Os locais mais Românticos de Portugal na mente de grandes escritores portugueses

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Ficha técnica

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Propriedade, edição e distribuição: Gomes & Canoso, Lda. Rua São João, nº. 39, Repeses 3500-727 Viseu Telefone: 232 407 544 Telemóvel: 969 474 853 Directora: Olinda Martins

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Redacção: Ana Margarida Gomes e Lino Ramos Publicidade e marketing: Tiago Canoso Telefone: 232 407 544 Telemóvel: 969 474 853 Visite o nosso website em www.descla.pt

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04 — Editorial 06 — A Coimbra da bela Inês 10 — Simão e Teresa: de Viseu ao Porto a amar, a lutar e a morrer 12 — Évora: palco de uma tragédia anunciada 14 — Gaia: Fanny Owen tinha dois amores, um deles era Camilo Castelo Branco 16 — Dois irmãos, uma tragédia

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22 — O canal tramou Margarida 24 — Baltazar e Blimunda: ilegítimos mas felizes 26 — A Morgadinha dos Canaviais: amores secretos e não correspondidos 30 — Amor nas Terras do Demo

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Editorial Caros leitores, Escolher os locais mais românticos de Portugal é um exercício que já muitos fizeram, baseados quase sempre em gostos e avaliações pessoais. Ao definirmos o tema desta edição não pretendemos, por isso, repetir processos. Quisemos tentar um ângulo novo: foi assim que surgiu a ideia de seleccionar esses locais através da literatura, recorrendo a livros de escritores portugueses. Nem todos eles são românticos como Camilo Castelo Branco, mas todas as histórias que contam têm pelo menos uma história de amor. E essa

história quase nunca decorre num só local: é por isso que não são apenas dez sítios, mas dez é o número de livros que servem de base a esta revista. A escolha resulta da tentativa de abranger o máximo do território português, sem esquecer, claro, a relevância da obra. Além de Camilo, escolhemos Camões, Almeida Garrett, Júlio Dinis, Eça de Queiroz, Aquilino Ribeiro, Vitorino Nemésio, José Saramago, Virgílio ferreira e Agustina Bessa-Luís, cujo romance tem Camilo Castelo Branco como uma das personagens…

Boas leituras… e que o amor ande no ar!

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Palรกcio Nacional da Pena | Fotografia: PSML-Wilson Pereira

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A Coimbra da bela Inês Texto e fotografia: Lino Ramos

O destino atraiçoou a bela Inês, que vivia a ilusão de um amor proibido com o filho do rei. D. Afonso IV mandou matá-la. Das suas lágrimas nasceu uma fonte e o seu sangue ainda pinta de vermelho a rocha do leito na Quinta das Lágrimas, em Coimbra. Inês de Castro vivia feliz, muito feliz, nos “saudosos campos do Mondego”, apaixonada pelo seu príncipe encantado, D. Pedro. Sempre que estava longe

dele vinham as lembranças, “de noite, em doces sonhos”, “de dia em pensamentos que voavam”. Mas o destino – ou a “Fortuna”, como lhe chamou

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Mosteiro de Santa Clara-a-Velha

Camões n’Os Lusíadas – não podia permitir que aquele ingénuo estado de alma durasse muito tempo. D. Pedro era herdeiro do trono de Portugal e D. Inês uma galega. Tinham quatro filhos, sementes de um amor platónico, impossível, pelo menos segundo a lei dos homens. O romance ameaçava a independência do reino – assim pensava o povo, os conselheiros do rei, D. Afonso, e o próprio monarca, que esteve para seguir o coração de avô, mas acabou por mandar assassinar a pobre donzela. A crónica desta morte anun-

ciada escreveu-se no século XIV em Coimbra, cidade que mantém a áurea romântica. Diz a lenda que D. Pedro, para comunicar com a amada, punha as cartas em barquinhos de madeira, transportados até ao Mosteiro de Santa Clara-a-Velha pela água que corria de uma fonte situada na Quinta das Lágrimas. A nascente teria origem no choro das ninfas do Mondego, ao saberem da morte de Inês. Na mesma quinta, uma outra fonte nasceria das lágrimas vertidas pela donzela. O sangue terá ficado preso nas rochas do leito, ainda hoje rubras.

