCP-DF), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Movimento dos Trabalhadores Desempregados do Distrito Federal (MTD-DF), Movimento Passe Livre do Distrito Federal (MPL-DF), Movimento dos Trabalhadores Sem Terra do Distrito Federal (MST-DF), Vida e Juventude, Centro de Estudos Bíblicos (CEBI), Pastoral da Juventude do Distrito Federal (PJ-DF), Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação, Movimento Evangélico Progressista (MEP) e ao Centro de Mídia Independente do Distrito Federal (CMI-DF) pela disposição em pensar e construir o primeiro Curso de Realidade Brasileira do Distrito Federal.

À Faculdade de Educação Física da Unb e ao Centro Olímpico que cederam generosamente seus espaços para nossos encontros e alojamento.

À todos aqueles que passaram pelo Realidade Brasileira.

À Câmara de Extensão da Unb pelo reconhecimento do Realidade Brasileira na modalidade de extensão universitária.

Comissão Político-Pedagógica

Aos companheiros Miroslav Milovic (Unb), Maia Sprandel, Guilherme Delgado (IPEA), João Pedro Stédile, Mirian Limoeiro (UFRJ), Neio Campos (Unb), Vanessa Brasil (Unb), Roberta Traspadini (UFES), Aldo Paviani (Unb) e Airan Lima (Unb) pelas excelentes assessorias. À Sandra Procópio e Adelar Pizetta pela troca de experiências na concepção do Realidade Brasileira no DF. À Cácia Cortez e Cléssia Santos pelo árduo trabalho nas questões de comunicação e método de estudo. Aos companheiros do Movimento dos Atingidos por Barragens, Articulação do Grito dos Excluídos do DF, Intervozes, Centro de Mídia Independente, bem como a Nelson Inocêncio, Terezinha (Condomínio Porto Rico) e Hamilton Pereira (Pedro Tierra) pela sua disposição em nos ajudar nos espaços de conjuntura e articulação política. Ao assentamento Gabriela Monteiro por nos acolher com toda a atenção possível no primeiro módulo do curso. Ao Raimundinho e Ana pela preocupação com a alimentação.

Álvaro Malaguiti Adriane Lobo Costa (MAB) Fabio Bueno (Consulta Popular) Iracema Moura (Consulta Popular) Jeansley Lima (Consulta Popular) Magda Silva (Vida e Juventude) Maria América (Consulta Popular) Paulo Henrique – Paique (MTD) Wilnean Brito (MTD) Vicente Eduardo (Consulta Popular)


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APRESENTAÇÃO Os Cursos de Realidade Brasileira (CRB) são a materialização de um acúmulo na formulação teórica e na experiência das atividades de formação feitas pelo Movimento Consulta Popular, a qual, desde sua fundação no ano de 1997, se estrutura sob três eixos de atuação política: organização, mobilização e formação. O CRB tem como objetivo resgatar as diversas interpretações e análises de grandes pensadores brasileiros (Florestan Fernandes, Caio Prado Júnior e Paulo Freire, dentre outros) sobre o desenvolvimento do capitalismo brasileiro dependente e periférico, destacando elementos teóricos que possibilitem aos participantes entender diversas dimensões da atual situação social no Brasil. Em 2005, a Consulta Popular do Distrito Federal assumiu o desafio de organizar a primeira turma do CRB no estado, e iniciou uma ampla articulação dentre as diversas forças e movimentos de esquerda para a construção coletiva do curso. Entre meados de 2005 e fevereiro de 2006, uma intensa discussão definiu os temas e os pensadores a serem abordados, bem como a dinâmica dos módulos: um final de semana por mês, com estudo do tema/autor junto a um assessor no sábado; nas noites de sábado ocorreriam momentos para atividades culturais; os domingo seriam, inicialmente, divididos entre trabalhos voltados para discussões de comunicação e método de estudo, tendo em vista a elaboração do trabalho final de conclusão do curso.


Apresentação

Em março de 2006 realizamos o primeiro módulo do curso no Assentamento Gabriela Monteiro, na cidade de Brazlândia. quando organizamos os participantes em núcleos, aos quais, além da organização do estudo coletivo, caberiam as tarefas de organizar e coordenar os trabalhos do dia, a animação dos encontros, a limpeza do local, o relato das discussões, a disciplina, a mística e organização dos momentos culturais. No mês seguinte realizamos o módulo do CRB no auditório da Faculdade de Educação Física (FEF), o primeiro dentro das dependências da Universidade de Brasília (Unb). Miroslav Milovic conduziu neste módulo o estudo dos conceitos fundamentais do marxismo. Em maio, Maia Sprandel assessorou o estudo do “O Povo Brasileiro” de Darcy Ribeiro. Em junho, por problemas de última hora com a assessoria, fomos obrigados a adiar o módulo. No mês de julho, retomamos os trabalhos com a discussão da Formação Econômica do Brasil, abordando as obras dos pensadores Celso Furtado e Caio Prado Júnior, com a ajuda de Guilherme Delgado. A partir de julho de 2006, o CRB incorporou um espaço específico para análise de conjuntura e articulação política em suas atividades: as tardes de domingo. O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) inaugurou o espaço, trazendo a discussão sobre a questão energética no Brasil e a campanha pela redução do preço da luz elétrica. Em agosto, João Pedro Stédile assessorou o tema da questão agrária, sendo que o espaço de conjuntura do módulo abriu espaço para a organização do Grito dos Excluídos do Distrito Federal. Em setembro, a professora Vanessa Brasil abordou “Raízes do Brasil” de Sérgio Buarque de Holanda e “Casa Grande e Senzala” de Gilberto Freyre. O espaço de debate de conjuntura, que abordou a questão do período eleitoral, contou com a participação de Hamilton Pereira, da Fundação Perseu Abramo, e Vicente Eduardo, da Consulta Popular. Em outubro, a obra de Florestan Fernandes foi o centro das discussões, conduzida por Mirian Cardoso Limoeiro, enquanto o espaço de conjuntura foi destinado ao Dia de Democratização da Mídia, com participação do Centro de Mídia Independente (CMI) e Coletivo Intervozes. Em novembro, o professor Neio Campos abordou a obra de Milton Santos e o espaço de conjuntura trouxe a discussão do Dia da Consciência Negra com o professor Nelson Inocêncio. Em dezembro, dando continuidade as atividades já desenvolvidas pela companheira Cácia Cortez nos módulos anteriores, iniciamos a preparação e discussão dos Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC) com uma oficina. O espaço de conjuntura foi dedicado a história de luta do Condomínio Porto Rico, na cidade de Santa Maria, apresentado pela Terezinha, da associação de moradores do local.

6 Em janeiro de 2007, realizamos um módulo de formato diferente do que até então estávamos acostumados: quatro dias seguidos (quinta a domingo), na Chácara do Conselho Indígena Missionário (CIMI), na cidade Luziânia-GO. Aldo Paviani abordou a questão urbana no Brasil e a formação histórica do Distrito Federal; Airan Lima assessorou-nos na obra de Paulo Freire e nas questões de Educação Popular; Roberta Traspadini se propôs a nos ajudar na caracterização do atual estágio do capitalismo e do papel do Estado na manutenção da ordem vigente em nossa sociedade; por fim, realizamos um debate sobre a questão do Projeto Popular para o Brasil, conduzido por Mara Fonseca e Vicente Eduardo. Nos meses de fevereiro e março de 2007, nas dependências da Faculdade de Educação (FE) da Unb, iniciamos oficinas, conduzidas pela professora Cléssia Santos, voltadas exclusivamente ao desenvolvimento dos TCC. Nos dias 05 e 06 de maio de 2007, o último módulo do CRB destinou-se a apresentação e discussão coletiva dos TCC. O presente Caderno traz todos os TCC apresentados pelos participantes do CRB. Mais do que textos de trabalhos finais, as páginas seguintes devem ser encaradas como uma tentativa de contribuir teoricamente para as reflexões da Esquerda, em especial a do Distrito Federal. O esforço e mérito de todos os participantes do CRB que se desafiaram a entregar o TCC merece ser duplamente reconhecido. Primeiro por não se furtarem a analisar criticamente vários aspectos de sua militância. Segundo, por conseguirem superar a grande barreira de “passar as idéias para o papel”, de se apropriar de determinados conceitos que passam a nortear e organizar idéias desconexas, de forma a se materializar em um texto coerente. A CPP orientou a todos os participantes que o único critério desejável para o TCC seria relacionar-se com a intervenção concreta na realidade. Diante disso, a leitura dos trabalhos permite identificar a consolidação de três eixos temáticos. O primeiro são análises e discussões das demandas ou bandeiras de luta que dão singularidade ao movimento ou espaço de atuação política dos militantes. Nessa linha, Jacqueline Chaves do Nascimento (Centro de Estudos Bíblicos – CEBI), no ensaio Leitura popular da Bíblia: uma interpretação a partir dos pobres e oprimidos, analisa o papel libertador e progressista da leitura da Bíblia sob uma ótica popular, discutindo não só o método da leitura popular, mas também a perspectiva da discussão de gênero que este enfoque proporciona, ressaltando que “(...) a leitura popular da bíblia só surge como instrumento libertador, quando entra no contexto da vida de quem a realiza, o que significa dizer que é na luta por vida digna e liberdade, que o (a) leitor (a) vai se identificando com o personagem da Bíblia que vive a mesma situação, também tem os mesmos desejos e encontra caminhos para a liberdade”.


Apresentação

Jesuíta Dias Pinto (Pastoral da Juventude - DF), no ensaio O discurso da juventude nos movimentos sociais, parte da experiência do próprio Curso de Realidade Brasileira para buscar os eixos que dirigem o discurso da juventude militante, trazendo um panorama de diferentes conceitos de juventude e um mapeamento das principais preocupações dos militantes jovens, deixando claro que “é importante que os movimentos apóiem os jovens que exercem sua militância, dando-lhes acompanhamento a partir de temáticas que tratem de sua realidade, fazendo com que eles se posicionem diante das discussões da sociedade, como por exemplo: redução da maioridade penal, universidade pública e gratuita para todos e todas, instituição de políticas de cotas para as universidades, direitos humanos, formação política, entre outros assuntos importantes para sua formação”. O Aproveitamento Hidroelétrico Corumbá IV: a serviço da sociedade ou da acumulação do capital?, de Leonardo Bauer Maggi (Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB), faz uma reflexão crítica sobre o desenvolvimento do política energética no Brasil, valendo-se de um histórico do setor elétrico brasileiro de 1930 até os dias atuais e da abordagem do papel da barragem de Corumbá IV, deixando claro que “o debate sobre as fontes energéticas é importante, mas não podemos esquecer que na atual estrutura, toda a energia, independente da fonte, estará a serviço da acumulação do capital e este vai escolher a fonte mais lucrativa. Já passou o tempo que os atingidos por barragens eram as principais vítimas do setor elétrico. Com as atuais taxas de lucratividade todas as pessoas são atingidos”. Marcelo de Oliveira Arruda (Coletivo Intervozes), no trabalho Cartilha organizativa da Semana de Democratização da Comunicação, empreende um esforço de sistematizar as experiências de organização sobre a democratização da comunicação no Brasil, abordando desde o direito à comunicação, até as questões de planejamento de uma Semana da Democratização, sob a perspectiva de que “esta cartilha se pretende um instrumento político para as atividades organizativas e formativas em comunicação. Pode ser na Semana, pode se em outro espaço. Sabendo que luta popular parte do diálogo, em que mais do que encontrar respostas, se apresentem mais e diferentes questões para pensarmos, nos inquietarmos e agirmos coletivamente, este trabalho não pode nem deve acabar aqui. O aprendizado continua”. Kelly Ramos de Souza (Consulta Popular) e Rafael Pereira Bitencourt, no texto A construção do sujeito militante, analisam quais são os elementos comuns, presentes na opção pela militância de participantes do CRB e da história de vida de figuras como Chico Mendes e Florestan Fernandes, sugerindo que “diante das dificuldades seja do estudo, seja de ordem financeira, prática, familiar, o inconformismo, a coerência, o comprometimento e o compromisso com a luta são

7 traços predominantes observados nos atores políticos que militam em movimentos sociais e por causas necessárias que se espalham em nosso tempo. Essas características, dentre muitas outras, desenham e constroem cotidianamente o perfil destes sujeitos engajados naquilo que eles consideram um projeto de vida”. Francisco Lima Pereira - Chicão (Movimento dos Trabalhadores Desempregados – MTD), no ensaio Dificuldades dos trabalhadores para se colocar no mercado de trabalho do DF, discute e analisa os principais problemas que o segmento do mercado de trabalho na maior idade enfrenta, levantando elementos para defender que “quando na maior idade, os problemas para se colocar no mercado de trabalho se inverte. Se na juventude o mesmo tinha dificuldades de arranjar emprego por falta de experiência, o mesmo ocorre agora já na idade avançada, por ter muita experiência. Seu trabalho logicamente teria que ser melhor remunerado, porém, o que acontece é justamente o contrário. O empresário prefere contratar os mais jovens com salários inferiores do que pagar o que vale o trabalhador mais experiente, e ainda por cima cita a idade do mesmo como pretexto para não contratar alguém alegando a idade avançada que o mesmo terá problemas de saúde e velhice e assim vindo a comprometer a produção da empresa”. O segundo eixo temático que se consolidou nos trabalhos finais foi a reflexão sobre o mundo do trabalho, tanto na perspectiva de experiências concretas de organização dos trabalhadores, como da realidade proporcionada pelo capitalismo periférico e dependente. O texto de Adriane Lobo (Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB), A constituição social dos pescadores artesanais do Lago Paranoá: exclusão, organização e resistência analisa a situação dos profissionais da pesca que atuam no Lago Paranoá (DF), trazendo um importante mapeamento da condição socioeconômica e da organização desses pescadores. O texto conclui que o motivo para a liberação da pesca no Paranoá foi “ (...) a necessidade de retirada das tilápias do lago, não sendo nunca considerado desde 1966 a atividade profissional e sua importância social para as comunidades do entorno ao Plano Piloto. Muito pelo contrário, os pescadores viveram anos exercendo a atividade clandestinamente, sofrendo repressões e perda de petrechos, canoas e produtos e ainda sendo hostilizados pela população de classe mais alta que vive na orla do lago. Apesar disso, a liberação da pesca só se deu quando houve a recomendação para reduzir drasticamente a biomassa de tilápia existente no lago”. A “Escravidão legalizada no sul do Brasil”, de Alisson Zarnott (Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB), analisa o processo de exploração pelo qual passam as famílias que cultivam folhas de tabaco (fumicultura) no estado do Rio Grande do Sul, destacando que a junção do sistema de integração


Apresentação

vertical dos agricultores às empresas no setor, da super-exploração do trabalho e endividamento dos agricultores familiares, e dos problemas de segurança alimentar, força a não remuneração do próprio trabalho como condição para permanecer na atividade. Com isso, para “(...) 88% das famílias entrevistadas, o trabalho no sistema de integração vertical da fumicultura não satisfaz a família e, 100% delas mudaria de atividade se pudesse. Pensamos que esses dados dispensam comentários e mostram a insatisfação das famílias com a situação de exploração/ apropriação à que estão submetidas (...) encorajamos-nos a sugerir que se elas não o fazem (assim como os escravos) porque não podem/conseguem. Como havíamos provocado, formam uma legião de escravos legalizados, com terra, com instrumentos de trabalho, com “liberdade”, mas escravizados”. O trabalho de Artur Antônio dos Santos Araújo (Movimento Estudantil da Unb), intitulado Os Cândidos – crítica literária da formação e interpretação do Brasil: O Projeto Literatura e Trabalho no Brasil, relata a experiência de um projeto de pesquisa em que estudantes universitários valem-se da literatura brasileira para o estudo da formação da nação brasileira junto à militantes de movimentos sociais e organizações culturais comunitárias que atuam no Distrito Federal e Entorno. A cor do DF: consolidação da classe trabalhadora e do desemprego vista a luz do racismo no DF, de Paulo Henrique da Silva Santarém - Paíque (Movimento dos Trabalhadores Desempregados – MTD), discute a estreita ligação entre as opressões raciais e de classe no Distrito Federal, abordando a história da sociedade brasileira sob a ótica do racismo e da opressão de classe, cruzando a análise do desemprego no DF sob a ótica de raça e classe, elementos para mostrar que “o DF é um estado organizado historicamente de maneira racista, sendo a população negra um grupo social espoliado de sua produção e riquezas construídas. Essa conclusão vem bater de frente com o mito do candango migrante sem cultura ou raízes historicamente construídas: este grupo, apesar de existente, não nos parece central pra pensar os processos identitários e de exclusão no DF, uma vez que migrantes de diferentes classes e raças, ocuparam espaços sociais diferentes a partir destas posições. Á população negra do DF foi reservada em especial as posições do trabalho informal e do desemprego estrutural”. O terceiro eixo temático condutor dos trabalhos finais que se consolidou foi a abordagem da questão urbana e social dentro da formação e desenvolvimento do Distrito Federal. O ensaio Candangos e Pioneiros – uma distinção histórica e de classe, de Bianca Nunes de Queiroz (Movimento Consulta Popular), discute a questão de classe embutida na denominação das pessoas que vieram para Brasília no período de sua construção, analisando a dimensão de relações de produção e seu desdobramento

8 na territorialidade do Distrito Federal, concluindo que “Brasília é uma cidade (Plano Piloto, centro administrativo) que não se vê pobres nas ruas, causando uma falsa impressão que eles não existem. Mas ao andar alguns quilômetros em direção a saída do Plano Piloto, percebe-se a dura realidade da periferia escondida dos centros de Brasília. Lugares estes, que denotam o descaso do governo local em resolver tal situação de miséria e precariedade na saúde, educação, lazer e transporte, perpetuando a desigualdade posta entre candangos (construtores civis e trabalhadores braçais) e pioneiros (profissionais liberais, servidores públicos) entre os seus espaços no início da construção de Brasília”. Maria Lúcia Pereira (Movimento Consulta Popular) e Sonia Maria Costa Ferreira (Movimento Consulta Popular), no texto A cidadania e os programas sociais – um estudo sobre o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, discutem o trabalho infantil no Brasil, analisando os conceitos de pobreza e da condição da infância no decorrer do desenvolvimento histórico da política pública brasileira, com especial atenção ao Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, e mostram que “a questão do trabalho infantil deve trazer a tona o debate acerca de que todo trabalho como exploração para a acumulação privada da riqueza, é insalubre, degradante, perigoso e prejudica o desenvolvimento da criança e do adolescente e muitas das vezes pode levar a morte. Neste sentido deve ser combatido e considerado uma pior forma de trabalho. Portanto não são negociáveis, mesmo que as leis vigentes sejam instrumentos avançados que busquem garantir os direitos humanos”. O núcleo Rosa Luxemburgo, composto por Andréia Jordânia Martins Soares (Centro de Estudos Bíblicos – CEBI), Cícero Fernando Barbosa da Silva (Vida e Juventude), Gracilene Santana (Movimento Passe Livre – MPL), Magda Maria da Silva (Vida e Juventude), Márcia Alves Ximenes (Vida e Juventude), Mônica de Souza Santos (Centro de Estudos Bíblicos – CEBI) e Roberto Vieira (Movimento Evangélico Progressista – MEP), produziu o Ensaio sobre o movimento popular em Ceilândia e a educação popular, a partir do documentário de Vladimir Carvalho, Companheiros Velhos de Guerra. O trabalho resgata a formação e a luta popular de Ceilândia, mapeando e analisando criticamente a situação atual do movimento popular local e o papel da educação popular, de modo a mostrar que “estar no Movimento Popular não deve ser somente com o objetivo de superar problemas, dificuldades individuais pontuais, mas visar à construção e transformação coletiva da sociedade. No trabalho popular é necessário frisar a importância do social, do político e do poder. Notamos que muitas lideranças ainda vêem o trabalho popular como uma “espécie de caridade” e não vislumbram a possibilidade de transformar a estrutura perversa. Por isso as lideranças devem


ter uma formação contínua para ter clareza do que está por trás da ação das forças opressoras presentes na sociedade”. Nossa intenção é dar ampla divulgação as idéias e experiências aqui sistematizadas, permitindo a reprodução deste material na íntegra.

Fábio Marvulle Bueno Brasília, maio de 2007


A Constituição Social dos Pescadores Artesanais do Lago Paranoá: Exclusão, Organização e Resistência

Adriane Lobo Costa (Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB)


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Dedico este trabalho aos pescadores artesanais que humildemente fartam as mesas dos famintos.

1. Introdução

SUMÁRIO Introdução, 13 • A construção de Brasília, 14 • A construção da barragem do Lago Paranoá, 16 • A vida antes da cidade e com ela, 17 • A ocupação urbana e os impactos no ambiente, 19 • Os pescadores do Lago Paranoá, 22 • A situação histórica dos pescadores profissionais, 23 • A pesca no Lago Paranoá, 25 • A organização dos pescadores, 25 • Conclusão, 26 • Referências bibliográficas, 27 • Anexos, 28.

O presente artigo tem por objetivo ser apresentado como Trabalho de Conclusão do Curso de Realidade Brasileira - Grandes Pensadores. A categoria dos pescadores profissionais artesanais, de um modo geral, tem muitas características intrínsecas à sua atividade, mas, infelizmente tem tido em comum um ataque fulminante à sua cultura, através da diminuição dos espaços de pesca, da restrição de uso de petrechos, espécies ou épocas de pesca, da poluição dos mananciais que têm reduzido drasticamente os peixes dos rios e mares, da especulação imobiliária e competição com outras modalidades de pesca e mais recentemente com a aqüicultura (principalmente a carcinicultura implantada nos mangues do litoral nordestino, mas também a implantada nos reservatórios e rios), dentre outros. A permanência da atividade é importante não só para o abastecimento interno de pescado, visto que em torno de 50% do pescado consumido no Brasil provém da pesca artesanal, mas principalmente devido ao pescado que não está contabilizado, mas que confere a segurança alimentar de inúmeras famílias e comunidades (Diegues, Vasconcellos e Sales, no prelo). Os mesmos autores afirmam a importância da pesca artesanal como uma atividade produtiva e não somente receptora de políticas assistencialistas, como vem ocorrendo historicamente no Brasil, isso quando as políticas públicas chegam a esta população. Até mesmo a forma confederativa de organização (que inicia com a organização de Colônias de Pescadores na costa nacional entre 1919 a 1923 pelo comandante Frederico Vilar, a bordo do navio da marinha de guerra José Bonifácio), contribui para a afirmação errônea dessa situação. Foram criadas colônias e organizadas federações estaduais e a confederação nacional, num sistema totalmente atrelado ao Estado, inclusive na indicação dos seus presidentes. Isso se tornou comum e sempre foram inúmeros os exemplos de organizações serem presididas por


A Constituição Social dos Pescadores Artesanais do Lago Paranoá: Exclusão, Organização e Resistência

pessoas de fora da categoria, ou quando pertencentes à categoria, não serem eleitos democraticamente para a função, mas interventores. “(...) são poucas as colônias dirigidas por pescadores, sendo muitos os presidentes provenientes de outras categorias como vereadores, atravessadores, profissionais liberais, etc. que atrelam os interesses dos pescadores ao clientelismo local. Na maioria das vezes as Colônias são entidades meramente assistencialistas e o último Estatuto das Colônias, aprovado em 1973, dificulta uma função produtiva creditícia e de comercialização do pescado dessas entidades.” (Vasconcello et all,

no prelo). Apesar disso, o vínculo das Colônias com a pesca artesanal foi se consolidando, sendo, em muitos momentos e locais, condições sine qua non para a pertença à categoria. Já no Decreto no 221/67, que trouxe inúmeras transformações à pesca nacional, em especial no Sul e Sudeste, define pescador profissional, em seu art. 26, da seguinte maneira: “Art 26. Pescador profissional é aquele que, matriculado na repartição competente segundo as leis e regulamentos em vigor, faz da pesca sua profissão ou meio principal de vida. Parágrafo único. A matrícula poderá ser cancelada quando comprovado que o pescador não faça da pesca sua profissão habitual ou quando infringir as disposições deste Decreto-lei e seus regulamentos, no exercício da pesca.”. “(...)Oficialmente o Registro Geral da Pesca (RGP) foi instituído pela Sudepe, com o Decreto 221/67, embora tenha existido diversas formas de registros anteriores. Após a extinção da Sudepe em 1989 e a criação do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente – Ibama, a responsabilidade por estes registros foi a este repasssada. Em 1998 os registros da pesca passaram para o Ministério da Agricultura. Em 2003 foi criada a Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca – Seap, ligada à Presidência da República, agora responsável pelo RGP.”. (Costa, no prelo).

A caracterização para fins de classificação dos pescadores, em especial os artesanais ainda é uma dificuldade da gestão pesqueira nacional, visto a heterogeneidade de culturas, pescarias, ambientes e arranjos sociais existentes. Diegues (2004) ensaia tipologias de formas de produção pesqueira nacional como: pesca de subsistência, pesca realizada dentro dos moldes de pequena produção mercantil, subdividas em produção mercantil simples dos pequenos produtores litorâneos: “os pescadores-lavradores” e a pequena produção

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mercantil (ampliada): o Pescador Artesanal”. e a pesca empresarial-capitalista. O autor chama a atenção para a diversidade da pesca artesanal e as modificações que se processam a medida que a produção se mercantiliza e aprofundam-se as relações capitalistas. Uma dessas modificações está relacionada com o fato de que as relações de trabalho tendem a sair da família para se tornarem mais “profissionalizadas”. Também novas formas de conhecimento são necessárias para assimilar as mudanças e imposições tecnológicas; a propriedade dos meios e instrumentos de trabalho também passam a ser mais importantes que a propriedade familiar; a introdução da embarcação motorizada demanda um novo conhecimento; e por último, aponta a mudança na rede de comercialização, que passa a ser explorada gradativamente de “atravessadores” para “firmas” de compra de pescados e financiamento das pescarias. A partir de dados secundários e comunicações orais, este artigo aponta o nível de exclusão, organização e resistência dos pescadores do Lago Paranoá em Brasília –DF. Iniciaremos destacando a importância do lago na escolha do local e do projeto da nova capital, e também o processo de exclusão da classe trabalhadora na construção de Brasília – DF e em especial da Barragem do Lago Paranoá. Demonstramos alguns dos impactos culturais que a construção do Distrito Federal causou, bem como alguns impactos ambientais que acabam por influir na produtividade do lago. Em seguida, destacamos alguns aspectos importantes sobre os pescadores do Lago Paranoá e a situação histórica desses trabalhadores. Depois, descrevemos um breve histórico da liberação da pesca no lago e a situação atual. Descrevemos rapidamente a situação da organização dos pescadores profissionais. Nas conclusões, reafirmamos aspectos da exclusão, da organização e da resistência dessa categoria na utilização do Lago Paranoá como espaço de realização do seu trabalho.

2. A construção de Brasília As idéias de transferir a Capital Federal para o centro do país existem desde o tempo colonial. Em 1893, a Missão Cruls desenvolveu estudos para a instalação da Capital, o que é aprofundado pelo Relatório Belcher, de 1955. (Fonseca, 2001). Durante o passar dos anos, muitas referências existiram com relação à mudança da capital para o interior do país, inclusive sendo uma das metas da Inconfidência Mineira. Em 1789 estava incluída, no programa elaborado, a mudança da capital federal do Rio de Janeiro para São João Del Rei.


A Constituição Social dos Pescadores Artesanais do Lago Paranoá: Exclusão, Organização e Resistência

No Império, José Bonifácio defendeu fervorosamente a transferência da capital, sugerindo a cidade de Paracatu, bem como o nome da nova capital que seria ou Petrópole ou Brasília. Em 1889, com a Proclamação da República, a transferência da capital passa a fazer parte do texto constitucional. “Fica pertencente à União, no Planalto Central da República uma zona de 14.400 km2, que será oportunamente demarcada, para nela estabelecer-se a futura capital federal.” (Art. 3 da Constituição).

Cumprindo esse preceito constitucional, Floriano Peixoto constituiu a Comissão Exploradora do Planalto Central do Brasil, em 1892. Esta ficou conhecida como a Missão Cruls, pelo fato de ter sido liderada pelo astrônomo Luis Cruls, e formada por geógrafos, médicos, botânicos, higienistas, geólogos, naturalistas e engenheiros. O primeiro ano foi dedicado a demarcar os 14.400 km2, áreas de antigas fazendas de Goiás dos municípios de Planaltina e Luziânia1 . Foi a primeira imagem do “Quadrilátero Cruls” foi como ficou conhecida essa demarcação. Nesse período aparece também pela primeira vez a expressão “Distrito Federal”. Nesse relatório encontram-se estudos sobre os vários cursos d´água da região, entre eles o Rio Paranoá, denominado Paranauá2. Em 1894 é instalada a nova Comissão, agora denominada Comissão de Estudos da Nova Capital da União, mantendo a liderança de Luis Cruls. Sua incumbência era escolher o local exato para alocar a nova capital, sendo que então os estudos se aprofundaram no quadrilátero. A área escolhida foi a planície entre os rios Torto e Gama, onde o naturalista e botânico A. Glaziou destaca as vantagens do clima e das águas da região, bem como sua beleza paisagística, e faz alusão à possibilidade da construção de um lago: “Também foi Glaziou quem fez as primeiras referências sobre a possibilidade de formação de um lago em torno da futura capital. Chama a atenção para dois aspectos naturais da planície por ele observada: a possibilidade da existência de um lago em “tempos de outrora” e a possibilidade de criação de um novo lago a

1 As cidades de Planaltina, Luziânia e Brazlândia já existiam à época da Missão referida e de dois desses municípios que foram desapropriadas áreas para a constituição do Distrito Federal, em 1955, através do Decreto n 480, 30/04/1955, poupando todos os núcleos urbanos. 2 Em Tupi-Guarani, Paranoá é o mesmo que Paranaguá que quer dizer “rio largo, rio espraiado”. (Fonseca, 2001)

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partir da construção de uma “barragem”, aproveitando as qualidades que a área oferece.” (Fonseca, 2001).

Glaziou se refere em seu relatório aos rios Torto, Gama, Vicente Pires, Riacho Fundo, Bananal e outros como impressionantes pela “calma severa e majestosa desse vale”. Ele também faz referência a piscosidade das águas dos cursos d’água da região escolhida, escrevendo: “A todas essas riquezas oferecidas ao homem laboriosos, nesse centro do planalto, juntam-se mais os recursos e a vantagem que lhe proporcionarão ainda abundantes águas piscosas”.

Em um trecho aonde relata a provável existência de um lago no planalto e a facilidade da construção de uma estrutura cujo comprimento não excederia 500 a 600 metros, com 20 a 25 metros de altura, afirma que, “ forçosamente a água tomará ao seu lugar primitivo e formará um lago navegável em todos os sentidos, num comprimento de 20 a 25 quilômetros sobre uma largura de 16 a 18 (...) Além da utilidade da navegação, a abundância de peixe, que não é de somenos importância, o cunho de aformoseamento que essas belas águas correntes haviam de dar à nova capital despertariam certamente a admiração de todas as nações.”

A segunda Missão durou até 1896 mas com a saída de Floriano Peixoto, já em 1894, os esforços do executivo para a transferência da capital foram temporariamente paralisados. Em 1922, no Centenário da Independência do Brasil, fazendo parte das comemorações, foi lançada a Pedra Fundamental, “assentada no Morro do Centenário, Serra da Independência, a 9 quilômetros de Planaltina”. Em 1946, o presidente Gaspar Dutra nomeou a Comissão Técnica de Estudos de Localização da Nova Capital, chefiada por Djalma Poli Coelho. Em dois anos de trabalho a comissão reforçou as idéias levantadas pela Missão Cruls. Em 1952 o Congresso Nacional aprovou uma lei que previa a realização de estudos definitivos para a transferência da capital para o planalto central. Então, Getúlio Vargas criou a comissão em 19533. 3 Lei n. 1.803, sancionada por Getúlio Vargas que estabelecia “critérios para os estudos definitivos para a escolha do sítio da nova capital federal, destacando-se como parâmetro a população base de


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Café Filho4 também nomeou uma comissão, denominada Comissão de Localização da Nova Capital Federal, que foi primeiramente dirigida por Aguinaldo Caiado de Castro e posteriormente pelo Marechal José Pessoa. Essa comissão se valeu de estudos realizados pela firma estadunidense Donald Belcher & Associates, que recomendou cinco sítios para a alocação da nova cidade (Castanho, Azul, Verde, Vermelho e Amarelo). Esses estudos abrangeram uma área maior que as outras comissões (52.000 km2), denominado do Retângulo Belcher. Dos sítios estudados, a recomendação recaiu sobre o sítio Castanho, principalmente por causa de suas qualidades climáticas, mas também por sua hidrografia. E foi também Café Filho que aprovou o Sítio Castanho, em 1955. Mas a construção de Brasília começou somente em 1956, estando na presidência então Juscelino Kubitschek5, que havia prometido, em um comício de campanha em Anápolis, a construção e transferência da Capital Federal para o interior do país e se valeu de seu estilo populista para ser amplamente apoiado pela população. A construção de Brasília foi um acontecimento histórico, sem dúvida. Foram milhares de operários arregimentados em diversos estados brasileiros que se deslocaram para o Centro-Oeste em busca de trabalho, salário e melhores condições de vida. Em 22 de outubro de 1956, marcando o início da construção da nova capital nacional, começam as obras da futura residência presidencial, o Catetinho, concluída em 31/10/1956. As condições de trabalho, moradia, alimentação e atendimento à saúde eram precaríssimas e os trabalhadores faziam turnos ininterruptos para poder ser cumprida a promessa (e obedecida a lei) de inauguração da Capital Federal em 21 de abril de 1960. “A rotina dolorosa dos candangos que trabalhavam mais de 15 horas por dia, a violência da polícia e a ventania devastadora do cerrado nos versos de Sebastião Varela”. (Brasília, 40 anos)

500.000 habitantes.” (Fonseca, 2001). 4 João Fernandes Campos Café Filho era vice do Presidente Getúlio Vargas e foi Presidente da República de 24/08/1954 a 11/11/1955. 5 A Lei n. 2.874, sancionada em setembro de 1956, dispunha sobre a mudança da Capital Federal e criou a Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil, NOVACAP, definindo inclusive o dia 21 de abril de 1960 para a sua inauguração, como de fato se deu.

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Nos filmes Conterrâneos Velhos de Guerra6 e Romance do Vaqueiro Voador7 , são retratadas as sagas dos operários que para cá se deslocaram para construir Brasília. Os maus tratos e mesmo a morte acidental ou provocada de muitos desses trabalhadores é uma parte da história da construção da Capital Federal que não é conhecida de muitos. Essa questão nos aponta para a compreensão dos aglomerados suburbanos que estão cercando o Plano Piloto hoje. Ou seja, no planejamento da Capital, não foi previsto a moradia dos trabalhadores, que não deveriam permanecer no Plano Piloto. Logo, os operários passaram anos construindo prédios e casas para outras pessoas e eles próprios não tiveram onde morar, tendo que se sujeitar a realização de ocupações e viver em condições precárias de moradia e demais acessos a serviços como saúde, educação e transporte. Os pescadores que hoje pescam no Lago Paranoá são fruto desse processo de exclusão, como será demonstrado adiante.

3. A construção da barragem do Lago Paranoá

6 Um fi lme de Vladimir Carvalho, 1992. “A história da construção de Brasília vista pelo avesso: um documentário com o depoimento dos trabalhadores que vieram especialmente do nordeste para construir a nova capital. “É a crônica dos lances enfrentados pelos nordestinos que vieram no final dos anos 50 para a construção de Brasília”, diz Vladimir Carvalho, que recebeu por este documentário o prêmio especial do júri no Festival do Novo Cinema Latino Americano em Havana e o prêmio católico de cinema da CNBB. Vladimir diz que usou o cinema como um meio de registrar a memória dos que trabalharam na construção da cidade. “Procurei fazer o filme com eles, ao lado deles, e inclusive pedi a um deles, semi-alfabetizado, que desenhasse o título do filme. É sobretudo a experiência inenarrável do massacre que os operários sofreram dos bate-paus da famigerada Guarda Especial de Brasília - GEB - nos acampamentos da empreiteira Pacheco Fernandes. Para quem não sabe esse é um episódio de terrível memória que qualquer motorista de táxi em Brasília - alguns deles remanescentes da fase de construção - pode relatar sem grande esforço” (Rio Filme). 7 Romance do Vaqueiro Voador, do poema de João Bosco Bezerra Bonfi m, um fi lme de Manfredo Caldas, 2006 “é uma narrativa sobre um personagem imaginário e real de uma só vez. Baseado no texto João Bosco Bezerra Bonfim e realizado na forma de documentário, o filme especula sobre quem seria um certo indivíduo que despenca do alto de um andaime de um prédio durante a construção de Brasília. Chamado de “Vaqueiro Voador” esse indivíduo é a representação alegórica e mágica utilizada pelo autor do Romance do Vaqueiro Voador para designar a parcela desafortunada do enorme contingente de migrantes nordestinos que para cá vieram como operários da construção civil. Seduzidos pela utopia da transferência da nova capital do país para os cafundós do sertão do centro oeste, esses migrantes encontraram aqui um destino trágico. Eles são a contrafação do discurso utópico e heróico dos construtores de Brasília” (parte da sinopse obtida na página do vaqueiro voador).


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O Lago Paranoá é um lago artificial, que foi construído visando ser um cinturão de água para a futura capital do país. Os seus objetivos principais eram recreação e paisagismo (Senado Federal, 1987). O lago foi construído em 1959 e tem em torno de 38 Km2 de lâmina d’água. A ocupação das margens dos córregos, riachos e rios contribuintes do lago, bem como do seu entorno, trouxe a degradação da qualidade ecológica de suas águas, desde a sua formação. O próprio processo de inundação se caracteriza por ser uma obra de considerável impacto ambiental e social. A construção do lago fez parte da idéia da nova Capital Federal desde os tempos da Missão Cruls, quando A. Glaziou planejou a sua construção. A escolha do sítio Castanho já oferecia as condições naturais para a formação do lago. A cota de inundação ficou em 997 (depois mil) e foi um fator definitivo para a escolha do sítio. “Localizava-se próximo à confluência dos rios Torto e Gama que formavam o rio Paranoá. O aproveitamento desses cursos d´água e seus principais contribuintes foram os responsáveis pela formação do lago, os quais pela declividade natural do sítio, corriam para Leste, indo em direção às águas do rio São Bartolomeu, por uma garganta aonde se previa o represamento” (Fonseca, 2001).

O Edital para o concurso do projeto que desenharia Brasília, lançado em 1956, já previa a existência do lago, mesmo que não existisse ainda de fato. “Os projetos deveriam considerar as singularidades do sítio escolhido e prever, em seus estudos urbanísticos, a existência de um lago. O aproveitamento paisagístico que a formação do lago iria promover, era um dos aspectos a ser considerado, pelos participantes do concurso.” (idem).

Os proponentes também deveriam apresentar soluções com relação ao abastecimento de água e energia da nova cidade, fato para o qual a presença do lago facilitaria. Não está claro quando começaram as obras do lago, mas operários entrevistados por pesquisadores informam que a obra só começou mesmo depois do início de Brasília e teve seu auge no ao de 1960. Já o Diário de Brasília registra que teriam iniciado ainda em 1959 as obras da hidrelétrica. O projeto urbanístico da nova capital vencedor, de Lúcio Costa, seguia uma lógica paisagística e de lazer para o lago, como forma integrada da cidade e que dela deveria fazer parte, sem ser prevista a ocupação por moradias nas áreas mais próximas à orla do lago.

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Entretanto esse projeto original, vencedor, foi alterado, pois tendo Lúcio Costa uma concepção de preservação, sugeriu em seus projetos que a orla do lago fosse preservada. Mas, para Aldo Paviani (1989), esse privilégio ao paisagístico, na implantação do modelo polinucleado foi uma forte forma de segregação. “Evitou-se a localização dos bairros residenciais na orla da lagoa, a fim de preservá-la inata, tratada com bosques e campos de feição naturalista e rústica para os passeios e amenidades bucólicas de toda a população urbana. Apenas os clubes esportivos, os restaurantes, os lugares de recreio, os balneários e núcleos de pesca poderão chegar a beira d´água.” (Fonseca, 2001, op cit Costa, Lúcio. Brasília: cidade que inventei. Relatório do Plano Piloto de Brasília)

As alterações no projeto original, que mais influenciariam na ocupação da orla lacustre foi um deslocamento geral no projeto para Leste, reduzindo o espaço entre o conjunto urbanístico e o lago, acrescentou a seqüência de quadras 400, deslocou o setor de Embaixadas e o Setor de Residências Individuais, transferindoos para a margem Leste do lago, o que viria a ser o Lago Sul posteriormente. Da mesma forma foi acrescido a área do Setor de Mansões Park Way (SMPW), com terrenos de 20.000 m2 em toda a encosta da margem direita do córrego Vicente Pires. Também não constava do projeto original a construção da Estrada-Parque Contorno (EPTC) “sobre o divisor de águas de toda a Bacia do Lago Paranoá, com o objetivo de definir uma área proibida para construções e, dessa forma, proteger ambientalmente a bacia do lago”. Mas, infelizmente, não foi isso que aconteceu, visto que “as modificações introduzidas (...) acabaram por promover a ocupação da bacia e das margens do lago. O sentido da preservação ambiental da bacia, pretendido com a criação da Estrada-Parque, foi modificado, principalmente em função do adensamento populacional que se verificou desde os primeiros anos da construção de Brasília. A própria NOVACAP, quando criou oficialmente o SMPW e a expansão das áreas residenciais, alterou essa idéia.” (Fonseca, 2001) As Regiões Administrativas (RAs) que fazem parte da bacia do Lago Paranoá são: RA I – Brasília (1964)8; RA XIX – Candangolândia (1994); RA XI – Cruzeiro (1989); RA X – Guará (1989); RA XVIII – Lago Norte (1994); RA XVI – Lago Sul (1994); RA VIII – Núcleo Bandeirantes (1989); RS VIII – Paranoá (1964); RA XVII – Riacho Fundo (1994) e RA III – Taguatinga (1964).

8 Os números entre parênteses se referem ao ano de decretação da Região Administrativa (RA).


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4. A vida antes da cidade e com ela A construção da cidade e em especial a da barragem, estava atrelada à uma concepção desenvolvida de que o Centro-Oeste seria uma região deserta e sem importância ambiental. Na verdade, era uma região rica em sítios e chácaras que produziam os mais variados produtos. Entre 1922 e 1930 existiam comunidades que tinham como referência a cidade de Planaltina, onde estavam instaladas charqueadas, indústrias de beneficiamento de couro, arroz e café e existia inclusive cinema. (Fonseca, 2001, op cit Caugeglia, R. L. et alli. Patrimônio nas ruas: Planaltina, GDF, SCE, DePHA, 1997). Portanto, o que existia não era um vazio populacional, mas sim uma baixa densidade populacional. As famílias que formavam as comunidades nas encostas dos córregos existentes, passaram a conviver com um mundo até então delas desconhecido. A produção dos alimentos na região, como o milho, feijão, arroz, mandioca, cana, a galinha, leite, ovos, foi muito importante para alimentar os operários que primeiro aqui chegaram, como o acampamento para a construção da barragem (que mais tarde iria se transformar na Vila Paranoá) e como o acampamento formado para a construção do Palácio da Alvorada. “Quando começou Brasília, a gente já morava aqui. A gente não comprava quase nada, a gente tinha de tudo. Só comprava o sal, às vezes o açúcar, mas a gente tinha rapadura e tinha o mel. O pessoal da barragem que hoje é o Paranoá, eles vinham de lá para cá, vinham comprar fruta, a gente não vendia, dava. Porque aqui tem fartura, tem muito, né? Aí eles vinham pra cá no final de semana comprar galinha, comprar ovos.” (Fonseca, 2001, op. Cit depoimento de Geni P. Rodrigues, Magalhães, Nancy, Memórias de cá e de lá – Paranoá – DF, 1998).

O choque cultural que essa população sofreu foi intenso. Até mesmo a forma de cultivar a terra foi alterada, pois antes eles só plantavam após derrubar o mato e queimar, sendo as áreas de campo destinadas a criação dos animais. Mas, com a chegada de pessoas de outras regiões, o desmatamento se tornou mais intenso e as áreas de campo também passaram a lavouras. Os impactos já foram sentidos naquela época, onde depoimento aponta uma possível alteração climática, modificando o regime pluviométrico da região. “Chovia muito, tinha uma época que, às vezes vinte dias, um mês sem ninguém ver o sol. Mês de dezembro, dezembro chovia muito. O pessoal desmatou, tirou as árvores, acabou com tudo né. Naquele tempo tinha muita árvore muito mato, muito cerrado... tirou tudo, parece que ressecou. No mato, no cerrado, tinha fruta.

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Tem o araticum, o pequi, esse é nativo daqui. Tinha mangaba, bacupari.” (Fonseca, 2001, Hermes de S. Paiva, cfe Magalhães, op cit).

Por outro lado, a convivência dos trabalhadores com o pessoal da região, também acabava por trazer à memória desses os seus lugares de origem, e assim “refletiam a permanência do mundo rural na cidade moderna.” (idem) O Lago Paranoá foi formado por inúmeros córregos, rios e nascentes que faziam parte da bacia do Paranoá. “O rio Paranoá, ele começa lá em cima. Aí vai, entra aquele que vem do Gama, aquele que vem de perto do Catetinho para cá. Tem o do Pica-pau, tem umas seis pernas aí pra frente. O que vem do Pica-pau é o Taboquinha. Depois vem aqueles que vem da água Mineral, tem o rio do Torto. Tem muitos que cai aqui dentro. Todos eram rio, pequenos, mas rio. Aqui deve ter umas seis ou oito nascentes de água aqui dentro. Mas como fez a barragem, cercou, acabou. Ele veio tubulado, por tubulação (...) porque a barragem segurou todos.” (Fonseca,2001, Valdivino Dias de Souza, cfe Magalhães, op cit).

Mais adiante, no mesmo depoimento, podemos encontrar referência à piscosidade do rio Paranoá: “(...) O Paranoá, aqui, tinha peixe adoidado, a coisa que mais tinha aqui era peixe. Olha, aqui tinha muito piau, piau três pinta, tinha um tal de piaupara, dourado desse tamanho ó! Dourado imenso. (...) E você pescava não é igual hoje, nós pesca matando tudo, sabe [refere-se ao uso de redes]. Naquela época eu pegava aqui o da janta, amanhã pegava o do almoço, tinha demais.” (idem). O acampamento para a construção do lago foi montado em 1957. Eram seis firmas envolvidas: a Novacap, a Planalto, “que era dos americanos, tinha a Portuária, era de terra, tinha a Geotec, injetação de concreto e cimento; tinha a Rodobrás e tinha a CCBE. Essas seis firmas só no setor do Paranoá, aí”. (Fonseca, 2001, José e Ataíde P. da Neves, cfe Magalhães, op cit).

A construção da barragem também ficou envolta a muitas histórias. Os operários trabalhavam em turnos diurnos e noturnos e eram expostos ao cansaço e à falta de segurança no trabalho. Muitos morreram em acidentes e muitos tinham que trabalhar amarrados pela cintura, nas pedreiras. Ainda corriam o risco de martelar em alguma banana de dinamite que por ventura poderia ter sobrado de alguma explosão.


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O acampamento seguia um rígido ritual de diferenciação com relação ao tipo de trabalho que cada um realizava, sendo inclusive distinta a refeição oferecida a cada trabalhador, conforme sua qualificação. Não havia interesse das firmas construtoras que os trabalhadores trouxessem suas famílias, o que foi tentado controlar. Mas, foi inevitável que famílias se alojassem no entorno dos acampamentos, que acabaram por também servir à construção de Brasília de forma não reconhecida, através da prestação de serviços. Conta-se que mulheres e crianças também trabalhavam quebrando pedras. Muitas denúncias de malversação da verba da obra, entre outras, houve na época. Inclusive a proposta de um deputado de instalar uma CPI9 para apurar denúncias de “desvio de material de construção, desaparecimento das madeiras retiradas da região do lago, concessão de obras e serviços para apadrinhados, e aumento nos custos da obra”. (Fonseca, 2001, op; cit. Lousada, V. M. Brasília, a construção da nacionalidade. Um meio para muitos fins.Vitória Edufes, 1998,). A concentração de operários que trabalharam na construção da barragem do lago, deu origem à Vila Paranoá, uma das importantes comunidades pesqueiras hoje. (Walter, 2000). A ocupação dos espaços no entorno dos acampamentos não era bem vista pelas firmas construtoras nem pela Novacap. Após a inauguração de Brasília os acampamentos e as vilas que possibilitavam que os trabalhadores morassem perto do seu local de trabalho, passam a ser alvos de “erradicação” (Paviani, 1989). A falta de moradia já era crescente e quando da conclusão das obras da barragem e da usina hidrelétrica10, com a conseqüente retirada das firmas, a população passou a ocupar o local e fi xar cada vez mais a comunidade, marcada pela construção da Igreja São Geraldo, erguida pelos próprios moradores. A distância do Plano Piloto e o número reduzido de moradores são apontados como fatores que permitiram a permanência da vila Paranoá. Os moradores foram utilizados como mão de obra para as residências que começavam a se consolidar nas Penínsulas Norte e Sul nas décadas de 70 e 80. Entre as décadas de 60 e 70 havia mil moradores na Vila Paranoá. Em meados de 70 essa população triplicou. Já em 1985 a população da vila era de 25 mil

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habitantes. Os problemas de infra-estrutura foram aumentando junto com a população. “O abastecimento era insuficiente, não existia urbanização e as moradias e rede de luz eram precárias. O aumento significativo do número de moradores redunda num intenso controle por parte do governo, período em que ocorre o maior número de enfrentamentos com os moradores”. (Fonseca, 2001).

Aldo Paviani se refere à Brasília 1, como o Plano Piloto e um espaço dotado das melhores moradias, os melhores equipamentos e empregos mais bem remunerados, sobrando para Brasília 2 (que seriam as cidades satélites) a falta de estrutura, emprego, moradia, escolas e etc. Embora, como demonstrado em 1989, o contingente populacional estar concentrado na periferia11. A situação da população trabalhadora do Distrito Federal (DF) só se agravou com o passar dos anos. Aumentando rapidamente o seu número, os problemas nunca resolvidos, se aprofundaram. Hoje, são aproximadamente 2,05 milhões de pessoas que vivem em Brasília, uma grande parte sem trabalho, sem moradia (ou vivendo precariamente), sem escolas, saúde ou a mínima infra-estrutura urbana, como esgoto, água e luz.

5. A ocupação urbana e os impactos no ambiente A função pensada para o lago Paranoá, tinha uma estreita relação com o lazer e o bucolismo, como apontava Lúcio Costa. Com o aumento da população que se deslocava para o Planalto Central, a situação dos córregos e nascentes também começou a ser alterada. A ocupação desordenada da bacia do Paranoá, afeta diretamente a qualidade de suas águas. A urbanização causa a impermeabilização do solo, o que impede a penetração da água para alimentar os lençóis freáticos, aumenta as fontes difusas de emissão de poluentes, o que torna difícil seu controle, leva ao lançamento de efluentes pluviais com altas concentrações de poluentes; leva a redução da cobertura vegetal, aumentando a erosão e o assoreamento, além da constante emissão do próprio sistema de tratamento, que não atinge 100% de eficácia,

9 Refere-se ao deputado federal Elias Adaime, do PTB/SC. 10 A Usina Hidrelétrica da barragem do Lago Paranoá começou a ser construída em 1958 e foi inaugurada em 1962. Foi contratada uma empresa estadunidense para a construção e obtido um empréstimo oficial do Eximbank de 10 milhões de dólares. A extensão da barragem é de 630 m e uma altura de 48 m. Tem uma potência instalada de 30.000 KVA. Atende a 2,6% da demanda de energia do Distrito Federal.

11 “Brasília 1, em 1970 detinha 236 mil e 477 habitantes ou 45% da população urbana; em 1987, estima a Codeplan, o centro detém 26% da população ou 427 mil habitantes; Brasília 2, em 1970 detinha 55% e em 1987, 74% ou 1 milhão e 214 mil habitantes.” Aldo Paviani ainda se refere ao que seria Brasília 3, que é o entorno pertencente ao estado de Goiás.(Paviani, 1989).