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A ponte Pedro e Inês, projectada pelo engenheiro António Adão da Fonseca e pelo arquitecto Cecil Balmond.

“As filhas do Mondego, a morte escura Longo tempo chorando memoraram E por memória eterna em fonte pura As Lágrimas choradas transformaram O nome lhe puseram que ainda dura Dos amores de Inês que ali passaram Vede que fresca fonte rega as flores Que as Lágrimas são água e o nome amores” Os Lusíadas, canto III 8 | Abril de 2017 | Os locais mais românticos de Portugal ...by Descla


Mosteiro de Alcobaça

De nada valeu o apelo de Inês, “fraca dama delicada”, de “olhos piedosos”, prostrada diante do rei e dos carrascos, abraçada aos meninos “tão queridos e mimosos”. Tentou mostrar que não tinha culpa de amar quem a conquistou e que o rei devia saber dar a vida, tal como soube dar a morte na guerra com os mouros. E os filhos, que ficariam órfãos? D. Afonso, “já movido a piedade”, quis perdoar, “mas o pertinaz povo e o seu destino / (que desta sorte o quis) lhe não perdoam”. A história de Pedro e Inês é a mais romântica do imaginário português, mais antiga do que a paixão de Romeu e Ju-

lieta, de Shakespeare. A culpa, como sempre, é do amor: foi ele o responsável pela morte da donzela galega, segundo Camões. Essa “força crua”, o “fero amor”, “áspero e tirano”, não se contenta com lágrimas, exige sacrifícios humanos. Em Coimbra, uma bela ponte pedonal perpétua o romance de Pedro e Inês, ela que se tornou rainha depois de morta. O seu corpo foi guardado por D. Pedro num túmulo que mandou construir no Mosteiro de Alcobaça, onde também ele veio a repousar anos depois. Os sepulcros estão frente a frente, para que no Dia do Juízo Final os dois amantes possam olhar-se nos olhos…

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Simão e Teresa: de Viseu ao Porto a amar, a lutar e a morrer Texto: Lino Ramos Fotografia: Tiago Canoso

Camilo Castelo Branco, nome maior do romantismo português, escreveu um livro inspirado em factos reais. Amor de Perdição é uma história parecida com a de Romeu e Julieta, e passa-se sobretudo em Viseu, Coimbra e Porto. Dificilmente a vida de um escritor encaixará tão bem num livro seu como acontece com Camilo Castelo Branco em Amor de Perdição. O nome maior do romantismo português teve uma existência cheia de amores e desamores, sucessos e fracassos, alegrias e tristezas. A vida e a morte andam quase sempre de mão dada nestas coisas, e não foi diferente com Camilo e a sua obra-prima.

A história inspira-se, de resto, em factos reais. O protagonista masculino, Simão Botelho, tem o mesmo nome de um tio do escritor que também esteve preso na Cadeia da Relação, no Porto, edifício histórico da cidade invicta que recentemente foi reclassificado como monumento nacional. Também lá esteve encarcerado Camilo, por ter cometido adultério, acabando absolvido pelo juiz José Maria de Almeida Teixei-

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ra de Queiroz, pai de Eça de Queiroz. Simão é um dos heróis mais célebres do romantismo literário português. Estudante em Coimbra, foi em Viseu, de onde era natural, que se apaixonou por Teresa de Albuquerque, filha de um inimigo do seu pai. Da janela do quarto, Simão via a sua amada, até que o pai desta descobriu o romance e imediatamente trata de lhe arranjar noivo, um sobrinho, Baltazar Coutinho, natural de Castro Daire. Teresa recusou-o, e por isso foi castigada, enviada para o convento de Viseu, depois para o de Monchique, no Porto, hoje ao abandono – há um projecto para o transformar em hotel. De lá trocava correspondência com Simão, que nas ruas de Viseu se envolveu numa disputa verbal com Baltazar e acabou por lhe dar um tiro de morte. O herói de Camilo confessou tudo e, abandonado pelo pai, homem de influência, foi condenado à forca e mais tarde a dez anos de degredo na Índia. Enquanto esteve preso Simão despertou a paixão de outra rapariga, Mariana, que tratou dele e até lhe levou uma carta para Teresa. Na hora da partida, já no navio, Simão viu o vulto de Teresa por entre as grades da janela do convento, pouco antes de esta morrer. O herói leu a última carta da amada e pereceu também, sendo lançado ao mar. Mariana, que o acompanhava a bordo, atirou-se de seguida.