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restando sempre algum resíduo orgânico (Programas de monitoramento realizados pela Caesb). Em campanha de coleta de lixo realizada na orla do lago, em 2000, a quantidade surpreende: Braço do Torto – 13 toneladas Braço do Bananal – 42 toneladas Braço do Riacho Fundo – 27 toneladas Braço do Gama/Cabeça-de-Veado – 22 toneladas Região do Varjão – 10 toneladas Região do Crespom – 25 toneladas Região do Iate – 18 toneladas Região Central Norte – Pólo 3 – 40 toneladas Total de lixo recolhido – 197 toneladas Além disso, ainda foram recolhidas 42 caçambas de entulhos (Fonseca, 2001). O problema de infra-estrutura sanitária se manifestam além dos problemas de coleta e deposição de lixo, também no destino que será dado aos resíduos líquidos das cidades. O primeiro problema a ser solucionado foi como realizar o tratamento do esgoto. Depois de inúmeras discussões e relatórios, foi decidido, então, construir as duas Estações de Tratamento de Esgoto (ETE), na Asa Norte e na Asa Sul, independentes uma da outra. Mas, devido à opção pelo tratamento secundário12, na inauguração de Brasília, quando a ETE Sul começou a funcionar, com a capacidade de tratamento para 300 mil habitantes, já havia especialistas que apontavam que este tipo de tratamento poderia gerar uma grande proliferação de algas. Em menos de 10 anos o lago já apresentava três principais problemas: eutrofização, assoreamento e a contaminação das águas. A ETE Norte começou a funcionar somente em 1969, mas utilizando a mesma forma de tratamento e agravando assim, os problemas já apontados (Braga Netto, Pedro. In: Fonseca, 2001). A Companhia de Águas e Esgotos de Brasília – Caesb – foi criada em 1969, com o objetivo de dar conta do problema a ser solucionado com relação ao esgoto e à sanidade do lago. Nesse ano, foi contratada uma consultoria para apontar alternativas de tratamentos do esgoto, sendo que a solução mais viável seria o tratamento fora da bacia do Paranoá, com o mesmo sendo conduzido para ser 12 Tratamento secundário consiste no tratamento preliminar, remoção dos sólidos finos sedimentáveis, secagem do lodo, desinfecção e tratamento biológico complementar com a decantação secundária.(Braga Netto, Pedro).

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tratado no ribeirão Cachoeirinha, na bacia do rio Bartolomeu. Mas não foi aceita essa solução, permanecendo a proposta inicial. Em 1978, devido à situação apontada, houve um crescimento exagerado de algas cianófilas13, causando um mau cheiro no lago, incomodando a população. A mortandade de dezenas de toneladas de peixes foi um dos primeiros registros desse problema, tendo como origem a falta de oxigênio da coluna d’água, pela proliferação excessiva das algas. Isso fez com que novas discussões ocorressem em torno do tratamento que seria mais adequado aos resíduos. Nesse ano, a solução adotada foi a utilização de sulfato de cobre como algicida. Foi verificado que o fator limitante para a produção da alga Microcystis é o fósforo. Portanto, um dos esforços a serem empregados, é a redução de fósforo das águas do lago. Desde então, e durante principalmente a década de 80, o lago ficou sob a observação de vários de seus aspectos e em constante monitoramento. Apesar disso, pequenas, mortandades de peixes foram observadas nos anos de 1981, 1982, 1987, 1988, 1989 e 1993. “Em 1997, ainda no Braço do Riacho Fundo, - área identificada como a mais comprometida do Lago Paranoá – o déficit de oxigênio causado pela inversão térmica com ressuspensão de material do fundo, causou a morte de 150 toneladas de peixes, na sua quase totalidade tilápias (Oreochromis niloticus e Tilápia rendalli)” (Fonseca, 2001).

Uma das causas da mortalidade de peixes nesse período é apontada por alguns autores como sendo a repressão da pesca ilegal (à época), por conta da constituição do Pelotão Lacustre, que teria causado uma superpopulação de tilápias nessa localidade (Gorga Neto, 2001). Em seu trabalho, Walter (2001) cita Silva, e Starling & Cavalcanti, que consideram que possivelmente a primeira mortandade de peixes no Braço do Riacho Fundo (junho de 1997), tenha se dado devido a excessiva abundância de tilápias naquela braço, decorrente do aumento da população devido a diminuição da atividade pesqueira. Os principais programas de monitoramento realizados pela Caesb, rotineiramente, são: i) Programa Limnológico, que desde 1976, realiza coletas 13 Microcystis aueruginosa: as algas azuis, algas cianofíceas ou cianobactérias, não podem ser consideradas nem como algas e nem como bactérias comuns. São microorganismos com características celulares procariontes (bactérias sem membrana nuclear), porém com um sistema fotossintetizante semelhante ao das algas (vegetais eucariontes), ou seja, são bactérias fotossintetizantes. Existe uma confusão na nomenclatura destes seres, pois a princípio pensou tratar-se de algas unicelulares, posteriormente os estudos demonstraram que elas possuem características de bactérias. (Probio).


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mensais em cinco pontos do lago e verifica até 12.220 resultados físicos anuais, podendo ser destacadas as análises “(...) indicadoras do grau de enriquecimento nutricional (nitrogênio e fósforo total), a biomassa de algas microscópicas ou fitoplâncton (representada pelos valores de clorofila a) e a transparência da água (relacionada inversamente à produtividade primária).” (Programa de monitoramento – Caesb); ii) Programa de Controle de Floração de Algas (PCFA), realizado desde 1980, com análises semanais e quinzenais em 13 pontos e que avalia a necessidade de utilização de algicida, reduzindo a necessidade de uso e possibilitando a utilização localizada, se necessário, e iii) Programa de Balneabilidade, que desde 1974, faz um mapa semanal fruto da coleta acumulada de cinco semanas consecutivas em quatro principais pontos do lago, que classifica as águas em Próprias (excelente, muito boa e satisfatória) e Impróprias14. Mas, somente na década de 90 é que novas unidades de tratamento de esgoto são inauguradas: as Estações de Tratamento de Esgotos Sul (1993) e Norte (1994) (ETE Norte e ETE Sul)15. A opção de tratamento foi inovadora. Houve uma junção de dois métodos, o que até então não estava aplicada a lagos tropicais com as características do Paranoá. O método sul-africano (biológico)16 e o método europeu (químico)17 foram associados ineditamente. Como o objetivo principal é reduzir o fósforo, isso é feito de duas maneiras: a) controlando os aportes externos, ou seja, as emissões de materiais orgânicos e poluições na bacia e realizando o tratamento dos resíduos nas estações (ETE Sul e Norte) e a emissão do rejeito com baixa quantidade de material orgânico, e b) controlando o aporte interno, através da retirada física do fósforo pelo controle

da população de tilápias18 e a criação controlada de carpas19 em áreas aonde a poluição ainda aponta altos índices, dentro do Programa de Biomanipulação20. Também é utilizada a técnica de manipulação do nível do lago, dentro do Projeto de Manipulação do Tempo de Residência, que se refere ao tempo de permanência da água no lago, ou do seu período de renovação. O impacto causado pela ocupação da bacia do Paranoá pode ser observado na ictiofauna, já que desde a construção do lago foram introduzidas inúmeras espécies de peixes não pertencentes à essa bacia. Em diversas pesquisas realizadas no lago, foi possível acompanhar a alteração da ictiofauna, sendo que assim como aumentou gradativamente o número de espécies nativas, aumentou o número de espécies exóticas. Ainda assim, mesmo que as espécies nativas voltem a ocorrer, muitas não mais retornarão devido à mudança da dinâmica da água, o que altera profundamente o ambiente. Na publicação Olhares sobre o Lago Paranoá, é apresentada uma tabela, que se encontra resumida numericamente abaixo, com as espécies nativas e exóticas em cada braço da bacia do lago, demonstrando a grande biodiversidade existente: Comunidades de peixes da bacia hidrográfica do Rio Paranoá Ribeirão do Gama

36 espécies nativas

5 espécies exóticas

Riacho Fundo

21 espécies nativas

3 espécies exóticas

Ribeirão do Bananal

16 espécies nativas

3 espécies exóticas

Ribeirão do Torto

13 espécies nativas

2 espécies exóticas

Rio Paranoá 17 espécies nativas 6 espécies exóticas Fonte: Olhares sobre o Lago Paranoá, elaborado pela autora.

14 Resolução n. 20 do CONAMA – Conselho Nacional de Meio Ambiente –, datada de 18/06/86. 15 Com o moderno tratamento terciário adotado, foi possível reduzir 70% da carga de fósforo do lago. (Evolução do Lago Paranoá).

18 Oreochromis niloticus e Tilápia rendalli, estas com o objetivo de reduzir a ciclagem de nutrientes.

16 “A remoção biológica de nutrientes encontrava-se em fase de desenvolvimento na África do Sul. Tinha a vantagem de ser um processo econômico e permitir a remoção do nitrogênio juntamente com o fósforo.” (idem)

19 Hypophtalmichthys molitrix, estas com o intuito de, pelo hábito alimentar fi ltrador, reduzir a biomassa de algas.

17 “O tratamento químico, amplamente adotado nos países europeus, consiste na adição de coagulante metálico a efluentes de estação de tratamento de esgotos convencionais (lodos ativados), para remoção de fósforo, o qual é removido juntamente com os flocos formados pelo coagulante mediante a filtração, decantação ou flotação por ar difuso.” (Programa de Despoluição).

20 “A biomanipulação, definida originalmente como qualquer intervenção em um componentechave da cadeia alimentar dos ecossistemas lacustres visando promover melhorias na qualidade de suas águas, representa uma técnica ecológica de manejo cuja implementação tem sido amplamente testada e recomendada, principalmente para auxiliar na recuperação de lagos temperados”. (Programa de Biomanipulação – Caesb).


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Walter (2000), em sua pesquisa, encontrou que 92,8% das pescarias são de espécies exóticas, sendo 84,9% de tilápia nilótica21, 11,1% de carpas22, 2,2 % de tilápia do Congo23, sendo 1% de traíra24, que é uma espécie nativa e 0,8% das demais espécies25. Ainda em 1998 ocorreu uma grande mortalidade de peixes, em torno de 150 toneladas, atribuída principalmente a remoção do fundo por enxurradas, ocasionando ressuspensão de material e conseqüente redução súbita do oxigênio dissolvido. De lá para cá o lago tem apresentado uma relativa estabilidade.

6. Os pescadores do Paranoá Os pescadores do Lago Paranoá fazem parte da população excluída do Distrito Federal. A grande maioria pesca na Vila Telebrasília (52,8%) e Vila Paranoá (22,6%), sendo estes também locais de moradia. São utilizados os espaços situados ao lado da ETE Sul e ETE Norte para o desembarque de pescados, onde foi também encontrada uma concentração de pescadores de 17 e 7,5%, respectivamente, do total de pescadores do lago. A procedência dos pescadores foi diversa, sendo provenientes do Lago Sul em torno de 18%, Paranoá 12%, Ceilândia 6%, Riacho Fundo 5%, Águas Lindas 3%, Santa Maria e Lago Norte 2%, Luziânia, Santo Antônio do Descoberto, Samambaia e Estrutural aproximadamente 1% (Walter, 2000). Portanto verificamos que são, em sua maioria, espaços que se caracterizam como Brasília 2 ou 3, segundo Paviani (1989), ou seja, não fazem parte da região atendida pelas estruturas urbanas. A Vila Telebrasília se iniciou a partir de um acampamento para a permanência dos trabalhadores da construção de Brasília, em 1956. O local tem um histórico de luta de resistência pois desde 1970 existiram diversas tentativas de retirar as famílias que ocupam o local. Nessa década, algumas famílias foram transferidas para Ceilândia e Guará, mas seus barracos logo foram ocupados novamente, embora alguns tenham sido destruídos. Na década de 80 o local cresceu 21

Oreocromis niloticus.

22 Cyprinus carpio 23 Tilapia rendalli 24

Hoplias malabaricus

25 Tucunaré, cascudo, saúba, lambari, branquinha, acará, tamoatá, carpa prateadas e outros. Walter, 2000.

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consideravelmente na perspectiva de regularização. Em 89 um grupo de trabalho, criado pelo GDF, orientou a imediata fi xação do Acampamento. Em 1991, apesar de uma lei ter sido promulgada na Câmara Legislativa para a fi xação orientada do Acampamento, o GDF não a cumpriu alegando que a fixação traria danos ao ambiente e que não estava prevista no tombamento da cidade. Algumas famílias foram transferidas para Samambaia e em 92 para Samambaia e Santa Maria. Outras foram para o Riacho Fundo, e, embora 350 famílias tenham resistido e ganhado o direito de permanecer na área, nesse período mais de 500 barracos foram destruídos. Em 1995 mais um EIA/RIMA é encomendado e em 23 de novembro de 1998 com a aprovação do Decreto n. 19.807, foi aprovada a fi xação do acampamento. O Paranoá, que começou em 1957 (ou 1958), como um acampamento para abrigar os trabalhadores que vieram construir a barragem, teve o Decreto n. 4.545 de constituição ainda em 10/12/1964. Depois da barragem construída, em 1960, foi permitida a permanência desses trabalhadores no local. Os imigrantes não paravam de chegar, aumentando a vila. O Governo, em 1989, ratificando o Decreto anterior, criou um núcleo urbano onde transferiu inúmeras famílias da antiga vila e de outras desocupações. No ano de 1991, a população era de 39.075 habitantes, em 1996, havia 47.155 habitantes. Em 1998, 49.615 e em 2000, 54.928 habitantes. (Fonseca, 2001). O Paranoá tem se apresentado como o local de maior concentração de pescadores profissionais. A produtividade do Braço da Barragem era igual ou pouco inferior às áreas mais produtivas que são o Braço do Riacho Fundo e o do Bananal. O Braço do Torto, que seria o terceiro local de maior importância, tinha todos os seus pescadores provenientes da vila Paranoá. “Era tão importante que a feira na Vila Paranoá era o mais importante comércio de peixes do lago. Depois que virou cidade, sua importância diminuiu muito” (Walter, 2000).

Uma outra região de concentração de pescadores é ao lado da ETE Sul, chamada de Buraco. É um local de trabalho dos pescadores, de desembarque de pescado e de guarda dos materiais de pesca. Antigamente era utilizada a Vila da Telebrasília para essas atividades, que passou a ser realizada nesse local sem se saber quando nem porque (idem). Ainda na ETE Norte existe uma pequena quantidade de pescadores, que ficaram prejudicados com a duplicação da L4, que “está situada sob a área utilizada por esse grupo de pescadores”. Walter (2000) ainda informa que existem outros quatro pontos de desembarque no Braço do Bananal, mas recomenda


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maiores estudos para essa área devido ao desembarque ocorrer de maneira difusa e também pela importância que a área tem em termos de produtividade. Quanto ao número de pescadores que atuam no lago, Walter (2000) chega ao número de 55 pescadores profissionais ativos, mas faz algumas considerações de que o número está decaindo principalmente desde 1991 devido à fiscalização mais rígida. Em um relato oral do Sr. Sérgio Leitão, fiscal da Fundação Zoobotânica, entrevistado no trabalho de Walter (2000), o mesmo afirma que deveria existir em torno de 200 a 250 pescadores em atividade quando a Sudepe atuava (entre 1978 a 1981) e que este número se reduziu para 120 pescadores quando a Fundação Zoobotânica passou a atuar, no período de 1982 a 1989. Em um trabalho apresentado no Encontro dos Engenheiros realizado em Brasília em 1985, é apresentada uma estimativa da Sudepe de que “havia pelo menos 100 famílias vivendo exclusivamente da pesca no lago Paranoá” (Walter, 2000, op cit. Dornelles & Dias Neto, 1985). Essa diminuição é atribuída ao aumento da fiscalização quando a mesma passou para a Polícia Militar, em 1991. Segundo Walter (2000), dos 53 pescadores entrevistados, 16, ou 30,2%, afirmam que abandonaram a pesca devido à fiscalização. A mesma autora estima que em 1999 quando houve a liberação da pesca no Lago Paranoá, havia 18 pescadores em atividade em todo o lago. Com a liberação esse número foi aumentando gradativamente, e em 2000 já haviam 70 pescadores credenciados. Mas, considerando que muitos pescadores pescam junto a outros, não estando aqueles necessariamente credenciados e considerando a estimativa de pescadores ilegais, Walter (2000) chega à conclusão que estariam exercendo a atividade na época em torno de 92 pescadores. Alguns informam existir uma grande demanda para o credenciamento e legalização da pescaria. “Em dezembro de 2000 existiam aproximadamente 250 pessoas interessadas em participar do curso de qualificação profissional, com o intuito de receber o credenciamento do IBAMA/SEMATEC (Fernando Starling, CAESB – contato pessoal).” (Gorga Neto, 2001).

Existe uma divergência quanto ao número de pescadores profissionais que atua no lago. Nas entrevistas realizadas com o Sr. Geraldo Angelo, presidente da Coopelap26, ele informa que o número atual de pescadores do lago não é conhecido, sendo que existem entre 80 a 100 sócios. 26 Cooperativa dos Pescadores do Lago Paranoá, cuja proposta de constituição serviria para atender a demanda de pescado beneficiado no DF e entorno. Trataremos melhor desse tema no item Organização dos Pescadores do Lago Paranoá.

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Já o Ten. Ítalo Soares Tomaz, comandante do Pelotão Lacustre, em entrevista, reafirma que o número é impreciso e fala em 48 pessoas sócias da cooperativa, sem ter muita certeza desse número. Em reunião chamada pelo Pelotão Lacustre e apoiada pela Coopelap, no dia 05/03/07, havia 24 pescadores, com a presença de duas mulheres pescadoras27. Segundo manifestação deles, não são muito mais que esses os pescadores legalizados que atuam no lago, sendo que eles mesmos informaram ao Pelotão alguns pescadores que atuam clandestinamente no lago, alguns informando precisamente seus nomes, outros informando o local e a hora de pescaria, geralmente pescadores que usam a rede batida28, apetrecho de pesca proibido no lago.

7. A situação histórica dos pescadores profissionais A condição histórica dos pescadores profissionais, os trás a uma situação caracterizada por um processo de exclusão. Consideremos que se trata do Distrito Federal aonde a história de repressão, injustiça e maus tratos para com os trabalhadores foi constante desde a sua conformação, sendo esse fato raiz de muitos dos problemas hoje vividos pela população, em especial a da periferia do Plano Piloto. A procedência dos pescadores acompanha o ritmo dos imigrantes do Distrito Federal com relação à região de origem, mas difere com relação aos estados. Dos pescadores entrevistados em Walter (2000), 64,1% eram provenientes do Nordeste (24,53, do Ceará, e 18,87% do Piauí) 32,1% do Centro-Oeste e 3,8% do Sudeste. 19,2% são nascidos no Distrito Federal, 11,5% são originários de Varjota (CE) e 9,6% de Teresina (PI). Entre os anos de 1991 e 1996 os imigrantes eram 49,31% nordestinos (24,29% do Piauí, 24% da Bahia e 21,12% do Maranhão) 23,29 da região Sudeste, 15,56% do Centro-Oeste, 6,51% nortistas e 3,22% sulistas (Fonseca, 2001). 27 Das duas pescadoras presentes, somente uma tinha o Registro Geral da Pesca, documento de identificação do pescador profissional, emitido pela Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca da Presidência da República – Seap/PR. 28 “No Lago Paranoá, as redes utilizadas na pesca de batida possuem de um a três panos emalhados uns nos outros, podendo ter diferentes malhas cada, com tamanho médio de malha por pano de 9,4 cm entre nós comprimento total médio de 142,2 m e altura média de 1,99 m. Nesta arte de pesca, os pescadores soltam a rede e batem com um vergalhão de ferro de dois metros, uma vara ou com o próprio remos ao redor dela, retirando-a posteriormente. Cada operação desta é chamada de “batida” e em média, os pescadores dão seis batidas em uma viagem de pesca.” (Walter, 2000)


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Com relação à casa própria, dos 53 pescadores entrevistados, 77,4% declararam que vivem em casa própria, muitos deles declarando que viviam em regiões de ocupação que foram regularizadas, 9,4% pagavam aluguel, 5,7% moravam em casas de parentes, 5,7% viviam em casas em regiões ocupadas. Todos 9,4% que pagavam aluguel e 5,7% que moravam em casas de parentes são do Paranoá. As fontes de energia das moradias dos pescadores foram 94,3% elétrica, 3,8% lampião ou vela, 1,9% gerador comunitário. Como combustível para cocção 96,2% usavam gás de botijão e 3,8% a lenha. Com relação ao abastecimento de água, 88,5% era proveniente de rede pública, 1,9% de poço artesiano, 3,8% de poço normal, 1,9% de córrego e mina d’água. A água para beber foi declarada filtrada em 82,3% residências, 17,3% direto da torneira, 9,6 fervida e 1,9%, comprada. Somente 3,9% das residências não possuíam banheiro, sendo que a captação dos dejetos era 62% feita pela rede pública, 14% através de fossa séptica, 22% por fossa rudimentar e 2% emitido direto na vala. Com relação a utilização das águas o lago, 63,5% utilizavam para o lazer, 21,1% utilizavam como fonte eventual de água para beber ou para alimentação, 13,5% utilizava para banhos higiênicos e 5,8% para a deposição de resíduos. Ainda “43,4% dos pescadores limpam o peixe no barco ou nas margens do lago, jogando seus rejeitos na água” (Walter, 2000). O pescado proveniente do lago é um fator importante de segurança alimentar, visto que esteve presente na alimentação de todas as famílias e “é consumido por 61,2% das famílias mais de três vezes por semana, em média.” (idem). Segundo estudos realizados durante o acompanhamento de um ano de pescarias (março de 1999 a março de 2000), no que diz respeito à produtividade mensal por pescador, essa foi de 224,7 Kg, num total de 62,5 toneladas. Os estudos confirmam a produtividade do braço do Riacho Fundo que contribuiu com 52,9% da captura total. Na área central foram capturadas 17,9% do total e no Gama, 16,8% das capturas. Em se tratando de comunidades pesqueiras, a que mais pescou foi a Vila Paranoá com 49,9%, o Buraco com 38,4% e a Telebrasília, com 10,9% da captura total. No que diz respeito à renda mensal bruta, o que foi constatado por Walter (2000) é que, comparativamente a outros reservatórios e outras atividades, a pesca se mostrou ser economicamente viável. Na época do começo do estudo a pesca ainda não era liberada, sendo considerada uma atividade clandestina. De toda forma, pelo curto período em que o estudo conviveu com a pesca liberada, não foi possível constatar mudanças por essa razão. A principal característica da comercialização do pescado, diferente da maioria dos locais de ocorrência da pesca artesanal no Brasil, é o pescador “ser o dono de sua própria produção”. Como ele não depende de um atravessador para comercializar seu produto nem financiar sua produção, ele mesmo pode optar por

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vender ao atravessador ou vender direto ao consumidor. Isso tem lhe conferido um preço maior obtido pelo pescado, comparado a outros reservatórios. O preço recebido pelos intermediários (atacado) foi em média R$ 1,23 e o preço pago pelo consumidor (varejo) foi de R$ 2,12. Não pode ser considerado um bom indicador de renda mensal justamente pela característica instabilidade da atividade. Para verificar a renda da pesca como atividade única do pescador, Walter (2000) escolheu entre os entrevistados, seis pescadores, dois de cada comunidade, que pescavam regularmente o ano todo. Foi estimada uma renda mensal que variou entre R$ 557,50 a 1.086,83, dependendo da forma de pescaria, do acordo com o tripulante e a capacidade de comercialização. Com relação às comunidades, a maior renda mensal bruta foi da Vila Paranoá, atingindo R$ 651,93, a do Buraco, que foi de R$ 530,14 e a da Vila Telebrasília, que atingiu R$ 423,71, significativamente menor que as demais (idem). A renda per capta por Região Administrativa em 1997, era de 4,6 SM no Lago Paranoá, a renda mais baixa, contrastada na outra ponta pelo Lago Sul com 65,76 SM (Fonseca, 2001). Com relação à participação das mulheres na pesca, não é predominante. Walter (2000) encontrou somente uma mulher pescadora, “proprietária de seu material e de sua produção e cujo marido não exerce a atividade. Assim, foram entrevistados 52 homens e uma mulher”. Em contato com os pescadores, fui informado de ter somente uma mulher com a carteira da pesca e que trabalha junto ao marido, embora existam mulheres que acompanham a atividade, remando ou pescando e outras se envolvem diretamente limpando e vendendo o pescado (Walter, 2000 e Comunicação oral, 2007). “Aqui, antes da fiscalização, tinha muita mulher que participava da pesca: ou remava, ou pescava. Eu conhecia umas cinco que jogavam a tarrafa que era uma beleza. Ah! Tinha uma outra, que o marido comprava peixe de mim e que, quando o cabra morreu, ela passou a viver da venda do peixe, encostava lá em casa de kombe. Muita mulher remava para os maridos, a minha até que tentou remar, mas não levava jeito”. (Sr. Biza, Fevereiro de 2000). 29

No que diz respeito a dedicação à atividade da pesca, dos 39,6% dos pecadores ativos, 47,6% (18,9% do total) eram só pescadores, 9,5% (3,8% do total) eram também comerciantes, 9,5% (3,8%) eram assalariados e 33,3% (13,2% do total) eram autônomos. Dos pescadores que eram parcialmente ativos, dos 32,1% do total, 40% eram desempregados (12,8% do total), 6,7% eram comerciantes (2,1% 29

Walter, 2000


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do total), 6,7% eram assalariados (2,1%), e 46,7% eram autônomos (15% do total). Dos pescadores inativos, que somaram 28,3% do total, 17,6% eram desempregados (5% do total), 17,6% eram comerciantes (5%), 23,5% eram assalariados (6,6%) e 41,2% eram autônomos (11,7%). (Walter, 2000). Uma tabela sobre as comunidades a que pertencem os pescadores, as artes de pesca utilizadas, o local de comercialização, o preço de venda, a sua tripulação e a forma de pagamento estão no Anexo I. Nela podemos constatar que a maioria (16/22) comercializa seu próprio pescado, obtendo um preço maior de venda, e que também a maioria (15/22) utiliza o sistema de partilha da pescaria, já que pescam geralmente em duplas, dividindo pela metade o que foi capturado. Essa característica da pesca profissional do Lago Paranoá, tem permitido a sobrevivência das famílias dessa atividade, mesmo que conjugada com outras, fazendo parte de uma estratégia mais ampla de sobrevivência. Estes dados aproximam a caracterização dos pescadores do Lago Paranoá à definição de Diegues (2004) de pequena produção mercantil, sendo ela de pescadores-lavradores ou ampliada, ou seja, de pescadores artesanais.

8. A pesca no Lago Paranoá A pesca comercial foi proibida em 1966 pelo Governo Federal, por conta principalmente da segurança nacional, mas isso não impedia que cerca de 100 famílias de pescadores fizessem do lago sua principal fonte de trabalho, clandestinamente. Em 1990, com a criação do Ibama, esse passa a responsabilidade da fiscalização à Polícia Federal, que criou o Pelotão Lacustre que coibiu a pesca eficientemente, quase chegando à sua extinção. O Lago Paranoá, durante quase três décadas foi receptor dos efluentes das residências construídas ao seu entorno, em grande maioria da classe alta de Brasília, o que gerou um intenso processo de eutrofização de suas águas e uma proliferação das espécies de tilápia existentes (Oreochromis niloticus e Tilapia rendalli). Além desses efluentes, os aportes dos contribuintes da bacia do Paranoá, que passa a ter suas margens cada vez mais ocupadas descontroladamente, também é um importante fator que contribuiu no processo de eutrofização do lago. Para se ter uma idéia, de 1991 a 2000, a taxa média geométrica de crescimento anual foi de 51,88% no Recanto das Emas, 24,96% no Riacho Fundo e 15,56% em São Sebastião (Fonseca, 2001)

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Em 1989 a Companhia de Saneamento do Distrito Federal passa a estudar e pesquisar este fenômeno através do Programa de Biomanipulação que tem por objetivo “principalmente (para) auxiliar na recuperação de lagos temperados” (Programa de Manipulação). A idéia foi que, através do envolvimento dos pescadores do lago, pudesse haver um monitoramento das águas e biomassa existentes e constituir um processo de reversão da situação crítica em que se encontravam as águas do Paranoá. Em 1998 é feito um estudo, encomendado pela Caesb utilizando técnicas de hidroacústica que constatou uma biomassa de 1.400 t. Em 199930 a pesca é liberada com o intuito de ser uma “alternativa viável para o controle do excedente de tilápias e gerar emprego, renda e proteína barata as comunidades carentes do Distrito Federal” (Walter, 2000). O projeto também serviu para envolver os pescadores no processo já que “a função da pesca deixaria de ser somente uma profissão, mas teria um papel sócio-ambiental(sic)” (idem). Foram realizadas reuniões nos locais dos pescadores para estimular a sua participação no projeto. Em 1999 foi realizada o primeiro curso de qualificação para 100 pescadores através da Secretaria do Trabalho, Emprego e Renda do Distrito Federal (Seter), recursos do Ministério do Trabalho, excecutado pelo Senar e coordenado pela Caesb e Universidade Católica de Brasília (UCB). No curso, se credenciaram para exercer a pesca 72 pescadores, iniciando em fevereiro de 2000. “Desta forma, a pesca profissional no Lago Paranoá preenche todos os requisitos necessários para ser utilizada como medida socioambiental: captura centrada em espécies exóticas que afetam negativamente a qualidade da água; gera empregos diretos e indiretos para a população carente do Distrito Federal, é rentável economicamente e fornece proteína de alta qualidade e a preços baixos para populações carentes desta região A liberação da pesca profissional do Lago Paranoá foi, portanto, uma decisão acertada dos órgãos ambientais do Distrito Federal e do Governo Federal, que possibilitará a abertura de novos modelos de gestão social, econômica, ecológica, cultural e politicamente sustentáveis.” (Programa de Valorização da Pesca Profissional – Caesb).

30 Revogada a Portaria Sudepe n. 229, de 10 de outubro de 1966 pela portaria Ibama n. 106/99 de 06 de dezembro de 1999 (Anexo II).


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9. A organização dos pescadores Devido à atividade no Lago Paranoá ter sido proibida durante muitos anos, não existe nenhuma colônia nem associações de pescadores organizada no entorno do Lago. Com o advento da liberação da pesca, em 1999, e a atenção voltada para o setor e a potencialidade de produção, surgiu a proposta de organizar a Cooperativa de Pescadores do Lago Paranoá – Coopelap. A idéia da cooperativa nasce vinculada totalmente a idéia da construção de uma estrutura de beneficiamento e comercialização do pescado. Devido a falta de discussão e envolvimento dos pescadores na construção da idéia e da proposta de cooperação, onde a estrutura de beneficiamento deveria ser uma conseqüência do processo, e não a sua razão, é que até os dias de hoje a cooperativa não se firmou como uma entidade forte e representativa dos pescadores. Problemas desde o local a ser instalado o entreposto, até a taxa a ser paga pelos sócios e a eleição de diretoria, têm causado divergências entre seus sócios31 . Mas, é em torno da cooperativa que está girando a proposta de ampliação da área de pesca, agora sendo reivindicado a zona central do lago. Já houve um processo de discussão para ampliação das áreas liberadas para exercício da atividade pesqueira. Esse processo foi fruto de diversas discussões e do 2º Workshop de Ordenamento Pesqueiro e Gestão Participativa da Pesca Profissional no LP (Anexo V). Mas, devido a extinção da Secretaria de Recursos Hídricos, pelo atual governo do Distrito Federal, a minuta da portaria se encontra sem encaminhamento. Portanto, o que existe hoje no ordenamento do lago é um “acordo” entre os pescadores e a fiscalização, o que levou o Ten. Ítalo afirmar em reunião com os pescadores que “tem acordo, mas não tem lei”.

10. Conclusão Os pescadores do lago Paranoá, por serem oriundos do processo excludente de constituição do DF, fazem parte da parcela excluída da população. Têm como característica a pertença dos seus meios de produção e o domínio da comercialização. São importantíssimos na segurança alimentar da cidadessatélites, inclusive pelo fato de serem os pescadores da própria comunidade que vendem o peixe para os vizinhos, acontecendo um ato que extrapola a venda pura e simplesmente para a obtenção de lucro, visto que mesmo se não houver dinheiro a ser pago, o peixe não deixará de ser vendido. 31

Reunião realizada dia 05/03/07 no Pelotão Lacustre do Batalhão de Polícia Ambiental.

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“Se o freguês não tem R$2,50, vendo pelo que ele tiver e se ele só pode me pagar depois, vendo fiado, pois eu que pesco e as pessoas não podem ficar sem comer. Sr. Zé Feijão, fevereiro de 2000”. (Walter, 2000).

A comercialização é feita 84,9% das vezes diretamente aos consumidores, 69,8% em feiras e 49,1% nas ruas das cidades-satélites e municípios de Goiás. Foram citadas 25 feiras de venda de pescado, sendo a mais importante a de Pedregal (GO). Mesmo com a existência de atravessadores, como o comércio se dá localmente, entre o pescador e o consumidor, dificilmente haverá mais de dois atravessadores, garantindo assim um preço melhor ao pescador e uma garantia de preço mais baixo ao consumidor. Essa relação de proximidade entre os pescadores e os consumidores supera as dificuldades de estrutura que existem para a pesca artesanal no DF. Com relação à liberação da pesca, é importante observar que o processo motivador foi a necessidade de retirada das tilápias do lago, não sendo nunca considerado desde 1966 a atividade profissional e sua importância social para as comunidades do entorno ao Plano Piloto. Muito pelo contrário, os pescadores viveram anos exercendo a atividade clandestinamente, sofrendo repressões e perda de petrechos, canoas e produtos e ainda sendo hostilizados pela população de classe mais alta que vive na orla do lago. Apesar disso, a liberação da pesca só se deu quando houve a recomendação para reduzir drasticamente a biomassa de tilápia existente no lago. Com relação à liberação da pesca somente de tarrafas, Walter (2000) faz uma crítica a essa determinação pelo fato de sua pesquisa ter apontado a pesca de rede batida como menos predatória e tendendo a capturar peixes maiores. Sugere que devido a esse fator, por ser uma pescaria comum no lago antes da liberação, é que após seis meses de liberação, dos 460 pescadores possíveis de se credenciar, somente 72 o fizeram. Com relação à organização, a forma imposta da cooperativa não lhes permitiu aprofundar o tema da cooperação e nem construir ou acumular conhecimento no processo (que não houve), fazendo com que nas primeiras dificuldades houvesse uma forte desarticulação da idéia. Mesmo assim, é a única força organizativa da categoria e quem tem se feito representar nos fóruns de discussão da pesca e na relação com os poderes instituídos, como o Pelotão Lacustre, a Seap/Pr, o GDF, Universidade e etc. Portanto, apesar de todas as dificuldades existentes, os pescadores artesanais vêm resistindo no sentido de continuarem a exercer essa atividade que faz parte da cultura, além de ser uma fonte de proteína, e geração de emprego e renda para suas famílias e para a comunidade.


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http://www.lagoparanoa.com/biomanipulacao.htm, acesso em 9/04/2007. http://www.lagoparanoa.com/evolucaodolago.htm, acesso em 09/04/07. http://www.lagoparanoa.com/pdf/Programa_de_Despoluicao.pdf, acesso em 04/04/2007. http://www.lagoparanoa.com/pdf/Programas_de_Monitoramento.pdf acesso em 09/04/07. http://www.lagoparanoa.com/pescaprofissional.htm, acesso em 03/04/2007.

STARLING, Ferando, 2003. Monitoramento da pesca ecológica da tilápia como estratégia de manejo para a preservação da qualidade da água de represa urbana de usos múltiplos (Lago Paranoá, Brasília-Df). 22º Congresso Brasileiro de Engenharia Sanitária e Ambiental, Joinvile, SC. VASCONCELLOS, Marcelo, DIEGUES, Antonio Carlos S. & SALES, Renato Rivaben de . Limites e Possibilidades na Gestão da Pesca Artesanal Costeira. In: COSTA, Adriane L. (ed.), Nas redes da Pesca Artesanal, Brasília, Ibama, no prelo WALTER, Tatiana e PETRERE, Jr, M, 2007. Small-scale urban reservoir fischeries of lago Paranoá, Brasília (DF), Brazil. Braz. Jornal Biologia 67 (1): 631-637.

http://www.codeplan.gov.br, acesso em 29/03/2007. http://www.infobrasilia.com.br/ acesso em 24/03/07.

WALTER, Tatiana e PETRERE, Jr, M, 2000. Ecologia da Pesca Artesanal no Lago Paranoá – Brasília – DF. Dissertação de Mestrado. São Carlos, USP.


26

A Constituição Social dos Pescadores Artesanais do Lago Paranoá: Exclusão, Organização e Resistência

WALTER, Tatiana e PETRERE, Jr, M, 2006. Os movimentos social dos pescadores artesanais no Brasil; uma reflexão teórica. UFRRJ, Rio de Janeiro.

12. ANEXOS Anexo I •

Características da pesca exercida pelos pescadores de cada comunidade. Pescadores Comunidade A rte de pesca A

Buraco

B

Buraco

C

Buraco

D

Buraco

E

Buraco

F

Buraco

G H I J K L

Paranoá B Paranoá B Paranoá B Paranoá B Paranoá B Paranoá B

M

Telebrasília

N

Telebrasília

O

Telebrasília

P Q

Telebrasília Telebrasília

R

Telebrasília

S T

Telebrasília Telebrasília

Batida/ tarrafa Batida/ tarrafa Batida/ tarrafa Batida/ tarrafa Batida/ tarrafa Batida/ tarrafa atida atida atida atida atida atida Tarrafa/ Espera Tarrafa Tarrafa/ Espera Tarrafa Tarrafa Batida/ Espera Tarrafa Tarrafa

U

Telebrasília

V

Telebrasília

(Walter, 2000)

Comércio

Preço de venda

atravessador

1,23

parceria 5

0% da captura

atravessador

1,00

parceria 5

0% da captura

atravessador

1,45

parceria 5

0% da captura

rua

3,00

parceria 5

0% da captura

rua

2,00

parceria 5

0% da captura

rua

2,50

parceria 5

0% da captura

atravessador atravessador feira rua rua rua

1,20 a 1,30 a 2,00 a 2,00 2,50 2,00

judante judante judante parceria 5 ajudante 3 filho

30% em dinheiro 30% em dinheiro R$200,00 mensais 0% da captura 0% em dinheiro Nada

atravessador

1,00

parceria 5

0% da captura

arceria

50% da captura 0% da captura

Tripulação

Pagamento

feira

3,00 p

feira

1,50

parceria 5

feira feira

2,00 1,50

parceria parceria

50% da captura 50% da captura

feira

2,50

sozinho

Nada

feira feira

2,00 2,50

Tarrafa

feira

3,00

Tarrafa

feira

2,50

parceria sozinho ajudante/ parceria parceria

50% da captura Nada R$5,00 por lata/ 50% da captura 50% da captura


A Constituição Social dos Pescadores Artesanais do Lago Paranoá: Exclusão, Organização e Resistência

12. ANEXOS

Anexo II

Anexo I

PORTARIA Nº 106/99 DO IBAMA, DE 06 DE DEZEMBRO DE 1999. INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS - IBAMA

Características da pesca exercida pelos pescadores de cada comunidade. Pescadores Comunidade A rte de pesca A

Buraco

B

Buraco

C

Buraco

D

Buraco

E

Buraco

F

Buraco

G H I J K L

Paranoá B Paranoá B Paranoá B Paranoá B Paranoá B Paranoá B

M

Telebrasília

N

Telebrasília

O

Telebrasília

P Q

Telebrasília Telebrasília

R

Telebrasília

S T

Telebrasília Telebrasília

Batida/ tarrafa Batida/ tarrafa Batida/ tarrafa Batida/ tarrafa Batida/ tarrafa Batida/ tarrafa atida atida atida atida atida atida Tarrafa/ Espera Tarrafa Tarrafa/ Espera Tarrafa Tarrafa Batida/ Espera Tarrafa Tarrafa

U

Telebrasília

V

Telebrasília

(Walter, 2000)

Comércio

Preço de venda

atravessador

1,23

parceria 5

0% da captura

atravessador

1,00

parceria 5

0% da captura

atravessador

1,45

parceria 5

0% da captura

rua

3,00

parceria 5

0% da captura

rua

2,00

parceria 5

0% da captura

rua

2,50

parceria 5

0% da captura

atravessador atravessador feira rua rua rua

1,20 a 1,30 a 2,00 a 2,00 2,50 2,00

judante judante judante parceria 5 ajudante 3 filho

30% em dinheiro 30% em dinheiro R$200,00 mensais 0% da captura 0% em dinheiro Nada

atravessador

1,00

parceria 5

0% da captura

arceria

50% da captura 0% da captura

Tripulação

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Pagamento

PORTARIA Nº 106/99, DE 06 DE DEZEMBRO DE 1999.

feira

3,00 p

feira

1,50

parceria 5

feira feira

2,00 1,50

parceria parceria

50% da captura 50% da captura

feira

2,50

sozinho

Nada

feira feira

2,00 2,50

Tarrafa

feira

3,00

Tarrafa

feira

2,50

parceria sozinho ajudante/ parceria parceria

50% da captura Nada R$5,00 por lata/ 50% da captura 50% da captura

A PRESIDENTE DO INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS – IBAMA, no uso das atribuições previstas no art. 17, inciso VII, da Estrutura Regimental aprovada pelo Decreto nº3.059, de 14 de maio de 1999, e art. 83, inciso XIV, do Regimento Interno aprovado pela portaria GM/MINTER nº 445, de 16 de agosto de 1989, e tendo em vista as disposições do Decreto-lei nº 221, de 28 de fevereiro de 1967, e das Leis nºs 6.938, de 31 de agosto de 1981, e 9.605, de 12 de fevereiro de 1988; e Considerando a necessidade de adoção de medidas visando a remoção do excedente populacional do Lago Paranoá, e Considerando o que consta no processo IBAMA nº02001.002053/98-21, Resolve: Art. 1º - Permitir a pesca profissional, no período de 01 de dezembro de 1999 a 31 de dezembro de 2001, somente em dois trechos do Lago Paranoá, Distrito Federal: I – braço do Riacho Fundo, da sua foz até a Ponte Costa e Silva, II – braço do Bananal, da sua foz até uma linha imaginária que parte do Centro Olímpico da Universidade de Brasília até a margem oposta, e cujos pontos estão indicados por placas. Art. 2º - Permitir, apenas a pesca embarcada, nos trechos definidos no artigo anterior, com a utilização dos seguintes aparelhos de pesca: I – tarrafa com malha igual ou superior a 60 mm (sessenta milímetros) entre nós opostos, da malha esticada; II – linha de mão, caniço simples e caniço com molinete. § 1º Os pescadores profissionais registrados no IBAMA receberão autorização especial de pesca a ser emitida pelo Órgão Ambiental do Distrito Federal, autorizações estas limitadas a um total de 460 (quatrocentos e sessennta).


A Constituição Social dos Pescadores Artesanais do Lago Paranoá: Exclusão, Organização e Resistência

28

§ 2º - O Órgão Ambiental do Distrito Federal estabelecerá os critérios para concessão da autorização especial de pesca referida no parágrafo anterior.

ANEXO III

Art. 3º - Aos infratores da presente Portaria serão aplicadas as penalidades previstas no Decreto-Lei nº 221, de 28 de fevereiro de 1967, na Lei nº 9605, de 12 de fevereiro de 1998 e legislação complementar.

PORTARIA DE 06 DE JANEIRO DE 2000, DA SECRETARIA DE MEIO AMBIENTE, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO DISTRITO FEDERAL (SEMATEC)

Art. 4º - Esta Portaria entra em vigor na data de sua pubilcação, revogadas as disposições em contrário, especialmente a Portaria SUDEPE nº 229, de 10 de outubro de 1966.

O SECRETÁRIO DE MEIO AMBIENTE, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO DISTRITO FEDERAL no uso de suas atribuições regimentais e tendo em vista o artigo 105 inciso III da Lei Orgânica do Distrito Federal e considerando o disposto no §1º e §2º do Art 2º da Portaria Nº 106/99 de 06 de dezembro de 1999 do IBAMA resolve

MARÍLIA MARRECO CERQUEIRA

I – O exercício da pesca profissional no Lago Paranoá permitida mediante Portaria nº106/99 do IBAMA dependerá de prévia autorização especial emitida pelo Instituto de Ecologia e Meio Ambiente do Distrito Federal – IEMA, sem prejuízo de outras autorizações e/ou licenças legalmente exigíveis

Publicado no Diário Oficial de 07.12.99 Seção 1 Página nº34 En. 07 de Dez de 1999

II – As autorizações especiais de pesca no lago Paranoá, de que trata o § 1º do Art. 2º da Portaria Nº 106/99 do IBAMA serão concedidas aos pescadores que atenderem as seguintes exigências a) Apresentar requerimento de autorização fornecida pelo IEMA; b) Apresentar registro de pescador profissional emitido pelo IBAMA; c) Apresentar documento que comprove a conclusão do I Curso de Qualificação Profissional para pescadores coordenado pela Universidade Católica de Brasília e CAESB III – As autorizações de que trata o item II terão validade por dois anos IV – A atividade de pesca profissional no Lago Paranoá deverá, conforme disposto nos Art. 1º e Art. 2º da Portaria Nº 106/99 do IBAMA atender as seguintes exigências: a) se limitar a dois trechos do Lago Paranoá: braço do Riacho Fundo, da sua foz até a ponte Costa e Silva e braço do Bananal, da sua foz até uma linha imaginária que parte do Centro Olímpico da Universidade de Brasília até a margem oposta e cujos os pontos estão indicados por placas; b) se restringir a utilização dos seguintes aparelhos de pesca: tarrafa com malha igual ou superior a 60 mm (sessenta milímetros) entre nós opostos de malha esticada, linha de mão, caniço simples e caniço com molinete


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A Constituição Social dos Pescadores Artesanais do Lago Paranoá: Exclusão, Organização e Resistência

ANEXO IV V – Os pescadores que descumprirem as normas estabelecidas na legislação ambiental em vigor terão a autorização especial de pesca no Lago Paranoá cassada, ficando, ainda, sujeitos as demais penalidades previstas na Lei Nº 41/89 e legislação vigente VI – A atividade permitida na Portaria Nº106/99 do IBAMA, limitada aos braços do Riacho Fundo e do Bananal no Lago Paranoá , deverá ser avaliada quanto a interferências e compatibilização com os demais usos do lago, bem como quanto aos impactos ocasionados ao meio ambiente e à qualidade das águas do lago, no prazo de 6 meses, quando serão revistas as condições estabelecidas no item II desta Portaria VII – Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário

ANTONIO LUIZ BARBOSA

LAUDO SOBRE A QUALIDADE DO PESCADO DO LAGO PARANOÁ, EMITIDO PELA SECRETARIA DE SAÚDE DO DISTRITO FEDERAL DF – SECRETARIA DE SAÚDE INSTITUTO DE SAÚDE DO DISTRITO FEDERAL – ISDF Ofício No 027/99-GAB-GBQ

Brasília-DF, 26 de abril de 1999.

Senho Diretor, Em 1995-1997 o Instituto de Saúde em conjunto com a CAESB, UnB, Reserva Ecológica do IBGE, executou o projeto de pesquisa – “Avaliação da Qualidade Sanitária do Pescado do Lago Paranoá (Brasília – DF)”. Este trabalho apresentou as seguintes conclusões: 1 - Quanto às contaminações por metais pesados e resíduos de pesticidas, não houve nenhuma condenação, sendo 100% das amostras analisadas estavam de acordo com as legislações vigentes. 2 – Quanto à contaminação microbiológica, os peixes do Lago Paranoá apresentaram-se com índices de Staphilococcus aureus e Salmonelas com 100% aprovados pela legislação vigente. Quanto aos índices de coliformes fecais, 94% apresentaram-se aprovados e 6% apresentaram-se em condições higiênicosanitárias insatisfatórias, porém não considerados impróprios para o consumo, segundo a legislação. O trabalho recomendou, que a população seja orientada a consumir o peixe sempre cozido. Esta recomendação é válida uma vez que nem sempre temos dados atualizados sobre as condições sanitárias dos peixes. É importante que os órgãos do governo a divulguem e é também uma segurança para os promotores do referido evento, quanto à saúde da população consumidora. Aproveitamos o ensejo para expressar nossos protestos de distinta consideração, e nos colocamos à disposição para os esclarecimentos que se fizerem necessários.


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A Constituição Social dos Pescadores Artesanais do Lago Paranoá: Exclusão, Organização e Resistência

NELMA DO CARMO FARIA GERÊNCIA DE BROMATOLOGIA E QUÍMICA GERENTE

ANEXO V

Mapa da Área Sugerida para Liberação da Pesca Profissional

Ilmo. Sr. Doutor Fernando Fonseca M/D Diretor do IEMA SEIN – 511 – Bl. A – Ed. Bittar II – 2o andar – Brasília – DF CEP 70750-901 FAX 340 3819

N

1000

0

1000

2000 Metros

Gráfico da área do Lago Paranoá destinada a pesca profissional

Área Onde a Pesca Será Permitida / 17380253 m² Área Onde a Pesca Será Proibida / 21356214 m² Area


EscravidĂŁo legalizada no sul do Brasil

Alisson Zarnott (Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB)


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“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.” José Saramago

1. Fundamentação teórica e justificativa

SUMÁRIO Fundamentação teórica e justificativa, 34 • Referencial metodológico, 35 • Contextualização, 36 • A escravidão legalizada da fumicultura, 39 • Conclusões, 47 • Referências bibliográficas, 48

A escravidão existiu em várias partes do mundo, praticada de diversas formas e motivada por diferentes crenças e/ou interesses. As primeiras formas de escravidão surgiram por disputas entre povos/tribos na Antiguidade. Esses povos guerreavam e o derrotado era feito escravo. Acompanhando a evolução da sociedade, a escravidão toma um sentido econômico comercial/mercantil. Escravos são comercializados como mercadorias, do qual a escravidão ocorrida no Brasil pode ser citada como exemplo. A abolição da escravatura segue também um norte liberal. Com o estabelecimento do capitalismo como sistema econômico hegemônico mundialmente era necessário incorporar massas de trabalhadores não apenas ao trabalho, mas também ao consumo. Essa onde de “libertações” propiciou ao capitalismo a pecha de sistema da liberdade. Essa idéia toma ainda mais corpo com a Guerra Fria onde a oposição entre URRS e EUA era carregada ideologicamente em favor da liberdade norte-americana (onde as pessoas são livres para fazerem o que quiserem) enquanto que na URSS o Estado policiava e reprimia as iniciativas individuais tolhendo-lhes a liberdade. Gera-se assim o estado de liberdade plena, todas as opiniões são permitidas, o mercado regula a vida social e o mundo do capital é o mundo da liberdade individual. Mas é importante questionarmos que liberdade é essa? É realmente possível que cada pessoa faça aquilo que pensa e tem vontade? Ou essa liberdade é possível apenas no campo das idéias? Do pensamento? A liberdade no capitalismo existe apenas no plano conceitual não encontrando assento na vida real e concreta. Segundo Iasi (1999) “a pelo menos dois séculos a noção de liberdade reafirma-se como a força legitimadora da sociedade civil burguesa que nela se apóia”,


33

Escravidão legalizada no sul do Brasil

tendo sido um bem sucedido meio de defesa da dominação do capital usado desde sua luta contra os absolutismos quando o capitalismo buscava sua afirmação e reiterado atualmente, onde, principalmente após a queda do Muro de Berlim e a queda do “autoritarismo” comunista, o capitalismo é visto como o sistema da liberdade, onde as pessoas têm plena liberdade de opinião e de decisão sobre todas as dimensões da vida humana. Mas, como bem afirma Marx apud Oliveira (1997), “(a liberdade) não pode ser buscada na auto-realização do “espírito humano” somente, sendo necessário que exista como elemento das condições diárias da sociedade humana concreta”,

extrapolando o campo estrito do pensamento e passando a ter base concreta na realidade cotidiana. O que acontece na realidade, é justamente o contrário, a efetivação da não-liberdade. O que ocorre na sociedade capitalista é que a liberdade é negada no processo de constituição do poder do capital e o poder do capital se constitui na alienação do trabalho, processo que também ocorre com os agricultores familiares, principalmente com os que se encontram integrados aos complexos agroindustriais. O sul do Brasil é particularmente envolvido com os grandes complexos agroindustriais (frango, suíno, uva, fumo). Esses complexos integram-se na maioria dos casos com unidades familiares de produção caracterizadas historicamente pelo trabalho da família na unidade, cultivos de subsistência e uma relação parcial com o mercado. Esses processos integrativos generalizaramse no interior das unidades familiares modificando-as substancialmente no que concerne aos processos de tomada de decisão, limitando sua liberdade visível, mas também e principalmente apropriando-se do produto do trabalho dessas famílias, alienando-as, e com isso, apropriando-se de sua liberdade produtiva tornando-as peças auxiliares da indústria. Para Marx apud Oliveira (1997), “só pode ser assegurada dignidade através de uma profissão na qual não apareçamos como ferramenta servil mas em que produzamos autonomamente [...]”.