Torre dos Clérigos

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O Templo de Diana, construído pelos romanos no século I. I Fotografia Lino Ramos

Évora: palco de uma tragédia anunciada Sofia tem uma “beleza demoníaca, como de uma criança assassina”. O seu modo de ser não encaixa na sociedade fechada de Évora. Alberto vive um processo de interrogação existencial. A história de amor adivinha-se trágica desde o início de Aparição. Texto: Lino Ramos

Sofia era jovem, tinha olhos vivos, mãos brancas e subtis, um “corpo intenso e maleável”. Mas “uma beleza demoníaca,

como de uma criança assassina, figurava-lhe nos olhos líquidos, na face branca, na boca ávida e sangrenta”. As

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palavras são do homem que se apaixonou por ela, Alberto Soares, alter-ego de Vergílio Ferreira no romance Aparição. A história decorre em Évora, pequena cidade provinciana e profundamente católica, em plena ditadura fascista. Desde que ali chega para dar aulas no liceu que o protagonista deixa antever que não será fácil a sua relação com a mesma, para mais quando começa a dar lições particulares à jovem, desafiando as “leis” dessa sociedade fechada. O professor enamora-se por Sofia, provocadora e sensual, cujo amor é feito de entusiasmo, desespero e loucura. Ele próprio, a viver um processo de interrogação existencial, envolve-se com a aluna como se fosse “o último amor de dois condenados”. Um outro jovem, Carolino, fascinado pela morte como forma de criação, era apaixonado por Sofia, tão apaixonado que acaba por assassiná-la a punhal. Todo o romance é envol-

O zimbório da Sé Catedral de Évora. | Fotografia Tiago Canoso

to em tristeza, em tragédia. Desde a morte do pai do protagonista, quando a família estava reunida e feliz à mesa, passando pela morte Cristina, criança de sete anos que tocava divinamente o “Nocturno 20”, de Chopin, até ao suicídio do Bailote, um agricultor que perdeu a fonte de rendimento e por isso entende que a sua existência já não tem sentido.

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Gaia: Fanny Owen tinha dois amores, um deles era Camilo Castelo Branco Texto e fotografia: Lino Ramos

Camilo Castelo Branco e um amigo apaixonam-se pela mesma rapariga. O escritor é uma das personagens do romance Fanny Owen, feito de ciúmes e amores secretos e cuja acção decorre em duas localidades de Vila Nova de Gaia. O coronel escocês Hugo Owen vivia em Miramar com a sua esposa, D. Maria Rita, e as duas filhas, Fanny e Maria Rita. Corria o ano de 1849 quando José Augusto e o seu amigo Camilo Castelo Branco, famoso escritor, passaram a cavalo em frente da casa da família, onde puderam observar as duas irmãs. Depois de alguns encontros

em bailes, José Augusto ficou apaixonado por elas. Um ano depois foi mesmo viver para uma localidade próxima, Vilar do Paraíso, visitando as raparigas em sua casa, chamada de “Vila Alice”. Camilo seguiu os passos do amigo e também ele alugou uma moradia nessa terra, não só para estar perto de José Augusto mas também porque já sentia algo