É preciso, portanto, reconhecer no trabalho alienado a verdadeira substância da construção do capital. A propriedade privada por si só não pode constituir o capital, já tendo inclusive, existido muito antes do capitalismo. Reside na apropriação do fruto de seu trabalho (as agroindústrias são o exemplo mais visível) transformando o produto de seu trabalho em mercadoria, e portanto,

transformando seu próprio trabalho em mercadoria e, em conseqüência ao próprio agricultor em uma mercadoria. Segundo Iasi (1999) podemos descrever três aspectos da alienação: Ao viver o trabalho alienado, o ser humano aliena-se da sua própria relação com a natureza, pois é através do seu trabalho que o ser humano se relaciona com a natureza, a humaniza e assim pode compreendê-la. Vivendo relações onde ele próprio coisifica-se, onde o produto de seu trabalho lhe é algo estranho e que não lhe pertence, a natureza se distancia e se fetichiza. Num segundo aspecto, o ser humano aliena-se de sua própria atividade. O trabalho transforma-se [...] num “meio de vida” [...]. Alienando-se da atividade que o humaniza o ser humano se aliena se si próprio (auto-alienação). Alienando-se de si próprio como ser humano, se tornando coisa [...] o indivíduo afasta-se do vínculo que o une a espécie. Ao invés do trabalho tornar-se o elo do indivíduo com a humanidade, a produção social da vida, metamorfoseia-se num meio individual de garantir a própria sobrevivência particular. Reduzindo o agricultor familiar a uma mercadoria é que se efetiva o processo de apropriação do mesmo. Essa apropriação aumenta proporcionalmente na medida em que aumenta a integração com o mercado e quão mais dependente se torna a família dessa relação, revelando a efetivação da não-liberdade.

2. Referencial Metodológico Utilizaremos a integração dos agricultores familiares com a agroindústria fumageira, na região sul do Brasil, como alicerce para esse artigo. Como bem afirma Iasi (1999) “a realidade concreta é a nossa matéria-prima, é o ponto de partida de todo o conhecimento e é, também, o ponto de partida efetivo da atividade de formação, é o nosso instrumento de superação das aparências e de compreensão da realidade”.

Infelizmente não temos a possibilidade de realização de uma estudo empírico mais profundo, limitação que buscaremos minimizar apoiando-nos em trabalhos de campo de outros autores. Optaremos pela fumicultura devido ao profundo enraizamento social confirmado pelas 153.150 famílias integradas no estado do Rio Grande do Sul (DESER, 2006), à super-exploração da força de trabalho com jornadas médias de 15,6 horas.dia.pessoa-1 durantes o período de colheita (AGOSTINETTO, 1999) e, principalmente, à dinâmica contratual típica dos processos de integração


34

Escravidão legalizada no sul do Brasil

vertical (financiamento da produção, regras quitação valor contratado, assistência técnica da empresa, comercialização garantida á empresa, tempo de contrato) comuns em diversas culturas como, por exemplo, o pêssego, o pepino, milho verde, pimenta, uva, o leite e que na fumicultura possuem contornos muito bem definidos e de fácil visualização. Através de uma exposição dos elementos componentes deste sistema espera-se desvelar os elementos internos capazes de darem suporte a análise e possibilitarem a confecção de uma crítica ampla, baseada nas contradições do próprio sistema e passiva de ser expandida às demais culturas objeto de processos de integração haja vista que possuem a mesma base de princípios. Marx em sua obra Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel citado por Oliveira (1997) diz: “[...] as condições sociais petrificadas têm de ser compelidas à dança, fazendo-lhes ouvir o canto da sua própria melodia.”

Expondo os elementos constituintes do processo de integração da fumicultura, espera-se oferecer um material capaz de contribuir com o debate sobre a superexploração a que são submetidas essas famílias de agricultores e que nesse ensaio (ironicamente) convidamos a chamar de escravização legal.

3. Contextualização Antes de realizarmos a exposição dos elementos que delimitam a intensa exploração do trabalho, objeto do ensaio, iremos abordar brevemente a história da cultura, especialmente na região dos estados do RS, SC e PR. Segundo Jean Baptiste Nardi, há pelo menos duas correntes pretendendo elucidar o surgimento e a difusão da fumicultura no mundo. Segundo uma das correntes, o tabaco seria designário de certas plantas já fumadas na Ásia, desde o século lX, já a outra corrente diz que o fumo seria originário das Américas. A informação mais correta que se tem notícia é que Cristovão Colombo testemunhou, em 1942, o hábito de fumar folhas de tabaco, evidenciando assim o surgimento do fumo nas Américas tão antes a chegada dos europeus. Desta reflexão surge a hipótese de que o fumo tenha sua origem nos vales orientais dos Andes Bolivianos, e tenha difundido-se pelo mundo através das migrações indígenas, sobretudo dos Tupis Guaranis. Desde o datado de 1942, conta-se que em menos de um século o fumo passou a se conhecido e utilizado no mundo inteiro, expandindo-se de duas maneiras

primordialmente, através dos marinheiros e soldados e também por meio das expedições de portugueses pelo Brasil, que transportavam a planta para Portugal e França, e, posteriormente o difundindo para os demais países da Europa. A colônia inglesa da Virgínia, na América do Norte, possuía solo e clima ideais para a cultura e foi lá que se iniciou o cultivo comercial do tabaco. A produção comercial se expandiu rapidamente, passando de uma tonelada, em 1610, para 680 toneladas em 1628 e 46 mil toneladas em 1775, no início da Guerra da Independência Americana. O tabaco pode ser usado para extração de corantes, tinturas, fabricação de papel, extratos medicinais, inseticidas. Mas a fabricação de cigarros é seu principal uso. Com a modernização tecnológica a fabricação de cigarros tornou-se mais barata e, apoiado pelo intenso apelo midiático, seu consumo popularizou-se em todo mundo. A última década é marcada por campanhas anti-tabagistas movidas principalmente por organismos/instituições relacionadas a área da saúde que disputam espaço com as propagandas de cigarros. Tabela 1 - Fumicultura Mundial: Produção, consumo e estoque em toneladas. SAFRA

PRODUÇÃO

CONSUMO

ESTOQUE

1980

5.575.000

5.140.900

6.701.090

1990

7.096.730

6.262.410

6.397.740

1993

8.352.210

6.930.010

7.676.250

2000

6.903.340

6.134.730

7.191.020

2001

6.453.280

6.433.790

7.362.260

2002

6.976.690

6.954.090

7.188.960

2003

6.607.830

6.631.050

6.673.090

2004 *

6.265.000

6.310.000

5.252.000

* estimativa Fonte: USDA, 2003.

Os principais países produtores de fumo em nível mundial são a China, a Índia, o Brasil, os Estados Unidos, o Zimbabwe e a Indonésia. Somente esses países são responsáveis por aproximadamente 70% da produção mundial de tabaco.


35

Escravidão legalizada no sul do Brasil

MIL TONS

3.600

Figura 1 – Evolução da Produção Mundial de 1996 a 2004

Principais Produtores de Fumo do Mundo

3.000

2.000

800

600

400

200

96

* Estimado Fonte: USDA

97

98

99

00

01

02

CHINA

03 * 04 *

96

BRASIL

97

98

99

00

01

INDIA

02

03 * 04 *

96

97

98

99

00

01

02

E.U.A.

ZIMBABWE

Fonte: USDA, 2004.

Segundo os números da FAO, a produção mundial de fumo de 2004 apresentou uma sensível recuperação em relação à de 2003. Isto ocorreu, especialmente, em função dos incrementos verificados nas produções dos três maiores produtores mundiais: China, Brasil e Índia. No Brasil tudo começou com os colonos adquirindo fumo dos índios, através do sistema de trocas. Primeiro seu objetivo era o consumo próprio, depois o comércio, sendo instigados pelos comerciantes portugueses, com o intuito de abastecerem o mercado europeu. As primeiras lavouras se localizaram entre Salvador e Recife, sobretudo no recôncavo Baiano e tinham três principais destinos, uma primeira parte, os de primeira e segunda qualidade, eram exportados para Lisboa, sendo na realidade reexportados para os demais países da Europa, uma outra parte servia de moeda no período colonial, para o comércio de escravos com a África. E uma terceira parte de que destinava ao consumo interno. Segundo Jean Baptiste Nardi, a produção anual de tabaco no período colonial apresentava grandes variações, especialmente por causa das pragas, chuvas e secas prolongadas que acabavam por reduzir a produção. Em 1680, a produção era de 3.750 toneladas e continuou a crescer com a política de fomento à agricultura,

introduzida pelo Marquês de Pombal, conseguindo permissão para exportar 200 toneladas, através de Portugal. Em 1674, foi estabelecido o monopólio português do tabaco, a Junta de Administração do Tabaco, a qual tinha a função de reger o comércio de tabaco em Portugal e nas suas colônias. O surgimento desta Junta deu inicio a uma pesada tributação sobre o fumo, principalmente na Bahia e em Pernambuco. Do fim do período colonial (1808) até o início do século XX, o fumo brasileiro diversificou-se, tanto em nível espacial, como no processo industrial e comercial. Esse ritmo de crescimento acelerado fez com que a produção de fumo ultrapassasse as fronteiras da Bahia, atingindo Minas Gerais, Goiás, são Paulo e de maneira mais significativa no Rio Grande do Sul, com a chegada dos imigrantes europeus. Em 1850, o fumo passou a ser cultivado na futura Capital Mundial do Fumo, colônia de Santa Cruz. Foi no estado do Rio Grande do Sul que se deu início o cultivo de fumos claros, a partir da importação de vários tipos de sementes. Em 1920, foi introduzido o fumo Virgínia, o qual viria, aos poucos, a conquistar a importância que hoje representa mundialmente. A partir de 1970 a fumicultura teve um aumento significativo na região Sul do Brasil, com a ampliação do parque industrial e com o incremento da produção e da exportação. A fumicultura está presente em 64% dos municípios da região, sendo responsável por quase 96% da produção nacional. O aumento na procura do fumo brasileiro pelo mercado externo, especialmente o fumo claro produzido no sul fez com que a cultura abrangesse um maior número de produtores, conforme mostra a figura a seguir.


36

Escravidão legalizada no sul do Brasil

Figura 2 – Retrospecto Sul da Distribuição do Cultivo de Tabaco em 2003.

Tabela 3 – Comparativo entre as safras do Brasil

SAFRA

Legenda

Total

Plantadores de tabaco

%

RS

496

342

69

SC

293

253

86

PR

399

164

41

Total

1.188

759

64

Fonte: USDA

A área cultivada no Sul do Brasil vem crescendo ano a ano, partindo de 262.455 hectares em 1992 e chegando a 407.169 na safra 2004-2005. Observando-se a Tabela 3 tem-se a real dimensão da importância que a produção realizada no sul tem para a produção nacional. É prevista para a safra 2004/05 uma área total de 493.335 ha dos quais 407.169 ha (85,2 %) será realizada nos 3 estados do sul.

PRODUÇÃO

RENDIMENTO

1995/96

320.117

476.638

1.489

1996/97

338.240

596.952

1.765

1997/98

358.155

505.353

1.411

1998/99

341.731

629.525

1.842

1999/00

310.633

579.727

1.866

2000/01

305.676

568.505

1.860

2001/02

344.798

670.309

1.944

2002/03

392.925

656.200

1.670

2003/04

460.750

919.770

1.996

2004/05 (1)

493.335

878.630

1.781

(1) – Dados Preliminares – julho de 2005.

Municípios UF

ÁREA PLANTADA

Fonte: IBGE – julho de 2005.

Além de ter a área produtiva e número de famílias envolvidas crescente, é crescente também a importância econômica da cultura no mercado internacional. Nos últimos dez anos, o Brasil aumentou em quase 72% o volume das exportações de fumo e lidera este setor no cenário mundial desde 1993. Em 2002, as exportações brasileiras de fumo atingiram 474 mil toneladas, o maior volume exportado desde 1992, gerando uma receita de mais de US$ 1 bilhão para o setor, conforme mostra a Tabela 4.


37

Escravidão legalizada no sul do Brasil

Tabela 4 - Exportação brasileira de fumo em folha, cigarros e derivados - 1992 a 2002.

ANO

QUANT. (ton)

VALOR

(US$

1992

236.337

981.604

1993

279.321

900.782

1994

335.567

1.030.708

1995

321.298

1.174.961

1996

365.254

1.515.392

1997

409.919

1.664.806

1998

392.875

1.558.990

1999

358.746

961.237

2000

353.022

841.474

2001

443.846

944.316

2002

474.472

1.008.169

Fonte: MIDIC - SECEX/DECEX, 2002.

Na contramão de todo esse crescimento estão as condições de vida dos produtores dessa imensa riqueza. Sendo uma cultura com tantas condições de render frutos veremos que esses mesmo frutos são colhidos apenas pelas empresas.

4. A escravidão legalizada da fumicultura Faremos nesse momento um esforço de aclarar as relações sociais de produção envolvidas nos programas de integração agricultor/fumageira e que nos levam a afirmar a existência de uma escravidão legalizada nessas integrações.

4.1. O sistema de integração vertical A produção de fumo no Sul do Brasil é desenvolvida em um sistema de integração entre indústrias e fumicultores. Pioneiro no Brasil e no mundo, o sistema integrado de produção de fumo teve início em 1918, no interior do Rio Grande do Sul. Nesse sistema, são estabelecidos deveres e obrigações da indústria e do produtor através de um contrato firmado entre as partes. Os contratos estabelecem que as indústrias fumageiras devem fornecer assistência técnica gratuita aos produtores integrados, repassar somente insumos certificados e aprovados para uso na cultura, avalizar os financiamentos de insumos e investimentos, custear o transporte da produção desde a propriedade dos agricultores até as empresas e comprar integralmente a safra contratada por preços negociados com a representação dos produtores. Aos produtores cabe produzir os volumes de fumo contratados, utilizar somente os insumos recomendados para a cultura e comercializar a totalidade da sua produção contratada aos preços negociados, entre outros. No sistema de integração, as empresas fumageiras seguem um procedimento padrão para a contratação da produção de fumo em folha dos produtores integrados. O documento que sela os compromissos entre empresa e produtor é o contrato de compra e venda do fumo em folha. Esse documento especifica o tipo de fumo que será produzido pelo produtor (VirgÌnia, Burley ou Comum), a área a ser utilizada na safra para o plantio do fumo, a variedade de semente e a estimativa de produção da safra (em quilos e número de pés). O contrato constitui-se de várias cláusulas onde estão expressos os compromissos da empresa, os compromissos do produtor e também os compromissos comuns de ambas as partes. A contratação da produção de fumo em cada safra envolve a assinatura de uma série de documentos por parte dos fumicultores, quais sejam: » Pedido dos insumos: documento em que são especificados os produtos a serem utilizados na lavoura de fumo durante a safra. Também constam nesse documento a estimativa da safra, a área utilizada para reflorestamento, o consumo de lenha e também dados sobre o financiamento que ser• gerado a partir da nota fiscal fatura dos insumos (valor, prazo, Banco em que a operação será realizada). No mesmo documento consta uma autorização para que as empresas descontem do valor da produção de fumo o débito dos produtores, incluídos o prêmio de seguro de vida e o seguro da Afubra (Associação dos Fumicultores do Brasil). » Receituário Agronômico: a empresa recomenda e/ou vende os insumos agrícolas necessários, aprovados e adequados para o cultivo do fumo mediante


Escravidão legalizada no sul do Brasil

»

» »

»

»

»

»

a entrega do receituário agronômico firmado por profissional habilitado. No receituário está contida a relação dos insumos a serem utilizados durante a safra, com as recomendações técnicas para manuseio, aplicação e dosagem a ser utilizada. Junto ao receituário agronômico também seguem orientações aos agricultores sobre o uso de agrotóxicos, assim como recomendações sobre o descarte das embalagens vazias dos agrotóxicos. Cadastro do produtor: esse documento reúne uma série de informações que são analisadas pelas empresas para fins de liberação de financiamentos aos produtores, incluindo dados pessoais do produtor e do cônjuge, assim como das demais pessoas que trabalham na propriedade, sobre a propriedade e sobre a área (no caso dos arrendatários), benfeitorias, avalista, máquinas e implementos, veículos e também demonstrativo sobre a receita bruta anual. Seguro Afubra: esse é um documento onde o produtor autoriza o seguro da safra, as modalidades de seguro mútuo oferecidas pela entidade são: granizo, granizo e/ou tufões, estufa e falecimento. Procuração para a Afubra: através desse documento, o produtor concede poderes para que a Afubra assine em seu nome os documentos necessários para a formalização de financiamento bancário, na modalidade de crédito rural destinado ao custeio agrícola para a produção de fumo em cada safra. Carta de anuência: esse documento é exigido caso o produtor seja arrendatário da área de terra em que cultiva o tabaco. A carta de anuência é assinada pelo proprietário da terra, o qual declara que o arrendatário tem consentimento para explorar tal área. Declaração de ITR – Imposto Territorial Rural: devido a uma exigência dos Bancos para liberação de crédito rural, o produtor também precisa assinar uma declaração de que não existem débitos relativos ao imóvel objeto do financiamento perante a Receita Federal, relativo aos últimos cinco anos. Nota promissória: embora conste no contrato de compra e venda do fumo todas as obrigações do produtor, a maior parte das empresas tem o costume de emitir uma nota promissória para que o produtor assine, correspondente ao valor da nota fiscal de fatura dos insumos que gerar o financiamento. Adesão ao Programa “O Futuro é Agora”: através desse documento o produtor se compromete a cumprir, fazer cumprir e incentivar o programa, em especial as regras de proteção à criança e ao adolescente previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente. O programa consiste em uma ação conjunta do setor para erradicar o trabalho infantil na produção de fumo, incentivando mudanças culturais na maneira de ver e entender esta necessidade em todos os envolvidos no processo produtivo e comercial do setor (SINDIFUMO, AFUBRA, 2000).

38 As empresas emitem todos os documentos que são assinados pelos agricultores integrados, são responsáveis pela parte burocrática das operações realizadas, inclusive as relativas aos financiamentos junto ao sistema bancário. Geralmente o processo de assinatura dos documentos descritos acima ocorre em três momentos. Em uma primeira visita do técnico da empresa ao estabelecimento do produtor são feitos o pedido dos insumos, o cadastro do integrado, o contrato de compra e venda do fumo e o termo de adesão ao Programa “O Futuro é Agora”. Após o faturamento dos insumos ocorre outra visita do técnico ao estabelecimento, onde o produtor assina o receituário agronômico e a nota promissória referente ao valor dos insumos faturados. Em um terceiro momento, é efetuada a contratação do financiamento, onde ocorre a assinatura dos demais documentos que serão encaminhados ao Banco para obtenção do crédito rural. Depois de assinados pelos produtores, a Afubra assina os documentos necessários à obtenção dos financiamentos junto ao sistema bancário e, em seguida, a documentação é encaminhada aos Bancos para que efetuem as operações de crédito. O número excessivo de documentos para formalização dos contratos acaba gerando uma série de dúvidas por parte dos produtores. Em recente pesquisa realizada pelo DESER, constatou-se que a maior parte dos agricultores não costuma ler os contratos que assinam, principalmente porque consideram muito extensos e de difícil entendimento. Também não costumam ler os demais documentos que são assinados, tampouco sabem a finalidade de todos os documentos. As empresas alegam que orientam seus técnicos para esclarecerem todas as dúvidas dos seus integrados. No entanto, conforme depoimentos dos produtores, os orientadores das empresas (técnicos) geralmente estão com pressa quando levam os documentos para serem assinados, de forma que em muitos casos não há tempo suficiente para o esclarecimento de dúvidas. Dizem ainda que na maior parte das vezes os técnicos levam “uma pilha de folhas” e apenas indicam os locais em que os agricultores devem assinar. O contrato firmado entre a indústria fumageira e o fumicultor é válido por um ano. Antes do final de cada safra o instrutor (responsável pela assistência técnica), visita o fumicultor e propõe um pedido de insumos para a safra seguinte. Este pedido, segundo os fumicultores, tem por objetivo evitar a migração para outra empresa, pois antes mesmo de receber o valor da safra anterior ele já estará comprometido para a safra seguinte. Para as empresas, este pedido tem o objetivo de fornecer uma estimativa da área a ser cultivada na próxima safra e desta forma também podem “manejar” o preço pago ao produtor, como também sua margem sobre os insumos. Dentre os principais motivos de insatisfação com a indústria, a classificação final do fumo foi o mais citado (23,4% dos entrevistados). A classificação na unidade de produção é realizada pelo próprio


39

Escravidão legalizada no sul do Brasil

fumicultor separando as folhas em 4 classes que estão diretamente relacionadas com a posição que as folhas ocupam na planta. Para cada classe o fumicultor classifica as folhas por cor e tamanho. As indústrias classificam as folhas em 48 classes, utilizando mecanismo com luzes que geralmente gera uma classificação diferente da realizada pelo fumicultor.

4.2. Super-exploração do trabalho Uma das características mais marcantes da produção fumageira é a exigência de força de trabalho, tanto em intensidade (horas/dia) quanto em envolvimento (meses/ano/safra). A fumicultura é bastante exigente em termos de força de trabalho, sendo que seu ciclo produtivo perdura cerca de 11 meses, dividindose basicamente nas fases de produção de mudas, de campo, de classificação e embalo para comercialização. O trabalho de CARVALHO (2006) aclara bem essa exigência. Ao investigar a rotina de trabalho de uma propriedade que cultivava 4 ha de fumo, chegou ao seguinte dado: para o cultivo de 4 ha de fumo são necessárias 4.962 horas de trabalho distribuídas nos períodos de produção de mudas, podas, preparo solo, plantio, tratos culturais, colheita, cura e classificação. Se tomarmos esse dado e dividi-lo pelos 12 meses do ano com jornadas mensais de 22 dias, uma família com 4 pessoas ativas1 realiza uma jornada diária de 4,7h/dia/pessoa durante todo o ano apenas dedicada ao fumo. A presença de 4 pessoas ativas nas propriedades é rara, haja vista que ocorre um brutal envelhecimento da força de trabalho (para mais ver SACCO DOS ANJOS, 2003) fato que impulsiona a contratação de força de trabalho temporária fora da propriedade para suprir a demanda exigida pela cultura ou o emprego de força de trabalho infantil, das crianças que ainda permanecem na propriedade em geral porque ainda não estão na idade de cursarem ensino médio (para o qual devem deslocar-se para centros urbanos). Dados do SINDIFUMO informam que aproximadamente 20% da força de trabalho utilizada na produção é constituída por crianças e adolescentes. Estudo de Caso realizado pela Delegacia Regional do Trabalho no Rio Grande do Sul, nos municípios de Camaquã, Candelária, Rio Pardo, São Lourenço e Venâncio Aires, aponta que crianças e adolescentes combinam, permanentemente, trabalho e escola, dificultando para um grupo significativo da amostra em estudo, um bom desempenho escolar, o que leva num segundo momento ao abandono da escola e muitas vezes das expectativas de melhoria de vida.

Os pesquisadores reconhecem que a inserção desses jovens no trabalho está vinculada à necessidade de suas famílias em face da impossibilidade dos agricultores contratarem força de trabalho, muito pelo fato de não quererem comprometer a renda. Neste ponto percebe-se um elemento recorrente: a não contabilização, por parte dos agricultores, de seu trabalho nos custos de produção. O período que conta com maior demanda de força de trabalho é a colheita. Segundo PAULILO (1990), são necessárias de quatro a seis pessoas dedicadas em tempo integral para dar conta de 2 a 2,5 ha de área cultivada. A jornada média de trabalho, na época de colheita, é de mais de 15 horas por dia. Além de intensamente exigente em trabalho a cultura é de difícil mecanização. Exceto a “atação” do fumo que é realizada com tecedeiras (mas também pode ser realizada manualmente) as demais etapas são todas manuais resultando em aproximadamente 60% dos custos de produção ligados à demanda de força de trabalho. Neste ponto explica-se a rentabilidade do cultivo do fumo pelo trabalho não contabilizado e não pago do agricultor, através de sua dita auto-exploração. Para tanto, utilizaremos a Tabela 5 que apresenta os custos de produção de 3 culturas típicas da agricultura familiar. Figura 3: Agricultora colhendo fumo

Fonte: acervo do autor


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Escravidão legalizada no sul do Brasil

Tabela 5 – Comparativo dos custos das culturas de milho, feijão e fumo – 2003.

Tabela 6 – Comparativo entre o custo de produção na propriedade de João Ramos Nunes (pesquisa) e AFUBRA – safra 2004/05 (*)

Cultura Discriminação

Discriminação Milho

Feijão

Fumo

1. CUSTOS VARIÁVEIS

Custos Variáveis Mão de obra familiar

Pesquisa

AFUBRA

R$ / ha

R$ / ha

2.983,04

24

3.275,47

25

Mão de obra adicional (peões)

2.485,00

-

Mão de obra

324,90

384,00

3.618,33

Total mão obra

5.468,04

3.275,47

Operações diversas

181,30

78,60

258,56

Operações com animais

77,85

77,85

Insumos agrícolas

474,20

235,50

1.741,65

Operações com máquinas

75,78

75,78

559,78

Operações com benfeitorias

84,87

84,87

Suprimentos agrícolas

5.396,4426

Lenha / energia Seguro / funrural / juros

60,80

45,50

467,42

SUB – TOTAL

1.041,20

743,60

6.645,74

2. CUSTOS FIXOS

27

1.575,54

Lenha

1.440,00

516,21

Energia elétrica

9,93

9,93

Correção do solo

30,30

30,30

46,80

Seguro da produção

126,71

Depreciações

131,30

131,30

556,12

Funrural

147,83

SUB - TOTAL

161,60

161,60

602,92

Despesas financeiras

384,50

103,39

TOTAL

1.202,80

905,20

7.248,66

Gastos gerais (pequenos gastos adic.)

1.444,00

-

SUB-TOTAL

14.655,95

6.048,63

Correção do solo

642,00

44,06

Produtividade

Kg/ha

3.600

1.200

2.142

Custo

R$/kg

0,334

0,754

3,38

Preço médio

R$/kg

0,339

1,029

4,36

Receita bruta

R$/ha

1.220,40

1.234,80

9.339,12

Receita líquida

R$/ha Dias/ homem/ ha

17,60

329,60

2.090,46

22

26

149

28

181,77 147,83

29

Depreciação global das utensílios e implementos

máquinas,

560,62

539,63

Manutenção global das utensílios e implementos

máquinas,

140,15

-

Renda da terra

1.200,00

-

SUB-TOTAL

2.542,77

6.630,42

Fonte: AFUBRA

TOTAL

17.198,72

6.630,42

Os dados mostram claramente a exigência da fumicultura em trabalho e uso de insumos agrícolas. Esses são dois elementos fundamentais para a escravização do agricultor e para o lucro das empresas. Tratemos disso então... CARVALHO (2006) realizou um minucioso levantamento de custos da lavoura de fumo, o qual reproduzimos a seguir para análise dos dados.

Produtividade

2.092

2.092

Mão de obra

CUSTO OPERACIONAL R$/kg

8,22

3,17

Fonte: Livro caixa fumicultor João Ramos Nunes, safra 2004/05 e, AFUBRA


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Escravidão legalizada no sul do Brasil

24

Calculado sobre 1 salário mínimo (R$ 300,00) mais encargos (79% segundo informação prestada por CONTÁBIL DESTERRO LTDA, em 29/08/2005). O total apurado de horas trabalhadas foi de 4.444 ao longo do cultivo, colheita e preparação final do fumo, o que redunda em 1.111 horas/ha. 25

Mão de obra de peões para serviços extraordinários ou pequenos consertos e reparos. Extraído do Livro Caixa. 26

Extraído do Livro Caixa.

27

Correspondente a 160 m3 de lenha a um custo de R$ 36,00/m3, divididos por 4 ha.

28

Extraído do Livro Caixa.

29

Extraído do Livro Caixa.

Analisando a Tabela 6 fica visível a exigência em trabalho da cultura e como essa exigência interfere no funcionamento da unidade de produção. CARVALHO, B. C. (2006) aponta que em 95% dos entrevistados foi necessária a contratação de força de trabalho externa à unidade. Essa contratação é motivada porque a família não é suficiente para desempenhar as atividades necessárias e também pela exaustão das mesmas, o que leva a família a buscar auxílio fora da unidade. Essa contratação não aparece nos custos informados pelas empresas já que isso caracterizaria a inviabilidade da produção com trabalho familiar e, elemento ainda mais definidor, tornaria inútil uma das “vantagens” apregoadas pelas empresas: o fato de que o fumo ocupa pouca área, sobrando terra para outros cultivos. De que adianta terra se não há tempo para cultivá-la?

Tabela 7: Fumo – Preço médio recebido pelos produtores – safras 1996/97 a 2004/05 (R$/ kg) SAFRA/ESTADO

RS

SC

PR

Região SUL

1996/97

1,91

1,94

1,76

1,90

1997/98

1,90

1,96

1,72

1,91

1998/99

1,82

1,88

1,80

1,84

1999/00

2,01

2,01

1,93

2,00

2000/01

2,51

2,43

2,25

2,45

2001/02

2,86

2,89

2,71

2,85

2002/03(1)

4,02

3,94

3,77

3,95

2003/04

4,34

4,19

4,03

4,24

2004/05

4,23

4,51

4,24

4,33

Fonte: Afubra, 2004 - (1) Dado calculado pelo Instituto Cepa/SC

O custo de produção é o principal indicador usado pelas empresas na composição do preço pago ao produtor. Na safra 2004/05 o melhor preço pago pelas empresas foi de R$ 5,59/kg e o preço médio pago foi de R$ 4,33/kg, enquanto que o custo de produção é da ordem de R$ 8,22/kg. Com base nesses números torna-se impossível concordar com a afirmação de que a fumicultura gera renda para os agricultores. É nítido que os mesmo só permanecem na atividade porque não remuneram seu próprio trabalho, ou seja, no mínimo, trabalham de graça para as empresas. Que outro nome dar a essa relação social de trabalho que não a de plena escravidão. Mas são levados a acreditar que trabalhando mais, dedicando-se mais ....... Assim agricultores acabam “encontrando” pontos positivos na fumicultura. As principais vantagens citadas pelos produtores, segundo estudo do DESER (2003) são: » A cultura do fumo ocupa uma pequena área de terra; » Contribuição na geração de renda familiar; » Garantia de comercialização da produção; » Seguro contra granizo; » As empresas facilitam o acesso ao crédito, principalmente para aquisição de insumos.


42

Escravidão legalizada no sul do Brasil

No mesmo estudo apontaram vários elementos que identificam como negativos. Os principais aspectos mencionados foram:

» »

»

» » » » » » »

Excessivo ritmo de trabalho, envolvendo exaustivamente toda a família; As classificações do fumo feitas pelas empresas, em geral, apresentam classes inferiores aquelas feitas pelos produtores, além disso a acreditam que a quantidade de classes de fumo é excessiva apresentando dificuldades no momento da comercialização do produto; A falta de liberdade tanto na produção quanto na comercialização do fumo no sistema integrado, de forma que os produtores ficam cada vez mais dependentes das empresas tanto do ponto de vista contratual como tecnológico; Orientação técnica insuficiente para acompanhar o processo de produção e para esclarecer as dúvidas existentes, principalmente em relação aos riscos do uso de agrotóxicos; Falta de apoio e orientação das empresas e das autoridades municipais em relação ao destino das embalagens vazias de agrotóxicos; A renda liquida gerada na produção de fumo se concentra nas mãos das indústrias e das empresas; Falta de políticas públicas que fomentem a agricultura familiar e dê segurança para os agricultores investirem em outras atividades; Carência de lenha, deixando os produtores suscetíveis a lei da oferta e da procura, elevando os custos e reduzindo sua renda liquida; A Previdência Social não reconhece as intoxicações por agrotóxicos como doenças, não liberando o pagamento dos benefícios aos produtores, caso estes estejam impossibilitados de exercer o trabalho; O acentuado êxodo dos jovens do meio rural compromete a força de trabalho e compromete a atividade.

O estudo do DESER (2003) ainda comenta o alto nível de insatisfação dos produtores quanto a falta de transparência no relacionamento das empresas com os produtores. As dúvidas recaem sobre todas as etapas da produção, desde a contratação da safra, passando pela classificação, comercialização e o lucro final. Mesmo elencando tantos pontos negativos, os mesmos não são suficientes para que essas famílias deixem a fumicultura, dando pistas da dependência gerada e domínio exercido pela cadeia sobre os agricultores. Uma das pistas que pode-se apontar para esse fato diz respeito a pressão ideológica exercida pelas empresas. Isso é facilmente percebido nos materiais produzidos pelas empresas

e distribuídos aos agricultores. A empresa Souza Cruz edita trimestralmente a revista “O produtor de fumo” onde enfatiza frases como: “A dedicação aumenta os ganhos” (Souza Cruz, 2001); “A qualidade depende de todos” (Souza Cruz, 2005); “O capricho vale a pena” (Souza Cruz, 1992), que fazem com que o agricultor acredite que trabalhando mais, dedicando-se mais, envolvendo-se completamente com a cultura ele obterá uma produção maior, mais qualidade e consequentemente, uma renda maior (CARVALHO, 2006). Isso tem levado os agricultores a dedicarem ainda mais tempo à cultura além da naturalmente exigida e abandonarem culturas de subsistência historicamente presentes nas unidades de produção. CARVALHO (2006) cita relatos de agricultores que ilustram a questão: “Não da pra plantar nada com o fumo, tem que cuidar bem do fumo” (Fumicultor, 40 anos);

“Temos uma hortinha. Quando a gente começa a colher a gente larga a horta, não dá tempo de nada. A gente tem que se dedicar ao fumo” (Fumicultor, 51 anos);

“Não da pra ter nada, até a minha horta está cheia de mato, porque eu tenho que fazer comida, cuidar da horta e cuidar do fumo e não dá pra fazer tudo ao mesmo tempo” (Fumicultora, 45 anos).

Não ter tempo para cuidar da horta, considerada pelos agricultores como peça importante da unidade de produção, realça a dominação realizada pelas empresas e o estado de fragilidade da segurança alimentar dessas famílias haja vista que as mesmas não cultivam alimentos tendo o fumo como a única cultura da unidade de produção. Tendo suas expectativas de renda frustradas essas famílias não possuem as culturas de subsistência para alimentação na unidade onde poderiam apoiar-se. São escravos em sua própria terra.


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Escravidão legalizada no sul do Brasil

4.3. Soberania e segurança alimentar

Figura 4: Galpões e estufas para fumo

Segundo o CONSEA (2004), “Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) é a realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam social, econômica e ambientalmente sustentáveis.

Embora o Brasil seja um dos maiores produtores de alimento do mundo, parcela significativa da população não tem acesso aos alimentos básicos necessários para a vida cotidiana. Situações de insegurança alimentar e nutricional podem ser detectadas a partir de diferentes tipos de problemas, tais como fome, obesidade, doenças associadas à má alimentação, o consumo de alimentos de qualidade duvidosa ou prejudicial à saúde, estrutura de produção de alimentos predatória em relação ao ambiente natural ou às relações econômicas e sociais; alimentos e bens essenciais com preços abusivos e a imposição de padrões alimentares que não respeitam a diversidade cultural”.

Fonte: acervo do autor

Figura 5: Galpão leiteiro

A soberania alimentar inclui também “dar prioridade à produção agrícola local de forma a alimentar as pessoas, o acesso de camponeses e dos sem terra à terra, água, sementes, e crédito, e, desde logo, a necessidade para reformas da terra genuínas e abrangentes, acesso sem restrições a sementes, e para a salvaguarda da água como um bem público para ser equitativamente e sustentavelmente distribuído”.

Dar prioridade a produção local é o caminho absolutamente inverso do trilhado pelos produtores de fumo. Devido a exigência de trabalho que já abordamos, o cultivo de subsistência e de culturas locais fica em segundo plano e na maioria dos casos acaba sendo deixado completamente de lado como vimos nos relatos dos agricultores e nas imagens a seguir (fotos são da mesma unidade produção).

Fonte: acervo do autor


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Escravidão legalizada no sul do Brasil

Figura 6: Pocilga

Esses dados possivelmente dêem uma luz sobre outro dado relevante: 57,2% dos entrevistados por CARVALHO (2006) cultivam fumo a mais de 20 anos. Ora, como pode uma cultura tão rentável fazer com que 74% dos produtores não obtenha lucro? Qual o grau de dominação (escravização) a que é submetido esse produtor para que se mantenha nesse processo por tanto tempo?

4.5. O lucro extraordinário das empresas

Fonte: acervo do autor

4.4. Endividamento recorrente Outro elemento extremamente presente na integração com a fumicultura é a dependência do agricultor. Essa dependência é observada em diversos aspectos que já abordamos:

» »

dependência da empresa para ingressar na cultura (crédito, garantias de compra e venda); dependência da empresa para sua alimentação. Como só cultiva fumo depende da renda obtida para a aquisição de alimentos;

Mas existe mais um elemento presente na relação de dependência do agricultor com a empresa: o recorrente endividamento do mesmo. Segundo CARVALHO (2006) 41% dos agricultores entrevistados já encerrou o ciclo produtivo anual e não conseguiu quitar as contas com a empresa referentes a seu compromisso para aquele exercício e, 33% pagou o que devia a empresa mas não obteve lucro. Ou seja, 74% dos entrevistados já passou pela experiência de trabalhar o ano todo e, ao final, não lograr nenhum ganho por todo seu trabalho.

Já abordamos a maneira como as empresas exploram e se apropriam do trabalho dos agricultores. Tentaremos nesse momento demonstrar que, além do lucro obtido pela apropriação do trabalho, as empresas obtém ainda um lucro extraordinário através da venda de insumos e da exportação de fumo. Já comentamos que o principal componente da definição do preço pago ao produtor pelo fumo é o seu custo de produção. Demonstramos também que o cálculo é “viciado” e que não cobre os reais custos da lavoura, muito menos rende lucro ao produtor. Para visualizarmos como as empresas ganham dinheiro pagando pouco ao produtor, basta olharmos a tabela do preço médio de exportação do fumo e compará-la com o preço pago ao produtor. Tabela 8 – Valor recebido pelo fumo exportado. SAFRA

US$/ Kg

1980

2,27

1990

3,01

1998

3,97

2000

2,38

2001

2,13

2002

2,12

2003

2,28

2004

2,40

Média

2,57

Fonte: USDA, 2004.


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Escravidão legalizada no sul do Brasil

Tabela 10 - Distribuição da Renda Líquida

Façamos uma rápida comparação com Tabela 7. O preço médio pago ao produtor em 2004 foi de R$ 4,33/kg. O preço médio, segundo a Tabel 8, do fumo exportado em 2004 foi de US$ 2,40/kg. Nos meses de maio e junho (principais meses de comercialização de fumo por parte do produtor) de 2004 a cotação do dólar teve média de R$ 3,193 (média das cotações diárias dos 2 meses). Assim, US$ 2,40 x R$ 3,193 = R$ 7,66. Pelo mesmo quilo de fumo que a empresa pagou ao agricultor R$ 4,33, recebeu no mercado internacional, R$ 7,66. Uma diferença de R$ 3,33, 76% a mais. É a isso que estamos chamando de lucro extraordinário das empresas. O lucro extraordinário das empresas se complementa com a venda de insumos. A venda de insumos é uma das grandes atividades dos instrutores das empresas. Segundo CARVALHO (2006), 43% instrutores oferece novos equipamentos aos agricultores em suas visitas de rotina. Além disso, são os responsáveis pelo “pedido” (cálculo e solicitação dos insumos, basicamente adubos e agrotóxicos, que o agricultor deverá utilizar ao longo da produção) que é feito em função da área e número de plantas cultivadas pelo agricultor. Esses insumos compõem a dívida do agricultor com a empresa e serão quitados a partir da entrega de produto a empresa. Como são financiados ao agricultor no início do ciclo para pagamento no final do mesmo esses insumos tem seu preço fi xado muito acima dos preços praticados no mercado (mesmo com a atual estabilidade econômica). Agricultores reconhecem que os preços são abusivos, mas como não possuem condições de adquiri-los por conta própria tornam-se reféns da empresa e aceitam as condições impostas pela empresa que tem nessa transação econômica mais uma entrada de capital na sua conta. Para complementarmos as informações referentes ao lucro extraordinário das empresas seguem as Tabelas 9 e 10.

R$

%

Tributos/Governo

6.457.504.330

46,1

Indústria

2.957.749.140

21,3

Produtor

3.680.650.500

26,4

Varejista

824.053.130

5,9

TOTAL

13.919.957.100

100

Fonte: Receita Federal, 2004

CUSTOS

LÍQUIDO

%

Governo

5.589.683.980

5.589.683.980

54,7

Indústria

3.190.991.900

3.190.991.900

31,2

Produtor

2.365.250.400

704.339.420

6,9

Varejista

728.179.220

728.179.220

7,1

TOTAL

11.874.105.500

10.213.194.520

100,0

1.660.910.980

1.660.910.980

Fonte: Afubra / Secex / Receita Federal

Faremos apenas 2 referências aos dados presentes nas Tabelas 9 e 10. A primeira diz respeito ao percentual referente aos agricultores na divisão da renda líquida. Mesmo com todo o trabalho executado pelas famílias, longas jornadas, extenuantes, modificadoras da própria constituição da racionalidade familiar, os agricultores recebem apenas 6,9% da renda líquida da fumicultura. A segunda diz respeito a diferença entra a renda bruta e a renda líquida obtida pelas famílias. Renda bruta de 26,4% para uma renda líquida de apenas 6,9% é um demonstrativo do grau de endividamento dessas famílias. Com a indústria acontece exatamente o contrário, sua participação na renda líquida aumenta 10% em relação a renda bruta.

5. Conclusões

Tabela 9 - Distribuição da Renda Bruta

ESPECIFICAÇÃO

BRUTO

Poderíamos tecer vários comentários sobre os números e dados apresentados mas iremos fazer uso de apenas mais 2 dados, provenientes dos próprios agricultores e levantados por CARVALHO (2006). Para 88% das famílias entrevistadas, o trabalho no sistema de integração vertical da fumicultura não satisfaz a família e, 100% delas mudaria de atividade se pudesse. Pensamos que esses dados dispensam comentários e mostram a insatisfação das famílias com a situação de exploração/apropriação à que estão submetidas. Quanto aos motivos que levam essas famílias a não mudarem de atividade, pontuamos algumas, mas estudos mais aprofundados fazem-se necessários.


Escravidão legalizada no sul do Brasil

Por enquanto, encorajamos-nos a sugerir que se elas não o fazem (assim como os escravos) porque não podem/conseguem. Como havíamos provocado, formam uma legião de escravos legalizados, com terra, com instrumentos de trabalho, com “liberdade”, mas escravizados.

46 SACCO DOS ANJOS, F. Agricultura Familiar, Pluriatividade e Desenvolvimento Rural no Sul do Brasil. 1ª. ed. Pelotas: Editora e Gráfica da Universidade Federal de Pelotas, 2003. v. 01. 374 p. WILKINSON, J. O Estado, a Agroindústria e a Pequena Produção. São Paulo-Salvador, Editora Hucitec-CEPA/BA, 1986.

6. Referências bibliográficas AGOSTINETTO, et al. Caracterização da fumicultura no município de Pelotas-RS. Revista Brasileira de Agrociência, Pelotas-RS, v. 6, n. 2, p. 171-175, 2000. CARVALHO, C. B de. Relação socioeconômica dos fumicultores-fumageiras da região de Sombrio/SC e uma proposta de transição agroecológica. Florianópolis, 2006. 131p. (dissertação de mestrado). CONFERÊNCIA INTERNACIONAL SOBRE REFORMA AGRÁRIA E DESENVOLVIMENTO RURAL. A Reforma Agrária no contexto da Soberania Alimentar, o direito à alimentação e diversidade cultural: “Terra, Território e Dignidade”. Porto Alegre, março 2006 CONSEA (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional). Princípios e Diretrizes de uma Política de Segurança Alimentar e Nutricional - Textos de Referência da II Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Brasília, Julho de 2004 DESER. O futuro da fumicultura no Brasil. Disponível em http://www.deser.org.br/ boletim.asp, acessado em 16/06/2006. IASI, M. L. Processo de Consciência. São Paulo, Editora CPV, 1999. MARX, K. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo, Editora Martin Claret, 2004. O ESTADO DE SÃO PAULO. XX . Disponível em http://www.estadao.com.br/ext/ economia/financas/historico/dolar_2004.htm, acessado em 16/04/2007. OLIVEIRA, A. R. Marx e a Liberdade. Porto Alegre, Editora EDIPUCRS, 1997.


Cartilha Organizativa da Semana de Democratização da Comunicação

Marcelo de Oliveira Arruda (Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação)


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1. Observação preliminar Este trabalho não está completo. Tentamos adotar aqui o ponto de vista dos Movimentos Sociais. Para isso, a própria metodologia de trabalho contaria com a presença destes movimentos na sua construção. Usaríamos e usaremos o conceito de produção colaborativa de conhecimento e de informação, onde o destinatário da informação pode ter a possibilidade de ajudar na produção da mesma. Teríamos uma etapa, no processo de escrever a primeira versão da cartilha, de integrantes de movimentos sociais terem acesso aos textos. A intenção era que estes atores políticos dêem opinião quando a forma, conteúdo e viabilidade de materialização do que está sendo escrito para a base de suas entidades e/ou coletivos. Por problemas de agenda, não foi realizada esta parte. Carece então da horizontalidade pretendida, o que pode limitar os resultados atingidos, pela relação vertical aqui estabelecida. Mas este trabalho se pretende uma obra aberta. E como obra aberta, não se restringe a apresentação no fim do curso. Esta cartilha será distribuída para os movimentos sociais e posteriormente atualizada com os relatos de quem a utilizou. Firmo aqui um compromisso de construir este processo, como forma de agradecer o espaço de pensar a Revolução Brasileira aqui colocado. E de saber que mais Companheiras e Companheiros terão oportunidade, a partir deste trabalho, de partilhar um pouco da experiência de luta popular brasileira.

2. Apresentação O poeta Thiago de Mello, no artigo 5 de seu poema “Os Estatutos do Homem” diz:

SUMÁRIO Observação preliminar, 50 • Apresentação, 50 • A democracia e o direito à comunicação, 51 • Histórico da Semana, 51 • Começando a organizar a semana, 52 • Fonte de $, 52 • Projeto, 52 • Mantenha o foco. Principalmente quando tiver um, 52 • Produção, 53 • Promoção/divulgação,53 • Evento realizado, e agora?, 53 • Referências bibliográficas, 54

“Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira. Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio nem a armadura de palavras. O homem se sentirá à mesa com seu olhar limpo porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa.”

A semana de democratização da Comunicação é realizada à cinco anos por vários coletivos. Sujeitos políticos que querem se libertar daquilo que os silencia e utilizar plenamente o direito humano à Comunicação. Esta cartilha parte da experiência social destes atores. Para ser repartida para militantes do povo


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Cartilha Organizativa da Semana de Democratização da Comunicação

que queiram discutir comunicação em seu local de militância (assentamentos, escolas, sindicatos, igreja...). Com possibilidade de ampliação da experiência para outras e outros companheras/os. Este é o nosso convite para mulheres e homens a partir desta cartilha. Que não se concentre o conhecimento em apenas um local. Que se criem redes de comunicação para continuar a luta de forma regional e/ou nacional. E que ajam, levantando suas vozes.

3. A democracia e o direito à comunicação O direito à comunicação é um dos pilares centrais de uma sociedade democrática. Assumir a comunicação como um direito fundamental significa reconhecer o direito de todo ser humano de ter voz, de se expressar. Significa dizer que cabe ao Estado garantir isso a todos os cidadãos, mais do que exercer por sua própria conta essa comunicação. O direito à comunicação é mais do que direito à informação; este é apenas o lado passivo da questão. Fundamental, mas insuficiente. Também insuficiente é a liberdade de expressão. Tal como ela existe hoje no Brasil, onde nove famílias controlam os jornais, revistas e emissoras e rádio e TV, nove têm liberdade e 170 milhões de pessoas têm que aceitar o que é imposto por poucos. A comunicação, numa sociedade democrática, pertence ao povo. Seu espaço é necessariamente público e o único poder legítimo para regular suas práticas emana da coletividade, que é quem deveria decidir sobre as questões relacionadas ao tema. Infelizmente, a organização do espaço público de comunicação no Brasil fez-se até hoje sem a imprescindível participação popular. É preciso reafirmar a comunicação como um direito humano, universal e inter-relacionado com todos os outros direitos fundamentais. Lutar pela efetivação deste direito é, portanto, trabalhar para que todos os direitos humanos, indistintamente, tornem-se realidade. Para democratizar a comunicação é preciso introduzir na sociedade brasileira os principais debates sobre o tema, como o da concentração de propriedade e do controle público dos meios, o das rádios comunitárias, do software livre, do sistema público de radiodifusão, da governança da Internet, da inclusão e da TV digital. E, como conseqüência, instrumentalizar a população para as discussões e decisões de Estado a serem tomadas. Sociedade e comunicação democráticas são indissociáveis. Pertencem ao mesmo universo e sua relação não pode ser dissolvida. Se a comunicação joga um papel fundamental para a realização plena da cidadania e da democracia brasileira, a democratização da comunicação representa condição fundamental

para o efetivo exercício da soberania popular. (fonte: http://www.intervozes.org. br/direito.htm)

4. Histórico da semana Uma das lutas pautadas por diversos movimentos sociais é por uma comunicação democrática. No plano internacional as discussões sobre esse tema eram levantadas desde a década de 60 através das mobilizações, estudos, publicações e propostas defendidas pela UNESCO, partindo da reivindicação de uma Nova Ordem Mundial da Informação e da Comunicação, NOMIC. A partir desta referência de ações, Aliada a luta contra a ditadura até meados da década de 1980 contou em nosso país com o significativo apoio da sociedade civil na difusão desses ideais, com a compreensão da mídia como uma arena de disputa política, onde idéias e opiniões representam os projetos de democracia. Tais ações culminam com a mobilização pelos artigos que regularizassem a comunicação na Constituição de 88, e criação de espaços de organização desta luta na década de 90. Espaços como o Fórum Nacional de Democratização da Comunicação, FNDC, em 1991, a Associação Brasileira de Rádios Comunitárias, ABRAÇO (1996) e a Executiva Nacional de Estudantes de Comunicação, ENECOS, em 1991. Durante a década de 90 houve um refluxo desta luta, conseqüência do refluxo da luta social nesta mesma época. Em 2003, houve uma significativa alteração nesta práxis. Por iniciativa da ENECOS, foi organizada a primeira Semana de Democratização da Comunicação. Esta Semana ocorreu em outubro, por ocasião do Dia Mundial pela Democratização da Mídia (18/10, mas que vem sendo celebrado aqui no dia 17/10, por um equívoco cometido naquele ano), e reuniu, em diversos estados do país, milhares de militantes em torno de um objetivo comum. Atos públicos, debates, seminários, esquetes teatrais, exibições públicas de vídeos, entre outras atividades, movimentaram organizações e movimentos sociais que lutam por uma outra comunicação e por um outro modelo de outra sociedade. Pode-se dizer que a democratização da Semana se estendeu para a sua própria organização, pois nos anos seguintes a semana cresceu, saiu do âmbito acadêmico e foi pra rua, gerando Redes pela Democratização da Comunicação em vários Estados. Estas redes, abarcam várias entidades, coletivos e sujeitos da sociedade civil, não necessariamente ligadas envolvidas com o tema da Comunicação, mas que aprenderam a cobrar pela garantia do seu direito, se organizando para tal coletivamente.


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Cartilha Organizativa da Semana de Democratização da Comunicação

5. Começando a organizar a semana

7. Projeto

Por ser algo relativamente novo, a Semana de Democratizaão da Comunicação é algo que não tem uma formula fechada para organização. Pode se organizar a partir da vontade individual ou coletiva de pautar a democratização da Comunicação. (Aliás, sugere-se que a vontade seja coletiva. Entre outros motivos, fica mais fácil dividindo tarefas...) A questão é que as atividades ocorram na semana possam gerar frutos em outras atividades que ocorram permanentemente. A organização da Semana de Democratização da Comunicação deve ser pautada pela discussão e produção de Comunicação, e não pelo próprios eventos com fins em si mesmos. Ou seja, o importante é provocar idéias e aglutinar pessoas que já discutem ou querem discutir comunicação.

Para arrecadar recursos com prováveis parceiros, às vezes é necessário apresentar um projeto para onde será encaminhada a parceria. Nisso, é importante detalhar o máximo possível do que vai ser feito, desde o seu conceito, a justificativa da ação, detalhamento das ações já realizadas (caso já haja) e principalmente a argumentação da importância da Semana de Democratização da Comunicação e as vantagens de ser mais um parceiro (e quem também um dos protagonistas) desta luta. O projeto deverá prever quanto será gasto nas atividades propostas. Os principais pontos dos projetos são: » Apresentação: O que é o projeto, quais atividades compreende. » Objetivos: o que se pretende alcançar com tal atividade. » Justificativa: por que a realização da atividade é importante. » Formato: como se pretende realizar tal atividade. » Orçamento: Descrição dos custos do projeto. O tamanho do projeto, no papel, terá que ser o mais claro e detalhado possível. E deve ser do tamanho de sua atividade. Dependendo do tamanho de sua atividade, duas páginas já dão conta do recado.

6. Fontes de $ Em princípio não existe uma fonte fixa de recursos para viabilizar os projetos da Semana. O que existem são possibilidades. Como estamos falando de entidades e ou pessoas que, dia de regra, tem uma certa dificuldade em acumular recursos, vamos para outras possibilidades. Caso tiverem contatos, algumas entidades (Sindicatos, Universidades, associações de bairro, prefeituras...) podem contribuir disponibilizando infraestrutura, como salas, teatro, som... O ideal é fazer atividades que prescisem o menos possível de recursos financeiros. Ou seja, tentar conseguir obter o máximo possível de materiais necessários para realização das atividades de forma gratuita. Se a opção do coletivo que organizar a semana for de um evento grande, tem que ser avaliado se vale a pena o gasto financeiro frente a visibilidade política da atividade. Se necessário, fica difícil (mas não impossível, se planejado com muita antecedência) apoio com secretarias de cultura municipais e estaduais. Aliás, procure saber como é a política cultural de seu estado. Logicamente tem que ter um certo bom senso sobre a quem pedir ajuda. Por exemplo, a Rede Globo dificilmente ajudaria um evento desses. E se ajudassem, poderia desvirtuar os temas...

8. Mantenha o foco. Principalmente quando tiver um. No momento que estruturar a programação, e verba, è importante construir prioridades e os caminhos a seres seguidos. E ambos devem ser decididos coletivamente. A comissão organizadora da semana pode encontrar dificuldades de harmonizar o que foi idealizado com o que se tem para chegar a estes objetivos. E colocar em sintonia idéias, propostas e viabilidade de ação depende de sensibilidade. Assim, um ponto importe é consultar o coletivo e atender às decisões do grupo. Passamos muito tempo concebendo um projeto e é preciso por os meios, o dinheiro, a organização ao serviço dele. Gerir ou coordenar uma semana é como desenvolver um sistema de trocas entre comunicadores, Os comunicantes e coordenadores. E o objetivo dessa ação toda deve estar sempre muito claro e se confunde com os objetivos da própria semana.


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Cartilha Organizativa da Semana de Democratização da Comunicação

9. Produção

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Pior do que lidar com o problema, é lidar com o problema com a nítida sensação de que poderia ter feito algo para evita-lo. Para ser poupado de tamanho desgosto, preveja o máximo possível os problemas e imprevistos que podem acontecer. Não se deixe surpreender por questões que poderiam ser contornadas com antecedência. Resolva cada caso de cada vez, começando pelos mais importantes (e/ou mais fáceis)e não os deixem acumular. Ajuda se fizer uma lista das demandas, para saber oq eu ainda deve ser feito. O quanto antes começar uma produção, maiores são as chances de baratear os custos do(s) evento(s). Afinal, a negociação para permutas, empréstimos de equipamentos, possíveis gastos com transportes, entre outros, é facilitada. Se tiver um planejamento de utilização junto, melhor. Prova que o trabalho vai ser feito por pessoas que sabem o que estão fazendo. Se o coletivo organizador da atividade quiser trazer alguém para um debate ou oficina, isto estará delimitado no planejamento, por exemplo, e os recursos para tanto poderão ser buscados mais facilmente. Certifique-se que o público-alvo da atividade não terá sua atenção divida por outra atividade no mesmo horário. Lembrando que a pauta Comunicação, via de regra, sempre é deixado de lado por outras demandas pelos movimentos... Procure gastar menos do que foi planejado. Contrair dívidas definitivamente não são boas lembrança da Semana... Veja as condições do local no qual a atividade será realizada. Caso o evento a ser realizado tenha grandes proporções,è preciso verificar as condições de segurança e de socorro em caso de acidentes. E procure devolve-lo apóes o uso em perfeitas condições. Aliás, neste caso é interessante conversar com quem já tem experiÊncias em eventos maiores para saber como organiza-lo. Determine um numero específico de pessoas que seja os “anjos da guarda”, que estão na atitivade para qualquer eventualidade. Este grupo tem que ser maior ou menor conforme o tamanho do evento. E tem que estar preparado para ter iniciativa, jogo de cintura e criatividade para resolver as questões. Além de manter o controle dos horários.

10. Promoção/divulgação Para se saber que vai ter a Semana de Democratização, as pessoas tem que ficar sabendo dela. Como já foi discutido aqui a ausência de recursos fi nanceiros

como uma possibilidade real, a comunicação deve ser bem planejada para não gastar dinheiro À toa antes de colocar o bloco na rua. Centrar o foco em duas questões pode ajudar nesta tarefa: Publico-alvo e criatividade. É fundamental para criar o plano de comunicação da Semana definir para quem vocês querem fazer a semana. Ou seja, quem é seu Público-alvo. Ele pode ser formado por uma comunidade especifica ou por grupo de base da ação social da organização, por ongs, movimentos e a sociedade em geral. As características dos meios de comunicação a serem escolhidos vão depender, também, da definição deste público. Quanto maior e mais diversificado este público, diferentes estratégias de comunicação deverão ser utilizadas para atingi-lo, já que cada segmento social tem característica próprias que devem ser observadas na hora de pensar qual a melhor de se comunicar com cada um. E ter o perfil do público ajudará na construção da semana e na adesão de mais pessoas a articulação sobre o tema em sua região, o que pode determinar o aumento do Público e a formação de novos sujeitos políticos na luta pelo direito a comunicação, formando um circulo virtuoso de formação de novos militantes. Não é preciso ter muito dinheiro para realizar e sim criatividade. Não quer dizer que não usaremos as habilidades adquiridas nas Faculdades e na Luta social para publicar matérias a respeito da semana, além do Mailing das entidades que fazem parte da semana, e dos próprios organizadores.

11. Evento realizado. E agora? Alguns Locais tem coletivos que começaram organizando a Semana de Democratização da Comunicação, e depois continuam reunidos a partir outras demandas locais relacionadas à comunicação. podemos citar a RECAPES, no Espírito Santo e a RDC, em Brasília. Se quem organizou a Semana aí quiser, e mais gente se interessar, pode ser uma boa continuidade da luta. Sempre temos algo novo à aprender. Partindo daí que nossa prática pode ser mais eficiente. Esta cartilha se pretende um instrumento político para as atividades organizativas e formativas em comunicação. Pode ser na Semana, pode se em outro espaço. Sabendo que luta popular parte do diálogo, em que mais do que encontrar respostas, se apresentem mais e diferentes questões para pensarmos, nos inquietarmos e agirmos coletivamente, este trabalho não pode nem deve acabar aqui. O aprendizado continua. Sabendo que não existe receita pronta e acabada, e que devemos contar com a partilha de aprendizados anteriores para construir o novo, deixamos alguns


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Cartilha Organizativa da Semana de Democratização da Comunicação

endereços para que seja repassada a experiência local. Que pode futuramente (numa nova edição da Cartilha, por exemplo...), ser partilhada por mais gente.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia - Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra (Coleção Leitura), 1997.

INTErvozes comunicacao@intervozes.org.br Estamos esperando sua colaboração!

INTERVOZES. Relatório da Pesquisa Direito à Comunicação no Brasil. Disponível em: http://www.intervozes.org.br/arquivos/GGP.pdf. Acessado em 22/02/2006. INTERVOZES. Vozes da Democracia: histórias da comunicação na redemocratização do Brasil. São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.

12. Referências bibliográficas Livros: ASSIS, Érico Gonçalves de. Movimentos Sociais e Protesto Criativo. Projeto de pesquisa Em comunicação. Porto Alegre, outubro de 2003. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

SANTIAGO, Ilana Eleá. O movimento pela democratização da comunicação por jovens universitários : o caso da ENECOS e sua regional no Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro : PUC, Departamento de Educação, 2006. SETOR DE FORMAÇÃO DO MST. Método de trabalho e Organização Popular. Paraná, ANCA, 2005.

Cartilhas utilizadas:

BOGO, Ademar. O MST e a Cultura. Caderno de Formação nº34. São Paulo: ANCA, 2000.

INESC. Cartilha da Plataforma da Reforma do Sistema Político 2006. Disponível em http://www.inesc.org.br/publicacoes/cartilha/cartilha%20reforma%20politica.pdf/view . Acessado em 23/02/2007.

BRANT, João. Sociedade civil na luta pela democratização da comunicação. Observatório da Imprensa. Disponível em: http://observatorio.ultimosegundo.ig.com. br/artigos.asp?cod=309CID002 . Acessado em 22/02/2007.

UNE. Guia Prático Para Formação do CUCA. UNE, 2005. Disponível em http://www. inesc.org.br/publicacoes/cartilha/cartilha%20reforma%20politica.pdf/view . Acessado em 23/02/2007.

CASSOL, Daniel Barbosa. A DEMOCRATIZAÇÃO DA COMUNICAÇÃO NO BRASIL: Anotações Teóricas e História do Movimento. Monografia de conclusão do curso de graduação. UFRGS, Rio Grande do Sul, 2003.

Relação de Sítios na Internet:

FÁVERO, Osmar (organizador). Cultura Popular e Educação Popular: memórias dos anos 60. Rio de Janeiro, Graal, 1983.

FNDC – Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação – www.fndc.org.br.

ENECOS – Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação – www.enecos.org.br.

Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social – www.intervozes.org.br FREIRE, Paulo e SHOR, Ira. Medo e ousadia – o cotidiano do professor.7ª ed.. Rio de Janeiro: Paz Terra. 1997.

Observatório da Imprensa – www.observatoriodaimprensa.com.br

FREIRE, Paulo. Extensão ou Comunicação? 10 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1992.

Ralacoco – Radio Livre com princípios comunitários na UnB - ralacoco.radiolivre.org


Ensaio sobre o movimento popular em Ceilândia e a Educação Popular

Núcleo Rosa Luxemburgo


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1. Ensaio sobre o movimento popular em Ceilândia e a Educação Popular

SUMÁRIO Ensaio sobre o movimento popular em Ceilândia e a educação popular, 56 • Referências bibliográficas, 59.

O Curso de Realidade Brasileira promovido pela Consulta Popular iniciou em março de 2006. Desde então, teve-se a oportunidade de fazer uma leitura da realidade brasileira a partir de grandes pensadores. Tal leitura teve como objetivo levar-nos a ler a realidade além do senso comum, fornecendo-nos um olhar crítico, amplo e contextualizado sobre nossa realidade. Vários debates foram fomentados para pensarmos e repensarmos as lutas, a organização da sociedade brasileira, a atual conjuntura nacional e internacional. Num dos módulos estudou-se a história da construção da capital do Brasil, Brasília. Analisou-se com riqueza de informações como se deu a formação sócioespacial de Brasília, a mão-de-obra durante toda a construção, a origem dessa mão-de-obra, o objetivo para o qual a cidade foi construída. A partir do documentário “Velhos Companheiros de Guerra”, viu-se que, a história da formação sócio-espacial de Brasília se deu com objetivos claros de manter-se como uma cidade una, viu-se que Brasília não comportaria moradores como os trabalhadores “pobres” convivendo e integrando-se na cidade projetada para a elite. Chamou-nos a atenção a maneira como trabalhadores foram explorados em sua força de trabalho para a realização de um projeto que tinha como prioridade atender às necessidades da classe dominante. À medida que crescia o número de trabalhadores para consolidar a construção de Brasília, também crescia o número de famílias oriundas de diversos estados buscando além de trabalho, moradia, realização de sonhos e criando expectativas de uma vida digna conquistada com fruto de muito suor e trabalho. Percebeu-se que uma das maiores expectativas dos trabalhadores era a de viver na cidade com suas famílias. Sonhavam em viver na cidade que estavam ajudando a construir à custa de muita dor e sofrimento. Muitos conflitos ocorreram durante a construção de Brasília. Era clara e objetiva a coação sofrida pelos trabalhadores: falta de condições dignas de sobrevivência, poucas ou nenhuma garantia trabalhista, horas excessivas de trabalho, má alimentação, atendimento médico pouco ou nenhum, condições precárias nos alojamentos, trabalhadores amontoados e muitos distantes de seus familiares. Muitos trabalhadores perderam suas vidas. A repressão era a resposta a toda e qualquer forma de resistência, manifestação.


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Em meio a tanta desigualdade, Brasília foi sendo construída e, após sua construção deu-se um “jeito” para que os trabalhadores saíssem das imediações do centro elitizado, cidade rica, território das classes abastadas que era Brasília. No entanto, mesmo dando esse “jeito” para os trabalhadores saírem, a resistência da classe trabalhadora foi grande. As mobilizações ocorreram de maneiras variadas. Os trabalhadores sentiam-se parte dessa cidade, admiravam-se com a paisagem que, com o fruto do seu trabalho, construíram. Várias famílias já estavam instaladas, partilhando sonhos, imaginando criar seus filhos e filhas nesta terra. Na “Cidade Livre”, atual Núcleo Bandeirante, havia mais de dez favelas. A cada dia, atraídos pelas promessas de melhores condições de vida e emprego, chegavam mais famílias e assim aumentava o problema da falta de moradia. As favelas da cidade livre eram formadas por trabalhadores da construção civil. Após a construção de Brasília, essa cidade seria desmanchada. Crescia às “margens de Brasília” o número de favelas e isso incomodava a classe social dominante. Inicia-se logo uma maneira de retirar do espaço urbano de Brasília esses inúmeros trabalhadores “favelados” que, agora enfeiavam a cidade. Arquitetam logo a idéia de que tais favelas, como as formadas pela “invasão” do IAPI e das Vilas Tenório, Bernardo Sayão, Esperança e Morro do Querosene, sejam retiradas para outro local distante do Plano Piloto. Esse processo de retirada dos trabalhadores do centro de Brasília consistia, para a classe dominante, em limpar a cidade daqueles que já não lhe serviam mais, ou seja, toda a força dos trabalhadores tinha cumprido sua função: somente construir Brasília e jamais usufruir da cidade construída. Essa situação de segregação e opressão faz lembrar a letra da música “Cidadão”, cantada por Zé Ramalho, na qual é relatada a realidade vivida por inúmeros trabalhadores e trabalhadoras. Nesse contexto, surge então, a Cidade de Ceilândia que, segundo estudiosos, começa a existir como cidade antes mesmo da sua inauguração. Cria-se essa cidade para erradicar as invasões, ou seja, a sigla CEI – Campanha de Erradicação de Invasões dá origem ao nome “Ceilândia”. A sigla por si só demonstra todo o caráter discriminatório, segregador e a intencionalidade da ação: erradicar, ou seja, acabar com os trabalhadores próximos de Brasília. A intenção ainda é provocar, causar bastantes dificuldades, entraves para que os trabalhadores não chegassem perto dela. Não poderiam usufruir de seus edifícios, hotéis e restaurantes por eles levantados. Desta forma, a cidade de Ceilândia tem seu início com um forte estigma de

55 exclusão, surge para ser “depositário dos incômodos habitantes que enfeiavam a imagem da nova e moderna capital”. A campanha de Erradicação de Invasões (CEI) iniciou em 27 de março de 1971. Foi a primeira experiência de remoção de favelas do Governo no Distrito Federal. Tal remoção, tal campanha de erradicação não se deu de forma tranqüila. Houve resistência por parte dos trabalhadores que alimentavam ilusões de viver em Brasília. Muitos trabalhadores, muitas famílias, resistiam e se recusavam a sair. Em meio à opressão, à coação, os favelados, cerca de 80 mil pessoas, têm seus barracos removidos para Ceilândia. São desrespeitados em seu direito de escolha, têm suas raízes de amizades e trabalho cortadas, são de novo iludidos com falsas promessas de moradia e melhores condições de vida. São finalmente removidos, varridos do espaço urbano de Brasília. Ceilândia, a cidade dos erradicados desde a sua fundação, sofre com o total desamparo do governo. A cidade não tinha água, luz elétrica, transporte coletivo, saneamento básico nem escolas. Era um amontoado de tábuas e barracas improvisadas, sem ruas e no meio do cerrado. Só havia áreas demarcadas com lotes de quadras e entrequadras. A cidade foi se consolidando e aos poucos sendo construída com a iniciativa dos moradores, com os trabalhos coletivos para construírem suas moradias. A mobilização popular e a resistência dos trabalhadores mais uma vez se fazem presentes. É por meio da organização popular que Ceilândia busca construir também uma identidade própria, a partir de ações coletivas para conquistar dignidade e cidadania. Percebeu-se que, durante o período de consolidação de Ceilândia, até meados dos anos 80, houve várias manifestações, várias mobilizações populares. Muitos movimentos sociais surgiram e lideranças locais foram formadas para organizar a população em busca de uma vida melhor, condições de vida digna, legalização dos lotes, trabalho, escolas e saneamento básico. É sabido que o contexto era favorável a manifestações populares, pois havia várias bandeiras levantadas no contexto nacional. No entanto, houve muitas lutas pontuais. A impressão que se tem hoje é que Ceilândia não tem mais problemas. Onde estão as manifestações? E hoje? Estamos no ano de 2007 e nos perguntamos: onde e como está o movimento popular de Ceilândia? Que movimentos o movimento popular da Ceilândia anda realizando em prol das manifestações populares? Hoje, por que lutam? Quais são suas bandeiras?


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Ceilândia cresceu bastante. A cidade tem grandes centros comerciais, setor de indústria desenvolvido, gera empregos e a população cresce a cada dia. No entanto, os problemas sociais foram e continuam sendo muitos: falta de saneamento básico, escolas, postos de saúde, hospitais, postos policiais, espaços de lazer e cultura. Para tentar responder às questões acima citadas, foi feita pesquisa relacionando as instituições que compõem o que se chama de movimento popular em Ceilândia. Destas instituições, muitas trabalham para atender demandas específicas (casas de recuperação de adictos, creches, portadores de HIV etc). As atividades desenvolvidas, em sua maioria, têm caráter assistencialista, ou seja, não têm perspectiva de transformação social. Acredita-se que seja necessário rever as formas de organização dos grupos e reafirmar propostas como: o método de educação popular, baseado em Paulo Freire; a vigilância permanente da forma como se exerce o poder nos grupos; e firmar encaminhamentos que possibilitem superar o capitalismo e não somente organizar ações assistencialistas. É necessário lembrar que existe uma distinção entre movimento popular e movimento social. O movimento social é o movimento global das entidades (ONGs, grupos organizados, cooperativas etc.) que trabalham em função de demandas específicas. Movimento popular é o que congrega e mobiliza o mundo popular – assalariados(as), desempregados(as), excluídos(as) e marginalizados(as). O movimento popular se caracteriza pela particularidade de ser centrado numa demanda, que pode ser material ou simbólica. O movimento popular pode ser: lúdico (circo, teatro, arte, estéticos); de produção ( atender a sobrevivência imediata: costura, horta, farmácia comunitária); de organização ( para fazer maior esclarecimento a respeito das coisas, cursos de atualização); de qualificação profissional ( tipo computação). Tudo isso pode estar na linha do movimento popular, desde que aberto a uma perspectiva mais ampla do ponto de vista estratégico. Muita gente confunde fazer grupo ( roda, exercício corporal) com Educação Popular. O que caracteriza a Educação Popular dinâmica é, em parte, a aplicação de uma metodologia. Mas, o que caracteriza a metodologia Educação Popular é estar aberta a visão estratégica, como crítica a sociedade atual, capitalista neoliberal. Nas últimas décadas vivemos um processo onde poucos movimentos sociais fazem trabalho de base e formação de lideranças. Com isso constatamos que, apesar da boa vontade, as práticas pedagógicas se aproximam mais a educação

56 bancária de lutas pontuais, que um processo de educação libertadora, o que configura um distanciamento entre a teoria e a prática que vivenciamos. Existe uma cultura imediatista. Estamos sempre fazendo lutas pontuais que são contrárias à perspectiva da educação popular. Esta educação destaca mais o processo do que o resultado. O método de educação popular tem que levar em conta ação e reflexão. Ação fundamentada na pedagogia freiriana, que atenda à “Nova Realidade”, e não busca resultado de curto prazo, é processo de longo prazo, que visa a transformação, no qual as pessoas sejam sujeitos, protagonistas desta transformação. Ao observar o trabalho e entrevistar alguns membros do movimento popular em Ceilândia, percebemos que falta ao Movimento Popular incorporar em sua práxis alguns fundamentos da Educação Popular, tais como: Participação/reciprocidade - participação de todo o grupo no processo de construção do conhecimento. Na maioria dos grupos observados e entrevistados, o processo é construído para as pessoas e não construído com elas. Desta forma, não ocorre a transformação do sujeito e muito menos a transformação do mundo social no qual ele está inserido. Assim, não se constrói o sujeito da história, sujeito crítico e com capacidade de analisar e transformar a realidade ao seu redor de maneira criativa, construtiva e coletiva. Acredita-se que uma efetiva Educação Popular deve realizar um trabalho de educação com o povo, esse não deve ser considerado como apenas beneficiário do trabalho. O trabalho popular não pode ter caráter assistencialista, pois o assistencialismo imobiliza, aliena. O trabalho popular deve despertar nas pessoas o desejo de mudar, de transformar a si mesmo, de transformar a realidade da sociedade. A Educação Popular visa a despertar o potencial criador presente em cada pessoa, tornando-o sujeito ativo, protagonista de sua própria história. Para que isso aconteça, as pessoas devem se sentir valorizadas quanto às suas idéias, quanto aos seus diferentes saberes, as lideranças devem deixar claro que o processo de construção está “nas mãos de todos e todas’’, que todos são sujeitos transformadores e realizadores. São responsáveis pela transformação coletiva. O estar no Movimento Popular não deve ser somente com o objetivo de superar problemas, dificuldades individuais pontuais, mas visar à construção e transformação coletiva da sociedade. No trabalho popular é necessário frisar a importância do social, do político e do poder. Notamos que muitas lideranças ainda vêem o trabalho popular como uma “espécie de caridade” e não vislumbram a possibilidade de transformar a estrutura perversa. Por isso as lideranças devem ter uma formação contínua para ter clareza do que está por trás da ação das forças opressoras presentes na sociedade.


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Ensaio sobre o movimento popular em Ceilândia e a Educação Popular

Dialogicidade - viver a experiência de diálogo quando as idéias que produzimos são resultados de um processo recíproco, participativo e coletivo. Ouvir não só por ouvir, mas ouvir aceitando opiniões. A Educação Popular tem de escutar os diferentes saberes, valorizá-los, mas tem de ir além da escuta. Deve-se confrontar idéias e, a partir daí, o educador popular irá mediar a construção de “novos saberes”, pautados na análise e transformação da realidade. O diálogo na Educação Popular é essencial, mas tem de ser fala e escuta, troca verdadeira e não um mero instrumento, é o fio condutor que leva a um processo coletivo e grupal de conscientização política. O Movimento Popular deve estar atento em não querer conscientizar ninguém. Segundo Paulo Freire, ninguém conscientiza ninguém, a conscientização tem de ser um processo de descoberta coletiva. As lideranças, os grupos cotidianamente devem refletir sobre a intencionalidade do seu trabalho e se questionar para que estão trabalhando, para a transformação ou para a manutenção? Não há um trabalho que seja neutro, muito menos o trabalho popular! Ou se trabalha para transformar a realidade ao nosso redor, ou se trabalha para manter a ordem do poder opressor. Emancipação/Transformação do sistema opressor, conduzindo à liberdade, libertação. Por meio dela, não nos contentamos com as desigualdades, com as injustiças e não nos acomodamos. Despertamos para um projeto coletivo de inclusão em todos os sentidos: político, social, econômico, cultural e educacional. Na maioria dos grupos observados não “ouvimos” e nem conseguimos vislumbrar um trabalho que leve à revolução, ao socialismo ou mesmo à transformação do sistema. O que notamos foi a preocupação com a resolução de seus problemas imediatos como: a aquisição de um lote, preocupação com a segurança, o emprego, a cura de um vício, “eu” tenho de me salvar, “eu” tenho de conseguir comprar etc. Não há uma preocupação com o coletivo, em estudar o que está por trás da violência, da falta de melhores condições de vida, de lazer, de cultura, análise da vida em todos os âmbitos. O Movimento Popular por meio da Educação Popular deve analisar o que está por trás da desumanização, do empobrecimento, da valorização do “ter” e não do “ser”. É necessário também pensar em novas formas de se chegar às pessoas, em novas linguagens. Não é possível continuar usando o mesmo discurso que usávamos nas décadas de 70 e 80. Vivemos um novo tempo, com novas demandas, temos de valorizar mais a cultura popular, valorizar outros códigos, dança, teatro etc. Cuidar das relações de afeto, solidariedade, amor.

Educação popular é comprometida com a participação democrática, constrói sujeitos da história. Desenvolve a ética de defesa da vida, o compromisso com a inclusão, valoriza e cuida das pessoas, trabalha por sua emancipação e liberdade. A educação popular é um processo criador e não instrumento, pois a transformação inclui a transformação de nossas ações diárias, prática cotidiana. E isso é processo, que desenvolve as capacidades de criar, sonhar, construir coisas novas, de mudar. Possibilita também a partilha de tudo isso, a partilha do saber. O fazer do movimento popular tem de levar tudo isso em conta, e mais: ter sempre como foco as pessoas mais empobrecidas. E que ou nos salvamos todos ou não salvamos ninguém. A transformação é plural, para todos e todas, na coletividade. Temos de aprender a nos transformar a nós mesmos por meio dos outros, dialogicamente, com o outro e por meio do outro. Núcleo Rosa Luxemburgo Integrantes: Andréia Jordânia Martins Soares, Arthur Sinimbu, Cícero Fernando Barbosa da Silva, Gracilene Santana, Magda Maria da Silva, Márcia Alves Ximenes, Mônica de Souza Santos, Roberto Vieira

2. Referências bibliográficas FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 8 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. FREIRE, Paulo. À sombra desta mangueira. 5. ed. São Paulo: Olho d’Água, 2001. MACHADO, Maria Salete Kern. Ceilândia - Mapa da Cidadania.Brasília: UnB, 1998. SCHINELO, Edmilson (org.) Bíblia e Educação Popular. Encontros de solidariedade e diálogo. Série A Palavra na Vida. São Leopoldo – RS: CEBI, 2005.


A Cidadania e os Programas Sociais – Um Estudo Sobre o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil

Maria Lúcia Pereira e Sonia Maria Costa Ferreira (Consulta Popular)


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RESUMO

SUMÁRIO Resumo, 61 • Introdução, 62 • Justificativa, 63 • Objetivo, 63 • Metodologia, 63 • Fundamentação teórica, 63 • Considerações gerais, 65 • Referências bibliográficas, 66.

O trabalho infantil, tema deste estudo, reflete profundas contradições históricas da relação dos homens entre si. Tema imbuído de visões conservadoras, o torna mais complexo por que embora o mesmo esteja na agenda política, pelas organizações mundiais de defesa dos direitos humanos, a questão não é vista da mesma forma pelo conjunto da sociedade. Mostra as contradições quando desmistifica a crença em um projeto societário que tenha levado a um desenvolvimento e a um crescimento sustentável para todos. Ao contrario este projeto de sociedade caminhou e fortaleceu a barbárie e o sofrimento das pessoas, perpetuando nestes tempos de globalização formas tradicionais de exploração e sacrifício de milhares de crianças e jovens expostos aos mais diversos tipos de maldade, desde a fome, a solidão, o abandono e a falta de perspectiva de vida. A realidade brasileira, marcada pela inserção subordinada do país ao mundo globalizado e por políticas neoliberais, pelo aprofundamento da miséria e da pauperização, uma questão se coloca: qual o significado das políticas sociais? A maioria das ações de combate ao trabalho infantil busca assegurar às famílias das vítimas apoio financeiro para compensar a renda até então auferida por elas. Recusando a idéia de que o horizonte possível na ordem burguesa atual seja a adoção de políticas sociais que resultem em padrões aceitáveis de pobreza e que pode ser um instrumento que contribui para a inclusão social; Este estudo permite uma maior compreensão do processo social e histórico por meio do qual a ideologia do trabalho como educador, dignificante, se estabeleceu nas mentalidades do povo brasileiro e orientou as políticas públicas voltadas para a criança. Palavras chaves: trabalho infantil, cidadania e políticas sociais.


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1. Introdução O objeto deste estudo é compreender a concepção sobre o trabalho no Brasil, identificada nas políticas voltadas para a criança e o adolescente, tendo como recorte para estudo o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil. Ao debater a construção deste projeto, necessariamente, partimos de várias questões – Qual a relação do PETI com a cidadania? Qual é a emancipação do pobre, é se libertar da ajuda? A emancipação do pobre é ser rico? A culpa da pobreza é do individuo? - que na verdade gira em torno de praticamente uma única, qual seja, a concepção das políticas sociais brasileiras, aqui entendidas como programa social. Muito se tem escrito, debatido, falado, sobre crianças e adolescentes no Brasil, principalmente para chamar a atenção para a violação de direitos que grande parte dessa população enfrenta cotidianamente: maus tratos, abuso e exploração sexual; trabalho infantil; desaparecimento; fome e abandono. Esta realidade pode ser confirmada por indicadores que são fartos e unânimes em dizerem que as crianças e os adolescentes sãos os mais expostos as conseqüências da pobreza. No entanto, muitas pesquisas mostram que, aliada à permanência de grande número de crianças no trabalho, observa-se a crença das famílias, das próprias crianças, dos empregadores e até mesmo de muitos agentes encarregados do combate a esse tipo de trabalho, de que ele só trará benefícios para as crianças. Avalia-se, que a ação de combate a este tipo de exploração encontra-se comprometida em face de aspectos subjetivos afirmativos do trabalho, de modo que seu sucesso parece condicionado ao desvelamento. A noção de pobreza que prevalece, inclusive, na Constituição Federal de 1988, é a da pobreza absoluta ou privação extrema, que se caracteriza pela ausência de requerimentos mínimos necessários para manter a vida ou subsistência de pessoas submetidas a essa condição. Neste caso, se as pessoas não se sujeitarem as estratégias de sobrevivência, que podem incluir o trabalho escravo, a mendicância, a prostituição, o furto e outros, elas perecerão. A pobreza absoluta constitui-se assim numa categoria que legitima, estimula e perpetua ações emergenciais, mecânicas e pontuais. (Potyara, 1996) A pobreza relativa leva em conta o padrão de vida de todos os membros de uma dada sociedade na definição de pobreza. A definição varia de acordo com o nível de afluência das sociedades e com as mudanças estruturais das necessidades sociais e exige conhecimento aprofundado dos processos de desenvolvimento e de distribuição de riquezas nacionais. A noção de pobreza relativa ou de desigualdade social, requer estudos e pesquisas para informar as ações assistenciais, assim como o planejamento, sistematicidade, continuidade

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e previsibilidade na formulação de ações de combate e de enfrentamento, de benefícios, serviços e direitos. A noção de pobreza relativa apesar de não pressupor a equalização na sociedade ela permite, ao menos, aos que decidem e executam políticas sociais levantar a questão fundamental da redistribuição relativa dos recursos entre os ricos e os pobres. Ao contrário, a noção de pobreza absoluta considera a desigualdade um fenômeno natural, indispensável ao desempenho eficaz da economia e das relações sociais numa sociedade dividida em classes. A valorização deste tipo de pobreza, tem se transformado na mais cruel e inaceitável dos programas de bem estar e num retrocesso político. Aceitar essa noção é enclausurar os pobres no círculo fechado da reprodução geracional da pobreza ou na armadilha da pobreza. A Lei dos Pobres de 1834, foi um arranjo institucional caracterizado pela coerção e controle, visando mais a proteção do sistema econômico do que a vida do trabalhador. Naquela época, no entanto, os direitos sociais não tinham emergidos e não tinha sido proclamadas as Constituições. Mesmo com tantas ameaças à vida humana, vive-se hoje sob a égide dos direitos (Potyara, 1996, pg. 62), direitos que acompanham o movimento da história das civilizações e incorporaram novos encargos. A demanda por maior bem estar e igualdade a qual pode ser atendida por intermédio do Estado, todavia, os esquemas de assistência pública contemporânea, no modelo neoliberal, conservador, expressa a equivocada valorização da ideologia anti-Estado. Embora, no seio da sociedade existe a difusão no inconsciente social de que a pobreza depende em grande parte da irresponsabilidade dos próprios pobres, a nossa convicção é de que a pobreza não é uma fatalidade. A pobreza é uma relação social, um fenômeno produzido no seio da sociedade. As pessoas não nascem pobres elas são ao longo da vida empobrecidas, pois as estruturas políticas, econômicas e culturais são mantidas por uma minoria da população brasileira que concentra o poder e a riqueza em suas mãos. O Estado aqui compreendido como uma estrutura social tipo de uma rede de controle para mediar o conflito entre as classes. O Estado está a serviço de uma classe dominante que não é a classe trabalhadora, se entendermos que o Estado media a luta de classes e que a sociedade capitalista é formada pela classe burguesa e pela classe dos trabalhadores então se conclui que o Estado brasileiro é um Estado burguês.


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2. Objetivo Estudar o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, tendo em vista, a análise da dimensão de sua relação com a cidadania. Sem grande pretensão, pretende-se contribuir com a reflexão e o debate, na perspectiva de mostrar se as políticas sociais realmente buscam estratégias de enfrentamento da pobreza e se estão direcionadas ou afiançadas nas demandas advindas da necessidade de libertação e de emancipação do dito cidadão. O presente estudo parte da compreensão de que a perspectiva de erradicação do trabalho infantil requer, da parte dos responsáveis pela formulação e implementação das propostas nessa direção, considerar a necessidade de combater os aspectos subjetivos dos sujeitos envolvidos, no sentido das crenças pessoais de patrões, famílias e crianças sobre o trabalho.

3. Metodologia Esta é uma pesquisa de natureza simples, um exercício de reflexão, é uma analise documental, sobre o que expressa os documentos oficiais, os quais dão sustentação teórica e prática, ao modelo das políticas publicas destinada aos pobres. Trata-se de um estudo fundamentado na leitura de documentos produzido no Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome-MDS.

4. Fundamentação Teórica Pensar as políticas sociais de um modo geral supõe pensá-las no contexto das contradições da sociedade capitalista, que reside na produção coletiva de riqueza e sua apropriação privada. O processo de acumulação capitalista produz o trabalhador disponível para o capital, uma população sempre maior do que as reais necessidades da acumulação. O resultado é a produção de uma classe trabalhadora diversificada na sua forma de inserção na produção, mas que tem em comum o fato de sua sobrevivência depender da venda da sua capacidade de trabalho, o que por sua vez depende das demandas do capital. O resultado é a produção da pobreza, originada nos baixos salários dos que se encontram incluídos no mercado de trabalho formal e as mais diferentes situações de inclusão precarizada ou subordinada[3] para a grande parcela que não consegue existir para o capital.

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Estas contradições estão na base da questão social e do surgimento das políticas sociais. A questão social é aqui entendida como “conjunto de expressões das desigualdades sociais engendradas na sociedade capitalista madura” (Iamamoto, 2001, p.16), a partir das mobilizações operárias do século XIX. As lutas desse período trouxeram para a cena política e econômica as reivindicações da classe operária, a denúncia da miséria e do pauperismo produzidos pelo capitalismo e exigiram a interferência do Estado no reconhecimento de direitos sociais e políticos desta classe. No contexto brasileiro, marcado pela inserção subordinada do país no mundo globalizado e por políticas neoliberais, pelo aprofundamento da miséria, da pauperização e da velha questão social, que assume novas expressões, uma questão se coloca: qual o significado das políticas sociais? Diante desta questão é possível visualizar duas possibilidades: a primeira é de que a assistência social estaria condenada a reproduzir o “status quo” e, portanto, jamais poderia constituir-se como uma política pública capaz de assegurar direitos sociais. A segunda é a de que, no contexto atual, ela pode ser uma política social que, orientando-se por padrões de universalidade e justiça e não de focalização, devolva a dignidade, a autonomia, a liberdade a todas as pessoas que se encontram em situações de exclusão e abra possibilidades para que adquiram condições de existir enquanto cidadãs(os). Neste sentido ela pode ser uma política social que contribui para a inclusão social[4] e para a incorporação de uma cultura de direitos pela sociedade civil. A presente reflexão opta por este segundo caminho, recusando a idéia de que o horizonte possível na ordem burguesa atual seja a adoção de políticas sociais que resultem em padrões aceitáveis de pobreza.

5. Trabalho e infância Segundo os estudiosos, sobre o tema infância, até o século XVI o índice da mortalidade infantil era muito alto, dificilmente uma criança passava de sete anos de idade. Quando sobrevivia era logo inserida no mundo do adulto, participando da vida social e cultural de seus pais. A partir do século XVII a criança passa a existir, significa que se constrói um “sentimento de infância”, não é a mesma coisa que afeição pelas crianças. No século XVII observou-se o ocaso do feudalismo e o redimensionamento da estrutura produtiva, em direção ao capitalismo. Naquele contexto, igual transformação ocorreu na forma de se entender a família., de modo que, a partir de então, atenção especial foi destinada ao espaço privado, no qual as crianças incluíam-se de forma indiferenciada,


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daí brotando o sentimento moderno de infância. A nova família toma para si um importante aspecto da formação do “novo homem”, qual seja o ensino cotidiano dos afazeres domésticos e dos ofícios, emprestando ao trabalho o sentido primordial de educativo, formador (Ariès, 1978; Patto, 2000). As classes dominantes começaram a considera a criança de hoje como o homem de amanha, o responsável pelo e futuro da Nação. É uma ilusão imaginar que o trabalho das crianças e dos jovens seja uma novidade histórica. No século XVIII, a exploração de mão-de-obra infantil em atividades produtivas, persiste em se fazer presente. Nesse caso, de maneira geral, a procura dos capitalistas pelo lucro fácil, a miséria das famílias que abandonavam seus filhos nos orfanatos ou os alugavam para os donos de fábricas e a ideologia religiosa que possibilitava a todos se valerem das crianças, sem culpa e sob o manto da formação moral, foram os fatores que se integraram no sentido de fazer convergir para a indústria capitalista inglesa milhares de braços infantis. (Herculano Ricardo Campos Alex Reinecke de Alverga Trabalho infantil e ideologia: contribuição ao estudo da crença indiscriminada na dignidade do trabalho ).

“Diferenças de idade e de sexo não tem mais validade distintiva social para a classe trabalhadora. São todos instrumentos de trabalho, mais ou menos caros para serem usados, de acordo com sua idade e sexo” (Karl Marx e Frederico Engels em o Manifesto Comunista).

“A idéia de infância como se pode concluir, não existiu sempre, e da mesma maneira. Ao contrario ela aparece com a sociedade capitalista, urbano-industrial, na medida em que muda a inserção e o papel social desempenhado pela criança na comunidade. Se, na sociedade feudal, a criança exercia uma papel produtivo direto (“de adulto”) assim que ultrapassava o período de alta mortalidade, na sociedade burguesa ela passa a ser alguém que precisa ser cuidada, escolarizada e preparada para uma atuação futura. Esse conceito de infância é, pois, determinado historicamente pelas formas de organização da sociedade.” (KRAMER, 1984:p.19)

O sentimento da infância pode ser entendido em dois aspectos o da “paparicação” – o adulto via a criança como um ser incompleto, dependente e fraco. E o aspecto da “moralização” – a criança não era ainda considerada um ser social dependendo o desenvolvimento da criança de seu desenvolvimento

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cultural. A aceitação de uma fase da vida diferenciada, a infância, resultava em novas atitudes em relação da criança: de um lado, era preciso preserva-la da corrupção do meio, mantendo sua inocência; e do outro era preciso educa-la, desenvolvendo seu caráter e sua razão.(Áries, 1975). Neste período, no Brasil, nossas crianças eram os indígenas, os pagens, órfãs portuguesas e os filhos de portugueses que vinham em navios enviados pela monarquia para viver ou, no caso das órfãs para casar no Brasil. A educação destas crianças era dada pelos jesuítas, baseada no amor, disciplina e castigo. Sendo que a infância era e até hoje é o melhor momento para a catequese. O objetivo dos jesuítas era domestica-las para servir a Deus e a ordem da colônia. No Brasil, século XVIII e século XIX, pelos motivos de dificuldade financeira em não poder criar os filhos; pela preservação da honra, no caso das solteiras; e no caso das escravas pela necessidade de ver os filhos livres, muitas mães entregavam seus filha para a Roda Exposta – instituição de caridade mantida pela Santa Casa de Misericórdia, tinha como objetivo salvar para a adoção, mas poucas foram adotadas, eram entregue as ama de leite e com elas permanecia, recebiam uma ajuda da Santa Casa até a criança completar 7 ou 12 anos, a partir daí era permitido a exploração do trabalho da criança de forma remunerada ou em troca de casa e comida, situação muito comum. A partir do século XX, no Brasil a criança passa a ter importância para o Estado não se restringindo os cuidados a elas mas a família e à classe medica. O Estado passa a ver a criança como o futuro do país, entendendo que a criança de hoje se tornaria o homem de amanha, criou instituições voltadas para a assistência infantil tais como: Departamento Nacional da Criança (1940), Serviço de Assistência a Menores (1941).( KRAMER, 1984). A partir da década de 1930, as crianças órfãs ou abandonadas passaram a ser chamadas de “menor”, termo utilizado pelos juristas para classificar os menores de 21 anos de idade. A criança abandonada passa a ser menor. Institui-se a diferenciação entre criança “filhos de famílias” e “menor”. Os “filhos de famílias” cujos pais podem se encarregar de seus sustento, educação e proteção tem uma “infância “ para ser vivida com estudos, brincadeiras, lazer e etc; e os filhos de famílias pobres e os “menores” cujos pais não tem condições financeiras de mante-las em suas necessidades básicas precisam trabalhar, ou junto com os pais ou sozinhos, são vistos como a “outra infância”. Embora nesta diferenciação esteja embutida a conotação preconceituosa, há o reconhecimento de que as crianças dependem dos adultos. As diferenças históricas entre os “filhos de famílias” e os “menores” são retratados nas estatísticas. O Relatório da Situação Mundial para a Infância, da Organização Internacional do Trabalho-OIT, aponta que cerca de 250 milhões


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de crianças trabalham em todo o mundo, muitas delas em situação de alto risco para a saúde.

6. Política social e cidadania Em todo instante entramos em contato direto com as políticas sociais e em cada momento histórico surgem novos programas de assistência para idosos, crianças, adolescentes, pessoas portadoras de deficiência, índios, mulheres, doente, presos. As políticas sociais ora são vistas como dádivas, ora como mecanismos de manutenção da força de trabalho, ora como conquista dos trabalhadores, ora como instrumento de garantia ao aumento da riqueza ou dos direitos humanos. Na atualidade está na agenda em todo o mundo a política social como direito humano. Os programas sociais se apresentam sob forma de benefícios ou de serviços. As organizações privadas e estatais se encarregam de oferece-los e estão muito entrosados na administração e gestão destes programas. Os benefícios são auxílios repassados para os trabalhadores com perda ou diminuição da capacidade de trabalho a fim de garantir sua subsistência e ao pobre desempregado. Os liberais argumentam que as políticas sociais destinam-se a corrigir os efeitos malignos produzidos pelo crescimento capitalista. Teria finalidade redistributiva e o objetivo de reduzir as desigualdades geradas na esfera da produção. Observase, contudo, que, enquanto estratégia governamental, é incapazes de promover uma real melhoria das condições de vida da classe trabalhadora. O Estado atende apenas aquelas reivindicações que são aceitáveis para o capital e para o grupo dirigente. Ao mesmo tempo, o seu surgimento acaba revelando as limitações das teses liberais em defesa do livre jogo do mercado e de uma compreensão da pobreza como algo natural, evidência da inferioridade do pobre e sobre a qual o Estado não deve interferir. Contudo, não é somente a degradação das condições de vida do trabalhador e as suas reivindicações que determinam o surgimento das políticas sociais. Historicamente, os direitos sociais e as medidas jurídicas que consagram as políticas sociais vinculam-se também as alternativas encontradas pelo capital frente à crise de acumulação enfrentada. Sob a teoria econômica liberal é no mercado que o individuo satisfaz suas exigências de bens e serviços, portanto adquire seu bem-estar. As políticas sociais aparecem como compensações isoladas para cada caso constituem um sistema político de mediações que visam a articulação de diferentes formas de reprodução das relações de exploração e dominação da força

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de trabalho entre si, como o processo de acumulação e com as forças políticas em presença. Manter o trabalhador é uma forma de garantir o trabalho, a relação de trabalho, de forma renovada dentro de um mínimo indispensável para a subsistência e de um máximo aceitável pelo capital e pelo governo para que seja repassado ao preço dos produtos e aos impostos pagos pelos cidadãos. Os paises mais ricos da Europa, capitalistas, adotavam a garantia de direitos sociais em circunstancias diversas, adotando o discurso da igualdade, implantou suas políticas sociais com foco na garantia de acesso do cidadão aos bens e serviços dito como acesso universal, sem barreiras, é o mínimo oferecido a todos. Mas só ao final da Segunda Guerra e que se generalizou o sistema de proteção social ao individuo sem renda, como é o caso do seguro-desemprego, do salário família de da formação profissional. Esse sistema de seguridade garante serviços e benefícios do Estado para o cidadão, desde o nascimento até a morte,. É chamado de Estado do Bem-Estar. O Estado grante ao cidadão a oportunidade de acesso gratuito aos serviços e benefícios mínimos para todos; tudo isso estabelecido em legislação. Tal igualdade refere-se a um mínimo para a subsistência do individuo, não altera a distribuição da renda. Os excluídos do trabalho recebem assistência publica em condições muito especiais. São destinados aos incapazes. No Estado de Bem-Estar social a restrição ao acesso a bens e serviços está articulada ao desenvolvimento do capitalismo e de suas contradições. O Estado deve manter os mecanismos de trabalho e as relações capitalistas de produção ao mesmo tempo que regula as atividades do mercado e atende a prestação de serviços e benefícios como direito da cidadania. Essa concepção se baseia na neutralidade do Estado; no consenso entre homens e o Estado visa a justiça e na igualdade. Na América Latina, existe uma grande diversidade nas políticas sociais, os paises possuem sistema de seguros sociais e programas de assistência limitados por inúmeras condições obedecendo critérios estabelecidos por agentes governamentais e não governamentais, devido as profundas desigualdades de classes não são de acesso universal e tem como alvo determinadas categorias e não significa que a garantia segura e permanente de direito incontestável. Os benefícios surgem como uma vantagem pessoa, como favores do Estado e que os obtém parece ficar devendo uma obrigação. O modelo implica um sistema de integração e exclusão controlada, não leva ao pe da letra o acesso garantido em lei, generalizado para a cidadania e com opções de escolha de serviços. Articulase o acesso de acordo com as categorias do momento: pobre, carente, cidadão, trabalhador, etc. , conforme a correlação de forças, as crises e as necessidades de legitimação. O cidadão pobre tem certos direitos, “iguais aos ricos”, porem só para manter sua subsistência e o processo de produção de riquezas, é preciso que venda sua força de trabalho ao capitalista.


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A política social da infância (menores, creches, lazer, escola, adoção, reeducação, sistema judiciário) vinculada à manutenção da família como prioridade mantém e forma a reserva da futura mão de obra.

7. O trabalho infantil e o programa de erradicação do trabalho infantil - PETI A legislação brasileira define criança como todo aquele com idade inferior a 18 anos, consideram criança a pessoa com idade até 12 anos e adolescente a que tem idade entre 12 e 18 anos incompletos. O trabalho infantil presente ao longo da historia do Brasil, remonta suas origens á colonização portuguesa escravagista. As crianças indígenas e filhos de escravos foram os primeiros a sofrerem com o trabalho infantil, retratando assim a estrutura de produção e distribuição de riqueza fundamentada na desigualdade social. Com o processo da industrialização manteve intacta essa estrutura de desigualdade, grande contingentes de crianças ingressaram no sistema produtivo ao longo do século XX. Na década de 80, 62% da renda nacional pertenciam aos 20% mais ricos da população e apenas 8% da renda era dividida entre os 40% mais pobres. Com esta situação o Brasil foi reconhecido mundialmente como um dos paises com os maiores índices de desigualdade social, expresso na concentração de renda. Em 1980 o numero de crianças e jovens com idade entre 5 e 17 anos era cerca de 37,5 milhões de pessoas, ou seja, 18% da população total (a população em 80 era de 119 milhões). Em 1990, as crianças e adolescentes somavam cerca de 44 milhões de pessoas, ou seja, 29,93% (total da população 147 milhões). A desiguidalde sócia associada ao crescimento da população infanto-juvenil acarreta neste período um imenso contingente de criança e adolescentes de até 18 anos trabalhando no país. Em 1999 estimou se 3,9% o número de crianças e adolescentes trabalhando com idade entre 5 e 15 anos significando 10,7% da população da mesma idade.(PNAD). A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilio (PNAD-2003) aponta dados relevantes que confirmam a chaga do trabalho infantil no país. No Brasil em pesquisa realizada em 2001 e publicada em 2003 existem 5,5 milhões de crianças e adolescentes entre a idade de 5 a 17 anos que trabalham, o que equivale a 12,7% da população nesta faixa etária. Dessas 2,2 milhões estão entre 5 e 14 anos, idade considerada ilegal para o trabalho no país. 1 milhão e 100 mil não estudam, entre outros, os que trabalham representam 40,7%.

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Das 5,5 milhões das crianças e adolescentes que trabalham estão assim distribuídos: 1) Região Norte – 4,38 (5 a 9 anos) e 4,51 (10 a 14 anos). 2) Nordeste – 51,72 (5 a 9 anos) e 47,47 (10 a 14 anos). Sudeste – 16,51 (5 a 9 anos) e 23,79 (10 a 14 anos). 3) Sul – 19,77 (5 a 9 anos) e 17,83 (10 a 14 anos). 4) Centro Oeste 7,63 (5 a 9 anos) e 6,40 (10 a 14 anos). Na área rural trabalham 57% e na área urbana 43% de crianças e adolescentes. Na área rural, o maior contingente de trabalhadores infantis se concentra na agropecuária, na área urbana esses trabalhadores se dividem em atividades técnicas, administrativa, industrial, comercial e informal. Atividades de carregar sacolas, malabarismo nos sinais de transito, vendas de balas, chicletes, lavagens de pára-brisa de carros, e atividades ligadas ao narcotráfico. A PNAD levanta aspectos relevantes sobre a configuração do trabalho infantil, tomando por base a idade de 5 a 15 anos: » do total dos trabalhadores infantis a maioria se concentra na área rural, para cada l00 crianças e adolescentes de 5 a 15 anos de idade da zona rural, 22 estão envolvidos em trabalho. Na zona urbana essa relação é de 5 para cada grupo de 100; » entre os 10 a 15 anos a maior concentração está entre os não remunerados (54,1%) seguido dos empregados (22,3%), a terceira posição é dos trabalhadores na produção para o próprio consumo (9,4%), seguida pelos trabalhadores domésticos(7,3%) e os trabalhadores por conta própria. Dentre os remunerados 40,8% ganham até meio salário mínimo por mês. E ocorre majoritariamente na atividade agrícola; » entre 5 a 15 anos cerca de 10,6% estão fora da escola. As crianças e adolescentes trabalhadores apresentam nível de escolarização inferior ao daqueles que não trabalham e estão com idade mais para a serie cursada.; » inda, que, em algumas ocupações como o trabalho domestico, haja predominância de mulheres, no universo a maioria são homens. Das mulheres que trabalham 61% são afro-descendentes » O Estado com o maior numero(em termos absolutos) de trabalhadores infantis é a Bahia, com 370 mil crianças e adolescentes trabalhando na faixa etária de 5 a 15 anos. Em termos relativos à população do próprio Estado, a maior concentração ocorre no Maranhão; » A Região Nordeste concentra o maior numero de trabalhadores infantis, 1,1 milhão deles (37,1%) (do universo do Brasil). Em segundo lugar a Região Sudeste com 690 trabalhadores (23%). (PNAD- dados relativos as atividades econômicas apenas a partir de 10 anos de idade).