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pelas donzelas, que visitava frequentemente. José Augusto ficou noivo de Maria Rita, mas o seu coração começava a pender mais para Fanny, o que também aconteceu com o escritor, que começou a corresponder-se com a jovem. José Augusto reagiu violentamente, ameaçou o escritor, que quase de imediato voltou para a cidade do Porto. Aos 22 anos Fanny deixou de resistir à obsessão de José Augusto, mas a relação era mal vista pela família, o que levou o casal a fugir de noite com destino à Quinta de Soeime. Instalou-se o caos em casa dos Owen. Falou-se

que iam marchar tropas para a Quinta do Lodeiro, por onde os amantes haviam passado. José Augusto e Fanny acabaram mesmo por casar, mas a história de amor durou pouco tempo: vieram a lume cartas que Fanny havia trocado com um espanhol, Fuentes, quando já era cortejada pelo futuro marido. O ciúme deste terminou na morte de ambos, em 1854. Camilo foi apontado como o responsável pelo infortúnio, pois terá sido ele a divulgar a correspondência. O romance de Agustina Bessa-Luís chegou ao cinema pela mão de Manoel de Oliveira, no filme Francisca, de 1981.

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Dois irmãos, uma tragédia Texto: Lino Ramos Fotografia: Tiago Canoso

Um país em decadência, uma sociedade viciada, uma família a recompor-se de um passado trágico. Mais do que o azar do destino, a história de incesto é o retrato do Portugal em que vivia Eça de Queiroz. Lisboa e Sintra são os principais cenários d’Os Maias.

Estátua de D. José, Rei de Portugal entre 1750 e 1777.

“Craft e Carlos afastaram-se, ela passou diante deles, com um passo soberano de deusa, maravilhosamente bem feita, deixando atrás de si como uma claridade, um reflexo de cabelos de oiro, e um aroma no ar”. Maria Eduarda imediatamente despertou o interesse de Carlos, depois a paixão, até se envolverem numa história de amor que acabou em tragédia. O romance Os Maias decorre na cidade de Lisboa, que representava todo o país, ainda

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A vila de Sintra está associada ao romantismo. Na imagem, o belo Parque de Monserrate

O Arco da Rua Augusta, inaugurado em 1873.

mais nessa época, segunda metade do século XIX. “Lisboa é Portugal (…) Fora de Lisboa não há nada”, dizia Ega, fiel companheiro do protagonista. Foi na capital e seus arredores que tudo aconteceu. A vila de Sintra, romântica por natureza, era o ponto de encontro dos casais apaixonados, “sobretudo daqueles que, segundo a mesma sociedade, não o deveriam ser. Falamos, claro, dos amores proibidos”, nota Eça de Queiroz.

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O rio Tejo. | Fotografia Lino Ramos

Carlos, que morava na rua das Janelas Verdes, ia muitas vezes até ao Rossio a pé, a cavalo ou de carruagem, e com Ega passeava-se pela baixa. Algumas das lojas citadas no livro ainda existem, como a Casa Havaneza, no Chiado, junto à estátua de Fernando Pessoa. O protagonista d’Os Maias teve uma educação liberal, à inglesa. Era um “cidadão do mundo”, ao contrário do pai, educado segundo os padrões católicos, longe da natureza e do mundo prático, o que explica a incapacidade de encarar os infortúnios da vida – quan-

do a mulher se apaixonou por outro e fugiu de casa, levando consigo a irmã de Carlos, Pedro da Maia entregou o pequeno aos cuidados do avô, Afonso, e suicidou-se. A terceira geração da família estaria, assim, mais preparada para o sucesso e, se quisermos, para a felicidade. Mas o peso da hereditariedade e do meio envolvente acabou por levar a melhor. Carlos terá herdado do pai o carácter fraco e da mãe a tendência para o desequilíbrio amoroso. Por outro lado, a alta burguesia lisboeta empurrou-o para o fracasso.

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Mesmo quando descobriu que Maria Eduarda era sua irmã, o protagonista continuou a desejá-la e manteve-se seu amante. A história d’Os Maias segue as regras da tragédia clássica – peripécia, reconhecimento e catástrofe: o avô Afonso morreu ao saber do romance dos netos, que se separam definitivamente, “vencidos da vida”, como o próprio Eça. A casa de família, o Ramalhete, voltou à ruína, e essa Lisboa – ou, se quisermos, esse país – continuou exactamente igual, uma “choldra ignóbil”, em dissolução, incapaz de se regenerar.