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Pelas condições de trabalho destas crianças e a idade, as conseqüências para suas vidas são negativas são vitimas de vários tipos de males, desde as seqüelas físicas ao comprometimento de desenvolver e viver como um ser humano. Vários dispositivos regularam o trabalho infantil no Brasil, em 1927 destaca o primeiro Código de Menores da América Latina, não permitia o trabalho noturno para menores de 18 anos e o trabalho de modo geral até os 12 anos. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), criada em 1943, estabelece as condições permitidas para o trabalho infantil. Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de coloca-la a salvo de toda forma de negligencia, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

A legislação brasileira sobre o trabalho infantil está sobre a proteção da Constituição de 1988, e orientada também, com as atuais disposição da Convenção dos Direitos da Criança, da Organização da Nações Unidas(ONU), e das Convenções nº 138 e 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Em 1989 na Convenção da ONU, o art. 32 estabelece que não haverá nenhuma exploração econômica da criança até aos 18 anos, considerando como exploração qualquer espécie de trabalho que prejudique a escolaridade. Em 1999, a Convenção nº 138, estabelece que todo país que a ratifica deve especificar, em declaração, a idade mínima para admissão ao emprego ou trabalho em qualquer ocupação. Em 1999, a OIT aprovou a Convenção nº 182 estabelece as piores formas de trabalho infantil. Passou a fazer parte da Declaração dos Princípios e Direitos Fundamentais do Trabalho da OIT. O art. 3] estabelece quatro categorias de piores formas de trabalho infanto-juvenil:

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todas as formas de escravidão, como venda e tráfico de crianças, sujeição por divida e servidão, trabalho forçado ou compulsório, inclusive recrutamento forçado de crianças para serem utilizadas em conflitos armados; utilização, procura e oferta de criança para fins de prostituição, de produção de material pornográfico ou espetáculos pornográficos; utilização, procura e oferta de crianças para atividades ilícitas, particularmente para produção e trafico de drogas, conforme definidos nos tratados internacionais; trabalhos, que por sua natureza ou pelas circunstancias em que são executadas

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são suscetíveis de prejudicar a saúde, a segurança e a moral da criança. No caso do Brasil, foi elaborado uma listas de atividades, na qual discriminou 81 condições de trabalho consideradas insalubres ou perigosas, nas quais é proibido o trabalho do adolescente, publicada em 2001 pela portaria nº 20 do Ministério do Trabalho e Emprego. O Brasil, conta com uma estrutura jurídica organizada para reger o trabalho infantil. A Constituição de 1988, no art. 7º, inciso XXXIII; o art. 227,; os artigos 60 a 69 e 248(guarda de adolescente trazido de outra comarca para serviços domésticos) da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 Estatuto da Criança e do Adolescente, e a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). A emenda 20 de 15 de dezembro de 1998, alterou o art. 7º da Constituição Federal, estabelecendo em l6 anos a idade mínima de acesso ao trabalho., exceção apenas para o emprego em regime de aprendizagem, permitido a partir de 14 anos. O Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA regula as conquistas a favor das crianças e dos adolescentes, busca assegurar o pleno desenvolvimento físico, moral, mental, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade. Cria os Conselhos de Direitos, arts. 88, 131 e 132. O Estatuto garante a primazia na prestação de socorros nos serviços públicos, preferência na formulação de políticas publicas e na destinação de recursos. Regula o direito à profissionalização e à proteção ao trabalho. Os Conselhos de Defesa dos Direitos são encarregados pela sociedade de zelar pelo cumprimentos do direito das crianças e dos adolescentes. Sempre que os direitos forem violados cabe aos Conselhos fazer representação junto ao Judiciário. O Conselho Tutelar atua nos municípios como órgão permanente e autônomo. Os Conselhos estaduais e municipais tem as funções de:

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deliberar e formular uma política de proteção integral da infância e da juventude. Articular os diversos órgãos públicos com a iniciativa privada, com vistas a instituir um sistema de proteção integral a criança e ao adolescente.

Em 1995, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente -CONANDA, aprovou diretrizes nacionais para a política de atenção à infância e à adolescência em varias áreas, saúde, assistência social, educação, garantia de direitos e trabalho. As diretrizes para o trabalho infantil são: » Erradicação do trabalho infantil para menores de 14 anos. » Proteção ao trabalhador adolescente.


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Promoção de ações de afirmação. Estimulo aos programas de geração de renda.

Desde a década de 1980, o governo brasileiro vem agendando o discurso quanto ao combate do trabalho infantil. A Constituição Federal adotou o principio da proteção integral e na década de 1990 o Ministério do Trabalho e Emprego criou comissões de combate ao trabalho infantil nas Delegacias Regionais do Trabalho (DRTs) em todo o país, transformados posteriormente como Núcleos. Elaboraram Diagnósticos Preliminares de Focos(1995). onde há trabalho de crianças e adolescentes e com base neste diagnostico as equipes de fiscalização atuam reforçando o combate ao trabalho infantil. O Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, criado em 1994, tem como objetivo principal de discutir as ações sugeridas pela OIT para prevenir e erradicar o trabalho infantil no país. O Fórum surgiu da necessidade de integração das diversas organizações que atuam no combate ao trabalho infantil. O forum concentrou esforços na criação e articulação da Rede Nacional de Fóruns Estaduais de Combate ao Trabalho Infantil, consolidada em 2003, com a finalidade de servir como base para a construção de políticas públicas de combate ao trabalho infantil no Brasil e o acompanhamento e monitoramento. Em 1996 foi lançado o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil. Este programa repassa aos Estados e Municípios recursos para o pagamento de bolsas e para a manutenção de jornadas ampliadas com o objetivo de retirar as crianças do trabalho e mantê-las na escola. No inicio o apenas três Estados foram incluídos (MS, BA e PE), onde as crianças estavam na produção de carvão, de fibra de sisal e de cana-de-açúcar. Alem do repasse de bolsas o PETI estabelece trabalho com o eixo da sensibilização da sociedade sobre os malefícios do trabalho infantil e atua sobre o fortalecimento das famílias das crianças trabalhadoras. Atualmente, em 2007, o Programa é desenvolvido em todas unidades da Federação. Mensalmente o Programa repassa para cada família a quantia de R$ 25,00 por criança, na zona rural, e R$ 40,00 na zona urbana. Esta bolsa é repassada diretamente para as famílias por meio de banco oficial. Para a jornada ampliada cada criança recebe a quantia de R$ 20, 00, na zona rural, e R$ 10,00 na zona urbana. Toda a criança tem que freqüentar a escola e a jornada ampliada e a família têm de participar de ações socioeducativas. As condicionalidades: freqüência mínima das crianças e adolescentes na escola e jornada ampliada equivalente a 75% do período total; afastamento definitivo das crianças e adolescentes menores de 16 anos do trabalho; participação das famílias nas ações socioeducativas e de ampliação e geração de renda que lhes forem oferecidas.

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Podem inserir no PETI as famílias que tiverem filhos com idade entre 7 a 14 anos que trabalham em atividades perigosas, penosas, insalubres e degradantes. E de 7 a 15 anos, envolvidos na exploração sexual comercial. São atendidas famílias com renda per capita de até ½ salário mínimo, ou seja, aquelas em situação de extrema pobreza. A família pode permanecer no programa por um período de quatro anos.(portaria nº 458 de 4/10/2001). Em 2004, o governo brasileiro realiza reforma ministerial na área dos programas sociais. Cria o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome-MDS, fusão do Ministério de Assistência Social e do Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate a Fome(MESA). Incorpora ao novo MDS o Programa Bolsa-Família, no qual reuni em um só programa os demais programas de transferência de renda. O PETI até então permanece inalterado nesta nova estrutura, sendo incorporado ao Programa Bolsa-Familia gradualmente a partir de 2006.

8. Considerações finais A produção deste texto não significa afirmações e desdobramentos definitivos, é apenas uma pequena exploração sobre o tema e neste sentindo alguma considerações que no futuro deverão ser enriquecidas com estudo mais aprofundado. A questão do trabalho infantil no Brasil, não foi encarado como fenômeno negativo na mentalidade da sociedade brasileira. Ate a década de 1980, era consenso entender o trabalho como sendo um fator positivo no caso de crianças pobre filhos de trabalhadores. Tanto a burguesia quanto a classe trabalhadora viam e discursavam da mesma forma sobre o trabalho infantil. Essa concepção inquestionável durante séculos, traduzia a ideologia arraigada e equivocada de que o “trabalho é a solução para a criança”. Para a elite social o trabalho infantil era uma medida de prevenção para os pobres era questão de sobreviver. Se para criança desocupada na rua era um perigo a ser duramente combatido, para os outros era oportunidade, espreita. Para aqueles, a solução era o trabalho ou prisão; para estes, era encontrar um fonte permanente de rendimentos.Caso de segurança publica para os primeiros e de destino para os segundos. Então ambas as classes, por razões diferentes entendiam que: lugar de criança pobre é no trabalho. A questão do trabalho infantil deve trazer a tona o debate acerca de que todo trabalho como exploração para a acumulação privada da riqueza, é insalubre, degradante, perigoso e prejudica o desenvolvimento da criança e do adolescente


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e muitas das vezes pode levar a morte. Neste sentido deve ser combatido e considerado uma pior forma de trabalho. Portanto não são negociáveis, mesmo que as leis vigentes sejam instrumentos avançados que busquem garantir os direitos humanos. A Constituição Federal de 1988, propiciou amplo debate e mobilização social e organização na busca de estabelecimento de princípios que priorizasse a criança e o adolescente e introduzisse um novo modelo de ação nas políticas sociais e a aceitação dos Direitos da Criança, iniciando a elaboração e aprovação do ECA. Condições legais de abordar e introduzir nova concepção de abordar o trabalho infantil. Nos anos 90 o modelo de sociedade continua o mesmo e mentalidade da sociedade a mesma, o que mudou foi a apropriação de novo discurso por parte de segmentos da sociedade. Neste processo os sindicatos dos trabalhadores incluíram em sua agenda o tema e realizaram importantes avanços, tais como a inclusão de clausulas nas convenções e acordo coletivos com restrições ao trabalho infantil e proteção ao trabalhador adolescente. Permite ver como o trabalho infantil é a face do processo de exploração geral do trabalhador e os efeitos perversos da exploração infantil e incorporam a necessidade de defender os direitos das crianças trabalhadoras. Convencer as famílias mais pobres e sensibilizar a sociedade de modo geral de que o trabalho não é mais importante do que a escola, mesmo em situações de extrema pobreza, é o grande desafio das ações do trabalho infantil. As ações do PETI não encontram consolidadas inclusive com grandes dificuldades, existem distorções na implementação do Programa em nível local. Não se conhece a fundo a situação do trabalho infantil, no agricultura, no informal rural e urbano bem como não se sabe quase nada sobre a situação de crianças em situação ilícitas. Não se conhece o impacto das políticas publicas de inclusão social sobre o problema do trabalho infantil. A exploração do trabalho infantil ainda não é criminalizada, levando em consideração os diferentes tipos de exploração infantil, e é baixo o valor das multas aplicadas quando é constatada a irregularidade. Os administradores públicos e os demais atores são poucos capacitados para lidar com a complexidade das questões relacionadas com o trabalho infantil, desconhecendo ou descumprindo sua legislação, com compreensão distorcidas tanto dos institutos jurídicos quanto das ações de atendimento. As crianças identificadas como trabalhadoras e encaminhadas ao PETI e aos programas de transferência de renda não são atendidas a contento e voltam ao trabalho antes mesmo de serem integradas aos programas. E por ultimo há desconhecimento da sociedade sobre os riscos e comprometimentos que o trabalho provoca no processo de desenvolvimento da criança e do adolescente.

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Vimos, que sob o ponto de vista da teoria liberal é no mercado que o individuo satisfaz suas exigências de bens e serviços, portanto adquire seu bem estar. A responsabilização é do individuo pela sua própria situação. , assim o individuo deve ser libertado para procurar o por conta própria seu espaço no mercado como assalariado/trabalhador e assim se transformar num consumidor. É esta a ideologia embutida nas políticas sociais. A maioria das ações das políticas sociais estão pautadas no apoio financeiro para compensar a perda da renda dos trabalhadores. Sendo que a realidade aponta a idéia do que é possível na ordem burguesa atual seja a adoção de políticas sociais que resultem em padrões aceitáveis de pobreza e que pode ser um instrumento que contribui para a inclusão social. Difundidas pelas ideologias humanistas, progressistas, liberais, paternalistas, e sob a ótica dos direitos humanos, vestem a aparência de igualdade social, de melhoramento do bem estar, da igualdade de oportunidades, contradição dissimulada. O Estado se apresenta como protetor dos fracos, com medidas legais compensam as fraquezas dos indivíduos pela introdução dos direitos sociais. Reforça a necessidade do mínimo, do individualismo, da acessibilidade, universalidade, livre escolha, cobertura de riscos sociais. (Faleiros, 1987). Em síntese, as políticas sociais hoje conduzidas pelo Estado representam o resultado da luta de classes e ao mesmo tempo contribuem para a reprodução das classes sociais.

9. Referências bibliográficas ÁRIES, Philippe – A História Social da Criança e da Família – 2ª Edição – Zahar editores – 1981 – Rio de Janeiro – RJ Constituição Federal de 1988 – Edição de 2001 Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA – 1990 FALEIROS, Vicente de Paula - A Política Social do Estado Capitalista – 5ª Edição – Cortez Editora – São Paulo/SP – 1987. FALEIROS, Vicente de Paula - O Que É Política Social – 1ª Edição – Editora Brasiliense –– 1986. São Paulo/SP.


A Cidadania e os Programas Sociais - Um Estudo Sobre o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil Popular

FREIRE, Gilberto – Casa Grande e Senzala – Circulo do Livro – 20ª Edição – 1980 – São Paulo/SP. GRAMSCI, Antonio – Cadernos do Cárcere – 2ª Edição – Civilização Brasileira – Rio de Janeiro/RJ – 2002. HOLLANDA, Sérgio Buarque de – Raízes do Brasil – 26ª Edição – Companhia das Letras – São Paulo/SP – 2005. KRAMER, Sonia – A Política do Pré escolar no Brasil – 2ª Edição – Achiame – Rio de Janeiro – 1984. PEREIRA, Potyara Amazoneida P. – A Assistência Social nas Perspectivas dos Direitos (criticas aos padrões dominantes de proteção ao pobres no Brasil) – Thesaurus – Brasília/DF- 1996. Plano Nacional de Prevenção do Trabalho Infantil – 2004 e demais documentos produzidos pelo MDS e pelo GDF – Secretaria de Ação Social, tais como portarias, decretos e leis. RODRIGUES, Luciane Dias – O trabalho Infantil na visa da Escola: um estudo exploratório do tema – Universidade Federal Fluminense – Centro de Estudos Sociais Aplicados – Mestrado em Educação – 2004 – Rio de Janeiro.

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Aproveitamento Hidroelétrico Corumbá IV: a Serviço da Sociedade ou da Acumulação do Capital?

Leonardo Bauer Maggi (Movimento dos Atingidos por Barragens - MAB)


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1. Apresentação De toda a energia consumida (consumo final) no Brasil, 18% é elétrica. Destes, 79% são de origem hidrelétrica gerada por aproximadamente 2.000 pequenas e grandes barragens(1). A Comissão Mundial de Barragens (2000), estima que 1 milhão de pessoas foram expulsas de suas terras devido a construção de barragens no Brasil. Isto corresponde a 34 mil km2 de terra fértil e muita biodiversidade[2]. Então, quando falamos em energia elétrica no Brasil, estamos falando de água. Quando falamos da AHE de Corumbá IV, estamos falando de energia, água, cerrado, familias atingidas. A pressão que os interessados na construção da barragem fazem na sociedade cria um senso comum, quase inquestionável: de que a barragem é necessária para gerar emprego, levar conforto para as casas, garantir os serviços, etc… Baseados na experiência recente da AHE de Corumbá IV, vamos ver à quem estes empreendimentos servem e os elementos que permeiam este discurso. Os atingidos por barragens, talvez porque tiveram que abrir mão de viver para dar lugar à este tal “desenvolvimento”, há muito tempo questionam esse processo os rumos de nossa sociedade: “Energia para quê? Energia para quem?” Reconstruiremos a trajetória do setor elétrico, principalmente no Brasil e discutiremos os elementos da sua atual estrutura. Apresentaremos os verdadeiros interesses que move este setor desde o seu surgimento e quais os mecanismos/ estratégias este usa para se reproduzir. Este trabalho não tem a pretenção de responder as questões sugeridas, mas encerraremos essa etapa com algumas reflexões necessárias para enriquecer o debate sobre o setor de energia elétrica. Assim, objetiva-se com este trabalho avaliar o processo de construção da UHE de Corumbá IV discutindo o modelo de desenvolvimento da política energética do Brasil, contextualizando o papel da industria da barragem no desenvolvimento do capital. Para os atingidos por barragens, que tem no avanço do capital um duro adversário, é necessário, através de novos elementos e aliados, discutir com a sociedade que modelo de desenvolvimento queremos para nosso País.

SUMÁRIO Apresentação, 72 • A energia, 72 • A gênese do setor elétrico, 73 • O setor elétrico brasileiro, 73 • O aproveitamento hidroelétrico de Corumbá, 76 • Considerações finais, 76 • Referências bibliográficas, 77.

2. A energia Esse elemento é de difícil definição. Dependendo da área da ciência, pode-se ter diferentes conceitos. Recorremos à internet para tentar conceituá-la:


Aproveitamento Hidroelétrico Corumbá IV: a Serviço da Sociedade ou da Acumulação do Capital?

“…conceito e uso da palavra energia se refere “ao potencial inato para executar trabalho ou realizar uma ação”... também pode designar as reações de uma determinada condição de trabalho… a etimologia da palavra tem origem no idioma grego, onde εργοs (ergos) significa “trabalho”…Qualquer coisa que esteja a trabalhar - por exemplo, a mover outro objeto, a aquecê-lo ou a fazê-lo ser atravessado por uma corrente eléctrica - está a gastar energia (na verdade ocorre uma “transferência”, pois nenhuma energia é perdida, e sim transformada ou transferida a outro corpo). Portanto, qualquer coisa que esteja pronta a trabalhar possui energia..” [3]

“..a energia pode ter várias formas (calorífica, cinética, elétrica, eletromagnética, mecânica, potencial, química, radiante), transformáveis umas nas outras, e cada uma capaz de provocar fenômenos bem determinados e característicos nos sistemas físicos. Em todas as transformações de energia há completa conservação dela, a energia não pode ser criada, mas apenas transformada. A massa de um corpo pode-se transformar em energia…”[4]

Neste trabalho, tentaremos abordar a função social da energia no sistema capitalista, principalmente a energia elétrica e como este a utiliza para acumular capital, em todas as fases de seu processo produtivo.

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pela energia termica utilizada nas máquinas a vapor na operação e utilização de maquinas e ferramentas. Dessa forma, muita força de trabalho pôde ser dispensada, pois agora a energia provinha de outras fontes que não a humana. A utilização da energia elétrica acelerou ainda mais os processos produtivos e permitiu maior velocidade no retorno do capital. Apesar de boa parte do desenvolvimento do uso da energia elétrica serem de origem Francesa e Inglesa, sua aplicação se deu primeiramente nos Estados Unidos e Alemanha. Isso se deve a uma característica do capitalismo que segundo Marx, não promove alterações tecnológicas nos seus meios de produção, antes que todo o seu capital fi xo tenha sido amortizado e como na França e Inglaterra havia uma indústria a vapor em desenvolvimento, ficou aos norte americanos e alemães a tarefa de desenvolver seu setor industrial a base de energia elétrica, conferindo à esses países um grande salto na eficiência produtiva e consequente acumulação de riquezas[5]. Vale destacar ainda que a industria da energia elétrica já nasce monopolista e coorporativista. Usando o exemplo da venda de uma simples lâmpada, para ela ter função na sociedade, é necessário uma complexa e especifica industria, que vai desde a geração, passando pela transmissão e distribuição. Outra característica desse setor é a grande demanda de investimentos financeiros[5].

4. O setor elétrico brasileiro 3. A gênese do setor elétrico Há muito tempo o homem observa e estuda a capacidade de corpos submetidos ao atrito de atraírem-se ou repulsarem-se. Tales de Mileto, que vivera em 600 a.C. já havia registrado esses fenômenos. Contudo, a primeira aplicação moderna da energia elétrica se deu após as contribuições newtonianas sobre o movimento. Com base nesses elementos, experimentadores ingleses no inicio do século XIX desenvolveram um protótipo de telégrafo[5]. O desenvolvimento de experiências sobre fenômenos relacionados à interação entre a energia mecânica, energia magnética e materiais com propriedades elétricas permitiu o desenvolvimento de maquinas e equipamentos (geradores, motores, etc) capazes de criar infraestrutura necessária para a utilização da energia elétrica pela sociedade e pelos capitalistas. A Revolução Industrial demarcou o inicio da utilização intensiva de energia térmica (máquina a vapor) no processo de exploração capitalista. Assim, foi possível substituir a energia mecânica dos operários (força de trabalho),

O desenvolvimento da industria da energia elétrica não pode ser relacionada ao acaso. Como vimos anteriormente, apesar de há muito tempo se conhecer a existência da energia eletrica, somente quando houve um tensionamento nas relações de trabalho é que se desenvolveu tecnologias capazes de utiliza-la socialmente. No Brasil não foi diferente. Veremos a seguir que toda a tragetória do desenvolvimento da industria da energia elétrica, tanto no uso residencial como no industrial, correspondeu e respondeu as necessidades e aos limites oriundos das contradições do próprio capitalismo. Os períodos do desenvolvimento do nosso setor elétrico não são claramente definidos, mas algumas características específicas ao longo do tempo merecem destaque.


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adotou o regime de monopólio da exploração dos serviços de eletricidade, mediante a instituição de concessão a ser outorgada por decreto do Presidente da República; e também, deu início a nacionalização dos serviços, restringindo sua concessão a brasileiros ou empresas organizadas no país;[5]

4.1 Até a década de 30 As primeiras iniciativas do setor elétrico no Brasil são de caráter privado do inicio do Século XX. As primeiras empresas que se instalaram foram para resolver uma demanda privada de abastecimento de energia. Isso não impedia que o excesso produzido fosse fornecido e à população local. Até 1930 havia no Brasil cerca de três mil empresas geradoras e comercializadoras de energia elétrica (empresas privadas e municipais principalmente)[5]. Esse período caracteriza o setor elétrico como isolado, fragmentado e ligado à centros urbanos da época, não atendendo a grandes demandas (industria básica) e ao interior. Nesse perído tambem, todos os serviços de caráter público, prestado por empresas privadas eram remunerados pela chamada “Clausula Ouro” (indexados ao ouro), ou seja, a energia elétrica era comercializada a “peso de ouro”.

4.2 De 1930 até 1990 As incertezas dos mercados internacionais após a crise capitalista de 1929 e das sucessivas guerras (1º e 2º Guerras Mundiais) cobrava do Brasil o desenvolvimento de forças produtivas e de mercados nacionais. Ou seja, o projeto agroexportador defendido principalmente pelos cafeicultores, grupo que detinha o poder político na época, não respondia aos anceios do capital nacional. Era insuficiente. A saída para essa crise era desenvolver internamente, assim, era necessário dar inicio a industrializaçao do Brasil, ou seja, remodelar a infraestrutura existente e criar um novo ambiente de desenvolvimento, agora voltado para o interno. Criar toda uma infraestrutura que até então não havia ou era insuficiente. Getulio Vargas é um dos presidentes que mais se destaca nesse época. Dedicado à interesses do capital nacional, criou um marco legal suficiente para o estado dar sustentação aos anceios destes. No setor da energia elétrica, além de extinguir a Clausula-Ouro (1933), podemos destacar a instituição do decreto 24.643/1934 que cria o Código de Águas, onde apartir de então:

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incorporou ao patrimônio da União a propriedade das quedas d’água, separando-as das terras em que se encontram; atribuiu à União a competência de outorga ou concessão para aproveitamento de energia elétrica; resguardou os direitos daqueles que já exploravam potenciais hidráulicos para exploração de energia elétrica;

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E adotando exemplarmente os princípios da teoria keynesiana o estado brasileiro passa a assegurar financeiramente esse processo de industrialização. A partir de então, desenvolver o setor elétrico passa ser política estratégica de estado e todos os movimentos são para transferir para mão do estado a responsabilidade na construção desse modelo. Foram criadas equipes dentro do governo para pesquisar e propor ações na promoção do setor elétrico. A idéia era… “…institucionalizar o planejamento da energia elétrica no país. Ou seja, os suprimentos de energia passavam ser matéria do governo, retirando do âmbito das denominadas “ forças de mercado” a definição deste setor.”[5]

Fruto desse processo, temos a criação da Companhia HidroElétrica do São Francisco – CHESF e a Centrais Elétricas Brasileiras S.A. – ELETROBRAS (e posteriormente suas subsidiárias). Jesus Soares Pereira, assessor do Presidente Getulio Vargas para assuntos relacionados ao desenvolvimento do setor eletrico, em entrevista descreve esse perído: “O sistema já era totalmente obsoleto. Não era possível imaginar o suprimento de energia elétrica à base de concessão de aproveitamento de uma queda d’água aqui, de uma nova área ali, fechado dentro de um mercadozinho privativo. Isto tudo era próprio, concebível, como início, na fase de surgimento da indústria. Hoje o suprimento de energia elétrica tem que se basear no aproveitamento racional de todos os recursos hidráulicos de amplas áreas, com usinas de porte adequado às necessidades de consumo e interligadas em grandes sistemas , de maneira que a utilização dos desníveis de acumulação nas grandes barragens se faça de maneira mais racional possível. A interligação das diversas bacias, com regime pluvial diferençado, deve ser feita levando em consideração as fases de abundância e escassez de água durante o ano, nas diversas áreas pertencentes a um mesmo sistema. Isto não seria possível através da política de concessões, a menos que se entregasse o conjunto do país a uma empresa privada que se organizasse como a Eletrobrás, o que também não seria fácil, em virtude da soma de recursos a serem mobilizados para uma tarefa como esta.”[5]


Aproveitamento Hidroelétrico Corumbá IV: a Serviço da Sociedade ou da Acumulação do Capital?

E podemos afirmar que o estado foi muito feliz nessa tarefa. Constituiu umas das maiores e mais eficientes redes de infraestrutura para geração, transmissão e comercialização de energia elétrica do mundo. O Rio Grande do Sul se destaca nesse período inicial por se constituir numa experiência marcante para os que defendiam o Estado na produção de energia elétrica. Encampando as pequenas geradoras de energia do interior do estado, conseguiu despontar com a primeira grande rede de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica do país. “A trajetória da CEEE foi fulminante, em 1958 já atendia a quase totalidade do interior do Rio Grande do Sul e fornecia por volta de 70% da energia elétrica de Porto Alegre.”[5]

E dando continuidade das politicas de Vargas, A CEERG (empresa da estadunidense AMFORP) é encampada em março de 1958 por decreto assinado pelo então governador Leonel Brizola que determina o controle do Estado no setor. A CEEE fica subordinada, para todos os fins e efeitos legais administrativos, ao Governo do Estado.[5] Da década de 60 à década de 80, o setor foi caracterizado pela construção e operação de mega projetos hidroelétricos. Para Gonçalves (2002), neste período, a estratégia do capital para desenvolver-se e acumular estava na construção dessa mega infraestrutura, a “Industria da Barragem”. Ou seja, a “barragem” não estava necessariamente à serviço da geração de energia elétrica, mas também para prosperar empresas da “Industria da Barragem” (equipamentos, geradores, empreiteiras, bancos, etc). Um exemplo disso é a construção da UHE de Itaipu que iniciou seu funcionamento em 1984 mas só entrou em plena operação em 1991, dezesseis anos depois (não era necessário sua energia, mas sim a sua construção). Para VIEIRA (2005), de 1930 a 1990 a energia elétrica tem status de uma “antimercadoria”… “…as antimercadorias, segundo a conceituação de Francisco de Oliveira, representam um bem ou serviço cuja finalidade intrìnseca não é a de gerar lucros e em cuja produção não se dá a extração da mais-valia. As antimercadorias foram viabilizadas pelo fundo público que, na definição do mesmo autor, financia tanto a acumulação do capital quanto a reprodução da força de trabalho, possibilitando a ampliação de seu acesso aos bens e serviços públicos.”

… “salário indireto”. Ou seja

73 “…a redução dos salários reais pagos pela industria era viabilizada pela redução do preço da força de trabalho urbana, ou seja, o custo da alimentação mais o custo dos bens e serviços urbanos. Portanto, a redução desses custos era precondiçao para o desenvolvimento da nascente indústria, que também reivindicava a ampliação do fornecimento de energia abundante e barata para permitir o desenvolvimento da indústria básica no país.”[6]

Com uma mega infraestrutura consolidada e as relações capital x força de trabalho mais tensionadas (aumento do desemprego), este setor desacelera sua acumulação durante os anos 80. Podemos considerar que o setor elétrico nesse período teve duas funções: garantir o fornecimento de meios de produção de baixo custo (energia elétrica) e a manutenção da acumulação do setor que denominamos “Industria da Barragem”. Influenciado pelas reformas neoliberais no mundo, abre-se um novo leque de reformas estruturantes na economia e o setor elétrico foi um dos principais alvos dessas reformas.

4.3 Energia elétrica hoje Mais uma vez capitaneadas pelo Estado, incia-se um forte processo de reformas politicas, agora de caráter neoliberal. Essas reformas foram as saídas encontradas pelo capital para superar a crise que culminou nos anos 80. Novamente a fonte de inspiração foi o keynesianimo, ou seja, não bastava bancar do ponto de vista político, o Estado deveria bancar tambem financeiramente. Todos os setores da economia que haviam dominio ou forte influência estatal e que teriam potencial de acumular capital para o setor privado, passaram por essas reformas. A idéia era criar apartir da estrutura estatal, novas unidades de negócios. E o setor elétrico foi um dos mais cobiçados. Com uma das maiores redes de geração, transmição e distribuição do mundo, com mais de 80% de sua geração hidrica (simples e barato). Para fiscalizar e regular esse setor, cria-se a Agencia Nacional de Energia Elétrica – ANEEL. Órgão estatal mas de “caráter privado”. É esta entidade que vai garantir o sucesso dessa política, ou seja, a devida remuneração do capital privado investido. Com todas essas medidas, esse setor ficou muito atrativo para o capital. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES foi o grande agente financeiro desse processo. Utilizando recursos provenientes do Fundo de Amparo do Trabalhador – FAT, liquidava as dividas das estatais ou


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as tranferia para outras estatais e o governo as vendia financiadas com recurso do próprio BNDES. Alem disso, boa parte dessas empresas foram vendidas por valores bem inferiores ao patrimonio. Podemos usar como exemplo o caso da Eletrosul que foi vendida para a multinacional Tractebel por 760 milhões de dólares, sendo que o patrimônio real estava orçado em 7 bilhões e 430 milhões de dólares, pouco mais de 10%[7]. As empresas potencialmente mais lucrativas foram vendidas. O Estado deixa de ser o planejador e essa tarefa passa a ser das “forças de mercado” (como era antes 1930). Assim, contratos bilaterais começam a serem firmados e a energia passa a ser vendida de maneira desordenada, não respeitando-se a relação chuvas sazonais x volume de água dos reservatórios e em 2001, uma verdadeira ameça de paralização do sistema, o chamado “apagão” expõe os limites dessa política. Pouca gente sabe mas o seguro apagão foi a forma que a ANEEL criou para ressarcir as empresas geradoras do lucro não obtido em função do racionamento. Agora a energia é tratada como uma mercadoria e boa parte dos investimentos são privados. A política de remuneração desse capital passa a se basear em remunerações de mercados internacionais, assim a energia passa a ser comercializada com base em preços internacionais. Atualmente, 1Mw de energia custa R$120,00 no mercado internacional. Esse custo é com base na maior e mais cara fonte de energia no mundo, o petróleo. É esse insumo que “baliza” o preço da energia no mundo. No Brasil, a energia de fonte hidraulica custa em média R$60,00/Mw, a metade, mas é comercializada pelos mesmos R$120,00 da energia de fonte a base de petróleo. Para ambos é estipulado um lucro médio, cerca de 10%, ou seja R$132,00/Mw e R$66,00/Mw para petróleo e hidraulica respectivamente, mas aqueles que utilizam energia hidraulica tem um lucro acima do esperado, um lucro extraordinário(7). Com o governo Lula, cria-se um novo marco regulatório, onde tenta-se deixar as regras mais claras e transmitir mais segurança para os investidores. Toda a energia é comercializada em leilões promovidos pelo governo, onde empresas geradoras e distribuidoras fazem contratos de longo prazo de compra e venda de energia elétrica. Atualmente, vem se stribuindo as questões ambientais a falta de investimentos neste setor. O desejo dos investidores nesse setor é flexibilizar ao máximo as regras de licenciamento ambiental. Apesar de ser um setor altamente lucrativo recentemente, o atual presidente da Aneel, Jerson Kelman disse na Câmara dos Deputados que a entidade está propondo

74 “…o fim do licenciamento ambiental para projetos do setor energético reconhecidos como de interesse nacional”[8].

5. O aproveitamento hidroelétrico de Corumbá IV O AHE Corumbá IV está localizado entre cinco municípios goianos: Luziânia, Santo Antônio do Descoberto, Alexânia, Abadiânia e Silvânia no Rio Corumbá (afluente pela margem direita do rio Paranaíba), no seu trecho superior, mais precisamente nas coordenadas geográficas 16°20’47” sul e 48°10’44” oeste, município de Luziânia, Goiás, num total de 173 km2 (5 vezes o tamanho do Lago Paranoá)(9). Potencia de 127,0 MW de energia instalada mas assegura o fornecimento (energia firme) ao Sistema apenas 76 MW. É propriedade da Corumbá Concessões S.A. cujo quadro acionário participam Companhia Energética de Brasilia - CEB (45%, mas na mesma home page informa 30,2% de participação), Serveng Civilsan S/A (35%) e C&M Ltda. (20%)[10]. Comparada com outras fontes de energia (solar, nuclear, etc), é uma obra de baixo nível tecnológico mas o seu operacionamento é muito moderno. Corumbá IV por exemplo possui apenas 5 funcionários. Tem um custo de produção de 110 R$/Mw[9], mas a CEB, principal acionária, vende a energia aos consumidores a preços que variam de 290,00 a 362,00R$/Mw (sem tarifa social) ceb, ou seja, mais de três vezes o custo de geração. Se considerarmos com a média nacional do custo de geração de energia elétrica, 60,00R$/Mw, a energia gerada pro Corumbá IV possui um preço elevado. Isso acontece porquê ela tem atribuído nos seus custos de produção a amortização do investimento realizado.

6. Considerações finais Cabe aqui destacar aguns elementos desse debate:

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Fica destacado a importancia da energia elétrica para a soberania do país e os riscos de expor esse setor as “vontades” do mercado. Não há sistema seguro nas mão dos mercado. Os investidores (capitalistas) vão sempre forçar para que seus investimentos realizem-se com a maior velocidade possível. Históricamente foi assim. E hoje, a pressão será para a isenção das responsabilidades sobre as questões


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ambientais e sociais por parte de seus investimentos. Podemos esperar do governo apenas o atendimento ás necessidades desse setor, transmitindo segurança e flexibilizando ainda mais, permitindo e estimulando a livre especulação do capital. O debate sobre as fontes energéticas é importante, mas não podemos esquecer que na atual estrutura, toda a energia, independente da fonte, estará a serviço da acumulação do capital e este vai escolher a fonte mais lucrativa. Já passou o tempo que os atingidos por barragens eram as principais vítimas do setor elétrico. Com as atuais taxas de lucratividade todas as pessoas são atingidos. De fato, o processo de privatizações está sendo extremamente vantajoso e eficiente para o capital.

7. Referências bibliográficas [1] Movimento dos Atingidos por Barragens - MAB, Conceito de Atingido por Barragem. Brasília DF, mimeo, 2005. [2] WORLD COMMISSION ON DAMS. Dams and Development: a new framework for decision making. London: Earthscan, 2000. Relatório da Comissão Mundial de Barragens (tradução) [3] http://pt.wikipedia.org/wiki/Energia [4] http://www.geocities.com/RainForest/Canopy/9555/glossario_ambiental.htm [5] GONÇALVES Jr, Dorival. “Reestruturação do Setor Elétrico Brasileiro: Estratégia da Retomada da Taxa de Lucro do Capital?” São Paulo, SP 2002 – Dissertação de Mestrado. [6] VIEIRA, José Paulo. Energia elétrica como antimercadoria e sua metamorfose no Brasil: a reestruturação do setor e as revisões tarifárias.São Paulo, 2005 – Tese de Doutorado. [7] Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB, Caderno de Formação nº 9: Modelo Energético Brasileiro, Brasilia – DF, mimeo, 2007. [8] http://www.prpa.mpf.gov.br

[9] CORREIO BRASILIENSE – 24 de março de 2002. (C:\Documents and Settings\ Leonardo\My Documents\Trabalhos\realidade brasileira\Correio Braziliense.htm). [10] http://www.ceb.com.br

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Leitura Popular da Bíblia Uma Interpretação a Partir dos Pobres e Oprimidos

Jacqueline Chaves do Nascimento (Centro de Estudos Bíblicos – CEBI)


77 Foi Deus quem fez você (Zé Ramalho) Foi Deus quem fez o céu, O rancho das estrelas; Fez também o seresteiro para conversar com elas; Fez a lua que prateia minha estrada de sorrisos E a serpente que expulsou mais de um milhão do paraíso Foi Deus quem fez você, Foi Deus quem fez o amor. Fez nascer a eternidade num momento de carinho Fez até o anonimato dos afetos escondidos E a saudade dos amores que já foram destruídos. Foi Deus... Foi Deus que fez o vento Que sopra os teus cabelos Foi Deus quem fez o orvalho Que molhar o teu olhar. Foi Deus quem fez a noite E o violão plangente. Foi Deus quem fez a gente somente para amar, Só para amar, Só para amar...

1. Introdução

SUMÁRIO Introdução, 79 • Metodologia de leitura popular da Bíblia, 82 • Apropriar-se da Bíblia como um instrumento libertador e uma realidade necessária para o povo, 83 • Leitura popular da Bíblia na perspectiva da mulher, 84 • Referências bibliográficas, 86.

Este ensaio propõe uma reflexão sobre a leitura popular da bíblia como instrumento de libertação, na ótica do pobre e oprimido, tendo como ponto de partida a educação popular, dentre outros/as; como orientadora dessa prática, bem como se percebe a repercussão da mesma numa linha de leitura crítica da bíblica. A origem da bíblia está no povo, nas experiências relatadas nos vários livros que a compõe, o que significa que nela há histórias de homens e mulheres, crianças e idosos, jovens e adultos, ricos e pobres, oprimidos e opressores. Uma rica e complexa literatura de um povo que conta suas histórias, pessoas de várias gerações que acreditavam numa presença sagrada, que em especial, se manifestava na vida, na caminhada e na luta, diferentemente de outras crenças do período. Se os relatos bíblicos nascem a partir das experiências vividas pelo


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povo o que se pergunta é: a leitura popular da bíblia na ótica do empobrecido é uma melhor forma de interpretação para o processo de libertação? Em um processo de leitura crítica, a bíblia tem sido redescoberta como instrumento fundamental de conscientização do povo nas comunidades. Processo esse que tem emergido com muita dificuldade, pois a realidade histórica da leitura bíblica realizada nas igrejas, baseou-se; salvo algumas exceções; numa leitura fundamentalista que ocasionou o absolutismo bíblico, impedindo um questionamento crítico e aprofundado dos textos. Por ser uma instituição popular, os trabalhos e estudos feitos nas igrejas se tornam um meio de educação alternativa, porque não estão dentro da educação formal propriamente dita. É uma educação cristã. Sendo assim, a educação nas igrejas também forma consciências, que podem ser libertadoras ou opressoras, o que leva a concluir que nem tudo que é popular liberta. Na Igreja Católica, por exemplo, ao longo de sua história, criou-se uma grande dificuldade de leitura crítica da bíblia, gerada pela falta de acesso à mesma por parte dos leigos, ficando a cargo do clero1 a leitura e interpretação, ou seja, quem entendia da palavra era o padre, e assim aliando a falta de acesso ao comodismo e à falta do hábito de ler, o católico e a bíblia foram se distanciando. Nesse sentido o questionamento sobre o que é popular ainda é muito polêmico, o que leva a questionar: a leitura popular é de fato popular? O processo de educação na história está muito ligado à lógica hierárquica de poder, crescemos educados/as pelos pais, padres/pastores, professores, tudo numa lógica de competição e individualismo onde o saber vem de cima para baixo sem diálogo. Nas igrejas o processo é opovo o que se pergunta é: a leitura popular da bíblia na ótica do empobrecido é uma melhor forma de interpretação para o processo de libertação? Em um processo de leitura crítica, a bíblia tem sido redescoberta como instrumento fundamental de conscientização do povo nas comunidades. Processo esse que tem emergido com muita dificuldade, pois a realidade histórica da leitura bíblica realizada nas igrejas, baseou-se; salvo algumas exceções; numa leitura fundamentalista que ocasionou o absolutismo bíblico, impedindo um questionamento crítico e aprofundado dos textos. Por ser uma instituição popular, os trabalhos e estudos feitos nas igrejas se tornam um meio de educação alternativa, porque não estão dentro da educação formal propriamente dita. É uma educação cristã. Sendo assim, a educação nas igrejas também forma consciências, que podem ser libertadoras ou opressoras, o que leva a concluir que nem tudo que é popular liberta. Na Igreja Católica, por

exemplo, ao longo de sua história, criou-se uma grande dificuldade de leitura crítica da bíblia, gerada pela falta de acesso à mesma por parte dos leigos, ficando a cargo do clero2 a leitura e interpretação, ou seja, quem entendia da palavra era o padre, e assim aliando a falta de acesso ao comodismo e à falta do hábito de ler, o católico e a bíblia foram se distanciando. Nesse sentido o questionamento sobre o que é popular ainda é muito polêmico, o que leva a questionar: a leitura popular é de fato popular? O processo de educação na história está muito ligado à lógica hierárquica de poder, crescemos educados/as pelos pais, padres/pastores, professores, tudo numa lógica de competição e individualismo onde o saber vem de cima para baixo sem diálogo. Nas igrejas o processo é o baixo sem diálogo. Nas igrejas o processo é o mesmo. O que leva a crer que é preciso mergulhar mais nos fundamentos da leitura popular da bíblia e suas raízes, como leitura crítica libertadora que e constrói juntamente com a comunidade. A bíblia durante séculos foi usada pelo poder hegemônico da igreja num processo de leitura fundamentalista que separa o texto de seu contexto. Nesse sentido, o contexto histórico revela um cristianismo de tradição, que chega com a violência dos colonizadores, que invadem a cultura indígena, transformando sua tradição religiosa com o argumento que teriam de ser cristãos para chegar ao verdadeiro Deus. O que, aliás, se constituiu na maior violência cultural relatada na história não oficial do país. Com esse caráter de ver e ler a realidade do povo oprimido, a leitura popular da bíblia torna-se um verdadeiro espaço do exercício de poder no processo de libertação.

1 CLERO, Estrutura hierarquica da Igreja Católica

2 CLERO, Estrutura hierarquica da Igreja Católica

1.1 Processo Histórico Nas décadas de 50 e 60 a Educação popular surgia também estimulada pelas igrejas cristãs (em especial pela Igreja Católica), que motivadas pela efervescência dos movimentos populares, desejavam voltar sua prática para o mundo, pois já havia um processo nos diversos grupos de base que discutiam novas formas de ver e ler a realidade. No final da década de 50 a igreja cria a ação popular (ação católica), onde a leitura crítica se fazia em pequenos grupos através do método VER, JULGAR E AGIR, entre os quais, esteve inserido o educador Paulo Freire. Nesse período as várias experiências de grupos e movimentos populares foram criando força para as lutas sociais.


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Note-se com isso que ao se falar em Igreja, não significa que estejamos generalizando o que é conservador ou o que é libertador, o fato é que em determinado período a mesma esteve focada em ações conservadoras e em outros, mais libertadoras. Por exemplo, nas décadas de 60 a 80, a postura da Igreja no Brasil foi de maior olhar crítico para as situações de exclusões, envolvendo-se também nas decisões políticas, indo as ruas, servindo-se de abrigo para pessoas que fugiam da ditadura, sem falar que vários padres, freiras e pastores/as que também tombaram por abraçar e se mobilizar em defesa dos pobres e oprimidos. Nesse processo, é curioso perceber que não existiu nenhum outro movimento progressista que tenha contribuído tão maciçamente com a formação do pensamento crítico quanto algumas igrejas do período, articulando a organização de vários movimentos sociais e organizações não governamentais como a Comissão Pastoral da Terra(CPT), que foi um ponto de apoio para o surgimento do Movimento dos Sem Terra (MST), A Juventude Operária Católica(JOC), o Partido dos Trabalhadores, que nasce da força de pessoas que participavam das Comunidades Eclesiais de Base (Ceb’s) que desde os anos 60 já praticavam a leitura popular da bíblia. Convém ressaltar que a leitura popular da bíblia só surge como instrumento libertador, quando entra no contexto da vida de quem a realiza, o que significa dizer que é na luta por vida digna e liberdade, que o (a) leitor (a) vai se identificando com o personagem da bíblia que vive a mesma situação, também tem os mesmos desejos e encontra caminhos para a liberdade. No processo histórico se percebe que esse trabalho libertador só se dá devido à participação do povo como protagonista de sua história, denunciando seus opressores e lutando por suas causas, e isso se deu em diversos grupos que hoje são movimentos sociais como os citados acima, que utilizaram a leitura crítica da bíblia como instrumento da revolução. Acontece que quando se provoca esse jeito de leitura popular da bíblia, o que se busca é fazer uma leitura militante, comprometida com a realidade do povo pobre e oprimido. Percebe-se que essa prática de leitura é um espaço privilegiado de educação popular onde as pessoas, em especial o pobre, são protagonistas de seu próprio processo educativo. A interpretação da bíblia na ótica das/os oprimidas/os tem uma intenção de resgatar os sentidos históricos, sociais e teológicos da bíblia.

79 1.2 Objetivo A leitura popular da bíblia tem o objetivo essencial de fazer uma leitura na ótica do pobre a partir da sua realidade, de como cada grupo, comunidade e movimentos podem interpretar os textos, e a palavra pobre no sentido amplo: o camponês, a mulher, a criança, o negro, os índios, os jovens, todos os marginalizados e oprimidos do campo e da cidade. Deus não quis revelar-se nos palácios ou nos templos, preferiu se manifestar entre os pobres marginalizados. A história relatada no 2º testamento3 revela a opção radical e revolucionária de Jesus pelos pobres, o que foi motivo de grande frustração para os judeus que esperavam um libertador que lutasse contra os romanos, no entanto aparece Jesus, numa postura totalmente diferente da esperada, um messias que se sentava com mulheres “pecadoras”, que naquela sociedade deveriam ser apedrejadas, resgata os leprosos excluídos e os traz de novo para o “meio”. Suas ações foram libertadoras no sentido de provocar mudanças de comportamento, ao curar paralisados, os leva de volta à ação, o que provoca irritação nos poderosos. Nessa ótica, o objetivo que a leitura popular da bíblia persegue, é de ler a realidade na bíblia de tal forma que provoque nas pessoas questionamentos políticos, religiosos, sociais e até de relacionamento com o meio em que vivem, onde as mesmas possam ser protagonistas desse processo educativo no qual a leitura crítica da bíblia na ótica do empobrecido se torne um meio de libertação e transformação da realidade. Não há dúvida que as atitudes de Jesus para aquele período provocaram uma luta das diversas classes. A leitura popular resgata isso provocando o pobre de hoje a ler e ver de forma crítica o que o texto traz, percebendo que as mulheres continuam sendo apedrejadas hoje, com outros formatos. Com isso a leitura popular da bíblia é um meio que caminha junto com as propostas de educação popular, no qual o processo de estudo da bíblia se dá como troca de conhecimento e experiências entre participante e facilitador/a, onde o olhar crítico é fundamental, não para tornar as coisas rebuscadas, mas para fazer diálogo das hipóteses criadas ou adquiridas na história humana, por isso se dá a partir da realidade de cada uma e cada um. “A bíblia é o registro da fala de muitas categorias da sociedade. Tem fala de mulher e de homem, de criança e de jovens, de gente adulta e idosa, de rei e de sábio, de sacerdote e de agricultor, em fim de todo tipo de gente. E tem tons de todos os sentimentos, dando ênfase especial ao clamor dos pobres e dos oprimidos”.( CEBI – porta de entrada – fascículo três) 3 JERUSALÉN, Bíblia – Evangelhos de Marcos, Mateus, Lucas e João.


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Hoje se percebe o quanto a bíblia se tornou um livro acessível, e nesse processo de acessibilidade surge a leitura popular da bíblia com o objetivo de ler as categorias que nela aparecem e sobretudo lê-las na realidade das comunidades, grupos, associações de moradores, capelas, grupos de mulheres, escolas, enfim, todas as categorias que compõem a sociedade atual, para assim criar uma leitura crítica e comprometida da palavra. Há diversas formas de manipulação da bíblia, presente nas heranças históricas e nas formas atuas; por exemplo, um político que tenta passar uma imagem de boa pessoa usando-se de frases bíblicas para explicar um ato de corrupção: Errei no passado mas me arrependo, quem não errou atire a primeira pedra (fala do candidato Arruda, eleito ao governo de Brasília em 2006). Assim também o povo com a bíblia nas mãos sem uma leitura crítica pode reproduzir uma leitura que oprime e aliena ao considerar as mulheres submissas, por exemplo, ”conforme diz a bíblia”, ou que os pobres devem ser felizes por que herdarão o reino de Deus aceitando uma condição de opressão. Enfim, há inúmeras razões para que a leitura popular seja provocativa no sentido de desconstruir muitas leituras opressoras que se fazem da bíblia. Por fim, o objetivo de refletir sobre a leitura popular da bíblia é buscar luzes para a caminhada de hoje, ler a partir da realidade, com as informações e experiências que os grupos partilham e descobrem. Se a leitura fundamentalista oprime e castra a fé do povo, como a leitura popular pode ser diferente, respeitando a cultura e os saberes de cada uma/um?

2. Metodologia de leitura popular da bíblia O acesso à bíblia com uma leitura crítica sob a realidade social e cultural faz uma revira-volta na história, trazendo as diversas experiências que são encontradas nos textos bíblicos, de um povo que sofre e se mobiliza e de um Deus humano que caminha junto. O processo de formação da bíblia foi um grande mutirão, onde muitas pessoas participaram e puderam contar um pouco da sua experiência de vida, com isso, uma das características marcantes da bíblia é que, em maior parte, ela é a história interpretada a partir do povo que sofre e que luta e não tanto a partir dos poderosos. No processo de hermenêutica, temos a liberdade de passear pela bíblia e fazer várias releituras. Esse é um dos processos metodológicos usados para ajudar na melhor percepção da leitura bíblica podendo descobrir vários contextos dentro do texto, que em outros métodos podem passar despecebidos e ou até omitidos como foram ao longo da história.

80 Faz-se várias releituras da bíblia, em grupos religiosos ou não, em outras culturas, outras crenças. A leitura popular da bíblia, com sua metodologia busca uma releitura a partir da realidade na ótica do pobre. Isso não significa dizer que exista uma revolução pontual nos leitores que fazem leitura popular da bíblia, se rebelando contra a igreja ou participando de lutas sociais ou ações semelhantes, o processo de desalienaçao é lento, afinal a larga herança de opressão a partir também da manipulação da fé do povo através da bíblia é histórica. Religiosos e governos utilizaram-se dessa manipulação para manter seus poderes, no geral a percepção dessa realidade através da bíblia se dá teoricamente, nas falas indignadas e sofridas. Esse método de leitura popular é para o povo falar, participar com toda sua subjetividade e limitações. Nessa perspectiva, o CEBI – Centro de Estudos Bíblicos, procura usar temas transversais que ajudam a integrar a vida com a bíblia como processo de educação para a prática, abordando várias dimensões como o ecumenismo, gênero, ecologia, cidadania entre outras. No CEBI não são utilizadas as palavras antigo e novo testamento para não dar a sensação de que o antigo não serve mais, por isso usa-se Primeiro e Segundo testamento para respeitar outras regiões que se utilizam apenas do primeiro testamento sendo assim uma instituição ecumênica. Outra dimensão integradora é a ecologia, onde problemas ecológicos são discutidos utilizando as temáticas da água, terra, corpo, temas muito presentes nos textos bíblicos ( ocupações de terra, relatos sobre a criação que envolvem solidariedade e cuidado com o cosmo, etc) “Em síntese: na raiz da leitura popular da bíblia e da hermenêutica da libertação, está o pobre como novo sujeito histórico e a experiência de Deus no mundo dos pobres como nova experiência espiritual. Isto ao mesmo tempo significa ruptura política com o sistema dominante e ruptura espiritual com a idolatria dominante. Todo processo hermenêutico leva a marca desta dupla ruptura”.(Leitura popular da bíblia – Por uma hermenêutica da libertação na América Latina – 1988 – Pablo Richard – Costa Rica)

Quando se fala em leitura popular da bíblia, estamos nos referindo a uma opção de leitura a partir de um compromisso político, social e teológico; por isso é uma leitura militante, sensível para perceber desde as relações interpessoais às relações de classe. Quando trata de método da leitura popular da bíblia, não significa que já se tenha dominado esse método, é muito parecido com a realidade da educação popular, ou seja, ainda é um processo de aprendizado, de descobertas e de partilha, é nesse caminho que a leitura popular da bíblia está, construindo-se e descobrindo-se.


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Percebe-se que há necessidade urgente de qualificar mais o trabalho e criar novos elementos que o facilite, nesse processo ainda é muito difícil fechar um método de leitura popular da bíblia onde há questões propositivas a refletir se a mesma é de fato popular.

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Nesse processo de leitura popular da bíblia, a leitura comunitária é feita como um novo caminho pedagógico para se aproximar dos textos, utilizando-se de todos os saberes (tanto cientifico como popular) para uma experiência do sagrado próximo da realidade de cada um e cada uma.

2.1 Método de leitura popular da bíblia Antes de qualquer passo, o primeiro caminho de leitura popular da bíblia é com o povo, uma leitura comunitária que integra os conhecimentos científicos e populares, com questionamentos sobre a vida e tudo o que a compõe, identificando as realidades e criando compromissos. Depois, há vários caminhos e luzes, que ajudam na reflexão e aprofundamento dos textos. 1) Explicação ou interpretação de obra literária, tirar fora do texto, perceber no texto o cenário, personagens, as ações e mudanças, destinatários e o vocabulário. Buscar textos parecidos, imagens, repetições e palavras-chave. Também procurar perceber o gênero literário(prosa, poesia, saga, fábula, história).É importante no estudo dos textos bíblicos as traduções comparadas, ou seja, as diversas bíblias que existem, nem todas são iguais, muda muito a tradução de uma para outra, e a observação disso pode ajudar muito a entender o contexto. A isso chamamos de Exegese4. 2) Análise do texto pelas quatro vertentes: Econômica, Política, Social, e Religosa/cultural/ideológica. É a forma utilizada para perceber os diversos conflitos encontrados no texto. 3) Um passo importante para a leitura crítica da bíblia é perceber que tipo de Deus aparece, como ele se coloca, essa é a chave teológica5 de leitura. 4) E por ultimo sem fechar, tem a Hermenêutica6, que é o método de interpretação do texto de suspeita e de significado. Qual o significado do texto e o que ele diz para mim e para a realidade, é aqui que entramos no sentido histórico do texto passeando pelo pré-texto e contexto. 4 Exegese: Explicação ou interpretação de obra literária, artística 5 Teologia: Estudo da revelação e a experiência que o povo e a Igreja tem de Deus nos diversos aspectos, sociológico, antropológico e fi losófico. 6

Hermenêutica: Método que visa a interpretação de texto.

3. Apropriar-se da Bíblia como um instrumento libertdor é uma realidade necessária para o povo Hoje se percebe que o povo usa a bíblia meio que como tempero para o cotidiano, ela está presente em tudo, nas orações, nos cursos e concursos, nos sermões, missas e cultos, no comício, nos teatros, nas músicas, nos contos, na luta sindical e organização de greves, na construção de igrejas e mutirão para construir barracos, na luta pela terra e nas romarias dos mártires, nos grupos de mulheres e no jejum de protesto. Assim se dá a presença bíblica, cada vez mais próxima do povo. Este uso tão abundante da bíblia revela um povo de fé, que apesar da alienação imposta, resiste e conserva fortemente a religiosidade popular. De fato a bíblia se faz presente cada vez mais no meio do povo, há porem uma necessidade de torná-la cada vez mais uma parceira crítica na compreensão e transformação da realidade de cada um/uma A leitura popular da bíblia é também cientifica, pois é necessário ler o texto em seu contexto, o que requer mecanismos de estudos para o melhor aprofundamento e apoio nas ciências como a antropologia, sociologia, história e teologia, sempre respeitando e integrando os saberes que povo traz. É um processo de construção e reconstrução de saberes que ajuda a questionar mais e se apropriar mais do texto. A expropriação da bíblia do povo aconteceu por diversos caminhos, que necessariamente não seguem uma ordem cronológica, mas tem os mesmos resultados, como o fundamentalismo que já foi citado e apaga qualquer chance de questionamento, o que resulta no que chamaremos de concordismo, que consiste em concordar de modo simplista e direto com o texto sem levar em conta o contexto histórico.Outro caminho perigoso é o historicismo que reduz o texto ao mero significado histórico e de forma muitas vezes complicada, dificultando uma leitura popular com o povo. A bíblia assim, abstrata, longe do povo, pode ser facilmente manipulada pelas forças dominantes.


Leitura Popular da Bíblia - Uma Interpretação a Partir dos Pobres e Oprimidos

No conjunto de todas atitudes básicas de leitura. Porém, a mais decisiva é a com naturalidade. Quando a experiência do leitor tal modo se aproxima e até se identifica com a do autor que o texto já não é mais percebido como algo que viria de fora, mas como expressão da própria experiência, quando o leitor sente o texto como próprio, como se ele mesmo o tivesse produzido. ( Curso extensivo de bíblistas – 1998 – Sebastião Gameleira Soares )

Apropriar-se por inteiro da bíblia é imprescindível para dar voz aos oprimidos e oprimidas de hoje e levar à percepção de suas próprias experiências nas experiências feitas pelos pobres da bíblia.

82 Por trás dessas frases e palavras, existiram intenções, que foram implantadas ao longo da história pelo sistema patriarcal no qual a bíblia também foi construída. Podemos perceber isso nos muitos tabus e pesos morais que foram usados para dominar a mulher. No entanto, em alguns textos aparecerão mulheres que de alguma forma sobressaíram a esse sistema.

4.1. A mulher e o sistema patriarcal

É importante refletir sobre algumas mulheres da bíblia que muitos de nós conhecemos sendo cristãs ou não, pois culturalmente essas mulheres estão no dia-a-dia do povo, nas falas, nos pré-conceitos, em provérbios, piadas e ditados como: Maria vai com as outras, atire a primeira pedra quem não tiver pecado (lembrando assim da mulher adúltera com Jesus no evangelho7), mulher8 faladeira é como goteira d´agua em tempo de chuva, uma mulher forte é a coroa do marido, atrás de um grande homem tem uma grande mulher, mulher é que nem malandro:quanto mais apanha mais gosta, mulher dona de casa não trabalha, a mulher que casa virgem é virtuosa, entre tantos outros, que já ouvimos e que repetimos às novas gerações ao longo da história.

Numa leitura popular da bíblia onde se queira perceber a mulher e as diversas situações em que está9 inserida e assim também as demais classes empobrecidas e oprimidas, é preciso ter conhecimento do período histórico em que elas estavam, no qual o sistema patriarcal dominava as relações, sendo o homem detentor do poder sobre tudo, inclusive sobre a mulher, que era apenas uma coisa dentre as outras que o homem possuía. Entre os dez mandamentos, está o que diz: não cobiçaras a casa do teu próximo, nem a mulher, nem o escravo, nem o boi, nem o jumento, nem coisa alguma que pertença o teu próximo. A mulher está no mesmo patamar hierárquico que o escravo e o jumento, era a lei do período. Lei essa que em muitos espaços de nossa realidade é reproduzida de diferentes maneiras para oprimir e omitir a voz das mulheres. A Igreja reproduz muito esse sistema patriarcal, nos casamentos, por exemplo, é dito para as mulheres: Mulheres estejam sujeitas aos seus maridos, porque o homem é a cabeça da mulher, como Cristo é a cabeça da Igreja10. Como a Igreja está sujeita a Cristo, estejam as mulheres em tudo sujeitas aos seus maridos (Ef.5, 21-24). A interpretação desse trecho feito pelas igrejas no geral é fundamentalista, e de fato tem uma intenção de que a mulher pense e aja assim. O que a leitura crítica pode nos proporcionar é o que chamamos de suspeitar do texto, perguntando: porque nesse texto havia uma preocupação em escrever algo que falasse da mulher numa postura submissa? O que tem por trás no contexto histórico daquela realidade? Essas chaves de leitura, e obviamente a leitura completa do texto e do livro ajudam muito a perceber o que está por trás e nas entrelinhas, isso ajuda a construir e desconstruir muitos conhecimentos sobre esse assunto. O sistema patriarcal existiu e existe, e para as mulheres daquele período era algo que elas acreditavam, pois fazia parte do cotidiano e da fé do povo que vivia aquele sistema, era tão natural como beber água. Mas podemos perceber

7 Evangelho, livro que compõe o Segundo testamento da bíblia.

9 JERUSALÉM, Bíblia: Primeiro testamento, exôdo 20.

8 Citação tirada do livro dos provérbios do Segundo testamento da bíblia.

10

4. Leitura popular da Bíblia na perspectiva da mulher A bíblia é um produto de uma determinada situação, geográfica, histórica e cultural de um povo, nela percebe-se várias relações, dentre elas a de gênero. Por isso quando se fala de uma leitura na perspectiva da mulher, significa realizar um trabalho de profunda pesquisa, pois busca-se dar voz à mulheres inseridas num sistema patriarcal e perceber o contexto histórico de cada uma. Compreender a bíblia a partir da história do Povo é a mesma coisa que entendê-la a partir da libertação dos pobres. Pois a libertação dos pobres é o processo central da formação do povo. Nessa leitura, faz-se necessário ver qual é o papel específico da libertação das mulheres. (Ana Flora Anderson – A mulher na memória do êxodo – 1988)

JERUSALÉM, Bíblia: Segundo testamento, Efésio 5, 21-24


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que muitas mulheres se sobressaíram, que não seguiam a lei, e tiveram postura bastante avançada para a época. Dentre elas, destacamos a juíza11 e profetiza Débora no tempo do tribalismo (livro dos Juízes), que comandou um exército para vencer o inimigo que ameaçava a terra, seu próprio general disse que só iria a guerra se ela fosse, é um exemplo de mulher bem diferente das mulheres da bíblia que ouvimos por ai. Outra é a Sulamita do (livro Cântico dos Cânticos), mulher sensual, ousada, que vai atrás do homem que ama e que diz a seus irmãos que é ela quem escolhe seu marido. Impossível não citar Maria Madalena12 que torna-se discípula de Jesus, líder de comunidade e enfrenta o pré-conceito de outros discípulos por causa de sua liderança e relação com Jesus. Muito raro ouvimos falar dessas mulheres, e quando nos falam, elas aparecem geralmente emplacadas de prostitutas. É preciso ser muito crítico com o texto para ver o que tem por trás das palavras, principalmente de quem interpreta.

4.2 O que silencia a voz da mulher

Quanto às mulheres, que elas tenham roupas decentes, se enfeitem com pudor e modéstia, nem tranças, nem objetos de ouro, nem vestuário suntuoso, mais que se ornem com boas obras, como convém a mulheres que são piedosas. Durante a instrução (estudo), a mulher conserve o silêncio com toda submissão. Eu não permito que a mulher ensine ou domine o homem. Que ela, pois se conserve no silêncio, porque primeiro foi criado Adão depois Eva. E não foi Adão que seduzido, mas a mulher que seduzida caiu em transgressão... (1Tm 2, 9-15 – Bíblia de Jerusalém.)

Nesse pequeno texto temos umas das mais tradicionais formas de olhar a mulher dentro de um contexto que chamamos de machista. Vejamos uma análise de texto numa ótica de gênero dentro das perspectiva de leitura popular da bíblia: primeiro temos toda uma postura incisiva com relação a vestimenta da mulher, de como ela tem que se vestir e etc. Numa leitura com o pé na realidade, quantas mulheres são vistas de forma pré-conceituosa por usar determinada roupa, ou por usar um batom vermelho ou até mesmo por cortar o cabelo? Nas igrejas parece até lei, em algumas, as mulheres têm que se cobrir com saias e blusas grandes e o cabelo tem que ser grande também. Alguns padres católicos 11

JERUSALÉM, Bíblia: Primeiro testamento, livro dos juízes, capítulo 4 e 5

12

JERUSALÉM, Bíblia: Nos quarto evangelhos Maria Madalena aparece.

83 colocam placas proibindo a entrada de mulheres com roupas curtas e batom vermelho. Quais são as proibições para os homens? Porque temem tanto o corpo feminino? Qual o objetivo dessas proibições? Na leitura popular da bíblia, percebemos a mulher no texto dando-lhe voz, suspeitando do contexto histórico, então nem tudo é verdade absoluta como ensinam os fundamentalistas. E assim fomos criadas e criados com essa cultura, e acreditando que é palavra de Deus, fazendo das mulheres de ontem e de hoje pessoas oprimidas, utilizando a bíblia como meio de opressão. Muitas mulheres que acreditam nessa interpretação fundamentalista, ensaiam alguns questionamentos sobre o texto, algumas começam a se incomodar com as diversas proibições e, é aí que se percebe que é de fato necessário um longo processo de leitura crítica da bíblia para romper com tanta opressão, pois o peso moral e cultural sob a mulher é grande. Um outro fato marcante nesse texto e que nos faz questionar é a preocupação que se tem de dizer que a mulher deve ser silenciosa, não pode falar, principalmente em grupo. Ainda bem que as coisas estão mudando, tem até quem diga que mulher fala demais, no entanto por trás dessa fala pode existir um problema de pré-conceito com a liderança feminina. No caminho de leitura crítica é importante questionar os motivos do texto que levam há uma mulher silenciosa, porque aquela comunidade estava preocupada com isso?. Percebe-se na religião católica que um exemplo bom de mulher é Maria mãe de Jesus, que traz a imagem de uma boneca de porcelana, numa postura silenciosa. Nas igrejas, os padres costumam dizer que as mulheres devem ser como Maria, uma mulher de fé que se manteve no silêncio, e muitas católicas rezam pedindo o silêncio de Maria. Essa é a postura de mulher que a igreja e a sociedade demonstram querer. Só que o curioso é que quando se lê na bíblia as participações de Maria, pode-se repensar essas idéias. Diante da visita do anjo, se lança corajosamente na história e aceita ser a mãe do libertador, não é passiva e nem resignada, mas assume o risco porque acredita no projeto libertador ao engajar-se com a prima e companheira de sonhos na luta pela libertação do povo, sua fala aparece na bíblia, no evangelho de Lucas, com um misto de alegria e indignação a dizer que “os poderosos cairão de seus tronos e os humildes serão exaltados e que Deus cumulou de bens os famintos, despedindo os ricos de mãos vazias”13(Lc. 1, 51-53). É possível ver Maria submissa e em silencio frente aos problemas enfrentados por seu povo? Parece-nos que não. Então parece que existe uma quebra de braço nos textos bíblicos entre aquilo/aquele que quer dominar e aquilo/aquele que liberta, levando a percepção 13

JERUSALÉM, Bíblia. Evangelho de Lucas 1, 51-53


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de que a bíblia é um conjunto de textos, e nela há relatos de opressão e de libertação. Quantas mulheres vivem no silêncio das violências sofridas no trabalho ou em casa e até buscam ajuda das igrejas e muitas vezes o que ouvem é que perdoem e calem-se. Nas delegacias são mal atendidas e expostas a mais violência, gerando um descaso que silencia a mulher. A análise do texto, no ato de ler, conduz pela mesma pista, pois ler não é receber passivamente propostas impostas, a não ser que se faça uma leitura fundamentalista do texto, mas na leitura popular da bíblia o olhar crítico pelo texto faz perceber que o leitor não pode ser totalmente exterior, é necessário chegar no interior do texto para sentir aquela realidade e questioná-la. É assim que se faz quando se quer ler a bíblia numa ótica feminista, chegar no interior da vida daquelas mulheres e perceber lutas, dores e alegrias parecidas com as lutas, dores e alegrias de muitas mulheres de hoje. Ainda é muito presente as diversas formas de opressão, mas se percebe também o processo de libertação seja em nossa cultura ou em outras. O pobre precisa ser mais protagonista de sua história, é a essa ação que a leitura popular da bíblia quer alcançar, onde o pobre deve ser identificado e ter direito á voz. Se percebe cada vez mais, uma necessidade de mergulhar no universo dessas mulheres e homens da bíblia que fazem história como as mulheres e homens da realidade atual, na qual existem faraós14 que oprimem e escravizam e há pobres buscando a libertação e a justiça. Quanto mais o leitor estiver próximo da experiência geradora do texto, tanto mais ele ira sentir que o texto o lê, ilumina e julga sua vida. Então sua própria experiência de vida será motivo de novas propostas e lutas para a vida.

84 FREIRE, Paulo. Educação como pratica da liberdade – Paz e Terra, 1975. GASS, Ildo Bohn; LOPES, Eliseu. Curso de Bíblia por Correspondência: porta de entrada módulo 1, fascículo 3. São Leopoldo: CEBI 2004. GAAS, Ildo Bohn (org). Bíblia e Resistência Popular – Belo Horizonte: CEBI 1991. MESTERS, Carlos; SCHWANTES, Milton; RICHARD, Pablo; TAMEZ, Elsa. Leitura Popular da Bílblia: por uma hermenêutica da libertação na América Latina. – RIBLA: Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, 1988. MESTERS, Carlos; SCHWANTES, Milton; RICHARD, Pablo; TAMEZ, Elsa.. Balanço de 20 anos: A bíblia lida pelo povo na atual renovação da Igreja Católica no Brasil de 1964 – 1984 – Belo Horizonte (MG): CEBI 1988. OTAÑO, Blanqui; BUDALLÉS, Mercedes; COSTA, Julieta. A bíblia e as Mulheres – São Leopoldo (RS): CEBI 1989. SCHINELO, Edmilson (org). Bíblia e Educação Popular, encontros de solidariedade e diálogo - São Leopoldo: CEBI 2005. SOARES, Sebastião Armando (org). Curso Extensivo de Formação de Biblistas – pista para análise de textos – São Leopoldo (RS): CEBI 1998. 13 Assembléia Nacional: Tecer, Acampar, Caminhar – Belo Horizonte: CEBI 1994.

5. Referências bibliográficas BRENNER, Athalya (org). Cântico dos Cânticos a partir de uma leitura de gênero – São Paulo: Paulinas, 2000. JERUSALÉM, Bíblia. Edição revista. São Paulo: Paulus 1985. DHEHER, Carlos. A palavra na Vida: Releitura Bíblica ensaiando uma nova comunicação – São Leopoldo: CEBI 2005. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa – São Paulo: Paz e Terra, 1996. 14 Faraó, personagem biblico e histórico do Egito, representante opressor no período da formação do povo rlatado no primeiro testamento no livro Exôdo


Candangos e Pioneiros – Uma Distinção Histórica e de Classe

Bianca Nunes De Queiroz (Consulta Popular)


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1. Introdução Pretendemos entender as categorias candangos e pioneiros para decifrarmos as primeiras distinções de classes percebidas em Brasília. A partir desse entendimento analisar por meio de conceitos de classes sociais e territorialidade as relações econômicas e políticas permeadas nesse momento da construção de Brasília. A questão da classe é entender as relações de trabalho estabelecidas entre as pessoas que vieram para nova capital, no contexto da sua construção, que a cada dia que passava naquele contexto transformava-se no símbolo da esperança e da oportunidade. Analisaremos a territorialidade a partir de Milton Santos é perceber o espaço social que candangos e pioneiros interagiam, que antes mesmo da inauguração será segregada de forma excludente. Em seu sentido etimológico candango quer dizer “designação que os africanos davam aos portugueses – 1889. Designação dada aos operários das grandes obras da construção de Brasília. De origem africana, talvez do quimbundo” CUNHA (1982). Já pioneiros ao buscar a origem da palavra encontrou-se “pioneer” sapador, o que faz trabalhos de sapa(enxada). Trabalhador assíduo. Explorador de sertões – o primeiro que descobre caminhos em regiões inexploradas. Os audaciosos, os que vão adiante – os primeiros da civilização”AZEVEDO (1989). Ao trazer estes conceitos durante o período da construção de Brasília percebemos que àqueles denominados de candangos vão ser os operários, de origem humilde criando, então, neste momento um universo simbólico para a figura do imigrante dessa categoria. O autor Fernando Tamanini (1994, p.4) distingue em grupos diferentes e separados “homo sapiens” como detentores do intelectual e o “faber” como os operários.O primeiro concebeu e planejou em toda sua beleza e funcionalidade, superando o desafio de criá-la não a partir de condições naturais, mas do cruzamento de paralelos e meridianos. Já o segundo em sua condição inferiorizada de forma magistral é definido como o

SUMÁRIO Introdução, 88 • Contexto político-econômico brasileiro durante a construção de Brasília, 90 • Fundamentação teórica, 90 • Candangos e pioneiros - uma distinção de classe e de território na nova capital, 91 • Conclusão, 93 • Referências bibliográficas, 93 • Fontes, 93.

“operário braçal, um autêntico (e anônimo) herói que se empenhou no trabalho com insuperável entusiasmo e comovedora dedicação, sob as mais adversas circunstâncias, não se importando com o desconforto da morada com o sol ou com a chuva, dobrando suas horas de atividade, varando noites e madrugadas, sacrificando-se, consciente de que não estava apenas juntando pedras e cimento mas lançando os alicerces de um novo tempo para as gerações que haveriam de vir, seus filhos e os filhos de seus filhos”.(p. 6)


Candangos e Pioneiros – Uma Distinção Histórica e de Classe

Logo depois, o autor acima citado salienta que foi nos canteiros de obras da nova capital, que a palavra candango originou-se e se empregou pela primeira vez. Segundo Tamanini (1994, p. 8),

87 miséria dos trabalhadores oriundos do interior, das quais experimentavam a indústria da construção civil como porta de entrada para o mercado de trabalho urbano. Para Antônio, bombeiro:

“o certo é que seu uso rapidamente generalizou-se, de certa forma depreciativa aos trabalhadores mais humildes, aqueles que chegavam trajavam calças surradas de brim e trazendo seus caborjes no pescoço, chapéu velho na cabeça. Logo o uso se estendeu a todos os operários. Já então a palavra candango distinguia e honrava que se haviam irmanado e solidarizado na árdua luta pela construção da cidade, homens que viviam e agiam como que tocados e iluminados pelo espírito de Brasília que rapidamente se criara e empolgara a todos”. Idem (1984, p. 11).

Tamanini ao falar sobre o candango vai dar como exemplo um candango típico como um homem humilde e do campo, com as feições cansadas e com um chapéu de bordas largas. Este vai representar o candango. Homens que vieram para Brasília e na sua maioria vão trabalhar de pedreiro, assistentes de obras, ou seja, profissões de trabalho braçal. No universo pioneiros será construído um diferente campo simbólico ao do candango, a qual, através de análises dos cadernos semanais por nome PIONEIROS do jornal Correio Braziliense será possível perceber tal distinção, pois dentre vinte cadernos pesquisados são médicos, advogados, empresários e arquiteto, que representaram Brasília no início da construção. O título das reportagens é Histórias de quem fez Brasília. E na visão do jornal quem são essas pessoas que fizeram Brasília? A maioria são pessoas que vieram no início da construção dessa cidade, os pioneiros, mas que hoje são bem sucedidas economicamente. No significado do dicionário a figura deste é enaltecida como heróica, denominados de primeiros, corajosos e audaciosos. E no caderno especial do Correio vai ser retratada da mesma forma. É interessante ressaltar que as reportagens contidas nesta pesquisa retratam a posição ideológica do jornal, da qual, atende a interesses da elite política de Brasília e as fontes documentais utilizadas são somente as oficiais. Vamos observar e comparar através dos discursos dos ditos pioneiros, que o jornal os retrata, e os discursos de construtores civis do livro, “Os construtores de Brasília”, a realidade diferente para cada um. Será que Brasília vai ser a mesma para os candangos e pioneiros? Será que a realidade dos candangos será àquela que Tamanini coloca? Todos os candangos vão trabalhar em Brasília motivados pelo espírito de construção da nova capital? As referências desse autor parecem um tanto um pouco oficiais. A autora Souza (1983), vai nos mostrar o momento da construção através do olhar do operário e seus discursos, a rapidez exigida para o dia da inauguração e as condições de

“Ah, todo mundo gosta, tinha esta ilusão de vim. Aí eu animei também e vim. Achava que era mais fácil pra viver aqui do que lá. Um ano era escasso, outro ano era, né, tinha esse problema de inverno, aí eu achava melhor vim ficar aqui.” 1

Para João, poceiro: “É porque as coisas lá é difícil, né . Então, a gente procurou um meio de viver melhó. Então, a gente saiu pra procurá se arranjava um meio melhó pra vivê, mas até hoje vou morrê e num arrumo, não” . 2

Ao chegar em Brasília os objetivos de uns se misturam à utopia da cidade como foi para os pioneiros, mas para outros o lugar imaginado e esperado se transformou em frustrações e desilusões como foram para muitos construtores civis, pessoas com o nível econômico mais baixo, chamados de candango. O caso de Seu Francisco Silva, pedreiro, de sessenta anos, paraibano, revela-nos bem essa situação: “(...) ficou elas por elas. A seca do Nordeste e a fantasia da Brasília está a mesma coisa. Para os poderosos cresceu bem, mas para a população de baixa renda está quase pior”.

Podemos perceber através do depoimento do Seu Gabriel, morador da Vila Planalto, que as relações de poder e suas conexões com a memória registrada de candangos e pioneiros, bem como os espaços históricos construídos pelos operários, não foram valorizadas na história oficial da cidade, como exemplifica Magalhães (2001): “Naquela época, engenheiros, operários, de um modo geral, tudo era uma coisa só. Tudo era uma peça dessa grande engrenagem da construção de Brasília. Quer dizer,

1

Depoimentos transcritos do Arquivo Público do Distrito Federal, 1995

2

Idem


Candangos e Pioneiros – Uma Distinção Histórica e de Classe

sem uma peça dessas não funcionava. Acho justo que fosse preservada a memória dos pequenos também. Porque só pegam por cima, não tem sentido” (p.51)

O discurso de Seu Gabriel nos remete ao que mencionamos anteriormente sobre o que o Jornal Correio Braziliense, veículo de comunicação das elites brasilienses, percebe como os reais construtores dessa cidade. A história oficial não proporcionou espaço à voz das pessoas que se estabeleceram na condição de construtores civis e operários, que se sentiam parte da construção da história do seu país tanto como os pioneiros.

2. Contexto político-econômico brasileiro durante a construção de Brasília Brasília surge e desenvolve-se no auge do processo de modernização do pósguerra, baseada na crença do progresso linear que alimentaram o desenvolvimento do capitalismo no Brasil. A “modernização das economias avançadas fez-se acompanhar do impulso da política e do comércio internacionais, tendo como justificativa para essa expansão o benevolente e progressista “processo de modernização” absorvido pelos países da América Latina”; (PENNA, 1996) Esse padrão, que envolvia produção em massa, consumo de massa e padronização da produção caracterizava-se como o fordismo crescente do pósguerra. No fordismo, como parte de um acordo social visava manter o equilíbrio dinâmico do sistema, e a partir disso as corporações e o Estado assumiram a hegemonia política e econômica. (PENNA, 1996). A construção de Brasília, portanto, se insere nesse contexto de expansão do modelo capitalista fordista de produção e consequentemente as pessoas que foram para nova capital distribuíram-se entre os principais atores no mercado de trabalho que foram denominados de candangos e pioneiros. Não só o mercado de trabalho se insere nesse contexto como o espaço territorial planejado da qual Brasília se configurou transforma-se em um espaço excludente para os seus primeiros moradores. O desenvolvimentismo pode ser concebido como uma ideologia cuja proposição política básica é a industrialização capitalista planejada e coordenada pelo Estado. O autor Penna (1996) remete-se ao desenvolvimentismo, o que torna necessário para entendermos a reprodução dessa forma capitalista na época da construção de Brasília. No contexto exposto,

88 “desenvolvimento significava expandir territorialmente esse padrão de produção, de consumo e de uso de tecnologia o que levou à formação de mercados de massa globais e à ocupação massiva da população no mundo capitalista. Por outro lado, o estado de bem-estar social dependia da contínua aceleração da produtividade no setor corporativista”. ( 1996, p. 35)

Dentro do contexto da ideologia desenvolvimentista percebemos que os imigrantes vieram para a cidade de Brasília com a ilusão de que os problemas sócio-econômicos seriam minimizados na nova capital. No plano urbanístico de Lúcio Costa havia uma falsa idéia de que a configuração da cidade de Brasília proporcionaria mudanças sociais, o que reforçou ainda mais as representações da cidade das oportunidades e da esperança. James Holston (1993) salienta a tese sobre mitos fundadores com posições bem críticas, pois, para o mesmo, a procura por origens é em geral um modo ilícito de justificação e com freqüência é um mecanismo de manipulação e reordenação da história, de modo a buscar respaldo para propósitos atuais. O autor vai buscar na carta da fundação da cidade a versão de Lúcio Costa a respeito das origens de Brasília e critica a mesma porque segundo ele “justificar o plano da cidade como um meio de transformação radical da sociedade apresenta a fundação de Brasília como se esta não tivesse história, como se não fosse uma resposta às condições sócio-econômicas do Brasil em 1957”. O autor quer dizer que Lúcio Costa justifica os princípios arquitetônicos universalizantes e oculta as intenções de mudança social deshistorizando o momento em que o Brasil está passando de crise governamental de Juscelino Kubtschek.

3. Fundamentação Teórica

3.1 Classe social e territorialidade

O autor Robert H. Srour (1987), apresenta três noções distintas do termo classe no Brasil. Na primeira o termo classe é entendida como categoria profissional (classe dos médicos, dos metalúrgicos e professores). Na segunda, a noção apresenta-se a partir de estratos ou camadas definidos de acordo com as faixas de rendimento ou níveis sócio-econômicos. Por fim, o autor entende a noção de classes marxista a partir das relações econômicas com os meios de produção. A partir de conceitos marxistas de classe pretende-se fazer a relação, sobretudo do ponto de vista do trabalho, entre candangos e pioneiros, durante a construção


Candangos e Pioneiros – Uma Distinção Histórica e de Classe

de Brasília. Perceber suas condições econômico–financeira e social naquele momento, seja como explorador, seja como explorado. Analisar até que ponto houve consciência de classe, seja para lutarem por um cenário de transformação da realidade, seja para criarem um espaço segregador, a partir do momento que Brasília não era mais uma cidade prometida e sim uma cidade que demandava os mesmo problemas sociais que as outras. O autor Marcelo Badaró Mattos (1994, p. 3), defende “a dimensão ampliada da reprodução do capital que gera um desenho das classes sociais e de seus conflitos muito mais amplo do que simplesmente o originado nos locais de trabalho”. Essa visão de classe se torna necessária, pois, a análise feita entre candangos e pioneiros não será analisada somente sob o ponto de vista do trabalho, mas também pela perspectiva do conceito de territorialidade de Milton Santos. Por meio dessa análise, percebe-se o marco entre classes quando os candangos simbolizados no papel de construtores civis em sua maioria terão as suas moradias dispersadas do centro da cidade, ou seja, o Plano Piloto. Diferentemente, os pioneiros, categorias representadas pelos servidores públicos transferidos para nova capital, os profissionais liberais, políticos, comerciantes da época se estabeleceram nos locais nobres da cidade. Edward Palmer Thompson em sua obra, “A Formação da Classe Operária”, no capítulo sobre consciência de classe discorre que no final de 1820 na Inglaterra, apesar dos calmos anos, “foram tempos do aumento da luta sindical, do crescimento do livre pensamento e quando foi possível falar de uma nova forma de consciência dos trabalhadores em relação aos seus interesses e à sua situação enquanto classe” (p 303). Thompson,analisa três grupos de trabalhadores (rurais, artesãos e tecelões) marcados pelo enfrentamento com dimensões diversas e complementares das transformações do capitalismo do período. Grupos estes que defendiam os seus ofícios em detrimento da dominação do mercado e provocava uma aceleração da proletarização sem o estabelecimento de qualquer tipo de mecanismo compensatório aos padrões impostos pelo capitalismo emergente. Thompson descreve o radicalismo popular das primeiras décadas do século XIX como uma cultura intelectual, pois a “consciência articulada do autodidata era, sobretudo, uma consciência política” (p. 304). Assim, aprenderam a perceber suas vidas como parte de todo o processo de conflitos que se definia na Inglaterra. Em 1830, o autor analisa que após um longo processo de lutas e percepções da realidade em que viviam nessa década, veio a amadurecer uma consciência de classe, no sentido marxista tradicional, pois os trabalhadores estavam cientes de prosseguir por conta própria em suas lutas. Essa noção conceitual de classe social é de extrema importância na medida em que descorremos sobre o processo histórico do início da construção de Brasília e

89 das diferenças de classes que será posta entre as categorias, candangos e pioneiros. A diferença é, principalmente, através do trabalho que durante esse período essa diferenciação se projetará na divisão dos territórios em classes sociais. O conceito de territorialidade em Milton Santos (2001, p 48) nos remete a entender “o espaço social contido no espaço geográfico, que se transforma continuamente pelas relações sociais e que formam os territórios sendo estes uma fração do espaço geográfico”. É essencial enfatizar que o território imaterial é também um espaço político, abstrato e sua configuração refere-se às dimensões de poder e controle social, condições que lhes são inseparáveis. Essas qualidades dos espaços evidenciam nas partes as mesmas características da totalidade. A noção de territorialidade será analisada do ponto de vista da exclusão dos espaços de relações sociais determinados para os candangos, os operários construtores civis desprezados e jogados nas cidades satélites (periferia), e os pioneiros, a elite profissionalizada, que simbolizará a classe dominante da qual se concentrará anos após a construção, no Plano Piloto. Os territórios são, portanto, concretos e imateriais. O espaço geográfico de uma nação forma um espaço concreto, assim como um paradigma forma um território imaterial. O conhecimento é um importante tipo de território, daí a essencialidade do método. Para a construção de leituras da realidade é fundamental criar métodos de análise. Para um uso não servil dos territórios dos paradigmas é necessário utilizar-se da propriedade do método. A mobilidade dos territórios imateriais sobre o espaço geográfico por meio da intencionalidade determina a construção de territórios concretos.

4. Candangos e pioneiros - uma distinção de classe e de território na nova capital A questão do espaço geográfico do ponto de vista social em Brasília precisa ser entendida a partir do seu processo histórico, formado no decorrer da construção a partir das propagandas da época sobre Brasília, como: a cidade das oportunidades e a contradição da dura realidade encontrada pelos operários que vinham pra cá, especificamente os nordestinos, que chegavam em condições de miséria, foragidos da seca da região em cima de paus-de-araras. A oferta de trabalho para construção civil era altíssima, diferentemente, de onde vinham, fazendo com que a maioria deles (as) criassem uma expectativa de melhores condições de vida na nova capital. Vieram pessoas de diversos lugares do país, classes sociais e diferentes profissões para participar da construção de Brasília no final da década de cinqüenta, mas


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somente alguns serão chamados de pioneiros e outros de candangos. A partir da análise do Caderno PIONEIROS do jornal Correio Brasiliense percebemos quem serão de fato os pioneiros de Brasília. Analisando quatro entrevistas do material, dos quais dois são médicos e três empresários sendo eles todos bem sucedidos nos respectivos negócios. No discurso de todos os quatro mencionaram o clima harmonioso transmitindo uma idéia de igualdade e solidariedade comum naquele determinado momento da construção. Diferentemente dos pioneiros, que vieram exercer suas profissões, os operários da época trabalharam incessantemente na construção de Brasília para o dia da inauguração. Moravam em acampamentos perto das construções, que transformaram-se rapidamente em ocupações, como foi o caso do acampamento da Rabelo, que se transformará logo depois na Vila Planalto.Esta surgiu na época da construção do prédio do Congresso, que renderá histórias que se tornará recorrente neste período de Brasília, como demonstra no discurso de Seu Gabriel (2001, p. 13), quebrador de pedra, que conta como eram as condições dos operários durante a construção do prédio do Congresso. “Eles tinham que andar em cima das vigotas de ferro. Quando a sirene tocava, inclusive, é que tinha caído um. Toda hora que a sirene tocava, a não ser na hora do almoço, ou no término do trabalho, ou pra pegar no serviço, é que tinha caído um. Caiu muita gente aí, morreu muita gente. O negócio era acelerado, não tinha outro jeito. Pra dizer a verdade, eu mesmo cheguei a usar Preventim, pra agüentar dia e noite trabalhando. Na Rodoviária, tinha gente que pegava tarefa de cem horas e fazia a tarefa num dia! “

Para os operários da época, a realidade na nova capital não foi fácil, tanto em relação às condições de trabalho, como as moradias que não lhes eram oferecidas. As cidades satélites surgiram porque o Plano Piloto não foi feito para os operários. Esta realidade de exclusão social tão comum ao resto do Brasil reproduziu-se em Brasília simbolizada no Plano Piloto, que hoje concentra a classe média e alta, vinda na época da construção, e de outro lado encontra-se as cidades-satélites, revelada como a periferia da nova capital, pra onde foram relegados os operários, que construíram os principais prédios da cidade de Brasília. No depoimento de Adilson Tinoco, empresário, retirado do Caderno “Pioneiros” podemos perceber também as dificuldades encontradas pelo mesmo, como o acesso restrito aos transportes, comunicação, alimentação e material de construção. Com isso, percebemos a tendência do jornal Correio Braziliense reforçar a idéia dos pioneiros simbolizarem a elite ou pessoas que obtiveram sucesso depois de se mudarem para Brasília.

90 Em 1971, Ceilândia foi fundada com o objetivo de regularizar a situação de famílias que haviam invadido áreas públicas. Inicialmente chamada de CEI, que significava “Centro de Erradicação de Invasões”, tinha o objetivo de centralizar todos que encontravam-se irregulares nas mediações de Brasília. Agregou a maior população do Distrito Federal à medida que foi absorvendo contingentes de outras áreas, expulsos pela valorização imobiliária. Fato este que, desde já, criou uma representação social aos moradores do local, de “invasores” e conseqüentemente excluindo quem habitava a Ceilândia gerando desigualdades em relação à população do Plano Piloto. Nesse sentido Santos (1995) adverte para as profundas diferenças entre desigualdade e exclusão. Esta última trata de um processo histórico do qual uma cultura, por meio de um discurso de verdade, cria barreiras e rejeita. O sistema de desigualdade se dá paradoxalmente no caráter essencial da diferença de classe, no qual, está estritamente ligado a relações de poder. A Ceilândia é mais uma das cidades-satélites de Brasília fora do cordão do Plano Piloto, onde as estruturas habitacionais são diferentes e o nível econômico mais baixo. Criam-se representações negativas em relação a essa periferia e automaticamente os seus moradores passam a ser estigmatizados. Estes fatores vão provocar um distanciamento entre os do Plano e os das cidades-satélites, que neste caso vamos tomar como exemplo a Ceilândia, para este trabalho. O fato de Brasília (Plano Piloto) concentrar os campos administrativos com mais fácil acesso aos bens materiais e as cidades-satélites se transformarem mais em cidades-dormitórios, os moradores dos últimos têm muito mais contato com os moradores e o cotidiano do Plano, o que provoca sentimento de exclusão entre os dois, pois os brasilienses não interagem com o modo de viver das pessoas da satélite como sentindo-se estranhos no espaço do outro. Esta realidade excludente ocorre, principalmente, por causa do Plano Urbanístico de Brasília inicial, que não foi construída para incluir os pobres de outras regiões do Brasil. Planejaram a nova capital para a classe média alta como os servidores públicos, médicos, engenheiros, ou seja, os pioneiros construídos pelo jornal Correio Braziliense. Aos candangos restaram as zonas mais distantes do Plano Piloto como foi o caso da Ceilândia, que simbolizou dentre todas cidades da periferia, a exclusão da pobreza do centro da capital. Essa cidadesatélite fez parte da Campanha de Erradicação de Invasões – CEI , que reuniu em um só espaço pessoas que faziam parte das invasões espalhadas entre os lugares mais nobres da capital. Espaço que perpetuará em todas as suas esferas sociais de exclusão o descaso da falta de infra-instrutura que qualquer periferia de qualquer cidade vive. Este contexto se deu principalmente porque o poder econômico


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imobiliário em Brasília cresceu rapidamente aumentando a especulação nesse setor.

HOLSTON, James. A cidade modernista. Uma crítica de Brasília e sua utopia.São Paulo.Companhia das Letras, 1993, p 67.

5. Conclusão

MAGALHÃES, Nancy Alessio e SINOTI, Marta Litwinczik Sinoti. Memórias e direitos: moradas e abrigos em Brasília, 2001, p.13.

A partir dos questionamentos e o contexto exposto percebemos que Brasília tornou-se uma capital com problemas de uma cidade qualquer, mas com especificidades que de certa forma a torna extremamente segregadora e desigual em seus espaços sociais quando analisamos o seu contexto histórico. O principal questionamento é que a nova capital em seu plano urbanístico tinha intensões de transformações sociais que conflituou diretamente com a realidade, que se construía dia-a-dia com a chegada de inúmeras pessoas do Brasil inteiro. Hoje, devido a essa divisão clara de espaços entre pobres e ricos, criou um estranhamento entre as pessoas e seus espaços de relações sociais, o que provocou uma das maiores concentrações de renda no Brasil e uma discrepância social absurda, pois a interação entre esses grupos sociais é ínfimo, o que levou Brasília a ser chamada de Ilha da Fantasia. Brasília é uma cidade (Plano Piloto, centro administrativo) que não se vê pobres nas ruas, causando uma falsa impressão que eles não existem. Mas ao andar alguns quilômetros em direção a saída do Plano Piloto, percebe-se a dura realidade da periferia escondida dos centros de Brasília. Lugares estes, que denotam o descaso do governo local em resolver tal situação de miséria e precariedade na saúde, educação, lazer e transporte, perpetuando a desigualdade posta entre candangos (construtores civis e trabalhadores braçais) e pioneiros (profissionais liberais, servidores públicos) entre os seus espaços no início da construção de Brasília.

MATTOS, Marcelo Badaró. Classes sociais e a luta de classes: atualidade dos conceitos, 1994. SANTOS, Milton; SILVEIRA, Maria Laura. O Brasil: território e sociedade no início do século XIX. São Paulo: Record, 2001. SOUZA, Nair Heloísa Bicalho de. Construtores de Brasília. Estudos de operários e sua participação política. Ed. Vozes. Petrópolis – RJ, 1983, p 86. SROS, Robert H. As Classes Sociais. Ed. Ática, São Paulo, 1987. TAMANINI, Fernando. Memória da contrução.Royal Court. Brasília, 1994 p 154. THOMPSON, E. P. A formação da Classe Operária inglesa: A árvore da liberdade. Vol III Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

7. Fontes Depoimentos transcritos do Arquivo Público do DF; Depoimento retirado do documentário, Conterrâneos velhos de guerra, de Vladmir Carvalho;

6. Referências bibliográficas Caderno PIONEIROS, do Jornal Correio Braziliense; AZEVEDO, Domingos de. O grande dicionário francês/português.Bertrand, 1989. Pesquisas feitas na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. CUNHA, Antônio Geraldo da. O Etmológico. Nova Fronteira da Língua portuguesa.1982.


O Discurso da Juventude nos Movimentos Sociais

Jesuita Dias Pinto (Pastoral da Juventude - DF)


93 Agradeço: Aos jovens que se dispuseram a contribuir nas entrevistas, apesar de seus vários compromissos de militantes. A Fábio Marvulle, Jeansley Lima e Francisco Filippo pelas referências bibliográficas e todo apoio durante a pesquisa, cada um de sua forma. A Clemildo Sá que sempre me incentivou para que tudo fosse possível.

1. Para início de conversa

SUMÁRIO Para início de conversa, 95 • Caminhos percorridos, 96 • “Nossa linda juventude, páginas de um livro bom”, 96 • Encontro marcado, 97 • Algumas ponderações finais, 98 • Referências bibliográficas, 99 • Anexos, 100.

A partir do momento que fomos convidados a escolher a temática do trabalho de finalização do Curso de Realidade Brasileira, veio-me inquietações que foram, com certeza, as de outros companheiros e de outras companheiras. Observa-se que cada participante optou por temas respectivos ao movimento que participa, como por exemplo: Desemprego no DF (MTD), Transporte Público no DF (MPL), A constituição social dos pescadores do Lago Paranoá (MAB), entre vários outros. Na delimitação do ensaio não foi diferente. Como milito na área da Evangelização da Juventude, através dos grupos de jovens da Arquidiocese de Brasília, assim como sou estudante da linguagem, desenvolvi a seguinte temática: O discurso da Juventude nos Movimentos Sociais. No decorrer do Curso foi visível a necessidade da juventude expor suas preocupações, contribuir incessantemente nas explanações dos professores. Além de auto-afirmação, também suponho ser uma forma aproveitar o momento de socializar e construir o conhecimento. Por vários momentos inquietou-me saber sobre a inserção da juventude nos movimentos sociais em Brasília, assim como me despertou analisar seu discurso. Para início de problematização, resolvi fazer um exercício com os companheiros e companheiras de curso. Hoje o termo juventude vem cercado de conceituações sem um consenso dos teóricos, mas percebo um aspecto pejorativo e majoritário junto à população. Novaes (2001), afirma que quando se fala em Juventude hoje, recorre-se sempre aos problemas da juventude: irresponsabilidade, individualismo, falta de perspectivas, rebeldia, violência...


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Virou rotina lermos, ouvirmos e assistirmos notícias trazendo a imagem do jovem-problema: “jovens ateiam fogo em índio em Brasília”, “jovem mata pais com a ajuda do namorado”, “Jovens fazem ‘baderna’ no Senado”. E os jovens que lutam por uma causa social, que estudam, que trabalham, querem construir um mundo mais justo, igualitário? É hora de ressaltar a força que a juventude tem, principalmente neste momento onde se mostram abertos à mobilização, sendo esta fase “momento principal de afirmação ideológica dos indivíduos”, como vem contribuir o jovem Francisco Filippo, amigo de militância. Além disso, não esqueçamos que temos outras manchetes como os estudantes na França evidenciando o esgotamento do pacto social francês, os jovens do Movimento Passe Livre lutando contra aumento de tarifa de ônibus, os caras pintadas para exigir o impeachment de Fernando Collor, os protestos em Florianópolis e Brasília unindo jovens, movimentos sociais e comunidades árabes contra a agressão israelense, poderia citar várias outras, mas vamos continuar nossa conversa...

2. Caminhos percorridos Este ensaio objetiva analisar o discurso dos jovens, assim como compreender as motivações do discurso da juventude nos movimentos sociais. A convivência de mais de um ano no Curso de Realidade Brasileira proporcionou observar os jovens, através de suas falas eloqüentes, da busca incessante pelo conhecimento e a participação incondicional nos debates. O corpus do trabalho é constituído da seleção das referências bibliográficas, observação do discurso dos jovens durante o curso, formulação e aplicação de questionário, onde foram feitas entrevistas diretas e indiretas, transcrição das entrevistas gravadas e análise das entrevistas. Os jovens que participaram das entrevistas foram: Arthur Antônio Araújo (DCE), bancário, formado em Letras pela Unb, estudante de direito; Karla Gamba (DCE e Instinto Coletivo) estudante de artes cênicas, Leonardo Maggi (MAB), formado em Agronomia e Marcelo Arruda (Intervozes e Ralacoco), formado em cinema.

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3 “Nossa linda juventude, páginas de um livro bom...”

(Flávio

Venturini)

Ao conceber o fenômeno juventude como realidade heterogênea, temos que indicar de qual prisma observamos a questão. O Estado Brasileiro não tem definição precisa sobre juventude, influenciado pelo documento em comemoração do Ano Internacional da Juventude, na Assembléia Geral das Nações Unidas, em 1985, assume a faixa etária de 15 a 24 anos. “As nações Unidas entendem juventude os jovens como indivíduos com idade entre 15 a 24 anos, com a devida salvaguarda que cada país, de acordo com a sua realidade, pode estabelecer sua “ faixa jovem”. (Cadernos, juventude, saúde e desenvolvimento, 1999).

Devido às diversas realidades existentes estendi o período dos 25 anos até os 29 para efeito específico da pesquisa. Por outro lado, o conceito que se tem sobre juventude não está associado apenas à faixa etária, é algo mais complexo, por isso não existe um consenso entre os estudiosos, como podemos notar nos seguintes trechos: “No conceito atual, juventude é, idealmente, o tempo em que se completa a formação física, psíquica, social e cultural, processando-se a passagem da condição de dependência para a autonomia em relação à família de origem”. (David da Silva e Natasha Fonseca, 2004) “ Ser jovem é sobretudo uma maneira particular de estar no mundo”. (NOVAES, 2001) “Quando falamos de juventude... estamos nos referindo ao momento posterior à infância” (ABRAMO, 1997)

Assim, também, podemos assinalar na fala de alguns jovens entrevistados que o entendimento sobre juventude pode ser observado em vários aspectos: “Coletivo que sofre maiores intervenções do sistema, da cultura do sistema”. (Karla Gamba)


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“ Juventude não está ligada a idade física, a idade cronológica... é a capacidade que a pessoa tem de mudar, de questionar... são pessoas inquietas, curiosas, dispostas a mudanças, digo essa pessoa é jovem”. (Leonardo Maggi)

95 “Quem fala, fala de algum lugar, a partir de um direito reconhecido institucionalmente... é gerador de poder” (BRANDÃO, 1996)

Como diz Foucault: Para fins jurídicos se faz indispensável utilizar o crono, porém o que existe de fato é a necessidade de encaixar um grupo de pessoas dentro de um modelo determinado de comportamento, onde se inicia numa determinada idade e termina em outra. Conseqüentemente, ao estudar a temática sobre juventude nos movimentos sociais devem ser levados em consideração fatores sociais, culturais e econômicos que merecem atenção em vários aspectos.

3.1 “Mas é preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana, sempre ...” (Milton Nascimento) Ainda faltava maior clareza sobre os movimentos envolvidos no Curso de Realidade Brasileira, não concernente ao papel que cada um desempenha, mas sobre o termo utilizado: movimento social ou seria movimento popular? O termo que atende aos nossos objetivos e nossa luta é movimento social, partindo do pressuposto que: “Movimentos sociais, entendidos como um tipo de ação coletiva orientada para a mudança, em que uma coletividade de pessoas ou uma massa descentralizada é dirigida, de modo não hierárquico.” (LUNCK, 1995) “Sujeitos portadores de uma ação coletiva emancipadora...” (Mesquita, 2006) “se caracteriza por certo grau de continuidade na atividade que desenvolve” (Idem)

3.2 “O DISCURSO gera o que é e o que se diz” (Donaldo Schüler) A partir do discurso dos jovens, o termo vem nos apontar a força que o enunciado tem, pois não se pode entender a língua simplesmente como transmissão de informação, mas essa informação é carregada de intenções, de emoções, de poder.

“Não se pode falar em qualquer época de qualquer coisa; não é fácil dizer qualquer coisa que seja nova”

Assim, este ensaio não tem a pretensão de mostrar algo novo, no entanto parto do propósito de contribuir com algumas reflexões que parecem pertinentes para o trabalho de militantes junto as Comunidades Eclesiais de Base e, até mesmo, as diversas organizações que participam do curso.

3.3 Realidade da Juventude Não é difícil imaginar o porquê é tão complexo definir juventude, ainda compreender seu mundo pela variedade de comportamento e situações que a cercam. Dessa forma a idade cronológica influencia consideravelmente sua inserção nos movimentos sociais, pois nesta fase os valores que buscam são cada vez mais individuais, fazendo com que recorram a viverem apenas o momento presente, invista na auto–realização. Por outro lado, existe um pequeno grupo que tenta conciliar seu projeto pessoal com projetos coletivos, tendo uma inquietação com seu futuro e o futuro do povo, jovens que estão inseridos no mercado de trabalho, jovens que tem moradia, enfim, jovens de classe média que assumem a causa por aqueles que estão desprovidos das necessidades mínimas de sobrevivência. Não podemos negar a potencialidade dos jovens, contudo é necessária uma maior formação-ação, pois nesta fase observa-se uma grande energia que deve ser canalizada, à vista disso também se concentram momentos de grandes conflitos e desafios. Mas como proporcionar formação se há uma disparidade alarmante de desigualdade socioeconômico de nosso povo? Hoje nossos jovens enfrentam problemas na educação, no trabalho, na cultura e lazer, não deixando de ressaltar o grande número de mortes de jovens em nosso país.


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4. Encontro marcado Nos módulos do Curso de Realidade Brasileira foi possível perceber a necessidade da juventude expor suas necessidades, angústias, inquietações e acima de tudo buscar o conhecimento, além de contribuir nas reflexões, contrapondo uma afirmação onde ouvimos dizer que os jovens, na sua maioria, são alienados e não demonstram interesse pela política e pela conjuntura de seu país. Por outro lado confirma também que há pouco engajamento nos movimentos sociais. As maiores dificuldades encontradas na militância jovem, apresentada pelos jovens entrevistados e observado durante os módulos, é o fator tempo. Como conciliar estudo, trabalho, namoro e militância? Caso não tenha disciplina, uma atividade ou outra fica prejudicada. Observa-se que há um certo ativismo em assumir várias frentes de luta, tudo ao mesmo tempo. Agora! Outra dificuldade é a realidade, por eles percebidos no mundo juvenil, do desemprego, da despolitização e do domínio da televisão, da mídia de uma forma geral, sem comentar o alto índice de violência em todo o país. Ainda sobre a visão do mundo juvenil. Há jovens que lutam pela sua sobrevivência. Há outros que procuram somente sua auto-realização. E há aqueles, ainda, completamente fora da realidade presente. O fato é que não se tem emprego, não se tem estudo e não se tem dignidade. O jovem não tem opção, ele precisa de estudo e trabalho, quando se é exigido uma opção, quem perde é o estudo por questões já colocadas: sobrevivência. Em face disso muitos jovens não concluem o ensino fundamental. “A grande maioria da juventude está angustiada porque não consegue trabalho...” (Artur Araújo)

Nota-se que, muitas vezes, a militância inicia-se no Movimento Estudantil (Grêmio, DCE) ainda de forma inconsciente, mas é durante a caminhada e inserção no movimento que se descobre a importância da luta e seus reais objetivos, como comenta a jovem Karla Gamba: “... eu tinha uma visão muito equivocada do que era movimento, eu via mesmo aquela galerinha do grêmio, galerinha popular que vai lá pro grêmio e faz as festinhas... Eu não via muito sentido macro para militância... depois eu tive a oportunidade de entrar para uma chapa do DCE, e aí só quando eu entrei foi todo o esforço de tá trabalhando, assumindo, cumprindo um compromisso que eu assumi, com as tarefas é que fui entendendo que existia um compromisso maior, que não era um simples cargo que... existia algo muito além disso...”.