O Teatro Nacional de São Carlos, inaugurado em 1793.

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Vista sobre a cidade de Angra do Heroísmo. Fotografia: Azoresphtos.visitazores-Maurício de Abreu, DRT

O canal tramou Margarida Texto: Lino Ramos

Margarida vive uma sucessão de paixões frustradas e é incapaz de se libertar das convenções sociais. Mau Tempo no Canal decorre em várias ilhas dos Açores, espaço que só por si já simboliza a limitação. Margarida é o epicentro de uma teia de paixões frustradas, nenhuma capaz de satisfazer as suas opções existenciais, constantemente negadas por convenções da sociedade. Dessas relações amorosas sobressai a que tem com João Garcia, mas as famílias de ambos há muito estão afastadas por antigas questões e ressentimentos.

O palco da história é a sociedade açoriana das primeiras décadas do século XX, com as suas convenções, tiques e limitações das quais as personagens são incapazes de se libertar, para mais numa ilha, ou em ilhas, onde tudo é forçosamente limitado, pequeno, exagerado. A ideia é reforçada pelo título do livro, Mau Tempo no Canal,

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símbolo da separação entre a clausura do arquipélago e a liberdade do exterior, mas também uma metáfora dessas forças anónimas que impedem as personagens de se revoltarem. A intriga principal decorre na bela cidade da Horta, onde por essa altura vive o autor. O nome terá nascido das inúmeras hortas e jardins que por aqui existiam já no século XV, aquando do desembarque do flamengo Joss van Hurtere. Em 1755 a cidade serviu de escala ao navegador explorador inglês James Cook e em 1916 foi bombardeada pelos alemães, durante a primeira guerra mundial. A narrativa começa precisamente no ano seguinte e, além da ilha do Faial, passa ainda pela Terceira, Pico e São Jorge, terminando em 1944. Margarida, esmagada por um “tempo triste”, pela “sombra maciça do canal”, fica condenada à prisão do casamento e a uma espécie de suicídio moral. “Afinal continuava presa às suas relações de família como uma mosca tonta à teia de aranha irisada! A morte do tio Roberto, em vez de a libertar de tudo, tirando-lhe as últimas ilusões, não seria, pelo contrário, a sentença de morte do seu ser?, o seu dobrar à vontade alheia e às garras de um destino sem piedade?”.

Montanha do Pico, Ilha do Pico. | Fotografia: Vincent Bresmal

Ilhéu do Topo, Ilha de São Jorge. | Fotografia: Carlos Duarte

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O Palácio Nacional de Mafra começou a ser construído em 1717 por ordem do rei D. João V.

Baltazar e Blimunda: ilegítimos mas felizes Texto: Lino Ramos Fotografia: Tiago Canoso

Blimunda tem o poder de ver as “por dentro”, mas promete nunca o fazer com o homem que ama, Baltazar. Memorial do Convento decorre em Mafra e Lisboa. Baltazar tem a alcunha de Sete-Sóis, porque só consegue ver a luz. Lutou na Guerra da Sucessão Espanhola, onde perdeu a mão esquerda, e por isso

foi abandonado pelo exército. Quando chega a Lisboa conhece Blimunda e imediatamente se encanta pelos olhos desta mulher que tem um estranho poder:

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O Terreiro do Paço, antiga Praça do Comércio, onde ficava o Paço de Ribeira.

consegue ver “por dentro” as pessoas e os objectos, daí que a chamem de Sete-Luas. Os dois encaixam na perfeição. Entregam-se um ao outro e vivem felizes no silêncio. “Não falou Blimunda, não lhe falou Baltasar, apenas se olharam, olharem-se era a casa de ambos”. Blimunda promete nunca ver o interior de Baltazar, evitando descobrir alguma doença mortal, porque amar alguém é aceitá-lo sem reservas. São um casal ilegítimo, por não se terem casado oficialmente, mas têm um amor puro e ver-

dadeiro e assim vivem mais perto de Deus, ao contrário do rei e da rainha, que tanta importância dão à religiosidade. Foi este monarca, D. João V, que mandou construir o Palácio Nacional de Mafra em 1717, devido a uma promessa que fez para garantir a sucessão do trono. Até então a vila era uma pequena povoação que vivia da agricultura e isolada do mundo. A acção do romance decorre em Mafra, bem como no Rossio e no Paço da Ribeira, em Lisboa, que foi residência oficial dos reis portugueses.