96 Os entrevistados e a entrevistada constatam que muitos jovens tornaramse apáticos, sem formação política, sem uma consciência crítica, por sim dizer, utilitarista. “Vou fazer faculdade pra conseguir emprego”, “vou votar no Lula porque senão minha mãe perde a bolsa família”. Nas entrevistas, os jovens apresentam um discurso onde se autodefinem como sujeitos insatisfeitos com a realidade. Por mais que gritem e não são escutados pela sociedade. Sabemos que as transformações são lentas e estão muito distantes do que almejamos, mas estamos em um processo em que a cada dia se conquista um passo. “Vejo uma juventude insatisfeita coletivamente ...” (Marcelo Arruda) “Temos o dever em acreditar que podemos construir um futuro mais humano, solidário, socialista, justo e fraterno”. (Arthur Araújo) “... cada passo que a gente dá hoje, é um processo nessa transformação, não acho que ela vai vim semana que vem, mas já é uma grande vitória mudar algumas coisas que a gente tem a capacidade de mudar hoje...” (Karla Gamba)

Não dá mais para os movimentos trabalharem sozinhos, fechados nas suas redomas e com seus problemas particulares, é importante a interação entre os movimentos. Também merece uma consideração o fato que os movimentos precisam trazer mais jovens para dentro de debates, para isso se faz necessário maiores espaços políticos destinados às questões transversais da juventude, assim como fazer um grande investimento na formação. Como mesmo reconhece e preocupa Marcelo do Intervozes: “O que mais me preocupa é a formação, uma formação mais ampla... Falta-se pensar em construir, isso me lembra a música Natasha do Capital Inicial: ‘O mundo vai acabar/ E ela só quer dançar/ O mundo vai acabar/Ela só quer dançar, dançar, dançar...’”

5. Algumas ponderações finais A fase da juventude é tempo onde acontecem grandes decisões na vida do ser humano, independente se é jovem do campo ou da cidade. Trata-se de um


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momento de fracassos, de conquistas e de decisiva inserção nos movimentos sociais, pois se percebe potencialidades que devem ser aproveitadas, ressaltando que não é a idade que nos faz ser jovens, mas a inquietude com a realidade que nos é apresentada. O futuro de qualquer movimento está sujeito a sua capacidade de atrair e envolver os jovens, mais militantes para abraçar a causa e lutarmos juntos para transformações que são necessárias. Percebe-se que os jovens envolvidos nos movimentos sociais são, em bom número, de classe média, que em algum momento específico de sua caminhada assumiram a luta. Como aconteceu com o próprio Che Guevara, filho de arquiteto, formado em medicina, percorreu toda a América Latina de moto e conheceu de perto o sofrimento do povo, a partir daí sua vida muda completamente. É importante que os movimentos apóiem os jovens que exercem sua militância, dando-lhes acompanhamento a partir de temáticas que tratem de sua realidade, fazendo com que eles se posicionem diante das discussões da sociedade, como por exemplo: redução da maioridade penal, universidade pública e gratuita para todos e todas, instituição de políticas de cotas para as universidades, direitos humanos, formação política, entre outros assuntos importantes para sua formação. Apesar de todas dificuldades enfrentadas pelos jovens no século XXI, os jovens militantes acreditam na transformação da sociedade, contestando a atual conjuntura de nosso país. Isso não significa que não tenham medo e limitações. Entretanto, é importante não desistir de seus ideais, assim como fazer parte desse projeto de uma nova sociedade.

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6. Referências bibliográficas ABRAMO, H. Retratos da Juventude Brasileira, ISER, Rio de janeiro, 2005. ABRAMO, H. Considerações sobre a tematização social da Juventude no Brasil. Revista Brasileira de Educação. N. 5 e 6, 1997. BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à análise do discurso/2ª reimpressão da 7ª edição. Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp (coleção pesquisas). BONASSA, Juliana. Alguns apontamentos sobre a tematização da juventude para aprofundamento, São Paulo, 08/04/2005. CASTRO, Elisa Guaraná de. Juventude: reflexões para o debate. Boletim da Secretaria Nacional da Juventude do PT. Rio de Janeiro, 2006. CORDEIRO, Edmundo. Foucault e a existência do discurso. Disponível em <http:/// www.udc.es/dep/x/cac/sopirrait/sr065.htm> DINIZ, Priscila Carmargo. Competição e Individualismo. 2005. Disponível em: <http:///www.obj.org.br/site/revista/artigos.asp?id=23> FONSECA, Natasha/SILVA, David da. Rede Juventude Cidadã. Disponível em: <http:/// www.juventude.org.br/conteúdo/artigos/ser%20_jovem_ter_arte_de_inventar.asp> JÚNIOR, Elizeu de Oliveira Chaves. Parte integrante do livro: BRASIL, Ministério da saúde. Secretaria de Políticas de saúde. Área de saúde do Adolescente e do jovem. Cadernos Juventude, saúde e desenvolvimento, V.1. Brasília-DF, agosto, 1999. 303p. Disponível: <http:///www.adolec.br> LAMEIRAS, Maria Stela Torres Barros (Universidade Federal de Alagoas). Sujeito e Discurso. Disponível em: <http:///www.geocities.com/gt_ad/StellaLameiras.doc> MESQUITA, Marcos Ribeiro. Identidade, Cultura e Política: os movimentos estudantis na contemporaneidade. Tese de Doutorado. São Paulo, 2006, p. 105-126. MUNCK. Gerardo L. Estratégia e identidade: Duas perspectivas sobre os movimentos sociais. 1995. Rio de Janeiro, RJ. Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro.


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Disponível em: <http:///www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid+s00115258199700010005>

5. ANEXOS

NOVAES, Regina. “Juventude e Religião: marcos geracionais e novas modalidades sincréticas” in SANCHIS, Pierre (org.) Fiéis e cidadãos: percursos de sincretismo no Brasil. Rio de Janeiro: EDUERJ, p, 181-207, 2001.

I. Mensagens aos militantes do Curso de Realidade Brasileira

SANCHIS P. (Org), Fiéis e Cidadãos – Percursos de sincretismo no Brasil, Rio de Janeiro, EDUERJ, p. 181-207, 2001. SETUBAL, Mariana. Expressões do conflito social contemporâneo: reflexões para uma análise das lutas dos movimentos sociais brasileiros em 2006. Disponível em: <http:/// www.1ppverj.net/outroBrasil/docs/122007165539_na%c3%a1lise_fev_Mariana.doc> ROLIM, Maria do Carmo Marcondes Brandão. Manual de Apresentação de trabalhos acadêmicos (PED). Curitiba, IEDE, 2004. VASCONCELOS, Augusto. Breves anotações sobre juventude e trabalho. BA (PCHAMANN.2004) Disponível em: <http:///www.ujs.org.br/colunas/jun/12jun_asp>

“Pô, eu não pude me dedicar como gostaria de ter me dedicado ao curso, mesmo a minha participação individual, mas as oportunidades que eu tive de tá junto com tantas pessoas, quanto militante, acho que ter um contato com tantos movimentos... alguns a gente conhecia, mas outros não. E o contato com tantos movimentos, tantas formas de organização, militâncias diferentes foi muito valioso pra mim e gostei muito do último espaço, que a gente teve, um encontro mais longo, espero que a gente não perca o contato nem pela amizade, nem pela militância.... tentar enxergar esse espaço de organização também, de articulação, pra esse coletivo de militância.” (Karla Gamba) “Não percamos a esperança num Brasil/Mundo melhor, justo, igualitário, fraterno, socialista, democrático. Continuemos nessa árdua jornada na formação teórica e apliquemos concretamente nosso conhecimento adquirido.” (Arthur Araújo) “Como disse no início, eu invejo as pessoas que permanecem eternamente jovens, eu gostaria muito que eu pudesse, tivesse força de me manter sempre jovem e gostaria de desejar a esse grupo de Realidade que a gente passou mais de um ano fazendo debate de um projeto de uma nova sociedade, lute pra nos manter sempre jovens, questionadores, inquietos, incomodados que esse cotidiano que muitas vezes se manifesta de maneira muito ruim, violência, a fome, que isso não passe desapercebido por nós. Acho que todos esses elementos que são essenciais de uma sociedade minimamente humana, que esses elementos não passem desapercebidos que isso nos incomode sempre. O fato de se manter incomodados, nos faz manter jovens por muito tempo, tenho mania de fazer citações, mas recentemente nosso presidente ele disse que alcançou a maturidade justamente por ter que abandonar essa história de transformação, de revolução, acho que de fato, ele sintetizou muito bem o que é ser jovem. Ele pareceu muito feliz com essa lógica, de quando nós envelhecemos é porque o projeto de uma nova sociedade não serve mais...” (Leonardo Maggi)


O Discurso da Juventude nos Movimentos Sociais

II. Comentário sobre o trabalho “O Discurso da Juventude nos Movimentos Sociais” de Jesuíta Dias Pinto

1. Digressões sobre o tema Peço licença para aprofundar algumas reflexões suscitadas pelo trabalho sobre o tema juventude. Como problematizador convidado por militar na área, e não por ser técnico em lingüística, entendo que deveria escrever estas reflexões, mesmo elas não sendo inerentes à análise do trabalho.

1.1 Concepção de Juventude: De minha parte, das propostas analisadas, a que mais me agradou foi a seguinte: “No conceito atual, juventude é, idealmente, o tempo em que se completa a formação física, psíquica, social e cultural, processando-se a passagem da condição de dependência para a autonomia em relação a família de origem”. (David da Silva e Natasha Fonseca, 2004). Item I, página 7.

Este conceito dá indícios importantes sobre o que é esta fase, em especial o seu caráter de transição. Creio que ele peca por considerar a transição como algo que vai da dependência à autonomia e por considerar o termo “família de origem”, como um valor absoluto. No meu entender, temos que analisar a categoria juventude como uma categoria inerente às sociedades, ou seja, como algo que vai além da sociedade capitalista. Neste sentido, ampliando o termo, o processo de transição que caracteriza a juventude não é o da dependência à autonomia, mas sim da transição do “período de formação física, psíquica, social e cultural” à “inserção na divisão social do trabalho”, estabelecida naquela sociedade. O recente filme “300 de Sparta”, nos ajuda a entender o que estou dizendo. Na sociedade relatada pelo filme, a juventude daquela sociedade é marcada pela prova ao qual os garotos são submetidos. Antes da prova, eles ainda são considerados “crianças”. Posterior a ela, já são “adultos”, com tarefa especificada.

99 No caso das sociedades capitalistas, esta fase está bastante intrincada com elementos de idade, renda e acesso ao estudo, porém não se restringindo a estes, como abordarei mais a frente. Para aprofundar a análise sob a ótica marxista, devemos entender esta inserção na divisão social do trabalho como uma inserção também ideológica, ou seja, o trabalho de formação visa garantir conhecimentos técnicos (ou seja, como ele contribuirá para a reprodução da sociedade), mas tensiona o jovem a fazer também sua opção de classe, ou seja, como ele se comportará na luta política instaurada no âmbito das sociedades.

1.2 Porque estudar Juventude Ao meu ver, a principal justificativa para se estudar Juventude, em todos seus aspectos, está justamente no fato de que nesta transição se encontra o momento principal de afirmação ideológica dos indivíduos. Não que posteriormente não possa haver novas opções de classe, mas é durante o período da juventude no capitalismo que se permite maior interação e debate sobre os valores de cada classe social. Desta maneira, enquanto os valores burgueses, e, em especial, a apropriação dos meios de produção, não chegam à juventude, é permitido trabalhar com o conjunto da população jovem. Diferente é quando esta opção já está feita, que pouco adianta buscar dialogar com a burguesia uma vez que ela sempre guiará por defender a propriedade privada. Devemos entender também que o Capital está ganhando este jogo de “disputa” da juventude. E que, portanto temos que entender:

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Como o Capital trabalha a formação ideológica da juventude; Quais são os principais elementos do antagonismo de classe que se apontam para a juventude; Como e Por onde fazer o trabalho de disputa em prol da classe trabalhadora;


O Discurso da Juventude nos Movimentos Sociais

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1.3 Breve leitura sobre a “disputa” da Juventude no capitalismo periférico brasileiro A etapa da transição pela qual caracterizo a juventude é marcada no Capitalismo em geral, e na sociedade “brasileira” em específico, por 4 grandes elementos:

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divisão social. A religião hoje, muitas das vezes, termina por fazer o trabalho ideológico da submissão.

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Jovens de renda média-baixa: Normalmente possuem 2o. grau na escola pública e utilizam do trabalho como complemento importante da renda familiar para se manter na universidade e nos espaço de cultura e lazer privados.Foi nesta faixa da juventude, alvo central da maioria das organizações socialistas da cidade, onde o capital mais avançou nos últimos anos, em especial a partir da privatização do ensino (iniciado por FHC e completado por Lula), especial na relação ensino privado-programa de estágio – PROUNI, bem como na destruição dos direitos e acesso às políticas públicas.

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Jovens de renda média alta: possuem ensino superior de qualidade, não necessitam do trabalho, mais propensos a se apropriar dos meios de produção. Apesar da percepção da realidade social, que os leva a valorizar a meritocracia liberal, induzir boa parte destes jovens à opção burguesa, é hoje, a faixa onde os socialistas disputam com mais afinco, apesar de ainda estarmos perdendo. A privatização do ensino (universidade não como formadora do conhecimento mas como distribuidora de diplomas) e os chamados “valores pós-modernos”, em especial o consumismo, também contribuem para a vitória do capital. Creio que temos muito o que pensar sobre como disputar a ideologia de classe nesta quatro faixa da juventude.

pressão exercida pela idade; acesso ao estudo-formação, ou seja valores e conhecimentos técnicos; Pressão exercida pela necessidade de auferir renda, seja apropriando-se dos meios de produção ou vendendo a própria força de trabalho. Percepção da realidade social.

Para fazer o corte de como estes elementos se misturam nas distintas “juventudes” do Brasil, poderíamos trabalhar com três principais elementos: Renda, território e espaço de organização social. Particularmente, creio que a renda permite melhor entendimento da realidade bem como dela, quando se aprofunda o estudo, permite atingir aos demais cortes, ou seja, território e espaço de organização. Para finalizar esta primeira reflexão, e sem aprofundar no tema, creio que existem quatro grupos de juventude que podem ser inicialmente divididos pela renda, e assim entender os três itens citados: como o capital organiza, onde se apresentam as contradições e como passar os valores de classe:

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Jovens pobres assassinados: O gigantesco número de jovens pobres assassinados no Brasil, em sua grande maioria pelo tráfico e pela polícia, deve se sempre envidenciado, pois tem uma finalidade para a reprodução do capital, que, além de manter sob constante ameaça os “que sobram”, denuncia que a realidade social é um elemento material capaz de apresentar a opção de classe. Portanto, a eliminação de boa parte da juventude pobre limita formação da consciência de classe posterior.

1.4 A juventude nos movimentos sociais

Jovens pobres, sem acesso à educação formal, submetido ao trabalho infanto-juvenil e/ou à gravidez precoce: Esta outra parcela da juventude é trabalhada pelo capitalismo também através da coerção, onde a rebeldia e o questionamento ao sistema, latente pela opressão material, são reprimidos através da ameaça do desemprego, pelo impedimento ao estudo e pela “criação” dos filhos. Desta maneira, deste o início, esta juventude incorpora como natural a relação patrão-empregado e não questiona seu lugar na

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Movimentos de Juventude: cujo papel central é de trabalhar a ideologia e a formação de militantes. Ganha características distintas a partir de cada espaço (universidade, cultura, igreja, escola, etc)

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Movimentos Gerais e organizações (partidos): Neste caso, deve-se analisar se, dentro do movimento, existem os espaços de formação política da classe

A ótica abordada pelo trabalho foi a partir dos espaços de organização e, em específico, a juventude dos movimentos sociais. Não vou me aprofundar por preferir a ótica da renda como mecanismo de corte inicial. O trablaho optou pelo conjunto de movimentos do CRB. Se ampliarmos o leque, creio que temos que fazer duas separações:


O Discurso da Juventude nos Movimentos Sociais

que vão envolver tanto os jovens quanto os adultos. Mas também, devemos entender juventude como mais uma das questões transversais a serem trabalhadas, tais como gênero, raça, orientação sexual, etc, uma vez que a carga pejorativa e a opressão sobre a juventude são também marcantes no capitalismo. O quanto o movimento trabalha estas questões permite analisar a reflexão que este faz sobre a nova sociedade que propõe. Agradecendo mais uma vez o convite feito pela Jesuíta e a permissão da Coordenação, encerro os comentários. Chico (Militante Pastoral da Juventude do Distrito Federal e da Secretaria de Movimentos Populares do PSOL-DF)

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O Discurso da Juventude nos Movimentos Sociais

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O Discurso da Juventude nos Movimentos Sociais

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“Os Cândidos” – crítica literária da formação e interpretação do Brasil

Artur Antônio dos Santos Araújo (Movimento Estudantil da Unb)


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RESUMO

SUMÁRIO Resumo, 107 • Breve histórico do grupo, 108 • Metodologia, 109 • Justificativa, 109 • Objetivos gerais do curso, 109 • Objetivos específicos, 109 • Cronograma de atividades do curso, 110 • Referências bibliográficas, 111.

Este trabalho procurou estudar “Os Cândidos” – crítica literária da formação e interpretação do Brasil, pois entendemos que os objetivos do grupo comungam com o nosso projeto político e compartilham de uma reflexão que deve se dá conjuntamente entre a Universidade, os trabalhadores e os grupos de cultura popular acerca do tema literatura e representação literária do trabalho no Brasil. Neste trabalho analiso os objetivos principais do grupo, o planejamento e implementação do curso, LITERATURA E TRABALHO NO BRASIL (2007) a partir da perspectiva marxista literária, tendo como eixo a literatura brasileira, que visa atender um público mais amplo interessado em discutir os problemas latino-americanos. Segundo o projeto político-pedagógico do curso, as principais questões a serem discutidas são: como o sistema literário nacional apresenta conexões capazes de dar a ver como se formaram historicamente as relações de trabalho no Brasil; como, a partir dessas relações, se produziu o brasileiro; como se deu a inserção do Brasil no mundo do trabalho na perspectiva da relação entre centro e periferia; como o trabalho do escritor se localiza nesse chão social; como se caracteriza a produção do trabalho artístico no cenário atual dominado pela indústria cultural? Para discutir tais questões, caso se deseje avançar efetivamente na análise crítica da produção literária nacional a fim de construir um conjunto de perspectivas críticas acerca da realidade do trabalho hoje no Brasil, é fundamental ter como interlocutores os trabalhadores e os movimentos populares de produção de cultura da comunidade do Distrito Federal. Pretendo analisar como se dará o diálogo e interação entre os movimentos sociais e “OS CÂNDIDOS”.


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1. Breve histórico do grupo

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Projeto de pesquisa “Literatura e interpretação do Brasil. Estudos críticos sobre o tema da formação” - Grupo Literatura e Modernidade Periférica

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Sob a orientação das professoras Ana Laura dos Reis Corrêa, Germana Pereira de Sousa e Deane Fonseca de Castro e Costa, estudantes de Graduação e Pós-Graduação da Universidade de Brasília e da Universidade Católica de Brasília desenvolvem, desde 2005, projeto de pesquisa intitulado “Literatura e interpretação do Brasil. Estudos críticos sobre o tema da formação”, cujo objetivo é investigar a experiência da crítica literária brasileira, que, na linha da crítica histórico-materialista, vem trabalhando o tema da formação do país e de sua literatura. Todos os pesquisadores envolvidos nesse projeto são integrantes do grupo “Literatura e Modernidade Periférica”. O grupo, sob a coordenação do professor Hermenegildo Bastos, foi constituído há 8 anos na Universidade de Brasília, certificado pelo CNPq e vinculado à linha de pesquisa “Crítica da História Literária” do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Práticas Sociais do Departamento de Teoria Literária e Literaturas – TEL - da Universidade de Brasília. Entre as atividades desenvolvidas pelo estudantes que integram o grupo, vale salientar as atividades desenvolvidas junto ao Coletivo de Cultura do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – MST. Os encontros acontecem a cada quinze dias, às terças-feiras, às 17 horas, no TEL(Departamento de Teoria Literária e Literautura). O grupo é composto por 32 pessoas:

Coordenador Professor Dr. Hermenegildo Bastos (TEL / UnB)

Professores

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Professor Dr. Alexandre Pilati (Pós-Graduação em “Literatura e Pensamento Crítico no Brasil” - CEELL / Faculdade Guairacá)

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Professora Dra. Ana Laura dos Reis Corrêa (TEL / UnB) Professor Dr. André Matias Nepomuceno (Pós-Graduação em “Literatura e Pensamento Crítico no Brasil” - CEELL / Faculdade Guairacá) Professor Dr. Bernard Herman Hess (Pós-Graduação em “Literatura e Pensamento Crítico no Brasil” - CEELL / Faculdade Guairacá) Professor Dr. Cássio Tavares (Pós-doutorando na Pós-Graduação TEL / UnB; Pós-Graduação em “Literatura e Pensamento Crítico no Brasil” CEELL / Faculdade Guairacá) Professora Dra. Deane Fonseca de Castro e Costa (TEL / UnB) Professora Dra. Germana H. Pereira de Sousa (LET / TEL / UnB) Professor Dr. Manoel Dourado Bastos (Universidade Estadual de Londrina – UEL; Pós-Graduação em “Literatura e Pensamento Crítico no Brasil” CEELL / Faculdade Guairacá) Professora Maria Izabel Brunacci (CEFET-MG) Professor Dra. Vivianne Fleury (Pós-Graduação em “Literatura e Pensamento Crítico no Brasil” - CEELL / Faculdade Guairacá) Professora Ms. Tatiana Rossela Rocha (FEDF; Pós-Graduação em “Literatura e Pensamento Crítico no Brasil” - CEELL / Faculdade Guairacá)

Estudantes

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Ana Daniela Neves (Graduação TEL / UnB) Anderson Braga (Graduação TEL / UnB) Antônio Cézar de Brito (Pós-Graduação TEL / UnB) Daniele dos Santos Rosa (Pós-Graduação TEL / UnB; Pós-Graduação em “Literatura e Pensamento Crítico no Brasil” - CEELL / Faculdade Guairacá) Diuvanio Albuquerque (Graduação TEL / UnB) Elisabeth Hess (Graduação TEL / UnB) Fabiano Vale (Graduação TEL / UnB) Fábio Augusto Gonçalves Maciel (Graduação TEL / UnB) Gustavo Arnt (Graduação TEL / UnB) Isabela Chaves Silva (Graduação TEL / UnB) Késsia Oliveira da Silva (Graduação TEL / UnB) Leonardo Gonçalves de Menezes (Pós-Graduação TEL / UnB) Luciana Henrique Mariano da Silva (Graduação TEL / UnB) Marcela Passos (Graduação TEL / UnB) Marcos Souza (Graduação TEL / UnB)


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Paloma Amorim (Graduação TEL / UnB) Paulo Henrique Viera de Souza (Graduação UCB) Rafael Baptista de Sousa (Graduação UCB) Rafael Litvin Villas-Bôas (Pós-Graduação TEL / UnB) Talita Cordeiro Galhardo (Graduação TEL / UnB)

2. Metodologia A pesquisa será desenvolvida dentro dos parâmetros de uma abordagem de trabalho qualitativa (descritiva e interpretativa). Haverá uma etapa preliminar de quantificação de amostras selecionadas para análise, embora a pesquisa não se volte para números, uma vez que o propósito é trabalhar com interpretações de “realidades sociais” de natureza hitórico-social. A geração dos dados será feita por meio da coleta de textos escritos: textos literários, artigos de periódicos científicos, bem como textos extraídos de livros didáticos, fotos, relatos, testemunhos. Prevê o projeto que se realizará por meio da leitura e discussão de textos críticos e literários, divididos em 5 blocos temáticos, que serão trabalhados em encontros semanais de 3h de duração, com um tema para cada dois encontros, totalizando 10 encontros (30 horas/aula). Os integrantes dos dois grupos de pesquisa apresentarão os temas e os textos literários e organizarão a discussão em grupos de trabalho que, nos dois últimos dias do curso, deverão apresentar as suas conclusões em forma de produção escrita.

ligado ao do país, o leitor encontra no sistema literário nacional exatamente o dilema constitutivo do modo de ser brasileiro. O fato de representar o brasileiro e o Brasil de forma contraditória e dilemática, a partir da dialética básica da produção literária nacional – localismo x cosmopolitismo –, faz com que o leitor entre em contato não apenas com o projeto de nação formulado pelas elites locais, em geral dependentes dos projetos das elites mundiais, mas também com a lógica histórica do processo social que guiou esse projeto; lógica nem sempre acessível na experiência cotidiana de ser brasileiro, mas construída pelo conjunto das obras literárias nacionais, e evidenciada, em suas contradições, avanços e recuos, pelas formas literárias. A Literatura Brasileira é um modo, talvez o mais solidificado, de apresentação do Brasil real ao brasileiro, e, nesse sentido, não deve ficar restrita ao público inserido no sistema de educação formal. A discussão sobre literatura e trabalho no Brasil com trabalhadores, militantes de movimentos sociais e representantes de grupos ou organizações culturais comunitárias que atuam no Distrito Federal e Entorno justifica-se não somente pelo fato de que tais grupos devam exercer o seu direito à literatura, mas também porque a vida universitária, no que diz respeito à docência, à extensão e à produção científica, depende da interlocução com esses setores da sociedade para conseguir realizar seu papel social com relevância efetiva. Portanto, patente a disposição para contribuir na reflexão sobre questões importantes sobre o povo brasileiro.

4. Objetivos gerais do curso

» 3. Justificativa Abrir a universidade para a sociedade civil, contribuir para a formação dos integrantes dos Movimentos Sociais a partir da perspectiva da literatura, facilitar a colaboração entre intelectuais e organizações sociais tem grande importância para a entender o processo histórico e teorias sobre nossa formação. Conforme o projeto do curso: A Literatura Brasileira é um direito de todo brasileiro, também daqueles que, historicamente, não têm tido acesso a esse patrimônio nacional, do qual freqüentemente são personagens, embora raramente possam se ver, como leitores, na representação que se faz deles pela literatura. Como direito, a literatura é elemento fundamental para a emancipação do homem e para a transformação do mundo, uma vez que apresenta ao leitor as contradições do chão histórico em que está situado. No que diz respeito à Literatura Brasileira que, pelo seu caráter empenhado em relação à construção de um projeto de nação, teve o seu destino

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dar continuidade ao trabalho na área da extensão universitária dos grupos “Literatura e modernidade periférica” e “Candidos – Crítica literária da formação e interpretação do Brasil” no sentido de estender a discussão sobre literatura e interpretação do Brasil para a comunidade, especialmente buscando interlocutores nas parcelas afastadas dos círculos acadêmicos; construir, conjuntamente, perspectivas críticas acerca da representação e da formação da literatura e do Brasil, para, assim, pensar nossa realidade e entrever a lógica histórica da atualidade.

5. Objetivos específicos

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perceber de que forma a literatura nacional apresenta conexões históricas capazes de tornar visível para o leitor a lógica do trabalho na sociedade brasileira e suas contradições;


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analisar, pela leitura crítica da literatura, o modelo de representação do brasileiro produzido pelas relações de trabalho, inclusive o artístico, no Brasil;

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28/03 • Texto literário: Memórias de um sargento de milícias de Manuel Antônio da Almeida. • Reunião em grupos de trabalho

Os objetivos propostos têm muito a contribuir para a formação teórica e compreensão dos fatos históricos que interferem na nossa luta cotidiana.

6. Cronograma de atividades do curso

6.3 Bloco temático 3 : trabalho à brasileira: o favor como mediação no mundo das idéias fora do lugar

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04/04 • Seleção de textos: trecho da Constituição Federal; “O almocreve”, capítulo de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis; “A morte do leiteiro” de Carlos Drummond de Andrade; “Maria, sua criada” de Dalton Trevisan e “Onze de maio” de Ruben Fonseca. • Reunião em grupos de trabalho

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11/04 • Texto crítico: “As idéias fora do lugar” de Roberto Schwarz. • Reunião em grupos de trabalho

6.1 Bloco temático 1: o trabalho e a permanência da condição colonial

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07/03 • Apresentação • Texto literário: “Oitavas” de Alvarenga Peixoto e “Pai contra mãe” de Machado de Assis. • Reunião em grupos de trabalho 14/03 • Texto literário: “O mundo coberto de cana” de Alexandre Pilati; “José” de Carlos Drumonnd de Andrade; “O mundo coberto de penas”, capítulo de Vidas secas, de Graciliano Ramos e “A enxada” de Bernardo Elis. • Reunião em grupos de trabalho

6.2 Bloco temático 2: os homens livres e a dialética da ordem e da desordem

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21/03 • Texto literário: Memórias de um sargento de milícias de Manuel Antônio da Almeida. • Reunião em grupos de trabalho

6.4 Bloco temático 4: o trabalho na periferia do capitalismo

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18/04 • Texto literário: Trechos selecionados de O cortiço, de Aluísio Azevedo. • Reunião em grupos de trabalho

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25/04 • Texto literário: Mercado de fugas. Grupo Teatro dos Narradores. (Apresentação da Brigada de teatro do MST) • Reunião em grupos de trabalho


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6.5 Bloco temático 5: conclusões

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02/05 • Apresentação das produções dos grupos de trabalho.

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09/05 • Apresentação das produções dos grupos de trabalho.

7. Referências bibliográficas ANDRADE, Carlos Drummond de. José. In: Antologia poética. Rio de Janeiro: Record, 1987. ANDRADE, Carlos Drummond de. Morte do leiteiro. In: Antologia poética. Rio de Janeiro: Record, 1987.

CÂNDIDO, Antonio. O direito à literatura. In:Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 2004. PILATI, Alexandre. O mundo coberto de cana. ELIS, Bernardo. A enxada. In: Veranico de janeiro. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1979. PEIXOTO, Alvarenga. Oitavas. In: : Heitor Martins. Neoclassicismo. Brasília: ABL, 1982. RAMOS, Graciliano. O mundo cobertos de penas. In: Vidas secas. São Paulo: Martins, 1969. SCHWARZ, Roberto. Pressupostos, Salvo Engano de Dialética da Malandragem. In: Que horas são? São Paulo: Cia. das Letras, 2002. TREVISAN, Dalton. Maria, sua criada. In:Rita Ritinha Ritona. Rio de Janeiro: Record, 2005. Grupo Teatro dos Narradores. Mercado de fugas.

ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. São Paulo: Ática, 1998. ASSIS, Machado de. O almocreve. In: Memórias póstumas de Brás Cubas. http://www. bibvirt.futuro.usp.br

8. Bibliografia lida pelo grupo “Os Cândidos” no ano de 2005 e outras fontes

ASSIS, Machado de. Pai contra mãe. http://www.bibvirt.futuro.usp.br

ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de Milícias.

AZEVEDO, Aluísio. O Cortiço. São Paulo: Ática, 1989.

AMADO, Jorge. Capitães da areia.

CÂNDIDO, Antonio. A Dialética da Malandragem. In: O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 2004.

ASSIS, Machado de. Conto de escola.

CÂNDIDO, Antonio. De Cortiço a Cortiço. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 2004. CÂNDIDO, Antonio. Literatura de Dois Gumes. In: A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 2000. CÂNDIDO, Antonio. Literatura e Subdesenvolvimento. In: Educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 2000.

ASSIS, Machado de. Homem Célebre. ASSIS, Machado de. Pai contra mãe. AZEVEDO, Aluízio. O Cortiço. CÂNDIDO, Antonio. O direito a literatura. CÂNDIDO, Antonio Formação da Literatura Brasileira. (somente a introdução)


105 CÂNDIDO, Antonio Literatura e Subdesenvolvimento. CÂNDIDO, Antonio Literatura de Dois Gumes.[ CANDIDO, A. De Cortiço a cortiço. CANDIDO, A. Dialética da Malandragem. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. (artigo introdutório do Candido e o quinto capítulo, “O homem Cordial”) MATTA, Roberto da. Carnavais , malandros e heróis. (lemos o segundo e o último capítulo do livro) SCHWARZ, R. Pressupostos, salvo engano, de Dialética da malandragem. SCHWARZ, R. Acumulação Literária e Nação Periférica. SCHWARZ, R. Idéias fora do lugar. SCHWARZ, R. Adequação Nacional e Originalidade Crítica. “Seis Aventuras de Pedro Malazartes”


A cor do DF: consolidação da classe trabalhadora e do desemprego vista a luz do racismo no DF

Paulo Henrique da Silva Santarém (Paíque) (Movimento dos Trabalhadores Desempregados – MTD)


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“Antes servia ao senhor feudal no engenho, Hoje na feira livre de drogas, servimos seu herdeiro” Facção Central, “Front de madeirite”

1. Introdução

SUMÁRIO Introdução, 114 • Reflexão teórica sobre o assunto, 115 • Apresentação dos dados, 118 • Primeira tese: A maioria de jovens e analfabetos no DF participam do grupo racial negro, 120 • Segunda tese: as cidades mais negras têm maior concentração de trabalho informal que as cidades brancas, 120 • Terceira tese: as cidades mais negras têm maior índice de desemprego que as cidades mais brancas, 121 • Conclusões e proposições, 121 • Referências bibliográficas, 122 • Anexos, 123.

O artigo que segue é um trabalho de conclusão do Curso de Realidade Brasileira, ocorrido entre março de 2006 e abril de 2007. Certamente, então, é resultado de diversas discussões que tivemos nesses tantos encontros com tantos e diferentes autores/temas discutidos por tão diferentes mediadores/as; é resultado crítico e propositivo em relação ao que estudamos. A proposta do texto seguinte é discutir a opressão racial no Distrito Federal em suas relações com a composição da classe trabalhadora. Procuramos contribuir, neste artigo, com a discussão sobre as relações entre as estruturas da opressão burguês-classista com a racista, a partir do pressuposto de que uma não subordina a outra. Para tanto utilizaremos como objeto de compreensão desta exclusão a composição do desemprego e do trabalho informal no DF. O objetivo de estudar estes temas é contribuir com a atuação de movimentos e organizações que lutam por um mundo justo e igualitário, debatendo com nossas percepções da realidade. Neste sentido o texto não é o fim da discussão aqui apresentada, tampouco o começo: a opressão racial existe anterior à minha existência assim como dos movimentos a quem ela é direcionada e a discussão orgânica destes temas levaria um tempo diferente do da discussão acadêmica: a apropriação coletiva da compreensão da realidade é um processo, amplo, dialético e com ritmo próprio. Assumo, enquanto pesquisador e militante negro, posições políticas neste texto. Elas estão apresentadas no decorrer do mesmo com as devidas justificativas. Cabe a companheiros/as assim como a opositores/ as apresentarem posições mais qualificadas para seguirmos com o debate. O texto tem 3 partes principais: na primeira discutimos, no plano teórico, a construção da sociedade brasileira a partir dos pilares do racismo e da opressão de uma classe sobre outra, pensando suas interações e etc. pensando as implicações disso na realidade do DF. Na segunda parte testamos superficialmente as


A cor do DF: consolidação da classe trabalhadora e do desemprego vista a luz do racismo no DF

conclusões da primeira parte de modo empírico, tendo como objeto o mundo do trabalho no DF. Na terceira parte reservamo-nos a conclusões e proposições sobre o tema, buscando avançar no debate. Para subsidiar a discussão apresentada utilizamo-nos tanto de textos diversos como de gráficos e tabelas de dados produzidos. Estas estarão em completo anexadas, assim como devidamente listadas na bibliografia do texto. Finalizando, lembro Abdias do Nascimento, que afirmou que caberia à população negra ocupar também os espaços de poder na sociedade para imprimir um ritmo de transformações que derruíssem as instituições do racismo na sociedade. Em consonância, afirmo que estes espaços de poder que devemos ocupar, negros e negras, são os da coletividade, com os/as de baixo. E é a esta base da sociedade que estou dedicando este texto. Boa leitura e até a vitória!

2. Reflexão teórica sobre o assunto “Sou negão careca da Ceilândia mermo e daí?” Câmbio Negro

A história do Distrito Federal, desde sua construção, é certamente marcada por grandes exclusões sociais. Estas se manifestam e organizam historicamente de diferentes maneiras, mas mantendo uma estrutura comum de opressão de uma minoria abastada servida por uma maioria miserável. Como demonstrado no magistral documentário “Conterrâneos velhos de guerra”, de Vladmir Carvalho (2001), o DF criou-se gerando um conflito iminente: os/as trabalhadores/as que construíram a capital do país foram submetidos/as a um projeto duplamente excludente em que tinham péssimas condições de trabalho (trabalho excessivo, más condições alimentares, higiênicas, pouca segurança no trabalho etc.) ao mesmo tempo em que não poderiam gozar do produto do seu trabalho (o plano era o de que, terminada a construção da capital, quem sobreviveu às obras voltasse a terra natal, o que obviamente não aconteceu). O DF surgiu então como um plano das elites, objetificando trabalhadores sem mínimos escrúpulos. O filme de Vladmir Carvalho remonta a partir de relatos dos/das chamados/ as “candangos/as” parte silenciada da história da capital. O conjunto da obra apresenta a tese de que os/as diferentes migrantes que vieram pra capital da república não puderam vivenciar uma sociedade fraternal tal como propagandeado por Oscar Niemeyer. E quem seriam estes/as candangos/as? O “Conterrâneos” por sua narrativa incorre na construção da figura do migrante (principalmente

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nordestino), como personagem central da obra, apresentando sua subjetividade e reflexões a partir de uma suposta construção regional. Esta tese remonta à obra de Darcy Ribeiro que, na introdução do Livro “O povo brasileiro”, afirma: “Por estas vias plasmaram historicamente diversos modos rústicos de ser dos brasileiros, que permitem distingui-los hoje como sertanejos do Nordeste, caboclos da Amazônia, crioulos do litoral, caipiras do Sudeste e Centro do País, gaúchos das campanhas sulinas, além de ítalo-brasileiros, teuto-brasileiros, nipo-brasileiros, etc. Todos eles muito mais marcados pelo que tem de comum como brasileiros do que pelas diferenças devidas à adaptação regionais ou funcionais, ou de miscigenação e aculturação que emprestam fisionomia própria a uma ou outra parcela da população.” (Ribeiro, Darcy. pág. 19)

Desta forma, reitera-se a visão culturalista da população brasileira (um mito inventado pela elite nacional e ratificado pela intelectualidade nacionaldesenvolvimentista), que não possui grandes diferenças ou cisões internas entre sí e que está destinada a formar uma grande e soberana nação, sem submissão a povos do exterior. No caso do DF a análise seria negativa sob esses aspectos, uma vez que aqui não se pôde construir plenamente uma identidade nacional já que as massas populares não tiveram espaço digno de construção de sua identidade (esta ficaria então deformada). Partimos de um pressuposto diferente do nacionalista apresentado acima: a construção da sociedade brasileira tem diferentes elementos próprios de exclusão e segregação social, em diferentes planos. Recorremos a Frantz Fanon, intelectual caribenho radicado na França que, em discussão da situação de opressão racial tanto em seu país de origem como na própria França, propôs a noção de “Colonialismo Interno” como forma de entendimento dessas realidades. Esta noção significa, basicamente, no Brasil, refletir que dentro da própria população brasileira existem elementos coloniais com agentes opressores próprios. Estes elementos de opressão gerariam-se a partir de diferenças populacionais de origem, construção histórica, etc. Assim, a sociedade brasileira não seria um amálgama de diferentes povos miscigenados, mas sim uma realidade com tensões internas - não só econômicas - fervendo e ebulindo entre si. As injustiças dentro do Brasil não serviriam somente a uma elite internacional mas sim aos próprios opressores locais, tendo inclusive estruturas de opressão social independentes das internacionais. Ele dispara então a máxima, em referência à opressão de cor: “Ou uma sociedade é racista ou ela não é”. Ele diz isso tentando categorizar as sociedades a partir da natureza e não do grau da opressão. A compreensão do


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modo específico da opressão em cada localidade só serviria como acúmulo de elementos para destruir a natureza dessa construção. A partir dessa reflexão podemos pensar na tradição de intelectuais nacionais que refletiram sobre o Brasil com uma perspectiva semelhante. A contribuição de Florestan Fernandes, a partir da intitulada Sociologia crítica, é enorme e inestimável. Florestan discute a realidade brasileira pensando seus problemas e dilemas sob a tese de que eles, tendo características locais de opressão, articulamse com uma ordem internacional injusta, sem anacronismos de atraso ou avanço das instituições nacionais em relação à ordem global. Refletindo sobre a diferenciação entre negros/as e brancos/as no Brasil, Florestan afirma que: “A ordem social competitiva emergiu e expandiu-se, compactamente, como um autêntico e fechado mundo dos brancos. Na primeira fase da revolução burguesa - que vai, aproximadamente, da desagregação do regime escravista ao início da II Grande Guerra - ela responde aos interesses econômicos, sociais e políticos dos grandes fazendeiros e dos imigrantes. Na segunda fase dessa revolução, inaugurada sob os auspícios de um novo estilo de industrialização e de absorção de padrões financeiros, tecnológicos e organizatórios característicos de um sistema capitalista integrado, ela subordinou-se aos interesses econômicos, sociais e políticos da burguesia que se havia constituído na fase anterior - ou seja, em larga escala, aos interesses econômicos, sociais e políticos das classes altas e médias da população branca” (Fernandes, Florestan. “A integração do negro na sociedade de classes”) E a sociedade racista brasileira tratou de manter esta segregação

de maneira bem clara, utilizando-se do estado como ferramenta de manutenção da ordem vigente. Seja aprovando a lei que permitia ao Brasil a migração indiscriminada de qualquer povo que não africano e asiático (estes deveriam passar pelo crivo do congresso nacional); estabelecendo leis de uso e posse da terra que privavam escravos/as da mesma; fazendo restrições educacionais à população negra; agindo com a força repressiva às manifestações religiosas, bailes culturais e atividades de organização negras etc. o estado brasileiro buscou manter essa segregação racial advinda da escravidão historicamente, construindo uma sólida estrutura de diferenciação racial presente até hoje na sociedade. Pensando então como Florestan Fernandes - que apresenta como um dos elementos do Dilema racial brasileiro a construção, no início do século XX, de uma estrutura política burguesa sobre os pilares de uma economia colonial e os desenvolvimentos disso até a sociedade presente, pensamos que a nossa configuração social deu-se de modo duplamente perverso: à medida que avançou

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politicamente às estruturas burguesas mantendo pilares econômicos coloniais, a população negra manteve-se duplamente segregada, primeiro pelas estruturas racistas coloniais e depois pelas estruturas burguesas do estado liberal. A conjunção dessas duas formas conjuntas de opressão se dão nos parecem só poder ser explicadas à luz de uma teoria da estrutura da opressão racial. Então há que se pensar em raça e classe como fator comum a toda sociedade brasileira - que atinge a negros/as e brancos/as como instituições constitutivas de toda sociedade - como na luta pelo socialismo. Porém a esquerda em geral - com sua herança hegemonicamente advinda da tradição do movimento socialista europeu pós-revolução industrial - recorrentemente reluta por não fazer este debate. Não discutindo os elementos de sua realidade local para compreendêla, assassina a própria dialética de que sempre tanto se orgulhou (retomando Leandro Konder). Florestan Fernandes afirma, sobre esse tema: “Em 1951 enfrentamos a resistência do PcB, que teimava em separar a raça e classe e considerava a questão racial como exclusivamente de classe. As descobertas sociológicas e o clamor dos trabalhadores e militantes negros modificaram a consciência da situação. De outro lado, mesmo no seio da esquerda, a percepção da realidade dos negros demonstrou que o próprio companheiro branco nunca estava isento do preconceito e da discriminação ou que os partidos de esquerda avançaram sobre uma pregação igualitária que estavam longe de praticar. Seria preciso dar tempo ao tempo e moldar uma personalidade democrática, que não poderia nascer pronta e acabada em um átimo.” (Fernandes, Florestan. “Significado do protesto negro” página 10)

e o sociólogo crítico e militante chama à luta como um todo de modo incisivo, com um mote que faça essa síntese no diverso, de maneira construtiva e revolucionária: “O negro nega duplamente a sociedade na qual vivemos - na condição racial e na condição de trabalhador. A interação de raça e classe existe objetivamente e fornece uma via para transformar o mundo, para engendrar uma sociedade libertária e igualitária sem raça e sem classe, sem dominação de raça e sem dominação de classe. O nosso debate e o fim do nosso movimento é esse. No Brasil não se pode proclamar simplesmente: “proletários de todo o mundo, uni-vos”. A nossa bandeira não arca com as contingências do eurocentrismo inerente ao capital industrial emergente. Ela se confronta com o sistema de poder mundial do capitalismo financeiro (ou monopolista). E nos dita: “proletários de todas as raças do mundo, uni-vos”. A conseqüência é a mesma. Eliminar classe como meio de exploração do trabalhador


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e de preservação das desigualdades e das iniqüidades, que ela determina, inclusive as raciais. Isso significa, em nossa sociedade, proletários negros e brancos, uni-vos para forjar a sua sociedade, não a dos capitalistas. O que não é simples, porque o negro deve emancipar-se coletivamente em termos de sua condição racial e como força de trabalho.” (Fernandes, Florestan. “Significado do protesto negro” página 12)

Aprofundando esta reflexão, o autor discute, e termos genéricos, a luta de classe e raça, em suas comunhões e articulações. A perspectiva é de que os movimentos de massas em geral abandonem a suposta dicotomia construída pela esquerda majoritariamente branca - brasileira e busque novas formas de interpretação da realidade, à luz “dos de baixo”. “Classe e raça se fortalecem reciprocamente e combinam forças centrífugas à ordem existente, que só podem se recompor em uma unidade mais complexa, uma sociedade nova, por exemplo. Aí está o buriles da questão no plano político revolucionário. Se além de classes existem elementos diferenciais revolucionários, que são essenciais para a negação e transformação da ordem vigente, há distintas radicalidades que precisam ser compreendidas (e utilizadas na prática revolucionária) como uma unidade, uma síntese no diverso.” (Fernandes, Florestan. “Significado do protesto negro” página 62).

Voltando ao caso do DF, temos um ponto interessante a refletir: o distrito Federal foi construído e solidificado quase um século após a abolição da escravidão. Teria então ele como carregar a estrutura da opressão racial? Deixamos esta questão a ser respondida por completo mais a frente. Agora, somente levantaremos a provocação ao filme “Conterrâneos velhos de guerra” a partir dos elementos de organização cultural que ele apresenta: as populações migrantes que vieram construir Brasília desenvolveram aqui diferentes organizações culturais como o “Boi do seu Teodoro”, entre diversos outros. Essas organizações culturais que se fizeram no DF não foram, segundo minha avaliação, uma simples reconstrução das identidades regionais desses povos (até mesmo porque em suas localidades natais as manifestações culturais populares eram reprimidas veementemente), nem somente uma forma aleatória de integração dos povos excluídos (dadas suas diferentes características e especificidades), muito menos a organização revolucionária da classe em si e para si (dada a não organização a partir da base econômica), mas sim uma movimentação que tem como norte a identidade negra em suas diversas faces, formando uma própria consciência e identidade - fragmentada e dispersa - do

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DF. Estes grupos, chamados popularmente de cultura popular, geram diversas expectativas em observadores/as externos/as, que sempre objetificam-nos sem estudá-los a fundo. Partilho então da afirmação do antropólogo Stuart Hall, jamaicano radicado na Inglaterra: “A cultura popular é um dos locais onde a luta a favor ou contra a cultura dos poderosos é engajada; é também o prêmio a ser conquistado ou perdido nessa luta. É a arena do consentimento e da resistência. Não é a esfera onde o socialismo ou uma cultura socialista - já formada - pode simplesmente ser expressa, Mas é um dos locais onde o socialismo pode ser constituído. É por isso que a cultura popular importa. No mais, para falar a verdade, eu não ligo o mínimo para ela.” (Hall, Stuart. “Notas sobre a desconstrução do Popular”)

Permanecendo na discussão do DF formado como estado majoritariamente de migrantes, localizemos essa vinda abundante de migrantes da história: ela ocorreu principalmente nos períodos de êxodo rural e inchaço das metrópoles urbanas, compreendidos durante o suposto milagre econômico da década de 70 precedido pelo êxodo rural iniciado nas décadas de 50 e 60 deste século. Sobre aquele período, Lélia Gonzales, antropóloga e militante do movimento negro, afirma que as grandes migrações, frutos de misérias imensuráveis, incidiram especialmente sobre a população negra, que fez a migração do campo para a cidade e do Nordeste para o Sudeste, em virtude do largo desemprego que os atingiu primeiro que todos. A autora prossegue dizendo que “A construção civil foi sobretudo um grande escoadouro da mão de obra barata (majoritariamente negra), porque não-qualificada.”; “Outro grande escoadouro de mão de obra barata foi a prestação de serviço. Também ali encontramos o trabalhador negro fortemente representado, sobretudo em atividades menos qualificadas como limpeza urbana, serviços domésticos, correios, segurança, transportes urbanos, etc.” e “o lugar natural do grupo branco dominantes são moradias amplas, espaçosas, situadas nos mais belos recantos da cidade ou do campo (...) Já o lugar natural do negro é o oposto, evidentemente: da senzala às favelas, cortiços, porões, invasões, alagados e conjuntos “habitacionais” (cujos modelos são os guetos dos países desenvolvidos) dos dias de hoje, o critério também tem sido simetricamente o mesmo: a divisão racial do espaço.” (Gonzales, Lélia. “Lugar de Negro”) Estes quatro primeiros movimentos - dois migratórios e dois no campo do trabalho - dão o arcabouço da constituição do DF: um estado constituído basicamente por imigrantes nordestinos e rurais que vieram primeiramente


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pra construir a cidade (construção civil) e, passado certo tempo, integraram-se às atividades menos qualificadas dos ramos de serviço, dado que aqui não se desenvolveu o setor produtivo nacional. O milagre econômico tornou-se então pesadelo às populações pobres e, em especial, à negra. Adicionando a isso a migração permanente pra cá em busca de terras, podemos ter o DF como estado constituído de maneira significativa pela população negra. E, pensar o DF negro, é pensar também sua exclusão. Partindo da característica racial marcada da exclusão no DF, remeto-me ao recentemente concluso trabalho do agora mestre em Arquitetura e Urbanismo Marcel Sant’ana, chamado “A COR DO ESPAÇO: LIMITES E POSSIBILIDADES NA ANÁLISE DA SEGREAÇÃO SÓCIO-ESPACIAL, O EXEMPLO DE BRASÍLIA. “ ou “A COR DO ESPAÇO: UM ESTUDO DE CASO SOBRE A SEGREGAÇÃO SOCIO-ESPACIAL NO ESPAÇO URBANO DE BRASÍLIA” (2006). Na referida obra o arquiteto e urbanista negro construiu um mapa racial do DF - partindo da idéia de que existem cidades que podem ser caracterizadas como negras e brancas no DF, a partir da característica do conjunto populacional - e analisou, a partir dos dados de cada cidade, a exclusão na educação, moradia, renda, etc. concluindo que “Sob este aspecto é possível falar em uma estruturação racial oficiosa: não encontramos nenhum instrumento ou mecanismo oficial que determinasse os espaços a serem ocupados por grupos negro e branco; mas quando caracterizamos as áreas ocupadas majoritariamente por um dos grupos de cor que polarizam a 98 nossa questão racial, em relação aos indicadores de qualidade de vida (renda, escolarização, saúde, etc.), ou pela própria qualidade urbana do assentamento, constatamos que o distanciamento social entre negros e brancos é realidade factual.

“Esse distanciamento não pode ser explicado unicamente pelos fatores de ordem econômica, a interação em nível das estruturas sociais dá ao lugar social reservado para o negro a condição de interseccionalidade de indicadores, em outras palavras, o lugar social destinado ao negro é fruto da intersecção de limitação socioeconômicas, político-ideológicas e culturais.”

Seguindo esta linha, farei a leitura da segregação racial no DF manifesta no mundo do trabalho, na conexão Raça-Classe. A busca será por determinar, dentro da classe trabalhadora, quais elementos de exclusão são raciais e, dentro da população negra, quais elementos de exclusão são classistas-burguesses.

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Buscarei abordar então, dentro da mesma leitura de Marcel, a segregação negra no trabalho em forma de desemprego e trabalho informal.

3. Apresentação dos dados “60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais Já sofreram violência policial Há cada 4 pessoas mortas pela polícia 3 são negras Nas universidades brasileiras Apenas 2% dos alunos são negros Há cada 4 horas Um jovem negro morre violentamente em são paulo Aqui quem fala é primo preto mais um sobrevivente” Racionais Mc’s “Capítulo 4, versículo 3”

Feita a discussão teórica acerca da segregação racial e suas relações com a sociedade de classes, partimos agora à aplicação prática dos conceitos apresentados anteriormente. Discutiremos, por meio de estatísticas, a segregação racial no mundo do trabalho em forma de desemprego, trabalho informal e precarização das relações de produção. Em artigo datado de 1990, chamado “Características sociais dos trabalhadores informais: o caso das áreas metropolitanas no Brasil”, do brasilianista Edward E. Telles “examina a extensão que fatores sociais como educação, gênero, idade, raça e situação de migrante influenciam a inserção dos indivíduos no setor de trabalho formal ou informal.” (pág. 61, próprio texto). Na época, o ciclo de crescimento desordenado das metrópoles urbanas brasileiras e os resultados demonstravam, em termos estatísticos, um novo conjunto de exclusões originárias da expansão urbana em questões de moradia, saúde, renda, etc. No artigo, Edward trabalha com análise multivariada de dados do censo de 1980, buscando uma compreensão geral das características desse crescimento urbano. Após larga discussão teórica, análise de dados em busca de característica de trabalhadores/as do mercado informal - definidas/os a partir a regulação do trabalho pelo estado indicada pelo tratamento de seguro social - conclui-se que: “A análise bivariada e multivariada das características sociais revelou que escolaridade, gênero, idade e raça são importantes para determinara participação no setor informal e em várias formas de emprego.” (pág. 75. iden. ibiden.)


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Alertando, ainda, sobre a questão da migração e raça, o autor alerta que “Este estudo aponta a insuficiente atenção que se tem dedicado à raça e a excessiva atenção atribuída à situação de migrante na compreensão do emprego informal no Brasil. Mostrou-se que os não-brancos ocupam desproporcionalmente empregos no setor informal mesmo depois da aplicação de controle importantes, o que torna a raça um fator crucial para determinar a participação no setor informal. em contraste, a origem dos migrantes ou o tempo decorrido desde a migração pesam pouco sobre o fato de virem a trabalhar no setor formal ou informal. Os migrantes de origem tanto rural quanto urbana estavam bem representados através de toda estrutura de emprego.”, corroborando com nossa análise da primeira parte. A busca dessa parte do artigo é analisar os elementos apresentados no texto de Edward E. Telles e outros, de forma simplificada, a partir do cruzamento de dados recentes da organização do trabalho e do mapa racial do DF. Sobre a configuração racial do DF utilizarei os dados de Sant’ana, tanto os que ele utilizou de outros órgãos (Censo) como os que ele próprio produziu. Alerto, porém, que o cruzamento destes artigos tem mais caráter sensibilizatório e função de indicar as diferenças raciais na classe trabalhadora no DF. Trabalharemos basicamente com a comprovação de 3 teses: (1) A maioria de jovens e analfabetas/os no DF participam do grupo racial negro; (2) As cidades mais negras tem maior concentração de trabalho informal que as cidades brancas; e (3) As cidades mais negras tem maior índice de desemprego que as cidades mais brancas. A partir destas teses buscaremos uma compreensão geral das categorias raciais do desemprego, uma forma da sociedade de classes. Para facilitar a análise dos dados, apresentarei aqui um recorte da porcentagem de negros e negras nas Regiões Administrativas, recolhido da monografia de Marcel, em tabela chamada “TABELA 15 - Distribuição da População por Cor ou Raça Declarada, por Região Administrativa - Distrito Federal 2000” Recortarei da tabela a seção da população classificada como negra (que é a soma das pretas e pardas), dispostas em porcentagem por RA. Colocarei as mesmas em ordem decrescente de negritude e, por se tratar de obra de referência, ignorarei as casa decimais na retratação, para facilitar leitura: População negra nas RA’s em ordem decrescente: (Censo 2000, por autodeterminação) DF: 49% de negros e negras 01 - Brazlândia - 63% 02 - Recanto das Emas - 63%

112 03 - Santa Maria - 61% 04 - Paranoá - 60% 05 - Planaltina - 60% 06 - Samambaia - 58% 07 - Gama - 57% 08 - Ceilândia - 56% 09 - Riacho Fundo - 55% 10 - São Sebastião - 55% 11 - Sobradinho - 51% 12 - Candangolândia - 47% 13 - Taguatinga - 44% 14 - Guará - 42% 15 - Núcleo Bandeirante - 35% 16 - Cruzeiro - 28% 17 - Lago Norte - 27% 18 - Brasília(Plano piloto) - 22% 19 - Lago Sul - 13%

Valem, todavia, algumas informações adicionais pra facilitarem a análise. (1) Certas localidades, agrupadas em uma única região administrativa, tem diferenças regionais internas. Por exemplo Riacho Fundo I e II, Taguatinga Sul e Norte, etc. Então tenhamos cuidado na análise dessas localidades. (2) Em ocasiões de regiões administrativas que concentram duas regiões extremamente opostas, as porcentagens podem se maquiar: no caso do lago norte, a favela do Varjão, extremamente negra, pertence à mesma RA e o mesmo ocorre em relação à Cidade Estrutural e o Guará. Estes valores discrepantes geram crescimentos da porcentagem de negros/as na região incompatíveis com a realidade da Região Administrativa. (3) Na RA Paranoá, possivelmente estava inserida também a região conhecida como Itapuã, eminentemente negra, tal como o Paranoá. Vale então diferenciar estas duas regiões não por maquiagem da negritude dos dois locais, mas sim pelas características diferentes. No caso do Itapuã o dado que tivemos acesso é de que a cidade concentra o maior número de migrantes nordestinos (44%) que, em concordância com Marcel, para nós representam-se socialmente no grupo racial negro sem grandes problemas. (4) As porcentagens não revelam o número de pessoas que habitam cada localidade. No caso da Ceilândia, por exemplo, que ocupa a oitava posição em negritude com 56% da população sendo negra, isso representa em números 194.443 mil pessoas, sendo então o maior número de negros/as por RA. Já no caso de Brazlândia, que ocupa a primeira posição em negritude no DF, com 63% de negros/as, o número efetivo


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é da ordem de 33.363 mil pessoas. Por fim (5) não dispomos da configuração racial de algumas cidades como Sudoeste/Octogonal, Águas Claras, Park Way que, por análise sensível, enquadramos no grupo das cidades brancas.

4. Primeira tese: a maioria de jovens e analfabetas(os) no DF participam do grupo racial negro A maioria da população jovem do DF concentra-se, não por acaso, nas regiões mais negras do DF. Segundo os dados apresentados abaixo, o peso da população jovem nas Regiões Administrativas mais pobres, formada majoritariamente por negros é consideravelmente maior que o peso da população jovem das Regiões administrativas mais ricas. Juntamos abaixo 4 regiões, que são ilustrativas desse enunciado: Juventude e Negritude no DF (onde 1 e 2 são das regiões mais ricas e 2 e 3 das regiões mais pobres):

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Lago Norte - 21% da população é menor de 18 anos Brasília - 20% da população é menor de 18 anos Brazlândia - 38% da população é menor de 18 anos Itapuã - 46,3% da população é menor de 18 anos

Situação semelhante ocorre em relação à escolaridade das populações, se compararmos as RA’s. Novamente acontece que as Regiões Administrativas com maior população negra têm menores índices de escolaridade que as Regiões Administrativas com maior população Branca. Fizemos esse recorte a partir da porcentagem populacional analfabeta. Como visto, novamente aparece Brazlândia com piores índices de escolaridade e o Lago Norte com melhores índices. As outras cidades apresentadas são gradativamente mais negras quanto mais analfabetas e mais brancas quanto mais alfabetizadas. Taxa de analfabetismo nas Regiões Administrativas (em %):

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Mais de 7% da população é analfabeta - Itapuã, Brazlândia Seção entre 4% - 7% da população é analfabeta - Gama, Planaltina, Paranoá, Ceilândia, Samambaia, Santa Maria, Recanto das Emas, Candangolândia, Varjão Seção entre 2% - 4% da população é analfabeta - Taguatinga, sobradinho, São Sebastião, Riacho Fundo, Águas Claras, Menos de 2% da população é analfabeta - Brasília, Núcleos Bandeirante,

113 Guará, Cruzeiro, Lago Sul, Lago Norte, Sudoeste/Octogonal, Park Way

** Estas afirmações já estavam presentes na obra de Marcel. O motivo de expô-las aqui então é afirmar que se segundo a avaliação de Edward E. Telles, jovens e menos/as escolarizados/as são mais suscetíveis ao trabalho informal e desemprego, eles são no DF caracteristicamente negros e negras.

5. Segunda tese: as cidades mais negras tem maior concentração de trabalho informal que as cidades brancas Seguindo a conclusão apresentada por Edward E. Telles e as conclusões a confirmação da tese passada, vamos fazer o cruzamento das populações com mais incidência de Empregos sem carteira com as cidades negras do DF. A categoria “Empregados/as sem carteira” encaixaria-se como uma das formas do trabalho informal. Não é uma definição tão abrangente quanto a de Telles, apresentada acima, mas será utilizada pra retratar um crescente setor dos trabalhadores informais, dada a nova estrutura da relação capital trabalho na sociedade toyotista (para aprofundar sobre o toyotismo ver Bernardo, João em “Trabalhadores: classe ou fragmentos?” http://www.ocomuneiro.com/nr1_artigos_trabalhadores.htm). Os dados não fogem à regra do que se viu até agora. As cidades brancas (Lago Norte, Brasília) tem, em geral, menos de 10% da população com empregos sem carteira assinada, e as cidades negras (Brazlândia, Itapuã) tem essa taxa de, no mínimo, acima dos 15% do conjunto populacional. Uma exceção curiosa é o Recanto das emas - cidade negra com taxa de empregos sem carteira menor que 10%. Não saberíamos, agora, explicar o porque da exceção e fica então o indicativo do estudo posterior da história específica da cidade para compreender do que se trata esse fenômeno diferente do normal e esperado. Mas fica confirmada então, em geral, a tese. Porcentagem (em %) de Trabalhadores/as Empregados/as Sem Carteira, por Região Administrativa:

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Menor que 10% - Guará, Lago Norte, Lago Sul, Sudoeste/Octogonal, Brasília, Cruzeiro, Recanto das Emas, Águas Claras Seção 11% - Gama, Taguatinga, Sobradinho Seção entre 12%-13% - Ceilândia, Samambaia Seção entre 14%-15% - Varjão, Núcleo Bandeirante, Riacho Fundo II Seção entre 16%-20% - Brazlândia, Planaltina, Paranoá, Santa Maria, São Sebastião, Riacho Fundo I


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Maior que 20% - Estrutural, Itapuã

6. Terceira tese: as cidades mais negras tem maior índice de desemprego que as cidades mais brancas É na análise dos dados relativos ao desemprego que a divisão racial do DF fica mais clara e linear. Observando as colocações das cidades a partir da configuração racial, vemos que quase perfeitamente pode-se traçar a listagem das cidades em ordem de negritude por ordem de desemprego. A exceção à regra, novamente, é o Recanto das emas. Todavia é exceção só por não figurar ao mesmo tempo entre as cidades mais negras e com mais altos índices de desemprego, uma vez que a taxa de 20% de desemprego da cidade é considerável. As linhas do desemprego no DF demonstram sua perversidade racial de maneira bastante objetiva na análise das taxas de desemprego no DF. Taxas de Desemprego:

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Menor que 15% - Plano, Lago Sul, Lago Norte, Cruzeiro, Sudoeste, Águas Claras, Park Way Seção entre 16%-25% - Taguatinga, Gama, Sobradinho, Núcleo Bandeirante, Ceilândia, Samambaia, São Sebastião, Recanto das Emas, Riacho Fundo, Candangolândia, Varjão Maior que 25% - Itapuã, Estrutural, Santa Maria, Paranoá, Planaltina, Brazlândia

Tendo as 3 teses confirmadas, então, podemos concluir que a segregação racial no DF influi na organização da Classe trabalhadora, determinando e sendo determinada em relação à forma de contratação, tipos de ofícios e etc. Os negros seriam então um potencial exército de mão-de-obra na sociedade moderna. Podemos então responde, agora, com clareza à questão apresentada no capítulo 1: o DF é um estado de estrutura racista, que deteriora o grupo social negro.

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7. Conclusões e proposições “Podemos sorrir, nada mais nos impede Não dá pra fugir dessa coisa de pele Sentida por nós, desatando os nós Sabemos agora, nem tudo que é bom vem de fora É a nossa canção pelas ruas e bares Nos traz a razão, relembrando Palmares (...) Arte popular do nosso chão... é o povo que produz o show e assina a direção” Jorge Aragão, “Coisa de pele”

Concluídas as partes teórica e empírica, podemos esboçar algumas rápidas conclusões e propostas de atuação política condizente com o conteúdo aqui construído. Inicialmente, percebemos que a população do DF é, em boa parte, negra. Não só pela forte presença de afrobrasileiros/as aqui, mas também por toda construção histórica e identitária nos planos culturais e do trabalho. Isso gera uma população com, no mínimo, metade de sua população identificando-se como afrobrasileira que possui, em sua universidade, menos de 10% de pessoas de cor (este número vem crescendo com as ações afirmativas, como cotas para negros). Concluímos também que o DF é um estado organizado historicamente de maneira racista, sendo a população negra um grupo social espoliado de sua produção e riquezas construídas. Esta população Essa conclusão vem bater de frente com o mito do candango migrante sem cultura ou raízes historicamente construídas: este grupo, apesar de existente, não nos parece central pra pensar os processos identitários e de exclusão no DF, uma vez que migrantes de diferentes classes e raças, ocuparam espaços sociais diferentes a partir destas posições. Á população negra do DF foi reservada em especial as posições do trabalho informal e do desemprego estrutural. A relação entre classe e raça também, pelo discutido no texto, é complementar: as duas formas de organização da exclusão social tem instituições próprias que dialogam entre si e, ao invés de uma subordinar à outra, complementam-se. Isso leva a repensar as estratégicas dos/das que lutam por um mundo justo, uma vez que temos dois elementos de opressão atuando sobre um mesmo sujeito histórico. Tratando do plano prático, isso significa dizer que as lutas de desempregados podem, tranquilamente, assumir também faces raciais: campanhas de superação da estrutura de exploração do trabalho pelo capital que afirmem o conteúdo racial


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de algumas das configurações desta exclusão podem mobilizar uma enorme massa social, consciente de sua origem, condição social e talvez organizada de maneira mais sólida. A destruição destes dois sistemas de opressão é, necessariamente, revolucionária e arrisco afirmar que na realidade brasileira não seria possível destruir um sem destruir o outro. Por fim, talvez mais que uma possibilidade, o trabalho social com vínculos raciais é também uma necessidade. Para que a sociedade reconheça-se e possa formular um projeto alternativo de organização das coisas, deve ela compreenderse e dialogar-se em todas esferas - seja para abandonar estas esferas ou fortificá-las. Parece claro que a apropriação coletiva de nossas vidas é uma tarefa fundamental da organização revolucionária. Cabe a nós efetivá-la. Axé! Mundo livre ou morrer! Paíque

CAMPOS, Neio “A produção da segregação residencial em cidade planejada” (1988) Dissertação de mestrado em Planejamento urbano, Universidade de Brasília Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE): “Juventude: Diversidades e desafios no mercado de trabalho metropolitano” (setembro 2005); “A ocupação dos jovens nos mercados de trabalho metropolitanos” (setembro 2006) e Pesquisa de emprego e desemprego no Distrito Federal (Janeiro 2007)

8. Referências bibliográficas

FANON, Frantz. “Pele negra, máscaras brancas” Livraria fator, “Coleção: outra gente vol. 1

Para fazer este texto muito mais coisas do que as listadas abaixo foram constituintes. Sejam os encontros mensais do Curso, as conversas dentro dos núcleos do mesmo, as conversas informais sobre os temas além de diversos outros aspectos da militância, etc. todavia faço uma seleção de algumas das coisas que queria deixar como referência a quem quiser aprofundar-se tanto nas idéia que defendo como nas que discordo. A bibliografia serve então como referências objetivas de leituras que perpassam os temas abordados. Além disso, valem algumas referências: este texto, todo construído no computador da minha casa, foi escrito ao som de músicas que tanto estão presentes no texto como também influenciaram as idéias do autor. Toda discografia do Facção Central e Asian Dub Foundation foram ouvidas enquanto escrevia-se este texto. Os primeiros CDs do Afrika Bambaataa, Grandmaster Flash, Public Enemy, NWA, Suggarhill Gang também estiveram presentes. Algumas músicas latinas e espanholas, como das bandas Hechos contra el decoro, Las manos del filipi, etc. Além de constarem na bibliografia deste texto, suas mensagens perpassam toda obra e são constitutivas da mesma.

CONTERRÂNEOS VELHOS DE GUERRA; colorido, 35 mm, 168 min., 1991. Carvalho, Vladimir carvalho Estudo do IPEA sobre desigualdades raciais no Brasil, 2001 Facção Central, Música “Front de Madeirite” CD: O espetáculo do circo dos horrores (2006)

FERNANDES, Florestan. “Florestan Fernandes: sociologia crítica e militante” FERNANDES, Florestan. “Significado do protesto negro”Cortez editora” FERNANDES, Florestan. “Aspectos políticos do dilema racial brasileiro” texto em homenagem a Roger Bastide FERNANDES, Florestan. 1972. “Aspectos políticos do dilema racial brasileiro”. O negro no mundo dos brancos, págs. 256-283. São Paulo: Difel-Difusão Européia do Livro FURTADO, Celso., “Formação Econômica do Brasil” Companhia editora nacional, 2001 GONZALES, Lélia e Hasenbalg, Carlos “Lugar de negro”, Coleção 2 pontos - Editora Marco Zero Ltda

ARAGÃO, Jorge. Música “Coisa de pele” BERNARDO, João. Trabalhadores: Classes ou fragmentos? - O texto pode ser lido no link http://www.ocomuneiro.com/artigos_trabalhadores.htm CAFIERO, Carlo. “O capital - uma leitura popular” editora polis, São Paulo 1987

Governo do Distrito Federal - Secretaria de Planejamento e coordenação - I Pesquisa Distrital por amostra de domicílios - PDAD


A cor do DF: consolidação da classe trabalhadora e do desemprego vista a luz do racismo no DF

HALL, Stuart. “Notas sobre a Desconstrução do <<popular>>; ‘A relevância de Gramsci para o estudo da raça e etnicidade’. Da diáspora: identidades e mediações culturais, pp. 247-64; pp.294334. Belo Horizonte: UFMG/UNESCO, 2003 RACIONAIS MC’s Música “Capítulo4 Versículo 3” RIBEIRO, Darcy. “O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil” - São Paulo, Companhia das letras, 2006 RIBEIRO, Darcy. 1975. “Os povos americanos”. Configurações histórico-culturais dos povos americanos, págs. 15-57. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira SANT’ANA, Marcel Cláudio, “A Cor do Espaço Urbano” Jornal Irohin, BRASÍLIA, ANO XII, Nº. 19 SANT’ANA, Marcel Cláudio, “A COR DO ESPAÇO: LIMITES E POSSIBILIDADES NA ANÁLISE DA SEGREAÇÃO SÓCIO-ESPACIAL, O EXEMPLO DE BRASÍLIA. “ ou “A COR DO ESPAÇO: UM ESTUDO DE CASO SOBRE A SEGREGAÇÃO SOCIO-ESPACIAL NO ESPAÇO URBANO DE BRASÍLIA” Trabalho de conclusão de mestrado em arquitetura e urbanismo, UNB (2006) SANTOS, Sales Augusto. “ A formação do mercado de trabalho livre em São Paulo: tensões raciais e marginalização social” TELLES, Edwar E., “Característica sociais dos trabalhadores informais: o caso das áreas metropolitanas” Caderno Estudosafro-asiáticos n°19, dezembro de 1990 Vinheta de abertura dos dois CDs da banda “Câmbio Negro”

116

9. ANEXOS Encontramos alguns problemas na junção dos anexos, não podendo então, nesta primeira versão, apresentar alguns dados considerados importantes. O principal deles é o mapa racial do DF apresentado por Marcel em seu trabalho. Por problemas diversos não tivemos acesso à versão digital deste mapa, ficando somente com a impressa. Dentro em breve apresentaremos os anexos de forma mais organizada e cadenciada.


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A construção do sujeito militante

Kelly Ramos de Souza (Consulta Popular) e Rafael Pereira Bitencourt


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1. Apresentação Há inúmeros fatores que podem influenciar pessoas comuns, ou mesmo, grandes personalidades a ingressarem na militância por causas sociais. Outros ainda, se tornam personalidades reconhecidas mundialmente devido a sua prática militante. Ambos são sujeitos que enxergam a militância como um método eficaz para combater injustiças e conseqüentemente promover transformações sociais frente a um cenário composto por problemas estruturais que são reafirmados e reproduzidos cotidianamente em sociedades distintas, através do que conhecemos por percurso histórico. No campo do discurso e das relações de poder, este mesmo percurso, pode ser entendido como verdades sacramentadas que fundamentam um estado recorrente marcado pela desigualdade. Essa necessidade de confrontar elementos antagônicos desta realidade segregadora é um sentimento comum a todos que militam. Sobre o engajamento militante e comprometido, os registros históricos nos apontam momentos que denotam a expressividade destas lutas, nos fazendo perceber, através de observações contundentes, elementos específicos desta condição. Entretanto, neste trabalho, estes registros aparecerão como complementos aos depoimentos recolhidos e às histórias de vida selecionadas. A análise que apresentamos justifica-se a partir da junção destes fatores somados à persistência de sujeitos que decidiram fazer da contestação uma marca identitária.

2. Introdução

SUMÁRIO Apresentação, 129 • Introdução, 129 • Metodologia, 130 • Fundamentação teórica, 130 • Personagens militantes, 131 • A contribuição da igreja, 132 • Bandeiras e lutas, 133 • Principais dificuldades encontradas na prática da militância, 134 • Considerações finais, 135 • Referências bibliográficas, 135

Estando ou não vinculados a um movimento social, partidos políticos ou qualquer outro tipo de organização, os sujeitos em questão se engajam por diferentes causas consideradas essenciais localizadas na conjuntura sociopolítica do Brasil, em conseqüência de influências diversas. Podemos apontar, a princípio, trajetórias pessoais de luta que revelam o teor dos principais problemas sociais presentes no país. Uma carga de opressão, injustiça, exclusão e preconceitos que desenha o mapa da existência de muitos. A exemplo desta afirmação, é possível observar a quantidade de pequenos agricultores, que destituídos do direito à terra, viram no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, MST, a possibilidade de lutarem por seus direitos, a partir da coletividade.


A construção do sujeito militante

Outros, porém, percorrem as rotas da militância por conta de um estado de inquietação frente a acontecimentos decorrentes das estruturas segregadoras e excludentes percebidas na sociedade. O exercício de se colocar no lugar do outro confere sensibilidade a esse militante, que se posiciona na luta, inicialmente, movido por problemas que não o atinge diretamente. No Brasil, pessoas se destacaram em suas trajetórias, profissionais e pessoais, deixando um importante legado para auxiliar e fundamentar tanto movimentos sociais tradicionais, partidos políticos, quanto aqueles conhecidos por “novos” movimentos sociais que se configuram em torno de segmentos diversificados, como por exemplo: movimentos voltados para mulheres, quilombolas, meio ambiente, homosexuais, travestis, prostitutas, velhos, entre outros. Estes indivíduos, através de suas condutas exemplares, se tornaram, inclusive, parte dos fatores que determinam, ou pelo menos influenciam, o engajamento de militantes. Não foi parte de nosso objetivo, entretanto, nos ater apenas às personalidades. Militantes comuns são parte deste trabalho. De uma maneira ainda mais específica, recorremos a alguns militantes que participaram do curso de Realidade Brasileira no Distrito Federal, promovido pela Consulta Popular. O curso reuniu representantes de movimentos sociais diversos em busca do aprimoramento de suas formações políticas. Este fator facilitou o acesso a ricos depoimentos, que por sua vez, são também histórias de vida.

3. Metodologia Os caminhos selecionados para auxiliar a compreensão dos fatores elencados partiram da análise de entrevistas já existentes, recolhidas da série Rebeldes brasileiros publicada pela revista Caros Amigos. Também foram analisados o cotidiano do curso e depoimentos colhidos ao longo da pesquisa. Esses mesmos fatores nos auxiliaram no entendimento e na busca de um perfil do militante. Anseios e frustrações, graus de envolvimento e comprometimento, limitações, incentivos, entre muitos outros, foram pontos percebidos nos depoimentos recolhidos a partir da trajetória pessoal de cada um. Também fizemos uso de textos e livros que possibilitaram o suporte teórico da análise desenvolvida. Estas ações, ao nosso ver, conferiram ao trabalho a seriedade exigida pela prática da pesquisa, transformadas num conjunto de fundamental importância para a validação das hipóteses e verificações possíveis.

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4. Fundamentação Teórica 4.1 O desafio da oralidade A História Oral não tem, ainda hoje, uma posição epistemológica definida, porém o número de discussões a seu respeito tem aumentado significativamente. No que se refere ao Brasil, a história oral obteve um avanço considerável na década de 1970 até o início dos anos noventa. Os encontros promovidos incentivam a disseminação de trabalhos e o interesse pela área. No entanto, há muito para pensar, pois a história oral consiste, ainda para muitos, em “gravar entrevistas e editar depoimentos”1. É preciso pensar a história oral como construção que, por sua vez, exige uma reflexão teórico-metodológica juntamente com a necessidade da pesquisa de campo. Dentro disso, percebemos algumas singularidades da história oral : 1) o testemunho oral como núcleo da investigação que abre outras perspectivas de pesquisa; 2) o mesmo testemunho gera possiblidades de dar voz aos excluídos da história de perspectiva tradicional e permite a percepção de trajetórias individuais; 3) possibilita caminhos alternativos de interpretação, aproximando o sujeito do objeto, transpondo a barreira de separação imposta pelo viés tradicional; 4) elementos como subjetividade, cotidiano e emoções são incorporados à prática da história; 5) a história do tempo presente torna-se perspectiva temporal por excelência da história oral; 6) a memória é o elemento norteador das reflexões históricas; 7) a narrativa ocupa um lugar central na forma de construção e organização do discurso; 8) permite no processo de pesquisa, a construção das fontes primárias, é, então, a história oral produtora de documentos.

4.2 Discurso entendimento

e

Análise

de

Discurso:

possibilidades

de

A relação Sujeito/Linguagem (prática social e histórica)/História é atravessada por ideologias, identidades, representações, que compõem o cotidiano e ocorre no âmbito do discurso, seu objeto. As relações entre signo, ideologia e construção de discursos são intrínsecas.

1 Janaína Amado & Marieta M. Ferreira (orgs). Usos e abusos da história oral, 3ª ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas,1996. Apresentação


A construção do sujeito militante

A Análise de Discurso se constitui num espaço onde os sentidos são produzidos, bem como os processos de identificação dos sujeitos. Confere ferramentas para melhor compreender a interpretação e a relação existente entre o homem e sua realidade. Nesse sentido, se faz necessária para problematizar questões decorrentes das mais diversas manifestações da linguagem (equívocos, opacidade, seleções etc), pois estamos sempre sujeitos a ela. “A entrada no simbólico é irremediável e permanente: estamos comprometidos com os sentidos e o político. Não temos como não interpretar. Isso, que é contribuição da análise de discurso, nos coloca em estado de reflexão e , sem cairmos na ilusão de sermos conscientes de tudo, permite-nos ao menos sermos capazes de uma relação menos ingênua com a linguagem.” 2

A partir da análise do discurso, o texto passa a ser trabalhado de forma diferente. Não se busca o que o texto quer dizer, como tradicionalmente o percebemos, e sim como o texto funciona, pois é composto de símbolos que permitem diferentes formas de significação que se encontram nas entrelinhas, “o que” está subentendido, o “porquê” dele, a “quem” é direcionado, “quem” fala. A discursividade a ser trabalhada é permeada de linguagem e história, o papel da análise do discurso é correlacionar o objeto de análise com outros enunciados, perceber as intervenções, compreender seu funcionamento, questionar interpretações. O discurso, mediado pela linguagem, possibilita ao homem sua transformação e a transformação do seu ambiente, sua permanência, sua continuidade, sua suspensão, sua emancipação. O discurso compõe a base da produção da existência humana.

124 sentido por meio do sujeito e para o sujeito, a linguagem se materializa na ideologia e a mesma se manifesta por meio da língua. Dentro disso, o discurso não é compreendido como simplesmente transmissão ou retransmissão de fala, muito menos é entendido como um processo linear: “...pois, no funcionamento da linguagem, que põe em relação sujeitos e sentidos afetados pela língua e pela história, temos um complexo processo de constituição desses sujeitos e produção de sentidos e não meramente transmissão de informação”3

Uma vez compreendidas as relações e os conceitos apresentados, a utilização da análise de discurso torna-se clara no tratamento do acontecimento discursivo e na abordagem das fontes. A revista Caros Amigos lançou em 2000 os primeiros fascículos da coleção Rebeldes Brasileiros. Como descreve o editorial da revista, a coleção trata de um precioso material que compilado revela parte da luta de homens e mulheres de formação e ideologia diversas, mas que, a maneira de cada um e a seu tempo, desafiaram o poder visando um Brasil diferente.4 O objetivo da coleção coincide com o deste trabalho, já explicitado anteriormente. Entretanto, escolhemos apenas alguns nomes que compõem a segunda série de fascículos, para somá-los aos depoimentos colhidos no CRB. A busca por um perfil do militante não pretende enquadrar ou mesmo engessar a postura do sujeito, antes ainda, visa perceber os aspectos comuns a diferentes personagens, mesmo porquê, os militantes como um todo, estão organizados nos mais diversos segmentos da sociedade, e portanto, são capazes de refletir os principais problemas encontrados no país. Numa primeira análise, foi selecionado o fascículo 7 da segunda série da coleção. Nele, a revista faz menção a Florestan Fernandes (1920-1995): “o caráter era de ferro, assim como a disposição para o trabalho. Florestan produziu uma extensa obra em que predominam contestação política e o inconformismo com os problemas brasileiros. Uma obra militante, rebelde”. 5

5. Personagens militantes Entendendo a linguagem não como um sistema abstrato, mas como a forma utilizada pelo homem para significar e obter sentidos, percebemos a relação que é estabelecida entre linguagem e ideologia. Como afirma Eni Pucinelli Orlandi, o discurso é o palco em que essa relação ocorre, e enquanto a língua confere 2 Eni P. Orlandi. Análise de discurso – princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 2000. Prefácio.

3 Idem, Ibidem, p21 4

Caros Amigos. Rebeldes Brasileiros, SP: Casa Amarela, 2000..

5 Idem, Ibidem, p577


A construção do sujeito militante

Inconformismo. Esta inquietação diante dos problemas de ordem econômica, social e política pode ser considerada o fator inicial da causa militante. No caso de Florestan, a questão da disparidade social e econômica entre os países, e no caso brasileiro especificamente, o fez dedicar sua vida e carreira na militância contra a subordinação do capitalismo internacional e por uma educação pública de qualidade. A busca por um Estado democrático de fato e não apenas de cunho representativo. Para Adriane, aluna do CRB, militante no movimento dos pescadores, militante no Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB) e MST, esste inconformismo expressa-se através da indignação: “o principal fator é a indignação mesmo, é a vontade de querer mudar a realidade e compreender no jogo da vida de que lado a gente tá”.6

Coerência. A linearidade de pensamento e a seriedade encontradas na trajetória de Florestan Fernandes, fazem dele um exemplo de conduta para muitos outros. O fato de grande parte de sua vida e produção ter atravessado dois momentos ditatoriais intensos (fim do estado novo e ditadura militar/ 1945-64) não contribuiu para ausência de empenho e firmeza de seu trabalho, ao contrário, o cotidiano opressor era suporte para as críticas dirigidas contra o regime de força. Quando nos atentamos para o percurso de vida daqueles que se consideram e são considerados militantes, notamos que suas ações são validadas, em grande parte, pela coerência de seus pensamentos e estratégias de ação, levando em consideração, inclusive, que se assim não fosse, muitos não sobreviveriam às críticas e acusações de seus opositores. Mencionamos em momento anterior o caso de pessoas que se aproximam das lutas sociais por se colocarem no lugar do outro, mas não por viver diretamente os conflitos. Este, porém, não era o caso de Florestan Fernandes: “eu nunca teria sido o sociólogo em que me converti sem o meu passado e a socialização pré e extra-escolar que recebi das duras lições da vida (...) Afirmo que iniciei minha aprendizagem sociológica aos seis anos, quando precisei ganhar a vida como se fosse um adulto.” 7

6 Entrevista concedida por Adriane L. Costa no dia 24/03/2007. Militante do MAB, MST e aluna do CRB. 7

Caros Amigos. Rebeldes Brasileiros, SP: Casa Amarela, 2000.p579

125 A alternância entre trabalho e estudo, prática e teoria projetou em Florestan o comprometimento necessário para desejar a transformação da realidade da qual se deu conta ainda aos seis anos. O início do engajamento por causas sociais, muitas vezes, se mostra difícil de ser percebido até mesmo pelos próprios militantes, pois, em muitos casos, a militância se confunde com a luta diária pela sobrevivência. “Militante de fato, desde 2002. Mas até mesmo pela história de vida eu sempre fui uma pessoa revoltada com a condição que eu tinha em Campinas, onde eu morava. E a coisa ficou ainda mais grave, a revolta maior, foi quando eu consegui entrar na universidade, que eu entrei com 24 anos, foi dentro da universidade que eu me tornei militante (...) mas desde o segundo grau eu já me via revoltado e não tinha explicação pras coisas.” 8

Comprometimento. Este é o elemento que pode ser considerado o fio condutor da consciência própria do militante de que não estamos sozinhos no mundo, de que o problema do outro pode ser o nosso problema e que o quadro de mazelas sociais às quais é submetida a maioria da população mundial, pode ser revertido se houver compromisso com a transformação desta realidade em prol da coletividade. “ daí eu acho que é uma questão bem de alma... o que te faz feliz? Tando com quem você é feliz? E eu tando no meio do povo eu to feliz, sabe? Eu não consigo me ver não vendo isso, não sendo sensível às lutas que a gente sabe que tão acontecendo, eu não consigo fechar os olhos para isso. Então eu acho que esse é o grande estímulo, a vontade mesmo de transformar a realidade e a crença de que tua ação pode fazer isso. Não a ação isolada, mas as ações.” 9

6. A contribuição da igreja Muitas histórias de vida pautadas pela injustiça e pela desigualdade se encontram e são confrontadas em instituições, escolas, universidades, igrejas, movimentos 8 Entrevista concedida por Fábio Bueno, no dia 24/03/2007. Militante na Consulta Popular e Coordenção pedagógica do CRB 9 Entrevista concedida por Adriane L. Costa no dia 24/03/2007. Militante do MAB, MST e aluna do CR


A construção do sujeito militante

sociais. E os sentimentos de desconforto e necessidade de transformação são compartilhados e canalizados através de estratégias coletivamente estabelecidas por meio da mobilização exercida dentro de algumas destas instituições. Cabe aqui ressaltar o papel da igreja nesta função e no início da militância de alguns dos entrevistados. No Brasil, ao final da década de 70 e ao longo da década de 80, a igreja se tornou um importante ator político dentro do processo de redemocratização, até mesmo pela oposição ao comunismo e o receio de sua expansão. Sua proximidade com as classes trabalhadoras e principalmente com populações camponesas, explicita a importância da mesma na formação do MST, por exemplo. Alguns depoentes falam desse início ligado à igreja; um dos poucos meios disponíveis para reuniões e organizações, e que sobretudo, alcançava o interior do país. “desde a minha juventude, adolescência, aos catorze quinze anos, a gente já se envolvia com grupo de jovens, na comunidade. Não era bem uma militância política, mas já tinha a idéia de estar em grupo (...) Eu iniciei a minha militância na igreja, nos grupos de jovens da igreja.” 10

“todo mundo comentava o que a gente fazia no colégio, principalmente o que a gente fazia nos núcleos de juventude da igreja, porque a gente vem dessa trajetória de igreja também” 11

126 “Quando os seringueiros percebiam alguma tentativa de destruir a floresta, reuniam-se – homens, mulheres e crianças – e lá iam para a região ameaçada; espalhavam-se por entre as árvores e argumentavam sem parar, até convencer os madereiros a ir embora.” 12

Para entender Chico Mendes, ou qualquer outro sujeito imerso em uma luta, é preciso situá-lo em seu local e tempo históricos. Quando Chico iniciou de fato seu trabalho nos seringais, tinha onze anos e a matéria prima da qual retirava seu sustento – a borracha – já não representava muito para o mercado brasileiro. Os métodos de extração eram primitivos, percorriam mais de 40 quilômetros diariamente. Era proibido ter escolas nos seringais, pois as crianças precisavam trabalhar. Diante de um quadro de dificuldades, Chico Mendes encontra em seu percurso o ativista político Euclides Fernandes Távora, que, a partir do interesse do menino, o ensinou a ler e a escrever com os jornais e as conversas de todos os sábados. O ativista que vivia na semiclandestinidade por ter participado de movimentos de esquerda no Brasil e na Bolívia, iniciara a consciência e formação política de Chico Mendes. Ao encontrar Távora, Chico Mendes teve acesso à leitura, e sobretudo, ao conhecimento de lutas desencadeadas no país naquele momento. Eram lutas que reuniam oprimidos em busca de emancipação, lutas com um sentido muito próximo àquelas que seriam promovidas por ele e seus companheir@s mais tarde. “Ele recomendava muito sobre o processo de organização sindical no país. Dizia que teríamos pela frente com todo aquele esquema de ditadura, pelo menos dez, vinte anos de regime duro... Porque apesar de derrotadas, atacadas, humilhadas, massacradas, as raízes sempre germinam, por mais atacadas que sejam elas germinarão mais tarde”.13

7. Bandeiras e Lutas Em 1975, iniciou-se na Amazônia a luta em defesa dos seringueiros. A bandeira de Chico Mendes e seus companheiros e companheiras era pela defesa da floresta e do trabalho. Em dez anos, a luta encabeçada por Chico evitou a devastação de mais de 1.2 milhão de hectares de floresta e ainda chamou a atenção da humanidade para o perigo do desmatamento.

O trecho acima é parte de um texto construído para fazer referência à ida de seu amigo à cidade em busca de médico mas que nunca mais deu notícias. De 1965 a 1988, a bandeira que Chico Mendes carregava era ativamente representada pelos seringueiros. Suas conquistas, a partir da organização interna, faziam madeireiros milionários desistirem. Ao final de 88 foi assassinado e tornouse, antes de sua morte, um símbolo da preservação do ambiente amazônico.

10 Entrevista concedida por Iracema Moura, no dia 24/03/2007. Militante na Consulta Popular e Coordenção pedagógica do CRB 11 Entrevista concedida por Adriane L. Costa, no dia 24/03/2007. Militante do MAB, MST e aluna do CRB

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Caros Amigos. Rebeldes Brasileiros, SP: Casa Amarela, 2000.p418

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Caros Amigos. Rebeldes Brasileiros, SP: Casa Amarela, 2000.p422


A construção do sujeito militante

Para Sheila, aluna do CRB e militante da Consulta Popular, os motivos para continuar a luta são: “São as bandeiras, né? Estar descobrindo, saber que eu tenho um potencial, que eu posso ir. Eu largo tudo e corro e vou aprendendo. De saber que cada um de nós é um pedacinho da mudança né?! Não parar nunca.” 14

127 ao trabalho de base, mas que por não se dedicar também ao estudo, ao preparo teórico, não percebe, em muitos casos o melhor momento para suas ações e não entende muitas vezes o motivo de seu trabalho não ter produzido os efeitos esperados. “Muita gente vai pra casa por causa disso... o militante pra ter essa análise da luta, ele tem que olhar pra frente, o Realidade Brasileira dá a base pra ele olhar pra frente. Mas não pode esperar só do realidade, isso vai do movimento fazer sua análise de conjuntura, seus trabalhos de base, de fazer sua discussão política.” 16

8. Principais dificuldades enfrentadas na prática A trajetória de Chico Mendes, assim como a Trajetória de Florestan Fernandes, ganhava cada vez mais força com o estudo e a busca por conhecer a causa pela qual militavam. Como alunos do CRB, pudemos, além de colher depoimentos, observar nos momentos de aula, debates e análises da conjuntura atual que, a principal dificuldade colocada pelos movimentos de uma maneira geral era a formação continuada, o estudo que proporcionasse aos movimentos sociais o direcionamento do olhar para frente.

Dedicar-se ao estudo proporciona ao militante ferramentas de análise do quadro no qual a sua luta está inserida. Ferramentas estas que o coloca em condição de perceber o que dá suporte ao discurso hegemônico proferido com freqüência, o discurso combatido por ele. Assim como, contribui para fortalecer as suas próprias convicções e estratégias. “eu não tive na minha adolescência conhecimentos teóricos sobre revolução, socialismo, comunismo. A gente sabia, ouvia, eu nunca tive uma posição contrária, mas nunca havia tido um entendimento. Eu não vim pro trabalho da militância por uma questão teórica, de ler e decidir, foi muito mais pela necessidade, por sentimento, pela condição que eu tinha do que por uma reflexão teórica, na faculdade ou alguma coisa assim(...) Depois, quando fui pro movimento em 98, estudando, aprofundando na leitura política, eu fui vendo que não adianta só você combater as causas do que taí, tem que ir na raiz do problema, e para ir na raiz do problema é preciso acabar com o capitalismo, construir outra coisa, um sistema de emancipação das pessoas” 17

“Hoje em dia, eu coloco que o principal problema que a militância tem é de ordem teórica, de ordem de estudo. A gente vê recorrente, a militância falar o seguinte: ah! Se for pra parar alguma coisa pra entender a realidade, ficar estudando, eu tô fora! O pessoal tem uma aversão imensa à questão do estudo, da teoria. E isso aí é uma herança claramente petista que a gente tem, porque na década de 80 se vc pegar a prática do partido dos trabalhadores, você vê que tem um pessoal que milita pra cacete, faz um monte de coisa, mas não sabe direito pra onde tá indo, como vai fazer, tem questões políticas que eles não se colocam (...) existe essa herança de não querer parar pra fazer a parte teórica.” 15

No caso do CRB, projetado em módulos e realizado em um fim de semana por mês, notamos a dificuldade de continuidade por parte de muitos militantes. Chegamos ao fim com um número bem menor do que o iniciado. As causas exatas das desistências não sabemos, entretanto, este fato se soma aos impasses existentes em torno do fator estudo. Fábio, militante da Consulta Popular e participante da Coordenação Pedagógica do CRB, fala a respeito de militantes que se dedicam em excesso

Observar o passado e o presente com um olhar crítico, olhar que pede transformação. Para tanto, o trabalho militante necessita dessa relação constante com o estudo. “uma coisa que eu gostaria muito de fazer era poder estudar mais. Acho que essa é uma dificuldade que a gente tem, ou a gente muito trabalha ou a gente muito estuda. É difícil a gente conseguir tocar, eu gostaria de estudar mais e de ter uma ação mais embasada. Acho que muitas vezes a gente acaba sendo um militante

14 Entrevista concedida por Sheila R. da Silva, no dia 24/03/2007. Militante da Consulta Popular e aluna do CRB

16

15 Entrevista concedida por Fábio Bueno, no dia 24/03/2007. Militante na Consulta Popular e Coordenção pedagógica do CRB

17 Entrevista concedida por Iracema Moura, no dia 24/03/2007. Militante na Consulta Popular e Coordenção pedagógica do CRB

Idem, ibidem.


A construção do sujeito militante

meio intuitivo, do que necessariamente um militante com conceituação, com concepções.” 18

9. Considerações finais Entre outros desafios que surgem, ou na teoria ou na prática, é possível chegarmos a elementos compreendidos como instrumentos para garantir o direito à luta, ao trabalho. Percebemos nos depoimentos analisados, no decorrer do CRB e nas matérias da coleção Rebeldes Brasileiros, que a principal característica do militante surge da iniciativa de dizer não a uma cultura hegemônica, sedutora para a maioria, que reproduz a super valorização do consumo, do individualismo, em detrimento de condições de igualdade efetiva e não simplesmente conceitual registrada em leis e constituições de países ou em discursos de autoridades. “nós somos todo dia, toda hora, bombardeados por uma cultura hegemônica, e mesmo a gente tendo consciência de muita coisa, conhecimento, digamos assim, somos bombardeados por essa cultura do outro lado (...) Cultura da acomodação, do individualismo, do meu, da minha comida, do meu filho, do meu carro, da minha casa, da minha felicidade. E eu posso dizer assim: o que me move é uma coisa bem simples, pra eu ser feliz, eu não vou ser feliz sozinha. A minha felicidade é também a felicidade dos que estão ao meu redor, eu só vou ser feliz se eu ver essas pessoas felizes, e não é só a minha família, os meus amigos, mas principalmente os que passam por maiores dificuldade” 19

Diante das dificuldades seja do estudo, seja de ordem financeira, prática, familiar, o inconformismo, a coerência, o comprometimento e o compromisso com a luta são traços predominantes observados nos atores políticos que militam em movimentos sociais e por causas necessárias que se espalham em nosso tempo. Essas características, dentre muitas outras, desenham e constroem cotidianamente o perfil destes sujeitos engajados naquilo que eles consideram um projeto de vida.

18 Entrevista concedida por Adriane L. Costa, no dia 24/03/2007. Militante do MAB, MST e aluna do CRB 19 Entrevista concedida por Iracema Moura, no dia 24/03/2007. Militante na Consulta Popular e Coordenção pedagógica do CRB

128 Atribuímos importância a todos os militantes. Àqueles que estão nos assentamentos e ocupações, fazendo trabalho de base, outros que fizeram de suas profissões mais uma ferramenta em prol da militância, àqueles organizados nas comunidades, ou os que estão iniciando sua militância agora. Enfim, a todos que abriram mão das facilidades oferecidas pela conjuntura segregadora ou mesmo os que não tiveram outra escolha se não militar. Estes são responsáveis por caminhos abertos para outra realidade, por transformações efetivas e pela continuidade das lutas que asseguram os direitos emancipadores daqueles esquecidos pelo Estado.

10. Referências bibliográficas Fontes Primárias: Entrevista concedida por Adriane L. Costa, no dia 24/03/2007. Militante do MAB, MST e aluna do CRB Entrevista concedida por Fábio Bueno, no dia 24/03/2007. Militante na Consulta Popular e Coordenção pedagógica do CRB Entrevista concedida por Iracema Moura, no dia 24/03/2007. Militante na Consulta Popular e Coordenção pedagógica do CRB Entrevista concedida por Sheila R. da Silva, no dia 24/03/2007. Militante da Consulta Popular e aluna do CRB

Fontes Secundárias: Caros Amigos. Rebeldes Brasileiros, SP: Casa Amarela, 2000. Eni P. Orlandi. Análise de discurso – princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 2000. Janaína Amado & Marieta M. Ferreira (orgs). Usos e abusos da história oral, 3ª ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas,1996


Dificuldades dos trabalhadores para se colocar no mercado de trabalho do DF

Francisco Lima Pereira (Chicão) (Movimento dos Trabalhadores Desempregados – MTD)


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1. Dificuldades dos trabalhadores para se colocar no mercado de trabalho do DF

SUMÁRIO Dificuldade dos trabalhadores para se colocar no mercado de trabalho do DF, 137

Na década de 70, grande número de trabalhadores rurais se deslocou de suas propriedades no campo em busca de novos sonhos nas cidades grandes, sem ter conhecimento e sem formação profissional, tiveram que sobreviver com suas famílias através de trabalhos braçais e até mesmo informais, diante de sua baixa escolaridade e mão de obra não qualificada. Também tiveram que viver na periferia das cidades, muitas vezes em favelas ou ocupações irregulares para se livrar dos altos aluguéis e a especulação financeira das grandes imobiliárias. Isso se reflete nas gerações seguintes, onde o fi lho destes mesmos migrantes não tem oportunidade de freqüentar boas escolas, seja por que as mesmas não estão presentes na favela, ou porque o jovem filho de ex-agricultor tem que começar a trabalhar muito cedo, até mesmo na adolescência para complementar a renda familiar. Na maior idade como os seus pais, tem que trabalhar também em subempregos ou fazer bicos por motivo de sua má formação escolar e pela sua falta de qualificação profissional, tendo que trabalhar em obras mecânicas de fundo de quintal ou em comércio local que mal paga um salário mínimo e nega a assinar sua carteira de trabalho, negando assim os seus direitos trabalhistas e social que o mesmo tem direito. Quando jovem consegue concluir o ensino médio muitas vezes através de supletivos ou cursos noturnos, esbarra em mais uns obstáculos na hora de entrar par ao mercado de trabalho, “o tão chamado tempo de experiência de serviço”, que não respeita nem mesmo os cursos profissionalizantes ou estágios feitos com sacrifícios e muitas vezes sob caras mensalidades em escolas técnicas. Além de ter que disputar com centenas de outros candidatos a uma única vaga é discriminado por morar longe (o patrão não gosta de pagar vale transporte), seu endereço é na favela e sua cor muitas vezes por ser negra também é empecilho e também não tem ninguém que o indique para tal cargo (os famosos padrinhos). Mesmo quando conseguem uma colocação no mercado de trabalho, não têm nenhuma segurança ou estabilidade naquele emprego, têm que se submeter, muitas vezes, à jornada de trabalho que vão muito além do determinado por lei e não recebem nenhuma remuneração por essas horas a mais, ou tendo que se submeter a fazer trabalhos que não condiz com seu contrato, sob ameaça de demissão de seus feitores. A tecnologia também se mostra um grande inimigo desses trabalhadores, que são substituídos por máquinas ou computadores que é operado por um único


Dificuldades dos trabalhadores para se colocar no mercado de trabalho do DF

trabalhador, porém, porque teve oportunidade de freqüentar melhores escolas ou até mesmo uma universidade e ter um endereço em algum bairro nobre da cidade, tira diversos trabalhadores de seus postos de trabalho em nome de uma modernidade que privilegiam poucos e joga centenas de trabalhadores no mundo do desemprego, como por exemplo, os trabalhadores em bancos, e até mesmo os frentistas de postos de gasolina que já não podem dormir em paz, porque o fantasma do desemprego o atormenta com a possibilidade de acordar com máquinas de abastecimento automáticas em seus postos de trabalho. Quando já na maior idade, os problemas para se colocar no mercado de trabalho; se invertem. Se na juventude, o mesmo tinha dificuldades de arranjar emprego por falta de experiência, o mesmo ocorre agora já na idade avançada, por ter muita experiência. Seu trabalho logicamente teria que ser melhor remunerado, porém, o que acontece e justamente teria que ser melhor remunerado, porém o que acontece é justamente o contrário. O empresário prefere contratar os mais jovens com salários inferiores do que pagar que vale o trabalhador mais experiente, e ainda por cima cita a idade do mesmo como protesto para não contratar alegando a idade avançada que o mesmo terá problemas de saúde e velhice e assim vindo a compreender a produção da empresa. Diante desta conjuntura muitos trabalhadores buscam se organizar como forma de superar esta triste realidade, formam cooperativas associações de trabalhadores buscando a união de todos para superar seus problemas referente a falta de postos de trabalhos. Hoje o Brasil é o segundo maior país em reciclagem de lixo, no mercado, não por consciência ecológica, mas sim por necessidade de sobreviver. Há também iniciativas e propostas de Organizações Não Governamentais – ONG´S ou movimentos que vem com propostas de outros modelos econômicos para esta camada de trabalhadores, principalmente o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem terra – MST, que propõe a volta dos agricultores as suas raízes, isto é promover o êxodo ao contrário do que ocorreu nos anos 70, que é a volta do trabalhador ao campo. É também do Movimento dos Trabalhadores Desempregados – MTD, que semelhante ao MST propõe ao trabalhador outra forma de subsistência sem ter que estar ligado ao modelo atual que o capitalismo impõe, sua auto sustentação seria produzida na terra que alimentaria sua família e venderia os excedentes para o mercado da cidade e assim contribuir para a garantia da segurança alimentar de sua família e da comunidade que mora na cidade. A exemplo concreto disto, o MTD do Distrito Federal, vêm desenvolvendo experiência no sentido de propor outra alternativa ao problema do desemprego e a falta de moradia para os trabalhadores desempregados.

131 Com um acampamento denominado “rururbano”, isto é, que não é urbano, mas também não é rural, esse está localizado no cinturão verde do Distrito Federal as margens da BR 020 Km 12 em Sobradinho-DF. Sua proposta é que: o trabalhador tenha um lote que possa morar dignamente e que produza para sua alimentação e posteriormente possa vender o excedente, isso em uma área de 20 mil metros quadrados, e que o assentamento possa lhe garantir uma área para trabalhados coletivos de acordo com sua formação profissional que o mesmo exercia nas cidades (marcenaria, carpintaria, serralharia, corte e costura, etc.). Assim com a possibilidade de sobreviver na terra nos momentos em que o mesmo não encontra trabalho na cidade. Vivendo com dignidade, promovendo saúde alternativa através da medicina popular (plantas medicinais); promovendo à educação nas escolas do assentamento voltado para à consciência de respeito aos animais, plantas e nascentes de água do assentamento, poderá viver em uma comunidade modelo e com princípios sociais voltada para resolver esta grave ferida no seio da sociedade (desemprego e moradia), que as classes dirigentes políticas não mostra soluções diante a esta conjuntura atual do modelo capitalista imposta para o mercado tanto de trabalho como de mercadoria para classe trabalhadora com pequena formação profissional jogada as margens da sociedade em favelas ou até mesmo em presídios.


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