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A Morgadinha dos Canaviais: amores secretos e não correspondidos Texto: Lino Ramos

Na Quinta dos Canaviais e na Quinta de Alvapenha, concelho de Gaia, acontecem histórias de amor secreto e não correspondido. Henrique de Souselas era um órfão rico que morava em Lisboa mas que adoeceu devido ao diletantismo e à sensação de inutilidade da vida da cidade. Por esse motivo mudou-se para o campo, para casa de uma tia, numa aldeia do Norte, a conselho do médico. Foi aí que conheceu Madalena Constança, rapariga de enorme beleza e sensibilidade, A Morgadinha dos Canaviais. Henrique apaixonou-se pela moça, mas o amor não era correspondido e o homem

da cidade tornou-se incómodo tanto para ela como para Augusto, professor primário pobre e honesto que desde criança amava secretamente Madalena. A acção decorre na Quinta dos Canaviais, freguesia de Grijó, concelho de Vila Nova de Gaia, propriedade do Morgado dos Canaviais. Júlio Dinis, que tinha ascendência comum a alguns membros da família, retrata alguns dos seus membros nos romances que escreve. Foi de resto numa das

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Rio Douro entre Porto e Gaia

propriedades do morgadio, a Quinta de Alvapenha, que ficou alojado durante a sua permanência em Grijó. Certo dia, na taberna, Henrique ridicularizou o Sr. Joãozinho, morgado das Perdizes, sendo agredido por ele e pelos sujeitos que a frequentavam – foi levado para casa da morgadinha, onde foi tratado por Cristina, por quem se apaixonou e pediu em casamento. Entretanto foi revelado o amor secreto de Madalena e Augusto, que acabaram por casar. Actualmente pouco resta da extensa área que em tempos formava a Quinta dos Cana-

viais. Ainda é possível apreciar a antiga casa da quinta, restaurada e aumentada, e o portal de entrada para as terras da quinta. Toda a restante área foi urbanizada, sendo implantados lotes de moradias no “último reduto” da já praticamente desaparecida quinta. A Morgadinha dos Canaviais ilustra a tese de Júlio Dinis sobre o efeito regenerador da vida rústica, algo que o próprio escritor terá sentido durante a sua permanência em Grijó. O romance é uma das obras mais conhecidas do autor, tendo sido adaptado a peça de teatro, filme e minissérie.

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A casa onde viveu Aquilino Ribeiro em Soutosa, Moimenta da Beira.

Amor nas Terras do Demo Texto: Lino Ramos Fotografia: Tiago Canoso

As histórias de amor podem ser simultaneamente cómicas e trágicas, como prova este romance de Aquilino Ribeiro, que passa por diversas terras, entre elas Viseu, Moimenta da Beira e Sernancelhe.

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A casa onde nasceu Aquilino Ribeiro, em Sernancelhe.

Glorinhas viveu durante anos a ilusão de um romance com Mioma, fidalgo da aldeia, que se gabava de lhe ter tirado a virgindade. A mãe do rapaz não queria que este casasse com alguém que não era do seu estatuto, daí que ele tenha emigrado, visitando diversas capitais europeias. Quando regressou, quis de novo encontrar-se com Glo-

rinhas, mas ela resistiu aos encontros: tinha aceitado o pedido de casamento de Joaquim Javardo, agricultor abrutalhado mas com riqueza acumulada. Incapaz de aceitar o romance, Mioma fez de tudo para reconquistar a pobre rapariga, multiplicou-se em artes de sedução, no que contou com a preciosa ajuda das alcoviteiras locais.

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A célebre gruta do Santuário da Lapa.

Por fim, conseguiu mesmo desfazer o noivado, ainda que não se tenha apresentado como alternativa. Quando o decidiu fazer, já Glorinhas tinha sido violada por João Bispo, o atrasado mental da aldeia. É nesse final que Aquilino Ribeiro deixa o leitor de Terras do Demo, um dos romances mais conhecidos do escritor. A violência da história e do acto final denota toda a agressividade de uma terra agreste, o Demo. O autor chamou-lhe assim não por ser um local de pecados, mas porque “a vida ali é dura, pobrinha, castigada pelo meio natural, sobrecarregada pelo fisco mercê de antigos e inconsiderados erros e abusos, porque em poucas terras como esta é sensível o fadário da existência”. As Terras do Demo são um vasto território que sai de Viseu, capital de distrito, seguindo a direcção de Vila Nova de Paiva, Moimenta da Beira e a aldeia de Soutosa, onde Aqui-

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O Santuário da Lapa, em Quintela, Sernancelhe.

lino Ribeiro viveu e se inspirou para muitos dos seus livros. A casa é hoje sede da fundação, que tem biblioteca e museu. No caminho para Sernancelhe fica a serra e o colégio da Lapa, local dos estudos primários do escritor. O santuário, mesmo ao lado, atrai peregrinos de diversos pontos do país, curiosos com a história da santa que apareceu a uma menina pastora e cuja imagem é hoje protegida pelos enormes rochedos de uma gruta.

Foi aqui que Aquilino se escondeu mais do que uma vez, fugido à PIDE, a polícia política do estado Novo. O livro Terras do Demo tem outras “históricas de amor”, se assim lhes podemos chamar. Tal como Glorinhas, muitas moças são vítimas da sua credulidade, em especial as jovens crentes que se deixam levar pelas tentações dos padres. Uma realidade que Aquilino conhecia de perto, dado que também ele era filho de um.

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Paixão no Vale de Santarém Texto: Lino Ramos Fotografia: Junta de Freguesia de Vale de Santarém

Carlos, o liberal, apaixonou-se pela prima Joaninha. O vale de Santarém é o principal cenário de Viagens na minha Terra. Passos Manuel convidou o seu amigo Almeida Garrett para uma viagem de Lisboa a Santarém. Nos dias de hoje parece uma jornada pequena, mas naquele tempo os quase 80 quilómetros eram feitos, de mula e a pé e de barco. Portugal era muito diferente, e foi esse país que Garrett retratou não numa viagem, mas em viagens, físicas e mentais, com uma história de amor pelo meio.

Lisboa era, na primeira metade do século XIX, a capital de um império em decadência e de uma nação dividida entre liberais e absolutistas. O escritor partiu de lá com alguns companheiros, pararam em Vila Nova da Rainha, Azambuja e Cartaxo, até que chegaram ao vale de Santarém, onde, por entre as árvores, observaram uma vidraça antiga e um vulto enigmático que nesse

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momento veio à janela, a “menina dos rouxinóis”. Garrett encontrava a sua heroína, a quem chamou Joaninha. Vivia com a avó Francisca, que era cega. Longe estava o primo, Carlos, em Inglaterra. Era liberal, partidário de D. Pedro, e regressou a Santarém quando a guerra civil entrou na vila, hoje cidade. Trocou o primeiro beijo com Joaninha, apesar da ligação familiar e de ter esposa em terras de sua majestade – era um homem inseguro no amor, à semelhança do próprio Garrett, e mais instável ficou quando descobriu ser filho do Frei Dinis. Nesse momento voltou para Inglaterra, jurou à esposa já não amar a prima, mas foi rejeitado. Dedicou-se à carreira política como barão, mas depois de algum tempo desapareceu. Joaninha, essa, ficou desolada com a perda do grande amor e acabou por morrer – é a típica heroína campestre do Romantismo. Meiga, singela e com apenas 16 anos, simboliza uma visão ingénua do Portugal que não aguenta a realidade histórica. ...na mente de grandes escritores portugueses ...by Descla | Abril de 2017 | 37



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